sexta-feira, 14 de novembro de 2025

Espírito Mortal

 


Espírito

Mortal



Não é fácil ser mulher. Quem falou ao contrário mentiu descaradamente. A mulher é o ser mais divino do mundo. Só é possível a entrada de outro ser humano nesse mundo através delas. Toda mulher sonha alto e um desses muitos sonhos, o da maternidade, é o que grita mais forte. Ser mãe. Gerar uma vida por nove meses e depois poder senti-lo nos braços. Não há nada que consiga pagar isso. Pois bem. Esse também era o sonho de Cristiane Almeida. Três meses de alegria. Três meses de expectativas. Três meses de emoções circulando nas veias. Porém o que ocorreu depois desses lindos noventa dias foi justamente o aposto de tudo o que a policial havia sentido antes. Uma dor, um desconforto em uma certa manhã e pronto. Sonho destruído. Agora ela acorda todos os dias para chorar em silêncio. Para que Neil não a surpreenda em prantos ela corre até o banheiro e lá se derrama sentada sobre o vaso sanitário e chora até vomitar.

— Cris, você está bem? – Neil tocou na porta.

— Estou!

Para disfarçar, ela acionou a descarga, lavou o rosto, ajeitou às longas madeixas vermelhas e saiu. Magra e alta. Bonita, pele branca  como a neve, possibilitando ver veias esverdeadas em determinados pontos do corpo. A policial civil Cris Almeida parece uma princesa da Disney, mas só parece. Meliante algum consegue se safar de suas garras. Para sobreviver e proteger ela atira e atira para matar.

— Você estava chorando, não é? – A abraçou.

— Não!

— Amor, pare de lutar sozinha. Essa guerra também é minha.

Cris não deu sequência a conversa. Depois do abraço Neil ocupou o banheiro e ela foi para a cozinha preparar o desjejum. Os dias tem sido assim; enfadonhos, chatos e tristes. Neil já não é mais o mesmo e ela também não tem sido. Então! O que se esperar?

Ela tomou seu café em silêncio. Cinco minúsculas torradas secas e café puro. Feito isso, Cris voltou para o quarto. Abriu o armário onde há um bom número de pacotes de fraudas armazenados e não só isso, há mais coisas como: lenços umedecidos, sabonetes em líquido, algodão e outras coisas relacionadas a um bebê recém nascido. A vontade de chorar bateu, mas Cristiane foi mais forte ainda. Ela se vestiu. Abriu a gaveta do criado mudo e pegou seu distintivo, a Glock junto com o coldre, chaves e celular. 

— Já estou indo. – beijou o marido.

— Se cuida.

No carro ela voltou a chorar, mas agora por outro motivo. Ana Paula, Aninha, sua irmãzinha, morta por Dimas Pop. Ao lembrar do desgraçado ela transpira de ódio. Dimas a deixou irreconhecível naquele quarto de motel imundo de beira de estrada. Ele a espancou até matá-la. Pobrezinha! Esse viado precisa pagar pelo que fez. Isso foi a quase um ano e até agora nem sombra do miserável, parece que foi abduzido. Maldito! Ana Paula tinha toda uma vida pela frente, era linda, adorava Rock,  era sua vida. Acabou sendo atraída por um louco que a ceifou desse mundo. Eu vou te achar, Dimas Pop.


*


Para um sujeito do porte físico invejável, aparência saudável e atraente como Dimas, conseguir a mulher que deseja não é difícil. Ele não é só um cara boa pinta, é também inteligente e agradável. Mas, o que faz um sujeito como ele assassinar uma menina indefesa? O que o leva a desferir socos em sua vítima até não vê-la mais respirando? É algo descontrolável, impossível de dominar, principalmente quando o outro lado se nega a fazer o que ele manda. Ana Paula se negou a fazer certas coisas com ele naquele quarto de motel e pagou caro por isso. Faz o que eu mando ou pagará com a vida. Matar aquela garotinha foi fácil demais, ela não tinha forças nem para reagir, o problema é a sua irmã, Cris Almeida, que o caça incansavelmente há um ano. Se Dimas Pop pudesse a mataria também. O jeito é manter a regularidade se escondendo cada dia num lugar diferente. Esse é o jeito. É óbvio que Pop nunca está sozinho, as garotas de programa lhe fazem companhia sempre. Na hora em que ele quiser e quando ele quiser, desde que pague, elas estão ali com ele.

— O que um cara lindo como você faz num motel como esse? – questionou uma delas.

Dimas não gostou nada da pergunta, mas relevou.

— Um cara como eu também merece se divertir, não acha?

— Ah, sei lá. Você parece ser decente, de família. – disse a outra.

Essa pegou firme. Família. Faz tempo que Dimas não comparece nos encontros e festejos de seus familiares. Ele acha tudo isso um porre. Seu pai não foi um pai tão presente e sempre que podia não perdia a oportunidade de humilha-lo. Sua mãe era uma pessoa pacata, dependente dos remédios e do marido, sofria abusos e humilhações também. Por isso ela resolveu se vingar se envolvendo num relacionamento extraconjugal. Dimas Pop não possuí estrutura familiar alguma.

— Vocês são minha família, pelo menos neste momento. – riu.


Bem distante daquele lugar, alguém analisa a ficha de Dimas tão compenetrada que não foi capaz de ouvir seu superior lhe chamando.

— Me perdoe, chefe.

— Deixe-me adivinhar, Dimas Pop. 

Cris abaixou a cabeça. 

— E como vão as coisas? 

— Nada! Parece que esse cara virou fumaça.

Ferreira pegou o papel das mãos da policial.

— Um sujeito como ele não deveria ser difícil de encontrar. Temos que vasculhar os lugares mais óbvios.

— Devo começar uma busca, senhor?

— Imediatamente. Faça uma pesquisa de todos os lugares aonde um assassino em fuga se esconderia.

— Sim, senhor.

Lugares óbvios. Ferreira talvez tenha razão. Cris passou boa parte da investigação o procurando em locais onde malfeitores procurados costumam se esconder. Dimas Pop pode estar ali, bem debaixo do seu nariz e ela ainda não havia se dado conta disso. Ela ligou o notebook e enquanto o mesmo iniciava, Almeida pegou o mapa da cidade e o desenrolou em cima de outra mesa. Abriu a gaveta e pegou alguns alfinetes coloridos e os fixou em lugares chaves como: hotéis, motéis, apartamentos, entre outros. Nesse tempo o notebook já havia iniciado, Cris fez uma busca no Google dos hotéis mais baratos da região.

— Ao trabalho dona Cristiane.


*


Neil anda sem paciência alguma e para um profissional como ele que necessita de calma e concentração isso é terrível. Há três dias que ele está diante da tela do computador tentando encontrar o melhor tom de cor que combine com o gosto do cliente e até agora nada. Sua cabeça só tem espaço para Cris e a perda do bebê. Por mais que ele saiba que o sonho de ser pai ainda pode ser concretizado, o designe de interior sofre e sofre bastante. Verdade é; o casamento já não estava legal mesmo antes da gravidez. Cris e ele andam batendo de frente sempre que podem e por pouca coisa. 

— Droga! – bateu na mesa.

Ao olhar para o lado, sua colega de trabalho o observava confusa. Ela arqueou às sobrancelhas lhe perguntando o que havia acontecido.

— Tranquilo! – gesticulou.

Não satisfeita, Mônica saiu de seu lugar e foi até ele esbanjando toda a sua graça e beleza. 

— Quer dar uma volta? 

Neil conferiu o horário em seu relógio de pulso. 

— Ainda tenho um tempo. Vamos.

Momentos depois, os dois tomavam café com empadinhas na cantina a duas ruas da empresa, Neil não consegue tirar os olhos do par de seios de Mônica. Ela por sua vez se sente maravilhada ao lado do moreno claro de olhos cor da noite.

— E a Cris, como tem passado?

Neil tirou os olhos dos seios da colega e focou o outro lado da rua. O dia estava ensolarado, porém de temperatura agradável. 

— Não posso responder a essa pergunta.

— E por que?

Visivelmente envergonhado, Neil olhou sua amiga nos olhos e Mônica, de uma certa forma gostou do que ouviu. 

— Eu não a pergunto. Simples.

Se havia alguma dúvida sobre a má fase em que o casamento do amigo está atravessando, ela já não existe mais. Mônica quase vibrou. Ela precisou manter a postura e seguir como fiel ouvinte.

— Com a perda do bebê o nosso relacionamento ficou ainda pior. Eu não sei mais o que fazer. – abaixou a cabeça.

— Então vocês estão se evitando? Isso é ruim. – bebeu mais café.

— Verdade! Só sei que essa situação tem me atrapalhado bastante. – voltou a olhar para ela. – o que devo fazer? 

Mônica terminou de tomar seu café já sinalizando para o atendente.

— Casais precisam conversar. Conversem. Vamos. 

Você pensa que é simples assim? Pensou Neil levantando-se.


*


Para não chamar muito a atenção Cris decidiu ir até um dos locais pesquisados numa viatura descaracterizada. Neste tipo de trabalho é sempre bom ir acompanhado caso ocorra uma emergência, mas para uma agente como Cris Almeida, o trabalho em dupla nunca foi uma vantagem. Nem mesmo quando ainda era uma universitária ela se adequou a essa forma de atuar. Sozinha é bem melhor. Trabalho do meu jeito.

O lugar é um hotel sem muita expressão que localiza-se às margens de um rio fétido ainda no centro da cidade. Ela desceu do veículo e olhou para a placa bem acima da porta de entrada, Ninho Love, vai ter mal gosto assim no inferno! A policial civil entrou e deu de frente com um jovem gordo de aparência cansada.

— Oi? – disse o funcionário.

— Sou a investigadora de polícia, Cris Almeida. – pegou a foto na bolsa. – esse homem já esteve aqui?

Impaciente, preguiçoso e com má vontade, foi assim que o gordo pegou a foto das mãos da policial, pelo menos ele reconheceu Dimas Pop. 

— Sim!

— Quando? – Cris já estava ficando irritada com a postura do rapaz obeso. Ele coçou a testa suada antes de responder.

— Faz uma semana.

— Você está certo disso?

Tenha santa paciência, pensou o jovem.

— Sou provido de boa memória. 

— Certo. Qual o seu nome? 

Putz, daqui a pouco vai pedir meu zap também.

— Marcos.

Cris retirou do bolso seu cartão de visita e o entregou a Marcos.

— Ele deve voltar e quando isso acontecer, me liga. Combinado, Marcos?

