Capítulo 1
Assistir alguém morrer não deve ser nada fácil. Ou pelo menos não deveria ser. Por estar a tanto tempo no ramo da criminalidade, Osmar Ruas conseguiu fazer com que seu coração — se é que ele ainda possui um — fique congelado enquanto o seu semelhante é brutalmente assassinado a centímetros de onde está. Nada o faz chorar. Nada o faz temer. Ele se tornou oco por dentro e para uma pessoa que ocupa uma posição hostil como a dele, tal coisa lhe caiu como uma luva.
— Está difícil aqui, chefe. O cara não morre de jeito nenhum. — falou o capanga bastante ofegante.
Ruas terminou de beber seu vinho arremessando a taça contra a parede.
— Será que nem para matar um traidor vocês prestam? — Sacou a arma de dentro do paletó.
Dois disparos no meio do rosto e mais um no peito. O assecla engoliu seco olhando a fúria tomar conta de seu patrão.
— Peço desculpas, chefe. O senhor queria que ele tivesse uma morte bem dolorosa, então…
— Sei muito bem o que pedi, Marcelo. Você só estava cumprindo ordens. — Guardou a pistola. — Minha cabeça anda a mil desde quando a Coelho foi presa. A essa altura a polícia já deve estar sabendo do plano.
— E o senhor ainda pretende executá-lo?
— Claro que sim. Foi um investimento muito alto para desistir assim tão fácil. Helenópolis é uma mina de ouro. Infelizmente ela se encontra nas mãos de gente incompetente, por isso sofremos o que sofremos.
— Mas, eu ainda não entendi. Se quer tanto mudanças, por que não se afilia a um partido e se candidata a algum cargo?
Ruas olhou friamente para seu comparsa. Se ele não fosse seu fiel escudeiro há tantos anos e também, se Marcelo não fosse tão bom no que faz, Osmar puxaria novamente sua pistola e a descarregaria em sua face, mas…
— Encerramos por aqui. Vou precisar de você amanhã cedo. Quero que coordene as atividades na prefeitura.
— Sim, senhor.
*
A terceira e última bomba anda dando trabalho ao seu instalador. Além de ser um local de difícil acesso, o risco de ser pego mexendo na caixa de força da sede da prefeitura é bastante alto, por isso o trabalho precisa ser feito rápido. Do lado de fora, acomodado dentro da S.U.V preta, Marcelo, como fora comissionado por Ruas, coordena toda operação de instalação dos artefatos que por sinal anda bem atrasada.
— Se não terminar essa merda em cinco minutos, eu acabo com a raça de toda sua família. — Rosnou ao telefone.
— Não será necessário.
Marcelo é um sujeito alto e negro. A calvície o acometeu quando ele tinha somente dezessete anos e desde então o gangster aderiu a raspagem por completo do couro cabeludo. Imponente, o ex militar das forças armadas presta seus serviços ao crime organizado em busca de grana. Muita grana na verdade. Ruas deposita toda sua confiança em sua habilidade em gerenciar grupos e na elaboração de estratégias, por isso faz questão de mantê-lo sempre bem a vontade e também sempre muito bem pago.
— Terminei! — Informou o operário.
— Ótimo! Mete o pé daí imediatamente.
Marcelo encerrou a ligação com o funcionário e iniciou outra, mas agora com o patrão.
— Tudo pronto.
— Beleza! Volte para a base.
*
A sede da prefeitura de Helenópolis foi construída onde antes existia uma enorme vila cujo nome era Helena. Vila Helena para ser mais exato. Trata-se de um lugar arborizado, com pista de corrida, aparelhos de ginástica para a terceira idade, além de um pequeno pólo gastronômico ao redor.
Dentro do prédio, tudo, absolutamente tudo foi cuidadosamente modernizado. Resultado do bom trabalho que Fernanda Ribeiro vem fazendo à frente da prefeitura há seis anos. Aos 49 anos, Fernanda segue firme no objetivo de alcançar o Palácio do Planalto nas próximas eleições. Conhecida como a prefeita diva por estar sempre produzida e cercada por dezenas de seguidores, Fernanda quando se encontra no cumprimento do seu papel, ela esquece que é uma autoridade popstar dando vez a mulher de pulso firme que sempre foi.
— Senhora prefeita. Ligação para a senhora na linha dois. — Informou a secretária.
— Pode me transferir.
— Como vai, prefeita Fernanda Ribeiro. A Diva.
Fernanda não gostou nada de como foi iniciada a ligação.