— Sim, senhora.

Pode-se dizer que foi um belo avanço. Cris deixou o motel disposta a fechar o cerco contra o assassino de sua irmã mais nova o quanto antes. O que ocorre na maioria das vezes é que, o criminoso, por passar um bom tempo “livre”, gera nele a velha sensação de impunidade. No caso de Dimas Pop, há um ano ele vem se livrando da justiça, mas no fundo todo bandido tem a consciência de que um dia a conta chega; prisão ou morte, mas um dia você há de pagar pelo que fez.

De volta à viatura a investigadora foi acometida de uma tristeza avassaladora. Neil. O homem de sua vida. A pessoa a qual ela jurou que daria o mundo se fosse possível. Ele anda muito distante desde quando eles perderam o bebê. Pra falar a verdade, tudo o que aconteceu só veio para ornamentar o que já estava ruim. Neil e Cris muito antes da novidade da gravidez viviam como amigos dentro de casa, uma situação bastante estranha. Ele não me ama mais? Lógico que em uma fase como essa, acaba por criar em ambas às partes desconfiança e desconforto. Terrível. 

Mas é claro que Cris também está disposta a retomar seu casamento. Ela não se casou para se separar depois de um tempo. Ela o ama, ama tudo que construíram juntos e não será uma má fase que colocará um ponto final nessa história. Assim como fez com a ignição da viatura, Cris Almeida virará a chave de sua vida conjugal. 


*


Mais uma forte bofetada e o sangue que já escorria do nariz da garota de programa respingou nos lençóis brancos da cama. Dimas odeia ser contrariado, principalmente quando isso vem de uma mulher da vida. O golpe a deixou sem rumo e equilíbrio a levando ao piso gelado.

— Pelo amor de Deus, Dimas.

O combinado não sai caro e uma mulher que se dispõe a servir aos homens usando seu corpo e ser bem paga por isso, não se pode dar ao luxo de negar certas coisas na execução do seu trabalho.

— Você não leu o meu anúncio? Eu não faço anal. – limpou o sangue do nariz.

Pop a segurou pelos cabelos, fechou o punho direito e a acertou um direto. Nocaute. Não satisfeito, o covarde seguiu com as agressões só cessando quando os ossos das mãos começaram a incomodar. Dimas a deixou onde estava e para acalmar-se ele se serviu de uma bebida forte. Ele tomou tudo de uma vez só e olhando para o belo corpo da garota desmaiada. Prostitutas são pessoas. Prostitutas possuem coração, é gente e com absoluta certeza há alguém que se preocupa com elas. Aproveitando que a mesma esboçava algum movimento, Dimas decidiu adiantar o processo de reanimação jogando água no rosto deformado da menina.

— Acorda, vagabunda.

Ela acordou sim, mas para voltar a apanhar até a perda da consciência mais uma vez. A intenção agora é matá-la igual fez com Ana Paula, espancá-la até não reconhecê-la mais. Mas, quando estava próximo de aplicar o golpe fatal ele parou. Lembrou-se de Ana Paula e no que se transformou a sua vida depois disso. Segura tua onda, Dimas Pop. Ele se vestiu o mais rápido possível e deixou o quarto.


*


Neil ainda assistia ao jogo de futebol pela TV deitado no sofá quando Cris deixou a cozinha secando às mãos. O dia foi trabalhoso e ela só queria deitar-se ao lado do marido e receber um afago, mas isso está longe de acontecer, faz tempo que esse tipo de coisa não rola entre eles.

— Posso assistir com você? – acomodou-se ao lado dele. Neil apenas anuiu.

O placar da partida marcava um a zero para o time adversário ao de Neil e no momento em que Cris se ajeitava ao lado do marido houve o gol de empate. Neil não esboçou qualquer reação. Isso sim é muito estranho. A apatia era tanta que Cris precisou iniciar uma conversa.

— A culpa não foi minha.

Ainda de olho na TV, Neil respondeu.

— Claro que não.

— Então por que está agindo assim? Como se eu fosse culpada pela perda do nosso bebê.

Ele pegou o controle remoto e deixou a TV no modo mudo. Sentou-se virado para a esposa.

— Seja sincera, Cristiane, está sendo bom pra você? O que estamos vivendo nos últimos tempos está legal?

Pior que não, ela pensou.

— Então é isso. – Cris começou. – você quer desistir de nós, da nossa história?

— Nossa história é linda, seria loucura de minha parte esquecê-la, mas eu também acredito que o amor tenha tempo de duração e...

— Eu te amo, te amo muito ainda e quero ter um filho teu. – às lágrimas finalmente desceram.

Por mais resistente que Neil queira ser, tal declaração o deixou de coração partido. Ele queria muito poder esquecer tudo o que passou e recomeçar do zero ali, mas o orgulho gritou mais alto e ele preferiu seguir se chocando contra tudo o que acontecer dali pra frente.

— Podemos tentar ter outro bebê.

— E pra que, Cris? Eu não quero trazer uma vida ao mundo para sofrer junto com a gente. 

— E quem disse que iremos sofrer? A chegada de uma criança gera novas expectativas, talvez ela seja a nossa salvação. 

Neil voltou a olhar para a TV.

— Preciso pensar. – desligou a TV. – Boa noite.

— Sério? É desse jeito que vamos resolver as coisas? 

Finalmente Neil viu a oportunidade de falar o que já estava entalado na garganta a muito tempo. Ele girou nos calcanhares e declarou olhando nos olhos de sua esposa.

— Nosso casamento não tem mais salvação, Cristiane. Eu quero o divórcio. – desapareceu entrando no quarto. 

De repente Cris viu em meio a penumbra da sala o retrato do que é a sua vida atualmente; vazia, fria e escura. Ele não pensa em tentar salvar nosso relacionamento. Deus do céu! Cris Almeida é uma mulher forte, ser uma agente da lei lhe caiu como uma luva. Não haveria profissão melhor para exercer. Como uma policial, ela extravasa toda sua dureza em cima de meliantes perigosos. Através disso Cris já obteve sucesso em todas operações que liderou. Mas agora, ouvir do marido que não quer mais permanecer ao lado dela foi um golpe duro demais a levando às lágrimas amargas. Cris se esparramou no sofá e chorou até o dia romper, quase.


*


Às nove e meia daquela manhã de muitas nuvens e vento de moderado a forte, Cris já havia tomado cinco copos cheios de café puro numa tentativa em vão de espantar o sono perdido de uma noite terrível. Neil agora foi longe demais ao pedir o divórcio, estariam as coisas tão insolúveis assim? Ela sorveu boa parte da bebida sentada em sua mesa analisando os papéis do caso de sua irmã que é outro problema que a vem consumindo dia após dia. Prender Dimas Pop e lavar a honra de Ana Paula almeida, a irmã a qual sonhou em entregá-la no altar de uma igreja a um homem digno, se tornou uma obsessão praticamente. Antes de sorver outra boa quantidade de café, Ferreira a surpreendeu tocando-lhe no ombro.

— Acho que a sua sorte começou a mudar.

— Como assim?

— Temos uma vítima de Dimas Pop aqui. Venha.

A prostituta se encontrava sentada com suas pernas cruzadas e com o rosto coberto por hematomas, Cris viu nela a imagem de sua irmã naquele fatídico dia.

— Bom dia? – disse Cris.

— Oi! – a menina mal conseguia falar.

— Você já foi medicada? – Almeida sentou-se ao lado dela.

— Sim.

— Me conte o que aconteceu. 

— Bom. Eu, eu, trabalho na noite e o Pop, contratou meus serviços e... – engoliu seco. 

— Preciso que me conte tudo, certo?

— Eu neguei uma prática sexual e então...

Cris olhou para Ferreira que passou uma das mãos no rosto. Ela é apenas uma menina, meu Deus.

— E normalmente ele contrata os seus serviços? – agora foi a vez de Ferreira perguntar.

— Sim.

— Vamos fazer o seguinte. Iremos fazer o boletim de ocorrência e depois você estará liberada, mas vou contar com sua ajuda para prender esse miserável. Pode ser? 

— Claro, mas como?

— Vamos primeiro ao B.O e depois conversamos.


*


Neil também está sofrendo, não na mesma proporção que Cris, mas está. Prova disso é a falta de ânimo e foco no trabalho. Buscando respirar ar puro ele foi nos fundos da empresa segurando uma latinha de energético. A conversa com Cris gerou mais dúvidas do que solução. Ele não sabe direito o que sente pela própria esposa. Teria o divórcio poder o suficiente para pôr um ponto final em tudo que viveram até ali?

— Oi? – disse Mônica.

— Ah, oi, só vim pegar um ar. Já estou voltando.

Neil reparou bem no par de pernas e no busto da colega de trabalho. Mônica estava provocante nesta manhã de ventania.

— Relaxa. Não estou lhe cobrando nada. – olhou para a lata de energético. – posso dar um gole?

— Se não se importar, eu já botei na boca e...

Ela tomou a lata da mão dele e bebeu olhando em seus olhos.

— Devagar com isso. – a alertou.

— Estou acostumada. – Bebeu mais. – e você, como está? 

Neil voltou a olhar para a paisagem, não sabia como responder a pergunta. Mônica se aproximou ficando lado a lado.

— Não precisa responder, se não quiser. – segurou no punho dele. – venha comigo. 

— O que?

Neil estava de volta a ativa, mas dessa vez não era Cris quem era possuída por ele. Mônica proporcionou ao colega vinte minutos de puro prazer intenso. Sexo rápido, sem beijo, apenas sexo. O que estou fazendo? Assim que ambos chegaram ao prazer eles se olharam e riram juntos.

— Você é louca! – disse subindo as calças. 

— Percebi que você precisava relaxar. – abaixou a saia. – vamos.

Agora foi a vez de Neil segurá-la pelo punho.

— Espere.

— O que? 

Neil a segurou no rosto e a beijou apaixonadamente. Mônica estava realizando um desejo que a muito tempo encontrava-se represado dentro dela.

— Uau! – ela expirou.

— Agora sim eu estou pronto para encarar o dia. Vamos. 


*


Como pode uma mente dar conta de inúmeros pensamentos, problemas e todos eles ainda inconclusivos? Cris é do tipo que adotou para sua vida o seguinte lema: um problema por vez. Como uma policial, ela precisa manter sua mente focada na investigação, mas vez por outra a sua vida pessoal teima em atravessar o caminho. Ela pegou a foto de Ana Paula na bolsa e imaginou o que as duas poderiam estar fazendo juntas. Cris nunca foi lá essas coisas na cozinha, em contrapartida sua irmã tinha a habilidade de um verdadeiro chef. Quando solteira, houve época das duas passarem horas elaborando e executando receitas das mais sofisticadas. Era legal.