— Com quem estou falando?
— Osmar Ruas.
— Passar trote é crime, ainda mais para a prefeita da cidade.
— Não precisa acreditar se não quiser, mas uma coisa eu garanto, nas próximas horas, tanto a senhora como toda a sede irão pelos ares.
Ribeiro engoliu seco.
— Veja bem. Eu tenho um monte de coisas para fazer hoje e sinceramente não estou a fim de ficar ouvindo asneiras de um desocupado…
— Depois não diga que eu não avisei, prefeita. Pensando bem, vou dar uma chance da senhora checar. Peça que dêem uma olhada por aí e depois de confirmarem, ligue para o número que irei falar agora.
Fernanda anotou rapidamente o contato.
— Boa sorte, Diva.
*
O copo com café puro foi posto ao lado da pilha de pastas sobre a mesa abarrotada de outros documentos importantes de Ângelo. Magali vem percebendo o quanto o seu parceiro tem se empenhando em manter a organização das ocorrências e devido a isso ele quase não tem tempo de sequer se servir de um cafezinho fresco.
— Obrigado! Café nunca é demais.
— Minha avó costumava dizer que a vida sem café não é vida. — Puxou uma cadeira. — Alguma novidade sobre o Ruas?
— Nada! E é exatamente isso que me preocupa. Conhece aquela fala: criança muito quieta é porque está fazendo merda? Então…
— Que plano audacioso. Explodir o shopping Nova Helenópolis só para demonstrar força e poder. — Duarte sorveu outro gole do café.
— Pelo visto, teremos que manter nossos homens por lá por mais algum tempo, até agora nem sinal de nada.
De repente o rosto petrificado e ruborizado de Sodré emergiu de sua porta berrando os nomes dos seus agentes. Seu humor agora à tarde está mil vezes pior do que o do período da manhã.
— É isso que dá confiar em uma vagabunda. A Coelho mentiu dizendo que Osmar Ruas faria um atentado no Nova Helenópolis.
Negrão e Duarte se entreolharam.
— Merda! Vocês ainda não entenderam? — bateu na mesa. — Acabei de receber uma ligação da prefeitura. Uma bomba foi encontrada lá.
Magali ainda segurava o copinho com café.
— Chega de cafezinhos por hoje. Iniciem as buscas por esse desgraçado. Quero Ruas fora de circulação agora e já. — Gritou.
*
Ao redor e nos arredores da sede da prefeitura o que havia de viaturas da polícia, bombeiros, ambulâncias e vans de veículos de comunicação não estava no gibi. A impressão que se tinha era que todo o departamento de polícia se deslocara para aquela localidade. Negrão e Magali, ainda ruminando o mal estar com Sodré, chegaram ao ponto dispostos a pôr um fim na festa do criminoso.
— Sei que está com raiva, mas peço que a partir de agora fique focada.
— Até parece que eu vivo tomando café e não trabalhando. Sodré é um idiota. — desceu do carro batendo forte a porta.
— Eu também estou chateado. Assim que terminarmos aqui marcaremos uma conversa com ele. Fique tranquila.
Após as ordens de afastamento dos civis o colocá-los a uma distância segura do lugar, a dupla de detetives partiu em busca da prefeita. Ao vê-la pessoalmente, Negrão pode constatar o quão ela faz jus ao seu apelido. Diva da cabeça aos pés.
— Senhora prefeita, sou o detetive Negrão e essa é a agente Magali Duarte. Ruas fez mais algum contato?
— Até agora não.
Fernanda também estava admirada com tamanha beleza negra da policial.
— Temos que tirá-la daqui imediatamente, senhora. — falou Magali.
— De maneira alguma. Deus sabe o quanto eu sofri e trabalhei para estar na posição em que eu estou. Não será um traficante de merda quem vai ditar as regras dentro da minha casa. — voltou para trás de sua mesa.
Ângelo pensava em contestar a autoridade a sua frente quando o telefone sobre a mesa da prefeita soou deixando a todos apreensivos.
— É ele! — Disse Fernanda.
— Coloque no viva voz. — pediu Negrão.
— Olá, Diva. Vejo que agora eu tenho sua atenção. É lindo de se ver. Esse lugar se transformou em um centro de convivência de uma hora para outra.
— Ok, Osmar Ruas, já chega desse showzinho ridículo. Faça logo suas exigências…
— E quem disse que se trata de exigências, Diva? A essa altura o seu gabinete rosa deve estar apinhado de policiais querendo salvar sua pele. Acertei?
Ribeiro deu uma rápida olhada para a dupla de agentes parados analisando a conversa.
— Eu não faço ameaças, prefeita. Quando eu digo que irei explodir a sede da prefeitura junto com a senhora e quem mais estiver aí, eu falo sério?
— Você é muito sujo mesmo. Faço questão de sair daqui e vasculhar a cidade até te encontrar seu marginal…
— Perdendo a compostura, dona Fernanda Ribeiro? E outra coisa, quem disse que a senhora pode sair?
Houve silêncio.
— Quer mais um conselho? Nem pense em pedir aos vermes para desativar as bombas. Elas me custaram os olhos da cara, mas valem cada centavo. O sistema ao ser desativado inicia uma regressiva e aí…
Magali olhou para Negrão que também não estava acreditando no que seus ouvidos acabaram de captar.
*
Olhando atentamente a cada movimento feito por seu chefe ao telefone com a prefeita, Marcelo tenta imaginar o que se passa na cabeça de alguém de reputação tão negra como a dele. Assim como Osmar Ruas, Marcelo vem galgando os mais disputados degraus da criminalidade até alcançar o ponto máximo do submundo. Carregar o título de o maioral entre todos os malfeitores é algo que muitos ambicionam, mas poucos são os que realmente conseguem bancar. Vale lembrar o quanto Marcelo o admira por tamanha coragem de encarar o poder público. Ser o responsável direto por mandar a sede da prefeitura pelos ares junto com sua gestora e ainda assinar o feito não é pra qualquer um.
— E aí, chefe. Sucesso ou processo nas negociações com a Diva? — Perguntou limpando sua arma.
— Não há negociação alguma, meu caro Marcelo. Eu tenho a vantagem. Fernanda Ribeiro vai comer na minha mão. E quando isso acontecer, Helenópolis pertencerá a Osmar Ruas.
— Eu não quero ser pessimista, mas o senhor não acha que agora não fomos longe demais?
Ruas abandonou sua mesa andando em direção a janela. Assim que a abriu, o som da movimentação urbana invadiu o recinto.
— “Situações extremas requerem medidas extremas”. Esta frase não é minha, mas responde bem a sua pergunta. Passar do ponto às vezes se faz necessário. Eu prefiro pecar pelo excesso.
O capanga entubou tudo o que ouviu. Guardou sua pistola no cós da calça e se levantou.
— Qual o próximo passo?
Osmar sorriu olhando para seu fiel escudeiro.
— BOOM! — Vociferou lhe mostrando o dispositivo que detona a bomba.
*
Helenópolis em crise. A incrível metrópole de edifícios suntuosos infelizmente conseguiu chamar a atenção — negativamente — de todo o país e até do exterior em questão de horas. Em cada casa, bar, apartamento ou esquina não se fala em outra coisa a não ser o sequestro da sede de sua prefeitura. Claro que todo esse mal estar deixou a todos de mau humor — todos mesmo — e Rubens Sodré é a maior prova disso. Não foi preciso elaborar um gabinete de crise, mas diante das declarações do governo do estado e até Federal, de que Helenópolis se tornou o grande centro do crime, Sodré já cogita essa possibilidade.
— Como assim Osmar não fez exigências? — Berrou ao telefone com Negrão.
— Exatamente, senhor. A única coisa a qual exigiu foi a permanência de todos na prefeitura, principalmente da prefeita.
Os palavrões foram tantos que o próprio chefe de polícia não se reconheceu quando os pronunciou.
— O miserável está jogando. Se ele tivesse que explodir tudo isso aí já o teria feito. Nossos homens já estão nas ruas. Não se preocupem, vou tirá-los daí em segurança.
“O exemplo arrasta” foi o que Sodré aprendeu na época em que defendia as cores da bandeira do país quando era um soldado das forças armadas. Estar a frente de um departamento de polícia, sentado confortavelmente atrás de uma mesa impondo suas ordens é algo relativamente fácil. Rubens gosta de estar em combate. Sempre gostou. Assim que encerrou a ligação com Negrão ele correu até a sala de armas e se apossou de uma submetralhadora e vestiu o colete.
— Venham comigo. — Falou para dois agentes na saída da sala.
*
Com a polícia nas ruas bloqueando vias e estradas, invadindo desde a mais humilde comunidade até o mais luxuoso condomínio, sem contar com as batidas em prédios, a cidade inteira entrou em estado de choque. O plano de Sodré é sufocar o rato até que ele saia da toca. Ou pelo menos incomodá-lo até sua rendição. A estratégia deu certo. Alertado por Marcelo, Ruas foi obrigado a ligar a TV e se informar do que estava ocorrendo na cidade.