— Cris? – Ferreira se aproximou.

— Sim, chefe? – guardou a foto e limpou as lágrimas.

— Seu turno acabou faz meia hora. Por que ainda está aqui?

Cris olhou no relógio e se espantou.

— Verdade. Eu nem me atentei.

— Aquela na foto era Ana Paula? – enterrou as mãos nos bolsos.

— Sim.

— Posso ver?

Almeida pegou outra vez a foto e a entregou ao delegado. 

— Bela moça. Minha filha do meio tem a idade dela.

Cris Almeida voltou a chorar. Ferreira acariciou seu ombro. 

— Não se preocupe. Vamos pegar Dimas Pop. Essa missão também é minha. 

— Obrigada, senhor.


Neil conversava com Mônica via mensagens sentado na copa quando Cris chegou. Ele agiu naturalmente.

— Oi? – ele disse. 

— Boa noite. – abriu a geladeira e pegou uma garrafa de água e depois um copo na pia.

— Pensou melhor, Está mais calmo?

Neil guardou o celular e se virou para a esposa. 

— Já estou decidido, Cris. Não podemos mais conviver como se nada estivesse acontecendo.

— Eu investi tudo em nossa relação. É tão simples assim pra você?

Ele olhou para cima e fechou os olhos.

— Claro que não é, mas entenda, nada será como antes. Você é uma mulher extraordinária, bonita, merece ser feliz...

— Sem você?

Silêncio.

O celular de Cris tocou os tirando do constrangimento.

— Agente Cris Almeida falando.

— Ah, oi, sou a Gabi.

— Sim, tudo bem? – Cris olhava para o marido.

— O Dimas acabou de chamar uma das minhas amigas. Eles estão indo para o motel Rosa Púrpura no centro, sabe onde é?

— Claro. Obrigado Gabi.

— De nada, dona Cristiane. Promete prender aquele canalha?

Cris pode ouvir a voz da própria irmã ao telefone.

— Prometo.

Bolsa e chaves recolhidas. Neil apenas acompanhou a agitação da mulher.

— Volto mais tarde. 

Ela deixou a cozinha e Neil confirmou sua ida até o apartamento de Mônica.


*


Dimas Pop estava do jeito que sempre gostou. No meio de garotas lindas, gostosas e dispostas a fazer tudo o que ele mandar. Claro que tudo isso não sairá de graça e por falar em dinheiro, Dimas já deve ter gasto com prostitutas equivalente ao dinheiro de toda uma vida. Dessa vez houve exagero, ele parece estar se despedindo dessa existência desregrada que vive. Quatro meninas, sem temor e sem pudor, trancadas com ele e deitadas numa cama redonda. Houve exagero e exigências. Dimas Pop pediu um quarto com espelhos, espelhos por toda parte, até no teto. Enquanto penetra em uma delas ele faz questão de se olhar executando o ato. Sou muito bom no que faço.


Do lado de fora do motel, Cris Almeida e Ferreira estão de prontidão e se organizam quanto a iminente prisão do assassino da irmã da policial. Por Cris eles invadiriam o local, porém Ferreira teme por uma troca de tiros no espaço.

— Não podemos fazer dessa operação uma vingança pessoal, estamos entendidos? – Ferreira foi categórico.

Uma bala bem no meio da cara do filho da mãe, era tudo o que Almeida desejava naquele momento, ela nunca esteve tão próxima de acabar com algo que já dura um ano. Cris aproveitou que seu chefe deixou a viatura e conversou com sua finada irmã.

— Não se preocupe, Aninha. – pegou uma outra arma no porta luvas, um calibre trinta e oito. – essa será por você. – retirou todas as seis balas e guardou cinco. Olhou para a que ficou em sua mão. – será esta que colocará o ponto final na história daquele maldito. – antes de colocar o projétil de volta ao tambor e o ajustar, ela o beijou. – vamos nessa.


O tempo de Dimas já havia se extrapolado e ainda assim ele seguia com seu jeito selvagem por cima da menina.

— Ei, Pop, nosso tempo acabou. – reivindicou uma delas.

— Fique quieta. – puxou os cabelos da outra.

— Se quiser ficar um pouco mais terá que ajustar o valor. – disse a outra.

Dimas parou o que estava curtindo fazer e foi até a seus pertences. Voltou com uma arma.

— E agora, quem vai ser a próxima a reclamar?

Dimas estava nu, suado e com a respiração pesada apontando sua arma.

— Estão vendo isso? – apontou para o pênis ereto. – quero que todas olhem para isso aqui. Nenhuma de vocês prestam para nada a não ser para a satisfação dele. Ele é quem determina o que vai acontecer aqui. Vocês são escravas dele. Ele é Dimas Pop. – disse aos risos.

Apesar de serem pessoas que sobrevivem da noite, acostumadas ao perigo, as quatro meninas temeram o pior para suas vidas e acabaram encolhidas no chão, no canto do quarto. Dimas não estava brincando de ser cruel, ele é a crueldade em carne e osso.

— Quem será a primeira a se manifestar em favor dele?

Justamente a garota que mais tremia as pernas foi quem ergueu seu braço se oferecendo a tortura.

— Ótimo. Agora sim estamos chegando num acordo. Deite-se e vamos começar.

Medo, nojo, repúdio e porque não dizer; ódio. Dimas Pop estava violentando a menina que permanecia em silêncio recebendo no rosto as gotas de suor de seu estuprador.

— Eu vou acabar com todas vocês. – declarou rindo.


*


Antes de abrir a porta do apartamento, Mônica deu uma última olhada no espelho e decidiu tirar o sutiã.

— Já estou indo. – falou.

A passos largos ela chegou até a sala. Respirou fundo e abriu. Neil estava lá, com seu olhar de sempre para ela.

— Oi?

— Oi! – Ajeitou os cabelos atrás das orelhas. – vamos entrando.

Com às mãos nos bolsos o design entrou meio sem jeito. Ela o convidou para sentar e lhe ofereceu uma bebida. Ele aceitou.

— E então? – Mônica começou. 

— Cris precisou sair às pressas e...

— E aqui está você. – sorriu.

Eles se olharam até que ela tomou a iniciativa de beijá-lo. Neil a puxou para mais perto e Mônica cedeu. Ela o segurou no rosto e não o parou de beijar um segundo sequer.

— Eu acordo e durmo pensando em você. Como, trabalho, faço tudo e você não sai da minha cabeça. – ela disse gemendo. 

— Eu também. Eu também.


*


Ferreira estava ansioso, inquieto, tamborilava os dedos no teto da viatura. Alguma coisa ruim estava acontecendo.

— Está demorando muito. 

Cris abriu a porta da viatura.

— Também acho.

— Vamos lá.

Ferreira e Almeida entraram no motel já mostrando suas identificações para os funcionários.

— Ninguém mais entra ou sai. – falou Cris. – Vamos até o quarto 304.

A dupla de agentes ganhou o corredor central que dá acesso aos quartos. O local é escuro e estreito. Ferreira foi o primeiro a avistar a porta do quarto. Ele abriu o paletó e sinalizou para sua parceira.

— Ele ainda está lá. – sussurrou.

Cris anuiu.

— Ele não tem para onde fugir. – Ferreira sacou sua arma.

— Ele deve estar armado.

Nesse momento ouviu-se um grito. Atônitos, os policiais não viram outra alternativa a não ser invadir o lugar. O delegado usou toda sua força e habilidade dos tempos em que serviu as forças armadas para arrombar a porta com apenas um chute.

— Polícia, mãos pra cima. – gritou Cris.

Dimas ainda em cima da prostituta apontou sua pistola e a disparou duas vezes. Ferreira caiu para a direita e Cris para esquerda.

— Merda, tem mais de uma mulher aqui. – falou Ferreira ainda sob fogo.

As mulheres começaram a gritar desesperadas. Uma delas tentou correr, mas Dimas lhe acertou uma coronhada na testa.

— Não há como escapar, Dimas. – disse Cris. – deixe as meninas irem.

Mais um disparo. A policial estava certa. Não havia como escapar. Choros, lamentos, o tempo estava se esgotando e ela precisava fazer alguma coisa. Negociar, talvez.

— Se não forem embora,  vou matar uma por uma.

Não. De novo não. Como foi com Ana Paula isso jamais poderia se repetir, ele não pode sair ganhando outra vez. Cris Almeida sentiu o coração congelar.

— Me deixem sair. – gritou. – vou contar até três, se não me deixarem passar vou matar uma vagabunda dessa. Falo sério.

Ferreira meneou a cabeça. Cris olhou para ele. Era a hora de fazer alguma coisa. Dimas iniciou a progressiva. 

— um, dois...

— O que faremos? – perguntou Almeida.

— Três. Tempo esgotado. – apontou, mirou e disparou.

Gritos de pavor. Corre corre. Nervos à flor da pele. Adrenalina a mil e sangue espalhado. Ferreira levantou-se como uma flecha pra cima de Dimas que apertou o gatilho mais uma vez.

— É agora, Cris. – berrou.

A bala atingiu o delegado que grunhiu caindo perto da cama. Cristiane Almeida viu o chefe desabando. Ouviu o barulho surdo de seu corpo entrando em contato com o chão frio. Viu Dimas rindo olhando para ele e viu também Ana Paula morta. A policial saiu de seu abrigo e com a única bala no tambor do trinta e oito, a qual ela beijou e jurou vingar a morte da irmã, ela mirou e puxou o gatilho. A cabeça de Dimas se transformou num chafariz de líquido rosado jorrando por todo quarto. Dimas Pop está morto.

— Meu Jesus. – ela disse abaixando a arma. – acabou.

Cris correu até Ferreira e conferiu seu pulso. Pegou o celular e chamou socorro.


Minutos depois, com o prédio já cercado e isolado por outras viaturas, policiais, socorristas e funcionários do motel eram atendidos por ali. Ferreira foi colocado na maca e seu estado inspirava cuidados, mesmo assim ele ainda conseguiu trocar algumas palavras com Cris.

— Foi loucura o que fizemos. Não foi? – a voz estava fraca.

— Devo admitir que sim. Tivemos sorte. – segurou na mão do chefe.

— Verdade.

Ferreira foi colocado dentro da ambulância e levado às pressas para o hospital mais próximo. O corpo de Dimas também foi retirado do local sob a supervisão de outros agentes. Cris Almeida não conseguiu conter a onda de choro, que sua alma atormentada encontre descanso eterno, querida irmã.


*


Três meses depois.

Cris deixou a sala de Ferreira após uma longa conversa sobre o futuro da nova chefia de polícia da cidade. Tudo leva a crer que Almeida terá sua oportunidade de comandar o departamento assim que Ferreira se aposentar.

— Pense na proposta. – orientou.

— Vou pensar com carinho. 

Neste instante seu celular vibrou no bolso.

— Oi Lucas, já chegou?

— Estou estacionado aqui em frente ao DP.

— Já estou indo. 

Ferreira deu uma piscadinha para ela e sussurrou.

— Bom cinema pra vocês. 

— Valeu, chefe.

Fim.

 









quarta-feira, 22 de outubro de 2025

Uma Perda Irreparável

 


Uma Perda Irreparável

Um conto policial com Luís Souza




Não demorou muito até alguém perceber que havia uma suposta mãe em pé com seu bebê no colo. A fila da lotérica começava a fazer a volta, chegando a ocupar a entrada de duas grandes lojas do Shopping Norma. Paula Santiago ocupou o lugar cedido por um rapaz e em questão de segundos a atendente bateu com a caneta no vidro a chamando.

     — Senhora?

     Contas pagas – graças a Deus – dará tempo para conferir as promoções ou talvez tomar um sorvete de casquinha bem baratinho. Mãe de primeira viagem, Paula ainda não sabe como distrair seu bebê que chora desde quando ela saiu da lotérica. Apertada para ir ao banheiro, a mulher apertou o passo até chegar à escada rolante – droga de shopping, só há banheiro com berçário na parte de cima. Quase urinando nas calças, finalmente ela empurrou as portas e encontrou outro desafio; com quem deixar o pequeno Rafael? Juntando as pernas para tentar evitar que o xixi saia, uma jovem senhora entrou e ao ver o bebê, abriu um sorriso de orelha a orelha elogiando a beleza e a fofura do pequeno.

          — Olha só que lindo?

     — Obrigado! A senhora poderia segurá-lo para mim? Estou quase me mijando.

     — Sim, claro, qual o nome dessa lindeza?

     — Rafael. – falou esvaziando a bexiga.

     Paula terminava de se secar quando ouviu o barulho da porta batendo. Suspeitou do silêncio e saiu do reservado. Seu corpo congelou quando não viu a tal mulher segurando seu filho. Paula Santiago saiu do banheiro e chegou ao corredor. Havia poucas pessoas devido ao horário e nenhuma era a dona com o seu bebê. Correndo corredor afora com a bolsa dos pertences do filho no ombro ela foi parada por um segurança.

           — Posso ajudar senhora?

      — Passou por aqui uma mulher perto dos seus cinquenta anos segurando um bebê de colo? – perguntou ofegante e chorando.

      — Sim, acho que sim, o que aconteceu?

      — Ela sequestrou o meu filho. – falou a plenos pulmões.


*


Alguém pagou um café expresso para Paula o qual ela não havia tomado ainda. A seu lado, com o celular grudado na orelha está Leandro, seu marido, ligando desesperadamente para parentes e conhecidos. Todas as saídas do shopping Norma foram fechadas, mas até agora ninguém conseguiu encontrar a tal mulher com o bebê. Paula voltou a se sentar em uma das inúmeras mesas da praça de alimentação chorando de soluçar. Ela tinha os longos cabelos acariciados pelo esposo quando Luís Souza e Márcia Bernardo chegaram na companhia de um dos seguranças.

     — Bom dia, sou Souza e essa é Márcia Bernardo minha assistente, podemos conversar?

     — Só queremos o nosso Rafael de volta policial. – falou Leandro.

     — Eu só pedi para que ela o segurasse. Eu estava apertada para fazer xixi, só isso. – colocou as mãos no rosto.

        — Calma, amor.

     — Senhora Paula, tente se lembrar como era essa mulher. – Souza a orientou. – A descrição será importante, uma marca, um sinal, tatuagem...

     — Não! Ela não tinha nada disso, era uma senhora comum, simpática...

     — Tudo bem. – interrompeu Márcia. – Vamos para um lugar mais reservado, tudo bem? – olhou para Luís.

     — Boa ideia. Eu irei checar as câmeras de segurança. – olhou para o casal Santiago. – vamos encontrar o filho de vocês.

     O policial foi conduzido pelo segurança até a sala onde ficam os monitores e também o funcionário responsável por monitorar todos os corredores, entradas e saídas e elevadores. Ao entrar, o cheiro de café fresco fez Souza se lembrar que ainda não havia comido nada desde quando saiu de casa. O segurança se afastou da tela principal cedendo seu lugar ao detetive.

     — Caramba, quem diria, Luís Souza aqui. – olhou para o outro segurança. – Fique a vontade detetive.

     — Valeu, mas, eu não domino toda essa tecnologia, ficarei aqui e você segue operando a máquina, certo?

     — Certo então. – puxou a cadeira de volta. – toma um café com a gente investigador?

     — Aceito. – pegou outra cadeira. – preciso das imagens de duas horas atrás do corredor onde fica o banheiro com o berçário, vamos lá.

     — Sim, senhor.

     Uma sequência de cliques ligeiros no teclado e uma imagem em alta qualidade se formou no mosaico. Souza cruzou as pernas e pigarrou. O café lhe foi servido num copo descartável. Forte, do jeito que ele gosta. A sala ficou em silêncio. Os olhos do policial estão fitados em cada movimento, cada pessoa que passa por aquele corredor. Jovens, crianças já crescidas, casais de namorados e finalmente uma jovem senhora que parece disfarçar olhando para a vitrine de uma loja.

      — Pare aí. – Souza descruzou as pernas e se inclinou um pouco mais para frente. – Tem que ser ela. Segue.

      O vídeo é longo, por isso o agente pediu para adianta-lo, mas sem perder o foco. A mulher suspeita passou algumas vezes em frente ao banheiro sem se importar com as câmeras ou se quer com os homens da segurança, afinal, quem desconfiaria de uma senhora baixa, blusa de estampa florida, calças largas azul claro e bolsa de passeio? Para Souza, de onde menos se espera é de onde vem as piores tragédias.

    Finalmente Paula Santiago aparece no vídeo apressada entrando no banheiro e em seguida a mulher. Luís Souza e o segurança se olharam. Momentos depois a mulher saiu tendo nos braços um bebê.

      — Bingo! – falou o segurança em pé.

      — Pois é. – Luís se levantou. – Temos a nossa sequestradora.

      Souza engoliu o que restava de café e jogou o copo na lixeira. Quando tocou na maçaneta da porta, o jovem segurança sentado na frente da tela estalou as falanges.

     — Detetive Souza!

    Luís girou nos calcanhares e voltou. Na tela é possível ver a mulher na saída do shopping passando a criança para um homem perto de um carro preto. A ação foi rápida. O carro partiu e a mulher seguiu a pé pela calçada contando o dinheiro recebido.

     — Merda! – Souza coçou o queixo. – Temos a placa do carro pelo menos?

     — Posso conseguir, mas vai levar um tempinho.

     — Tudo bem. – bateu no ombro do operador. – Fez um ótimo trabalho. Consiga a placa. – deixou um cartão sobre a mesa. – Qualquer novidade me avise. – Saiu porta afora.


*


   Na portaria do DP a imprensa se aglomera. Todas as mídias estão interessadas no sumiço do bebê do casal Santiago. Ainda dentro da viatura, Souza se prepara para a enxurrada de perguntas que serão feitas, perguntas das quais ele ainda não sabe as respostas. No volante Márcia lhe propõe algo.

     — Se quiser posso dar marcha ré?

     — Tem coisas que não há como escapar. – abriu a porta.

     Um herói, é assim que Márcia o vê, como um herói. Ela precisa confessar para ela mesma, sua paixão por Souza já passou do nível paixão adolescente e agora está se transformando em amor. Pelo para-brisa ela o vê encarando aquele pelotão de jornalistas com seus questionamentos às vezes nem tão amistosos. Daquela distância ela mal os ouve, mas sabe que seu chefe é esperto o suficiente para driblá-los.

    — Detetive Souza, é verdade que houve uma briga entre os pais da criança e a mãe ameaçou entregá-la para a primeira pessoa que encontrasse?

 — Não chegou ao meu conhecimento. Quem lhe contou isso?

    — Uma fonte. – engoliu seco.

    — Irei investigar essa sua fonte, caso não seja comprovado considere-se preso.

    A cada resposta um passo era dado em direção a entrada. Para não correr o risco de ser cercada por jornalistas, Márcia deu ré e entrou pela parte de trás do departamento. Assim que entrou ela foi direto para a sala de Souza. Dez minutos depois ele chegou, um pouco mais aborrecido, mas ainda disposto a encontrar o pequeno Rafael.

     — Difícil, não é? – Disse a assistente lhe servindo um copo d’água.

     — É incrível. Nem mesmo chegou ao meu conhecimento e eles já estão divulgando. Alguém deveria travá-los. – pegou  copo e puxou a cadeira. – vamos lá, sei que já está pensando em algo, pode compartilhar.

     — Rafael Santiago, sete meses, aparentemente saudável, a mãe precisava usar o reservado e o entregou a uma desconhecida que o levou e o entregou a outro desconhecido, certo?

           — Exato!

      — Essa desconhecida já vinha seguindo os passos de Paula Santiago desde quando ela entrou no shopping. Esperou o momento certo para ação. – Márcia batia com o lápis na testa enquanto falava.

     — Está pensando no que eu estou pensando? – se debruçou sobre a mesa.

     Márcia assentiu.

     — Ela não deve estar muito longe dos arredores do shopping Norma, quero que monte uma equipe de busca, encontrando essa mulher iremos desarticular toda a quadrilha. Certo?

     — Deixa comigo.


*


    Norma é conhecida pela gastronomia diversificada e também por ter as ruas mais largas do que o normal. Para quem curte culinária exótica, Norma possui uma calçada inteira onde os restaurantes servem esse tipo de iguarias. Márcia e sua equipe estão por essa região. Dentro de uma viatura descaracterizada, ela e seu parceiro observam o movimento de pessoas entrando e saindo dos bares e restaurantes.

    — Uma quadrilha que sequestra bebês, onde esse mundo vai parar? – disse o agente no banco do motorista.