— Fomos longe demais. Eu avisei. — disse o assecla de pé olhando cada reação de seu patrão. — Em pouco tempo irão nos encontrar. Algo precisa ser feito e rápido.
Outra vez o coração de Osmar se inflamou contra seu subordinado.
— Nada irá mudar aqui, Marcelo. Se está com medo recomendo que fuja enquanto há tempo para isso. — falou ainda olhando para o aparelho de TV.
— Exploda logo a merda da prefeitura… — gritou abrindo os braços.
— Com quem pensa que está faltando seu… — Ruas girou o corpo rapidamente batendo de frente com a pistola de seu escudeiro apontada para ele.
Grana. Marcelo é movido por dinheiro. Um sujeito como ele jamais pode correr o risco de incendiar toda uma cidade e não ganhar nada com isso. É claro que esta insatisfação não começou agora. Ele vem percebendo a perda de controle de Osmar há algum tempo. Chegou a hora de alguém de pulso firme assumir o controle. Sangue novo na jogada. O peito do traficante chefe foi atingido por dois disparos que o fizeram cair sobre a mesa onde estava a TV.
— Legal! Eu assumo daqui. — Pegou o detonador no bolso interno do paletó do cadáver.
*
O tempo estava passando e muito rápido por sinal. Se por fora Ângelo Negrão transparecia ser um monge budista no auge de seu relaxamento, por dentro ele estava bem próximo de explodir. Ficar parado dentro de um ambiente que corre sério risco de voar pelos ares sem poder fazer nada é simplesmente torturante. Outro agravante é o fato de estar à mercê de um louco que pensa ser o líder absoluto do mundo.
— Alguma ideia? — Magali voltava para o gabinete.
— Várias, mas… — cruzou os braços. — e a prefeita?
— Reunida com sua equipe na outra sala. Eu não gostaria de estar na pele dela, deve ser uma pressão horrível.
— Mas nós estamos na pele dela de uma certa forma. Não é?
Duarte ainda pensava no que responder quando Fernanda Ribeiro e toda sua equipe entrou trazendo junto o burburinho dos corredores. O cansaço e desânimo estampados no rosto da líder municipal deixava claro o tamanho de seu esforço.
— Nos deixando trancados aqui só ajuda a promovê-lo. Osmar Ruas quer demonstrar poder aos seus rivais. Temos que respondê-lo à altura.
— Disso a senhora não precisa ter dúvidas. Todo o DPH se encontra nas ruas. Chefe Sodré também está acredito eu. — expressou Negrão.
O toque repentino do telefone da prefeitura fez todos sobressaltarem.
— É ele. — expirou a prefeita.
— Mantenha a calma, prefeita. Ele infelizmente tem o controle da situação. — orientou Duarte.
— Prefeitura de Helenópolis…
— Já chega dessas frescuras.
Fernanda olhou para os agentes e sussurrou.
— Não é o Ruas.
— Exatamente! O Ruas precisou dar uma saidinha, acho que para o céu. Melhor dizendo, para o inferno. Agora Helenópolis tem um novo líder.
— Com quem estou falando? — Fernanda tentava manter a voz a mais tranquila possível.
— E isso importa? A senhora deveria estar preocupada em como sair viva dessa e seus funcionários também, não acha?
Visivelmente em choque, a executiva buscava desesperadamente nos policiais uma melhor forma de negociação. Negrão fez menção de assumir o telefone, porém foi impedido há tempo por Magali.
— Sem mais delongas, preciso que seja depositado em minha conta o valor de vinte milhões.
Quem seria o louco ao telefone com Fernanda exigindo tamanho absurdo? Vinte milhões é dinheiro pra burro e em mãos erradas pode vir a causar um inferno na terra. Magali dirigiu-se para um canto do gabinete juntamente com seu parceiro e ali expôs o que pensava.
— Se quem estiver falando com a prefeita tirou Ruas da jogada, a situação não está totalmente fora de controle. Penso até que ganhamos um tempo.
— Quem seria o segundo homem no cartel do Ruas? — Negrão cruzou os braços.
— Lembra quando impedimos a chegada de um avião lotado de armas e drogas num aeroporto clandestino na fronteira entre São Paulo e Helenópolis?
— Claro. Fomos recebidos por uma chuva de balas.
— Osmar Ruas não estava lá e sim um tal de Marcelo.
Ângelo coçou o queixo.
— Vamos levantar a ficha desse sujeito. Vou ligar para Sodré.
Fernanda ainda tinha os ouvidos invadidos pela voz rouca e uma conversa coberta por gírias do traficante quando Negrão se aproximou gesticulando bastante e propondo que a prefeita ganhasse mais tempo.
— Vinte milhões, e em quanto tempo? — Fernanda tremia os lábios.
— Que tal agora?
— Olha, eu não tenho esse dinheiro na minha bolsa. Me dê um tempo…
— Dúvido que não tenha. A prefeitura costuma arrecadar muito mais do que isso diariamente, sem falar da verba do governo federal.
Todos olhavam atentamente para a linda mulher de indumentária social pendurada ao telefone praticamente paralisada.
— As coisas infelizmente não funcionam desta maneira, senhor…?
— Meu nome não importa no momento, Diva. Quero meus vinte milhões em duas horas. É um bom tempo, não acha?
Magali fez sinal de positivo.
— Está certo. Duas horas.
— Até breve.
*
O que é um guerreiro sem batalha? Que sentido há na vida para um soldado quando os confrontos se cessam? Sodré sempre almejou atingir o cargo máximo dentro da instituição e após anos de dedicação e sacrifício ele conseguiu, porém o seu lado soldado combatente se tornou inoperante. Ter os melhores agentes a sua disposição pode até ser um privilégio, mas no fundo, tudo que um policial quer é estar no fronte. Voltar às intermináveis ruas de Helenópolis o fez revisitar um passado glorioso onde ele tinha o prazer de perseguir criminosos e capturá-los.
Ao tomar ciência da suposta morte de Osmar Ruas o delegado redobrou os cuidados e também refez os planos juntamente com seus homens. Dentro da viatura com Negrão na linha, eles traçaram o perfil do novo chefe do cartel.
— Esse tal de Marcelo vive entrando e saindo do radar da polícia. Possui uma extensa ficha. Homicídios, associação ao crime, tráfico e até assaltos a banco. É barra pesada o cara.
— E agora que tem o poder nas mãos ele é capaz de tudo. O senhor precisa achar o ninho do rato.
— Creio eu que estamos perto.
Às viaturas deixaram a avenida Leste a principal via da metrópole e entraram de forma ordeira na zona dos condôminos e mansões de luxo. Segundo informações obtidas de fontes altamente confiáveis de Sodré, nos últimos seis meses Ruas e sua gangue eram vistos por lá. Moradores do lugar também relataram que o mafioso esbanjava sua fortuna patrocinando festas e “importantes” reuniões com figurões de alta classe. Rubens contou também com a contribuição de Coelho que, assim como fez outrora com Ângelo Negrão, suas exigências foram bem claras.
— Estamos chegando na zona dos condôminos. O show vai começar. — Disse encerrando a ligação.
*
Para Marcelo, Ruas não passava de uma raposa velha teimosa, um líder antiquado que não aceitava e nem pedia ajuda de ninguém. Mas em quanta partida, Osmar possuía o que muitas vezes falta em gente como ele: manha. Osmar Ruas tinha a manha das ruas, dos becos. A malandragem que o fez ser quem ele era. Assim que foi informado sobre a chegada da polícia, mesmo não demonstrando, o desespero bateu forte em sua porta e nessas horas é praticamente impossível de se manter calmo e de tentar tomar uma decisão assertiva.
— O que faremos, senhor? — inquiriu um assecla.
— Não tem jeito. Temos que atacar.
— Mas, Marcelo, será um banho de sangue. Pense melhor.
A tal da paciência e Marcelo infelizmente não nasceram um para o outro. Não saber lidar com situações adversas quando se está sob pressão é algo recorrente na vida do bandido.
— Veja bem. Ruas está morto. Eu o matei e a menos que não queira lhe fazer companhia no inferno obedeça minhas ordens. Ataquem os vermes.
*
Um comboio com mais de quinze homens armados e dispostos a manter o império Ruas mais sólido do que nunca e mais poderoso do que antes desceu as largas ruas daquela localidade prontos para o confronto. Entre eles também se encontra seu novo mandante segurando com força seu armamento e despejando ordens a torto e a direita dentro de um dos veículos.
— Atirem para matar. — Gritou Marcelo mais uma vez.
O inevitável aconteceu. Quando não se tem alguém preparado na condução de uma grande e árdua tarefa, os que estão na frente da batalha são os primeiros a serem sacrificados. Sodré e seu grupo não tiveram escolha a não ser abrir fogo contra o inimigo.