    — Penso que estamos lidando com algo ainda mais sério. – comentou tirando fotos com o iPhone.

           — Como o que?

    — Tráfico de crianças. Existem quadrilhas especializadas em fazer isso. Crianças são tiradas de seus pais e são levadas para outro país e vendidas. Souza e eu acreditamos nessa possibilidade.

    — Caramba! – Tamborilou no volante com os dedos. – Temos que fechar o aeroporto de Norma.

    — Montei uma equipe específica, eles estão nesse momento fiscalizando quem entra ou sai. – piscou.

  — Márcia Bernardo. – A cumprimentou.


    Paula e Leandro tentam levar a vida sem o filho. Às vezes os dois passam horas abraçados olhando o berço vazio. Rafael foi planejado e muito desejado. Só a base de remédio eles conseguem dormir. Leandro tenta ser forte, ele precisa ser – pelo menos na frente da mulher – Paula não bebe e nem come nada direito desde quando saiu daquele shopping, ela é uma mulher bonita, mas seu rosto ultimamente tem ficado desfigurado devido às horas de choro incessante.

     — O que você acha? – perguntou Paula em pé diante do berço.

     — Sobre? – Leandro a abraçou por trás.

     — Devemos comprar um conjunto de berço novo para quando ele voltar?

     — Sim, claro que sim, amor. Quando quer ir? – a beijou na cabeça.

     — Vamos amanhã, conheço uma loja que fica no centro. – limpou as lágrimas.

     — Ótimo, iremos amanhã e quando o Rafinha voltar, tcharam! Enxoval novo.


*


    O cachorro vira lata vai na frente fuçando o lixo em busca de alimento, o mesmo faz seu dono com a diferença de que ele usa um cabo de vassoura para revirar o lixo. O lugar fica na divisa do estado onde boa parte dos dejetos são jogados pela companhia de limpeza urbana de Norma. Ali é possível encontrar de tudo, desde tampinhas de garrafas de cerveja até partes de corpos humanos. O dono do cachorro vem logo atrás do animal que insiste em cheirar alguns sacos pretos entulhados um por cima do outro.

     — Achou alguma coisa Hulk?

     O cão continua a mexer nos sacos até ser ajudado por seu dono que desiste de desatar os nós. Com fome a dois dias ele imagina ter ali dentro um suculento pedaço de carne apodrecida. O mendigo rasgou o saco e o que viu o fez cair de bunda no chão.

     — Jesus Cristo.


     O que era um lixão, de repente se transformou num canteiro onde fitas amarelas isolam o local onde o mendigo encontrou um cadáver. Viaturas, policiais indo de um lado para outro e até mesmo curiosos circulam por ali na tentativa de fazer um registro com seus Smartphones. Acocorados em volta do minúsculo corpo os peritos se apressam em dar um resultado para o policial responsável, ou seja, Luís Souza que aguarda encostado em sua viatura.

     Serviço concluído. O perito chefe, um homem alto e magro com óculos fundo de garrafa que evidenciam seus olhos azuis, se levantou e retirou as luvas visivelmente aborrecido. Ele fez um sinal discreto chamando Souza para mais perto.

     — Lamento, tudo indica que seja o filho do casal Santiago.

     — Putz! – Souza coçou a cabeça. – Vou dar uma olhada.

     Lá está ele, Rafael Santiago, apenas sete meses de vida, jogado no lixo como se nada representasse. Luís tentou ser forte, mas existem horas em que o detetive durão, coração de aço dá lugar ao pai, marido, irmão, o humano. Agachado ao lado do corpo do bebê ele chora — que se dane se estão olhando eu também tenho um filho caramba – o perito chefe se aproximou e o afagou nos ombros.

      — Foi complicado pra mim também. Quer uma água?

      O detetive aceitou. Olhou ao redor e depois conteve outra onda de choro. Raiva. Souza sente que perdeu o jogo. A água chegou e ele se afastou do grupo. Os outros policiais olhavam para ele com admiração – nosso companheiro é um cara de carne e osso, seu choro não o diminui em nada — Ele entrou na viatura e ligou para Márcia.

     — Me dê uma boa notícia!

     — Não posso. – soluçou. – perdemos o Rafael, Márcia, os desgraçados o mataram.

     — Não! – voz embargada.

     — Vamos revirar Norma de ponta cabeça, eu quero essa mulher hoje na sala de interrogatório. – Souza estava apertando o volante.

     — Pode deixar. Eu aviso a família.

     Luís Souza sentiu a necessidade de beber algo forte, apenas para relaxar. Antes de girar a chave da viatura ele pôs a cabeça no lugar e pensou com mais calma. Melhor usar esse tempo para se empenhar em agarrar o miserável que matou Rafael. O carro começou a sair devagar, Souza se permitiu ver o recolhimento do pequeno corpo de Rafael pelo chefe da perícia. Vão pagar caro pelo que fizeram.


*

    Comoção nacional. Todo o país parece ter perdido um filho, um sobrinho, neto. O caso do bebê Santiago, como ficou conhecido, repercutiu mundialmente. Nas primeiras páginas dos grandes jornais, a foto do pequeno Rafael sorridente ilustra o tamanho da perda, do sentimento de revolta. A todo instante Luís Souza precisa dar explicações tanto para a imprensa quanto para seus superiores, no caso o secretário de segurança.

     — Achando essa mulher iremos acabar com a quadrilha, Ubiracir. – Souza está sentado no gabinete do secretário.

    — Como sabe que se trata de uma quadrilha. – retirou os óculos e apertou as vistas.

    — Tenho imagens dela passando o bebê para outra pessoa num carro.

    — Não podemos errar, você sabe. Temos um país inteiro em cima da gente, o governador exige respostas e pasme. – deu uma pausa. – o presidente quer a resolução deste caso imediatamente.

    O agente se levantou, ajeitou a cadeira e olhou para Ubiracir.

     — Norma é a minha cidade, estou fazendo o que posso para mantê-la livre de casos como o de Rafael Santiago. Minha equipe seguirá trabalhando. Tranquilize o governador e o nosso presidente.

     Do lado de fora da secretaria de segurança uma massa de jornalistas aguarda a saída do detetive. Todos querem uma declaração. Todos querem ouvir da boca do líder do caso quais os próximos passos a serem dados. Souza saiu e assim que foi visto foi cercado por microfones, gravadores, celulares e câmeras. Uma programação sensacionalista interrompeu sua programação para entrada do link com Souza. O apresentador, um sujeito grosseiro de fala rouca e alta pediu prioridade.

    — Atenção senhoras e senhores, estamos com o detetive Luís Souza ao vivo, na portaria da secretaria de segurança. Jarbas é com você.

    — Sim, nós estamos com o agente Souza aqui e ele nos dará alguns esclarecimentos quanto ao caso Rafael Santiago. Detetive, o que esperar agora da polícia?

     — Boa tarde a todos, boa tarde Gregório. Bom, o que esperar da polícia é justamente a resolução do caso. Estamos trabalhando afinco para encontrarmos o assassino. Devemos uma resposta em primeiro lugar aos pais da criança e depois a sociedade. Não podemos mais aceitar esse tipo de coisa em nossa cidade. Esse fato ficará marcado pela tristeza e também servirá de lição para quem pensa em entrar para o submundo do crime, todos serão punidos com rigor.

     Foi difícil, mas Souza conseguiu sair ileso do meio dos profissionais de imprensa. Cansado física e mentalmente ele foi direto para casa, tomou um banho e se deitou na cama. Fechou os olhos ainda conseguindo ver o corpinho de Rafael no meio daquele monte de lixo, como podem fazer mal a um anjinho? Aos poucos o sono foi vencendo e ele adormeceu mesmo com a luz do quarto acesa. O sono já era profundo quando o seu celular tocou bem ao seu lado. Assustado e ainda sonolento, Luís demorou a encontrar o aparelho que seguia tocando.

        — Detetive Souza!

     — Luís, me desculpe pelo horário, você já estava dormindo, não é?

     — Suzana? – se ergueu. – que número é esse?

     — É novo, depois você pode salvá-lo.

     — Como estão as coisas, e o Jeferson?

     — Crescendo assustadoramente é incrível como ele é parecido com você. Ele viu sua entrevista hoje à tarde e ficou orgulhoso.

      — Ah, sim, legal. – se levantou. – e quanto a você, o que achou?

      — Eu não vi ao vivo, assisti depois no YouTube, você foi bem sim.

      Souza abriu a geladeira e pegou uma caixa de lasanha congelada, ele não come direito a algumas horas e seu estômago já o havia avisado antes de chegar em casa. Ouvir a voz de sua ex esposa foi a melhor coisa que aconteceu neste dia conturbado. Pra falar a verdade, ele gostaria que ela estivesse ali com ele para degustarem da lasanha juntos.

     — Que bom que ligou. – colocou a lasanha no micro-ondas.

     — Não tinha como não ligar, a morte desse bebezinho mexeu com todos e acredito eu que com você mais ainda.

      — Eu tinha esperanças de encontrá-lo, vivo, de preferência. – acionou o temporizador e se sentou. – me diga uma coisa, eu estou conversando com a Suzana mãe, cidadã ou com a Suzana jornalista?

     Seguiu-se um silêncio.

   — Vai valer se eu lhe falar que ambas?

    Souza ficou chateado. Mesmo sabendo que sua ex definitivamente não quer saber de reatar o casamento, ele sempre cria expectativas e sempre acaba magoado, como agora. Luís pensou em começar uma série de questionamentos, porém decidiu se poupar desse desgaste.

     — O meu pessoal está virando a noite em busca do assassino. Amanhã estou de folga, mas não posso me dar o luxo, vou pegar uma das viaturas e caçar. Se quiser publicar fique a vontade.

      — Não. Não irei publicar. Vou abrir o jogo. Liguei mais para saber como você estava. Notei na entrevista o seu abatimento, então...

      — Pois é. – a lasanha ficou pronta. – tem coisas que a gente não esquece, como por exemplo, notar que o ex marido não está bem.

      Suzana resolveu encurtar a conversa.

     — Agora quero detalhes para publicação. Você está trabalhando com que hipótese?

     Outra onda de raiva.

     — Sequestro seguido de morte. Tráfico de crianças, o restante é confidencial.

     — Boa noite, detetive Souza.

     — Boa noite, meu amor. – tarde demais, Suzana já havia desligado.


*


     Márcia Bernardo fazia anotações quando foi surpreendida pela entrada abrupta de Souza na sala de autópsia. Até mesmo o legista se assustou.