A van prata pertencente ao grupo criminoso teve o parabrisa dianteiro atingido, assim como seu condutor também ferido no braço direito. Claro que isso não ficaria barato. A viatura teve um dos pneus alvejado e por pouco não capotou.
— Mais que droga, não podemos deixar que escapem. — Berrou Sodré.
Dois bandidos desceram da van obedecendo às ordens de Marcelo. Os marginais abriram fogo dando cobertura ao restante da gangue. Como moscas diante do poder de um inseticida eles foram abatidos.
— Mais dois. — Informou um dos oficiais.
— Nós temos que achar o Marcelo. É ele quem está com o detonador da bomba. — Sodré falou ao rádio.
Mais uma viatura na mira dos bandidos. O policial que ocupava o banco do carona teve o ombro e a coxa atingidos perdendo muito sangue. Na tentativa de proteger o amigo de farda, o motorista fez uma equivocada manobra sendo morto por um disparo que atingiu seu pescoço.
— Meu Deus! Chefe, temos uma baixa.
Perder um soldado em batalha faz parte do contexto, mas nunca será algo fácil de aceitar. Rubens Sodré ainda não consegue lidar direito com esse tipo de situação e nessas horas o seu emocional fala mais alto do que sua razão.
— Me dêem cobertura. — saiu da viatura já mirando em outro carro inimigo.
— Chefe, não faça isso. — Tentou o impedir o motorista.
Na época das forças armadas, Rubens foi um dos premiados por ser um bom atirador. Ele não era excepcional, mas sempre esteve entre os melhores. Derrubar um carro em movimento não foi tão difícil. Em questão de segundos o veículo com quatro meliantes rodopiava sem controle, levantando poeira densa. Ao tentarem sair do veículo todos foram mortos. Enquanto seus agentes comemoravam e elogiavam o feito, Sodré se mantinha frio como normalmente é.
— Vamos lá pegar o Marcelo. — Voltou para dentro da viatura.
*
Após assistir a mais uma cobertura sobre o sequestro da prefeitura, Adalberto Negrão não conseguiu mais conter a vontade de ligar para o filho. Mesmo sofrendo com uma forte dor em uma das pernas, o velho Negrão andou até onde se encontrava seu celular carregando e ligou. Ângelo o atendeu no primeiro toque.
— Oi, pai, tudo bem por aí?
— Eu que pergunto. Como você está?
— Bem, na medida do possível.
— E a lindona?
— A oficial Magali Duarte também.
— Me diga uma coisa, meu filho. A prefeita é realmente uma diva como dizem por aí? — Riu.
Esse velho não tem jeito mesmo, pensou Negrão se afastando para responder.
— Ela é tudo isso e muito mais.
— Que privilegiado você é, garoto. Salve a todos, meu filho.
— Pode deixar meu pai. Que tal uma cervejinha mais tarde?
— Com aquele torresminho?
— Pode ser.
*
Família! Que palavra linda. Que significado glorioso. Uma pessoa que não possui uma está fadado ao fracasso existencial. Receber uma ligação de seu pai foi como ter recebido diretamente na veia uma injeção de renovo. E diga-se de passagem, como Negrão precisava deste auxílio. O tempo estava se esgotando e tudo o que ele e Magali sabiam até o momento era que Sodré e o restante da tropa trocavam chumbo grosso com Marcelo e sua gangue.
— Não aguento mais ficar aqui parada enquanto o pau está quebrando lá fora. — Duarte reiniciou as reclamações. — Vamos tirar a prefeita e sua equipe daqui. Já!
— Esse tal de Marcelo pode ser louco, mas não é burro. Ele deve ter alguém lá fora de olho. — Andou em direção a janela.
— O que propõe, então?
— Venha. Quero conversar com a Fernanda.
*
Se antes, Marcelo achava que havia se metido em uma enrascada, com a baixa de um de seus melhores homens, agora ele tem certeza absoluta. De maneira alguma Ruas encararia a polícia. A coisa mais certa a se fazer diante de uma encruzilhada dessas seria recuar ou na pior das hipóteses se render. Não! Partir para o tudo ou nada mesmo que isso custe sua própria vida e a vida de seus comandados é algo visceral. A ordem agora é atacar a polícia com todo o poder bélico presente.
— Venham comigo. — Ordenou deixando a van.
Rubens Sodré pela primeira vez sentiu que algo poderia não terminar bem para ambas as partes com a atitude impensada de Marcelo e somente por isso o chefe de polícia decidiu usar todo o seu poder de negociação para tentar evitar um massacre.
— Marcelo! Aqui quem fala é Rubens Sodré, chefe de polícia de Helenópolis. Você não precisa fazer isso. — gritou a plenos pulmões da janela da viatura.
— Quer saber de uma coisa, chefe? Eu já estava de saco cheio de receber ordens do Ruas, então, não me venha dizer o que eu devo fazer. Diga à prefeita que o tempo está se esgotando. Eu quero os meus vinte milhões.
— Isso não será possível, Marcelo. Joguem suas armas agora. — Sodré tinha o rosto mais vermelho do que um pimentão.
— O senhor tem certeza? — puxou do bolso do blazer o detonador. — O poder é todo meu.
Que maldito impasse. A última vez em que Rubens se viu diante de uma situação onde ele precisava tomar uma decisão rápida foi quando sua filha lhe pediu permissão para morar com o namorado.
— Ei, Marcelo. Eu dei uma olhada em sua ficha e vi que você foi o melhor de sua turma na época das forças armadas. Quantas medalhas por bravura?
Mais que desgraçado! Pensou antes de responder.
— Eu parei de contar na décima segunda. — falou olhando para o grupo.
— Somos soldados, Marcelo. Eu também me esforcei, mas jamais alcancei o que você alcançou. Siga sendo um guerreiro. Peça ao seu pessoal que joguem as armas e ninguém morre.
O jogo virou. Agora chegou a vez de Marcelo ser fuzilado pelos olhares aterrorizados de seus homens aguardando uma posição. O que Osmar faria agora? Pensou ele.
— Que se dane. Eu não tenho mais passado. — balbuciou. — Vamos acabar logo com isso. Ataquem!
*
Do lado de fora da sede da prefeitura o movimento era gigantesco. Circular por ali sem pelo menos esbarrar ou ser esbarrado tornara-se uma missão praticamente impossível. Em meio a aquela multidão alvoroçada há alguém ali que, aparentemente, parece não se importar em estar constantemente sendo esbarrado e pressionando. Alguém cuja aparência fria pode enganar olhos despreparados, mas não olhos de um agente altamente treinado para identificação de maus elementos. Em pouco tempo o sujeito usando um boné de uma marca barata foi rodeado por cinco polícias à paisana sem chance de fuga.
— Sem gracinhas. Me passe o telefone e venha conosco.
O outro agente informou a Negrão sobre o sucesso da ação.
— Tudo certo por aqui, Ângelo.
— Positivo!
*
A troca de tiros foi tão intensa. Tão violenta que, até mesmo homens acostumados com operações de alto risco em comunidades se deixaram abalar em alguns momentos. E como não poderia ser diferente, o número de feridos nesta incursão, tanto de um lado como do outro atingira graus absurdos. Ferido na perna, Sodré precisou mais uma vez ignorar a dor correndo até outra viatura a fim de abrigar-se melhor e dali tentar acertar seu alvo. Marcelo teve o ombro quase destruído e no momento ele se encontra deitado entre um veículo e outro tremendo dos pés à cabeça. Tudo estava acabado. Ele definitivamente havia perdido aquela guerra, mas antes precisava deixar sua marca. Explodir a sede da prefeitura, algo que com certeza seu antigo chefe não o faria jamais,e que o fará registrar seu nome na história da criminalidade. A vida por um fio. Sangue jorrando acelerando tal processo: a morte. Mãos geladas e trêmulas. Em meio as horrendas ondas de dor, Marcelo procurou pelo dispositivo dentro do bolso, gemendo horrores.
— Se liga, chefe. Vou cair, mas vou cair atirando.
Pensando bastante em tudo que conquistou dentro da polícia. Dos longos anos no interior de uma viatura circulando para cima e para baixo por ruas e bairros considerados os mais violentos da metrópole, Rubens Sodré se equilibrou apoiando-se em seu armamento para tentar ficar de pé. Sob protestos de seus liderados, o comandante da operação andou sem medo e sem receio entre os disparos do grupo inimigo até alcançar onde o inimigo segurando o detonador estava. Mas para sua surpresa o mesmo se encontrava de pé o aguardando. Sodré foi atingido na clavícula e com isso sua arma caiu com o impacto. Mesmo sem fôlego ele conseguiu correr para trás das caçambas de lixo. Perdendo muito sangue e já desfalecendo, Marcelo caminhou vacilante ficando frente a frente com o alvo.
— Entre o lixo. Um bom lugar para morrer, não acha, delegado?