      — Luís? Não era para você estar dormindo a essa hora? – falou Márcia.

      — Disse bem, era, agora vamos ao trabalho. 

      — Sinais de violência por todo o corpo. – adiantou o legista. – essa criança sofreu muito antes de morrer.

      Todos estavam em pé ao redor do cadáver naquela mesa de aço fria. O médico descobriu o corpo e apontou marcas e hematomas.

      — Todas elas foram feitas com ele ainda vivo, como todos sabem mortos não criam hematomas.

       Souza olhava para Rafael e imaginava o sofrimento do indefeso bebê. Ele estava prendendo as mandíbulas e apertando os punhos. Luís se sentiu um pouco tonto, mas segurou a onda.

       — Preciso saber o que causou essas marcas no pescoço, braços e peito. – Luís passou a mão na testa. – onde tem café?

       — No final do corredor. – disse Márcia. – Você está legal?

      — Depois que eu tomar um café ficarei melhor ainda. – saiu da sala.

      Se a situação já não era favorável, com a ligação de Suzana ela ficou insustentável. Foi uma noite péssima, poucas horas de sono e muitas coisas se passando na mente. O que fazer quando se ama uma pessoa que não lhe quer mais? Como conviver com isso vinte quatros horas todos os dias? É preciso mais do que algumas doses de bebida forte para se refazer emocionalmente. Como não bastasse suas questões pessoais, ele é ainda um policial e não um simples policial. Luís Souza é considerado o xerife de Norma, reconhecido por autoridades dentro e fora da cidade, tem credibilidade. Saber separar as coisas é outro desafio a ser encarado.

      A máquina de café é algo moderno demais para ele. Souza ainda prefere a boa e velha cafeteira de sua sala no DP. Depois de muito esforço, por fim ele conseguiu se servir do expresso. Ao experimentar da bebida amarga e fumegante o seu celular tocou no bolso da calça.

      — Souza!

      — Detetive, estou enviando uma foto da nossa suposta sequestradora. — Era um dos membros da equipe que Souza mandou para as ruas.

       — Manda!

      A foto chegou. Luís à conferiu com cuidado. Seu coração batia acelerado e ele o sentia na garganta. Era a mesma mulher das imagens. Souza retornou a ligação.

       — Aonde vocês a viram?

       — Circulando nos arredores da galeria.

       — Ótimo, peguem ela.


*


   Silêncio sepulcral. Ar condicionado no máximo. Mãos algemadas e presas na mesa. Olhar perdido e uma expressão de pânico. A sala de interrogatório tem a capacidade de fazer qualquer um borrar as calças. A mulher segue sentada sem se mover praticamente há meia hora. Souza entrou e a dona mal se moveu.

     — Carmelita Araújo, 54 anos, profissional na área de enfermagem. Procede as informações? – puxou uma outra cadeira.

      — Sim!

   — Conhece essa criança? – colocou sobre a mesa uma foto de Rafael Santiago sorrindo no colo do pai.

      — Nunca vi. – mal olhou para a foto.

      — Tem certeza? Olha direito.

      Carmelita mais uma vez só passou os olhos.

       — Vou lhe ajudar, dona Carmelita. – pegou outra foto, dessa vez Rafael está morto em cima de uma maca. – melhorou agora?

      A expressão da mulher passou da serenidade para a inquietação. Seus lábios começaram a tremer e seus olhos oscilavam entre a foto e Souza. De Souza para a porta e depois voltava para a imagem.

      — Posso ligar para o meu advogado?

      — Sim, mas antes me diga se conhece essa criança. – cruzou as pernas. – pra quem trabalha e como vamos chegar a essa pessoa.

      — Só falarei na presença do meu advogado.

      — Dona Carmelita Araújo. – se levantou. – veja ao seu redor, quem a senhora está protegendo não se importa com você, veja. A senhora está aqui e ele não. Vai segurar essa sozinha? Vale mesmo a pena pagar pelos outros? – falou o tempo todo atrás da acusada.

     — Eu não tinha noção do que fariam com esse bebê. – as lágrimas desceram. – sou sozinha nesse mundo, não estou trabalhando no momento e aceitei o trabalho, mas eu juro que não sabia.

     — Para quem a senhora trabalha, dona Carmelita? – Souza continuou atrás dela.

     — Samuel Vaz. – falou com uma certa revolta.

     — O que ele faz com as crianças, as vende, as...

     — Samuel é um demônio, cruel, oco por dentro, eu custo a entender porque há pessoas que o segue.

     — A senhora pode ser mais específica? – cruzou os braços.

     — Samuel Vaz ou Pai Vaz, é um feiticeiro. É líder de uma seita diabólica. Coisas horríveis acontecem em suas celebrações, coisas sobre humanas. Ele queria uma criança para um determinado trabalho, mas não disse como seria esse trabalho. – começou a chorar. – pelo visto houve um sacrifício humano. Lamento muito, a culpa é minha, foquei só no dinheiro e deixei de lado a vida. Meu Deus.

     — Quanto Vaz lhe pagou? – finalmente Souza saiu de trás e ficou parado na frente de Carmelita.

      — O suficiente para pagar aluguéis em atraso, contas e compras.

       — A senhora ficará detida até pegarmos Samuel Vaz. Agora diga, onde o encontramos?

*


     Quando se tem uma boa equipe nas mãos, fica fácil trabalhar e isso Souza tem sobrando. Assim que recebeu a informação sobre a localização do chefe da seita misteriosa, Luís, juntamente com sua assistente, organizou uma operação de busca. As viaturas saíram do DP em carreata partindo para diversos pontos de Norma. Samuel Vaz, um nome desconhecido pela polícia, mas com certeza ficará na lembrança do detetive como sendo o cara que deixou uma população inteira abismada com a morte do pequeno Rafael.

     Dentro do carro Márcia fez uma busca no Google sobre a tal seita satânica, mas tudo o que encontrou foi o brasão, que por sinal é bastante intimidador e algumas frases de adeptos.

      — Essa seita é nova na cidade, pelo visto eles ainda estão se organizando. – virou o notebook para Souza.

      — “Caminho do vento” – Luís apertou os olhos para enxergar melhor. – que vento deve ser esse, da morte?

      — Só pode. Veja o brasão, a figura da morte, bem discreta, mas é ela sim. – Márcia apontou.

      — Essa bagunça terá fim hoje. – bateu no ombro do policial que conduzia a viatura. – pisa fundo, Oliveira.


      Paula está deitada na cama, olhando o nada, tremendo as mãos e soluçando. Desde que soube da morte do filho ela vem tomando doses cavalares de calmantes. Leandro tem sofrido calado, ele tem suportado as pancadas em silêncio. Ele entrou no quarto e presenciou sua esposa embalando uma roupinha e cantando a mesma música que cantava para Rafael dormir. Paula não está legal, pensou Leandro. Agora ela precisa de outro tipo de ajuda. Paula precisa de ajuda profissional caso contrário ela irá enlouquecer.

     — Oi amor? – falou parado na porta.

     Paula fez sinal de silêncio.

     — Consegui fazê-lo dormir.

     De costas Leandro foi deixando o quarto, penalizado pela situação em que se encontra sua amada. Antes de ligar para a psicóloga ele desabou no sofá. Tem coisas que nem um gigante suporta. O pranto é alto, acompanhado de socos no braço do sofá. No quarto Paula continua embalando um bebê que não está lá. Ela escuta os gritos do marido e não esboçou qualquer sentimento.


*


   Samuel Vaz terminou de untar sua cabeça com um tipo de óleo verde, mal cheiroso que se encontra dentro de uma bacia de prata rigorosamente polida. Dentro de sua casa cerca de dez pessoas acompanham o ritual de unção conhecida entre os seguidores como sendo a unção da caveira. Vaz é jovem, tem somente 33 anos, idade de Cristo, é bonito e imponente. Samuel usa uma toga preta com detalhes em dourado. Ao se levantar o líder inicia uma ladainha perturbadora fazendo com que seus membros entrem em transe.

     — Começaremos agora o sacrifício do sangue. Quem quer ser voluntário?

      Alguém bateu na porta. Uma das ajudantes a abriu e Souza entrou sem pedir licença.

     — Senhor Samuel Vaz, o senhor está preso, nos acompanhe por gentileza.

     O lugar é invadido por agentes armados enquadrando todos os presentes. Vaz, com o dedo indicador em riste, protestou e foi algemado por um dos policiais a mando de Souza.

      — Sob qual acusação estou sendo preso.

      — Pela morte do bebê Rafael Santiago. Vamos.

      — Calma aí, eu não sei nada dessa história.

      — Explica isso ao juiz. – foi empurrado em direção a saída.

      Dentro da viatura, ainda protestando, o líder da seita da morte deu um certo trabalho para Souza e Márcia. Após ser advertido pelo policial, o religioso passou a cantarolar uma canção de cunho satânico e isso fez mal a todos ali dentro.

     — Não estou me sentindo bem, Souza. – disse Oliveira o motorista. – preciso parar a viatura.

     — Deixa que eu dirijo. – propôs Souza.

     Márcia precisou abrir a janela do carona para pegar ar fresco. Oliveira se acomodou ao lado de Samuel que seguia cantando. Luís deu a partida. O mal realmente existe, pensou o detetive. Não suportando mais ouvir a canção, não restou outra alternativa a Oliveira a não ser apagar o acusado com um golpe em seu rosto.

      — Sei que isso pesará na minha conta, mas as nossas vidas estavam em jogo. Me desculpa, Souza.

      — Tudo bem. Sintam, o clima já é outro.


      A prisão de Samuel Vaz foi noticiada quase que simultaneamente pelos veículos de comunicação que aguardam sua chegada ao DP. A população também se mobilizou na porta do departamento de polícia. Alguns gritam querendo a morte do assassino, outros apenas seguram placas e faixas pedindo justiça. Leandro e Paula comemoraram juntos a prisão do desgraçado que tirou Rafael deles.

      — Agora sim o nosso anjinho vai poder descansar em paz. – declarou Paula abraçada ao marido.

      — Isso mesmo amor. – a beijou na cabeça. – ainda existe justiça nesse mundo.

      Deu trabalho, mas por fim a polícia conseguiu entrar com Vaz. Lá fora a confusão é generalizada. Não bastasse os que são a favor da prisão de Samuel, agora os que são contra se vêem no direito de protestar na frente do DP. Um verdadeiro barril de pólvora. Antes que os dois grupos entrassem em conflito, Souza ordenou que seus homens os dispersassem. Foi preciso a colocação de grades e disparos de bombas de efeito moral. Em um pouco mais de vinte minutos as ruas foram limpas.

     No DP Samuel Vaz é o centro das atenções. Todos, sem exceção, querem ao menos dar uma olhada no matador desgraçado, o assassino de crianças. Vaz foi colocado numa sala na companhia de um policial armado. Souza, Márcia e o restante do pessoal finalizam a operação na sala do agente que no momento é só elogios e agradecimentos à equipe.

     — Valeu pessoal, somos exemplos de que quando um grupo segue um único propósito, um só pensamento, conseguimos êxito. – aplausos. O telefone tocou na mesa.

    — Souza, parabéns pela prisão, vamos levar esse caso para o juiz ainda hoje. – afirmou Ubiracir.

    — Tá certo, o senhor pode me manter informado?

    — Claro que sim e mais uma vez parabéns.


*


    Bar lotado. Cheiro de comida boa no ar. Pessoas sentadas conversando. Garçons circulando com suas respectivas bandejas com tulipas cheias de chopp e petiscos. Na parte de cima do estabelecimento mesas foram reservadas para a equipe de Souza. Os policiais bebem, comem, comemoram o feito da maneira clássica, erguendo os copos e brindando. Souza está em sua noite especial por isso ele já passou da quarta tulipa. Márcia, sentada a seu lado, preferiu ficar somente na Coca-Cola com limão e gelo.

     — Olha aí pessoal, que tal uma selfie? – sugeriu Oliveira.

     — Espera, espera. – vociferou Márcia. – deixa eu me ajeitar.

     Souza acompanhou sua assistente desfazendo o rabo de cavalo e soltando os cabelos. Nesse momento ele pode ver o quão linda e sexy ela é. A foto foi batida. Luís Souza fez questão de espanar os pensamentos quanto a Márcia. Apesar da bebida já estar começando a fazer efeito, os pensamentos do agente estão longe, na casa dos Santiago, do vazio que deve ser sem o filho. A prisão do assassino não trará Rafael para o seio da família, mas com certeza abrandará sentimentos nocivos como por exemplo a injustiça.

     A festinha acabou. Márcia achou melhor seu chefe não dirigir mesmo não estando embriagado. Ela o deixou na porta de seu prédio. Antes de descer, Souza olhou para ela e pela primeira vez ele a viu além da excelente detetive que ela é.

     — Posso falar uma coisa?

     — Até duas. – brincou.

     — Nunca havia reparado, seus olhos mudam de cor a noite. – aproximou o rosto. – e sua pele é...

     — Acho que você bebeu além da conta, chefe. – Márcia ruborizou as bochechas.

     — É! Também acho. – desceu do carro. – boa noite, agente Bernardo.


*


    Luís Souza não dormiu, ele desmaiou. Foi um sono tranquilo, o detetive quase não se mexeu na cama. Não se levantou para ir ao banheiro como faz todas as noites. Não resmungou e nem se debateu, apenas dormiu em paz. Às nove da manhã ele ainda dormia quando foi acordado pelo toque do celular. Era o secretário de segurança.

     — Souza! – falou bocejando.

     — Péssimas notícias, Souza, o juíz mandou soltar Samuel Vaz imediatamente.

     Souza arregalou os olhos e se levantou.

     — Não brinca, o que ele alegou?

     — Faltam provas mais contundentes.

     — Mais? Ubiracir, nós temos o depoimento da senhora Carmelita Araújo e...

      — Sei bem, só que isso não basta para ele, entendeu? Infelizmente Vaz estará na rua antes do almoço. Lamento, Souza.

      Faltou pouco para que Luís lançasse o aparelho pela janela, mas ao invés disso ele empregou todo o ódio que estava sentindo para se aprontar e correr para o DP. Durante o trajeto ele recebeu inúmeros telefonemas, todos revoltados, todos se sentindo palhaços, mas a decisão já havia sido tomada, Samuel Vaz saiu pela porta da frente junto com seu advogado. A imprensa o cercou mesmo ele não querendo falar. O advogado o protegia com o corpo até seu embarque. Pessoas gritavam, o xingavam de assassino, daí para baixo. Outro grupo comemorava a libertação do líder religioso com fogos de artifício e brados. Souza e sua equipe acompanhavam da portaria a saída do bandido.

    — Já chega pessoal. – Souza falou. – Temos muito trabalho pela frente, o juiz pediu provas, então vamos buscá-las.


    O cemitério não cabia mais ninguém, nem na calçada havia espaço para tantos carros. O sepultamento do pequeno Rafael Santiago foi marcado pela tristeza, dor e principalmente pela revolta. O cortejo que acompanhava a subida do caixão até o lugar da sepultura clamava por justiça, tudo foi registrado pelas emissoras locais. Houve até um princípio de tumulto que logo foi desfeito. Leandro e Paula Santiago já não tinham lágrimas para chorar, apenas observavam o que o filho causou no coração das pessoas. O corpo de Rafael foi deixado no jazigo perpétuo sob muitos aplausos e gritos pedindo punição ao assassino. Souza e Márcia ficaram juntos, quietos, destacados da multidão. Durante todo o tempo em que estiveram ali eles não trocaram sequer uma palavra, talvez pelo o que aconteceu da última vez quando estavam juntos. Ou também pelo fato deles terem perdido essa batalha. Sabe-se lá o que está rolando na cabeça de ambos.

     Assim que o cemitério foi ficando vazio, os agentes foram procurados pelos pais e familiares do bebê Santiago. O pedido foi único: a prisão do feiticeiro o mais rápido possível.

      — Também não concordamos com a soltura dele, por isso estamos virando noite atrás de provas. – falou Souza.

      — Samuel Vaz não pode sair dessa impune. Assim como foi com meu filho, pode ser com outros. – disse Leandro de mãos dadas com a esposa que parece ter envelhecido trinta anos em poucos dias.

      — Pode confiar na polícia, senhor Leandro. Estamos fazendo nosso trabalho. – completou Márcia.

      Eles se despediram. Na saída do cemitério, Souza resolveu quebrar o clima entre os dois.

      — Me desculpa? – estendeu a mão.

      — Pelo que? – Márcia deu um ar de riso e arqueou as sobrancelhas.

      — Ah, você sabe. – fechou a porta da viatura.

      — Por você falar que meus olhos são bonitos e minha pele é sedosa? – sorriso enviesado.

      — É, Pois é. – coçou a nuca.

      — Para com isso, Souza, eu sei que os homens não resistem a uma gordinha. – riu alto.

      — Você não é fácil. – colocou o cinto.


*


    E a população de Norma segue com os protestos, segue revoltada, as redes sociais não falam sobre outra coisa, o assunto polarizou dando motivo para debates e até embates. Enquanto isso existe uma família devastada, faltando um pedaço. A decisão do juiz não mexeu somente com os Santiago, a libertação de Samuel Vaz colocou em cheque a sobriedade da justiça, ela pune mesmo quem merece? A justiça existe de verdade?

    Dois dias depois do fato, Souza ainda tinha na garganta um gosto amargo e isso o fez perder o sono e fome. Às 22h sua sala no DP continuava iluminada, com fotos organizadas em cima da mesa. Luís às olha incessantemente. Todas as perguntas são respondidas positivamente. Vaz é líder de uma seita satânica? Sim! Existe sacrifício humano nessa seita? Sim! Há indícios de que o filho dos Santiago foi morto num desses rituais? Sim! E o que é pior, Carmelita Araújo depôs contra o religioso. Que provas mais serão precisas?

    Exausto, frustrado, mas não desanimado. Souza juntou todas as fotos e papeladas e os jogou dentro da gaveta e se espreguiçou na cadeira. Pensou por um instante, o jeito é voltar ao local do crime. Assim deve proceder um bom policial. Voltar ao início, descobrir pontas soltas, o que teria deixado para trás? Como tudo na vida, é preciso voltar ao início de tudo.


    Início de madrugada. Semáforo liberado e um carro preto, popular, parado no meio da pista atrapalhando o fluxo. Na janela do motorista quatro perfurações por arma de fogo. Dentro do carro, duas pessoas: Samuel Vaz e seu auxiliar. Vaz está morto, com dois tiros na cabeça, seu corpo está caído sobre o do auxiliar que apenas desmaiou. Um ciclista parou, olhou e chamou a polícia. Feito isso ele iniciou uma live. Em poucas horas o país inteiro já sabia do ocorrido. Samuel Vaz, suposto assassino do menino Rafael Santiago foi morto a tiros nesta madrugada.


*


    Souza e Márcia chegaram ao local do crime onde já havia uma grande movimentação de curiosos e policiais fazendo a segurança do corpo. O resgate socorreu o auxiliar que precisou ser levado às pressas para o hospital mais próximo. Souza olhou para o interior do carro, tudo estava em seu devido lugar, nada foi levado então ele descartou a possibilidade de assalto. Depois ele deu uma longa olhada no cadáver. Tiros na cabeça. Quem fez isso sabia que não poderia de jeito algum falhar, os disparos foram dados a poucos centímetros da janela do motorista. O detetive deu a volta e olhou o lado do carona. O rapaz também foi alvo do atirador, mas sobreviveu, eis a falha do assassino.

     Márcia também estava por ali e acompanhava pacientemente as análises do chefe. Ela por sua vez tinha algo diferente em mente. Vaz em pouco tempo ficou conhecido, inimigos foram contraídos e depois de sua saída da prisão o povo se viu no direito de fazer justiça com as próprias mãos e foi o que aconteceu. Um justiceiro, nascido do meio do povo, ele pode estar em qualquer lugar, inclusive ali, agora, assistindo de camarote tudo o que fez.

     — Souza. – Márcia o chamou. – temos um trunfo. Samuel Vaz já era. Temos que aguardar o rapaz acordar. Ele sim viu tudo.

     — Droga. – olhou para o céu. – não podemos permitir que nossa cidade se transforme numa terra sem lei, não quero justiceiros em Norma. Eu vou atrás desse cara até o fim da linha.

     — Fique calmo. Foi um dia péssimo, eu sei, mas tenhamos a cabeça no lugar.

     O mundo desabou em Norma. Povo dividido. A polícia corre contra o tempo na captura do tal justiceiro e o que pode ser ainda pior, com o assassinato de Samuel Vaz, líder religioso, há o iminente risco das ruas serem tomadas por manifestantes furiosos. O governador emitiu uma ordem: a polícia ocupará os principais pontos da cidade, ficarão em alerta total até as coisas voltarem ao seu estado normal.

     Como era de se esperar, a seita Caminho do Vento ganhou as mídias. Na internet todos querem saber a fundo o que eles pregam e professam. Na TV outros líderes deram declarações e repudiaram o ocorrido e segundo alguns especialistas a tal seita satânica recebeu nos últimos dias novos membros. Norma nunca esteve tão agitada.


*

    O sono começou a bater mais forte, mas Souza precisa se concentrar nas imagens de uma câmera de segurança de uma loja de peças automotiva que fica em frente ao sinal onde ocorreu o crime. A imagem é ruim, mas dá pro gasto. O carro de Vaz para no semáforo. Dentro do veículo parece haver uma discussão, Vaz gesticula bastante. Seu auxiliar também fala e meneia a cabeça várias vezes. De repente uma motocicleta para ao lado, o seu condutor usa calça jeans e casaco moletom. O capuz cobre a cabeça e provavelmente usa máscara. Sem se anunciar ele sacou a arma. Uma pistola e atirou. Luís Souza pediu para voltar o vídeo pela quinta vez causando estranheza na equipe.

     — Precisamos focar nossa atenção, esse justiceiro não será a pedra em nossos sapatos. – socou a própria mão.

     Nesse momento tenso na sala do detetive, o celular de Márcia vibrou em cima da mesa.

     — Sim? – pausa. – certo, ótima notícia, chegaremos aí em meia hora. Tudo bem? – encerrou a ligação e olhou para Souza. – Victor acordou e vai falar conosco.


      Em menos de meia hora, Souza e Márcia chegaram ao hospital. Para não parecerem antipáticos, os agentes levaram uma lembrancinha singela, uma caixa de biscoitos finos. Victor Braga ainda inspira cuidados, mas ele aceitou falar com a polícia. Souza pegou uma cadeira e se sentou ao lado do leito. Márcia permaneceu de pé, ao lado do investigador.

      — Victor Braga. Prazer em conhecê-lo.

      — Eu que o diga, o famoso guardião de Norma, bem na minha frente. – Victor é ainda garoto, por isso a sua empolgação.

      — Que lembranças você tem daquela noite?

      — Bom. O senhor Samuel e eu brigávamos bastante, sabe, sobre o que aconteceu com o bebê, eu fui contra e ele tentava me convencer.

      — Realmente houve um ritual, não foi? – Souza olhou para o chão.

      — Sim, infelizmente sim. Lamento por tudo.

      — Você falaria isso diante de um juiz? – Márcia perguntou fazendo anotações.

      — Claro. Chega de sacrifícios, essa seita é do mal.

     — Victor, agora me diga, o que aconteceu naquela hora? – Souza coçava a barba por fazer.

     — Foi horrível, achei que eu fosse morrer também. O cara parou de repente e atirou, tomei o maior susto da minha vida. Ele tinha uma máscara, olhava para o Samuel com ódio, um pesadelo, Deus me livrou da morte.

     — Você reparou se ele tinha alguma tatuagem, sinal, relógio, pulseira.

     Victor oscilava os olhares fazendo sua mente funcionar ao máximo. Apertava os lábios até que uma coisa veio à luz.

         — Um anel.

     — Que anel? – Souza se levantou ficando ao lado da assistente.

      — Muito bonito, tipo...

      — De advogado? – Márcia completou.

      — Isso, anel de advogado. Eu reparei isso no cara. Ajudei?

      — Ajudou e muito. – Luís foi para o meio da sala. – O assassino é um advogado. Obrigado por colaborar com as investigações, Victor.

      — Ah, legal, vou querer ser da polícia também.

      — Boa sorte. Boa recuperação. Vamos Márcia.


*


    É como procurar uma agulha no palheiro. Encontrar um advogado justiceiro em Norma. Surreal. O trabalho só piorou nas últimas horas. Souza reuniu toda equipe e delegou funções. Um grupo averiguaria se nas imediações onde houve o assassinato aconteceu algum roubo ou aluguel de motocicleta. Outro grupo iria acompanhar a perícia no automóvel de Vaz. O terceiro grupo irá buscar novas imagens de outras câmeras de segurança.

      — Todos entenderam?

     — Sim. – falou Oliveira. – Vamos lá pessoal.

     A cabeça de Luís virou um emaranhado de informações e todas elas se chocam. Isso o vem deixando esgotado. Assim que ficou sozinho o agente se trancou e se espreguiçou na cadeira. Ligou a TV que no momento exibia uma enfadonha reportagem sobre aquecimento global. Mudou de canal. Parou numa emissora religiosa onde um pastor falava sobre o que aconteceu com a família Santiago. Pouco interessado na fala do pastor, Souza passou a observar as fotos que eram exibidas no fundo. Paula segurando o filho no colo. Rafael sorridente no berço só de fralda. Leandro erguendo o filho no ar feliz da vida. Souza não pode conter a emoção. As imagens se repetiam e a fala morosa do pastor se arrastava.

     — Meus amigos telespectadores, vejam como é a vida. Outrora essa família era feliz, realizaram o sonho de terem um bebê e hoje tudo isso acabou. Vou pedir que deixem só as imagens passando e minha voz de fundo.

     O religioso falava palavras doces que acalentavam a alma enquanto as fotos, agora ampliadas, passavam. Leandro, sorridente, segurava Rafael no ar. Souza arregalou os olhos e quase bateu com a cabeça na tela da TV.

      — Eu não estou acreditando.

      Ele aguardou pacientemente as imagens se repetirem e sim, lá estava Leandro, com seu filho erguido e no dedo anelar da mão esquerda um anel, de advogado. Luís Souza caiu para trás sentado na cadeira e um nó, enorme, se formou em sua garganta. O policial ligou para Márcia que se encontrava acompanhando o trabalho da perícia.

     — Volte para o departamento, já.


*


   Leandro terminava de preparar um chá quando Souza e Márcia chegaram. Ele os atendeu com uma naturalidade espantosa. Os agentes se acomodaram na sala. A casa dos Santiago é típica de classe média. Muitos quadros, mobília  de muito bom gosto e também fotos, muitas fotos. No canto, perto do corredor, há um quadro cheio delas, inclusive a que incrimina Leandro.

     — Onde está sua esposa? – perguntou Souza.

     — Foi para mais uma consulta com a psicóloga.

     — E como ela está? – Márcia tomou um gole do chá.

     — Bem, na medida do possível...

     — Como ela se comportou com a morte do Samuel Vaz? – Luís olhou para as mãos de Leandro.

     — Ela não aprovou, mas, assim, aqui se faz, aqui se paga.

     — Hum. – Souza se voltou para as fotos. – posso ver as fotos?

     — Sim, por favor. – apontou para o quadro cheio delas.

     Calmamente o agente caminhou até o quadro onde havia dezenas delas. Parou e falou.

     — O senhor faz o que dá vida, senhor Leandro?

     — Sou executivo de uma empresa do exterior.

     — Nunca exerceu a advocacia? – colocou as mãos para trás.

     — Me formei, mas não exerço – segue sentado na poltrona segurando sua caneca de chá.

     — Tem vontade?

     — Acho que como executivo ganho mais.

     Souza não tirava os olhos da foto onde Leandro ergue o filho no ar.

     — Costuma usar o seu anel, senhor Santiago?

     — Só em casos especiais. – deu de ombros.

     — Como?

     — Como casamentos, jantares, reunião de família e... – a expressão se tornou soturna.

     — E? – Luís olhou para ele.

     — Perguntaram como minha esposa reagiu ao saber da morte daquele desgraçado, não foi? – Leandro fuzilava Márcia com os olhos. – eu nunca vi Paula tão bem desde quando o nosso filho foi morto.

     — Sério? – Souza voltou a se sentar ao lado de Márcia.

     — Muito sério. Ela voltou a sorrir. – uma lágrima escorreu. – eu estava vendo minha mulher se afundando na depressão enquanto aquele juiz de merda libertava aquele monstro e aí...

     — Você o matou. – Luís completou.

     Leandro se calou. Fechou os olhos ainda segurando a caneca com força.

     — Senhor Leandro. – Márcia assumiu. – Já fizemos o levantamento, apuramos, o assassino tem um anel de advogado, vimos por outro ângulo. É o senhor.

      — Ficaremos aqui enquanto o senhor entra em contato com seu advogado. Entendemos sua revolta, porém, mais do que ninguém, você como advogado sabe, existe a justiça, ninguém precisa sair por aí matando. O senhor está preso, Leandro Santiago. – Souza engrossou o discurso.

     — Eu sei, eu sei, vacilei feio, mas pelo menos nenhuma família mais passará pelo que nós passamos. – chorou. – na verdade, eu sabia que a qualquer momento vocês entrariam por aquela porta e me prenderiam, suspeitei quando você me pediu para ver as fotos e também quando me perguntou se eu não exercia advocacia.

    — Ligue para o seu advogado, Leandro, e avise sua esposa. – falou Souza ficando de pé segurando as algemas.


*


      Foi cansativo, estressante, triste e muitas vezes desanimador. Uma criança inocente, apenas sete meses de vida, morta por um fanático por Lúcifer. Até que ponto o ser humano pode chegar por amor ao desconhecido, pelo fascínio pelo sobrenatural? Samuel Vaz foi preso e logo em seguida liberado. Vaz morto por um pai inconformado, injustiçado, punido por um pai castigado pela ausência do filho. Luís Souza ainda refletia sobre esses acontecimentos em sua sala às 23h quando Márcia entrou sem bater.

     — Não vai embora? – a assistente andou até a janela coberta por uma persiana.

     — Sim. – organizou as pastas. – e você?

     — Também vou. – continuou olhando pela janela. – foi barra pesada, não foi?

     — Nem fala! Minha cabeça parece que vai explodir.

     — Leandro Santiago vingou a morte do filho, matou o  assassino sem medir esforços.

     — Sim. Eu como pai consigo entender a dor dele, mas as coisas não são resolvidas dessa forma. Vamos? – pegou as chaves em cima da mesa.

     — Vai me dar uma carona?

     — Sim, mas com uma condição.

     — Ai meu Deus, fala? – passou por ele na porta.

     — Me acompanha numa pizza antes?

     — Está me chamando pra sair, senhor Souza? – cruzou os braços.

     — Ah, para com isso, sei que está com fome, vamos nessa. – trancou a porta.

     — Falou e disse.

FIM