Rubens somente esperava o momento dele puxar aquele gatilho e pronto. Tudo estaria acabado.
— Mas antes quero que veja o cumprimento da minha missão. — ergueu o detonador. — sua operação foi um desastre, delegado.
Sim! Infelizmente Marcelo tinha razão. Internamente Sodré pediu perdão por não conseguir salvar a prefeitura e principalmente a vida de dois de seus melhores agentes. Ele se preparava para a morte quando o corpo do bandido caiu sobre ele, esvaindo sangue por um orifício na têmpora.
— Meu Deus? — Gaguejou.
Rubens empurrou o cadáver de Marcelo para o lado ouvindo a voz de Negrão confirmando o abatimento do alvo.
— Agente Ângelo? — Sodré estava em choque tentando ficar de pé.
— O senhor está bem? Fique onde está, o socorro já está vindo. — informou Negrão segurando um fuzil de mira abrigado entre as árvores.
Não suportando tanta dor, o chefe de polícia de Helenópolis apagou de vez preocupando a todos.
*
Magali bem que tentou, mas infelizmente o seu nervosismo foi detectado pelos sentidos aguçados de seu parceiro na chegada ao hospital. Para piorar ainda mais a situação, a bela policial de traços marcantes precisou disfarçar ao se deparar com a família Sodré aos festejos pela notícia da possível alta de seu membro inusitado.
— Relaxa. Eles não mordem e nem soltam pelos. — disse Ângelo subindo as escadas.
— Tem razão. A mulher do chefe é uma gata, você viu?
— E tinha como não ver?
A notícia se confirmou. Dentro de poucas horas Rubens estaria livre daquelas paredes brancas, frias e assustadoras daquela unidade hospitalar pública. Com a chegada de seus pupilos sua alegria triplicou não dando mais para esconder o sorriso de grande satisfação.
— Meus salvadores! — Bradou.
— Nem tanto, chefe. — retrucou Negrão parado na porta.
— Quero ficar a par de tudo. É verdade que a prefeita fará uma homenagem à polícia no final de semana?
— E o senhor graças a Deus estará presente. — comemorou Duarte.
— E como foi que conseguiram tirar a Fernanda e toda sua equipe de lá a tempo?
— Não tínhamos muitas opções. O jeito foi agir do modo mais primitivo possível. Pedi para que agentes infiltrados entre a multidão identificassem o elemento, no caso o contato direto com Marcelo. Feito isso, para nos assegurarmos de que, tanto a prefeita como sua equipe não corressem o risco de serem identificados por outros possíveis olhos de Marcelo, pedi para que trocassem de roupas, tipo, o uniforme do serviço de limpeza urbana e auxiliar de serviços gerais, um por um foram retirados do local por uma saída a nexo a sede.
Sodré estava boquiaberto.
— Deixei Duarte responsável por retirar o pessoal e corri para auxiliar na operação. Eu sei que o plano tinha tudo para dar errado, mas fato é que fomos rápidos demais e por isso estamos aqui lhe contando a história.
— Eu sei que no início fui grosseiro com vocês. — Falou olhando diretamente para Magali. — mas sempre acreditei no potencial de cada um de vocês. Parabéns.
*
Na mesa havia algumas garrafas de cerveja já vazias e copos pela metade da bebida. O prato com torresmo e limão também estava próximo do fim, porém o que sobrava de fato naquela cozinha era a alegria. Seu Adalberto contagiava os dois jovens policiais com seus casos hilários de seu passado sem parar um minuto.
— Já pensou em registrar todas essas histórias em uma biografia, seu Adalberto? — perguntou Magali pegando outro torresmo.
— Até que não é má ideia. Aposto que seria best seller.
— Eu já até tenho um nome. — começou Negrão. — “Aventuras e desventuras do Negrão”. O que acharam?
— Legalzinho. — se levantou seu Adalberto. — Vou me recolher. Foi muito bom estar com vocês, crianças, mas é hora de velho ir para a cama. — ele olhou para Magali. — que bom que você veio, lindona.
— Obrigada, seu Adalberto. Já é tarde, eu também já vou indo.
— Eu te levo em casa. — Ângelo pegou as chaves perto das garrafas.
— Imagina. Você bebeu. Peço um Uber.
— Gostei de ver. Mesmo de folga ela faz questão de cumprir a lei. — Falou Adalberto deixando a cozinha.
Ângelo e Magali têm plena convicção de que jamais poderão salvar o mundo, porém acreditam piamente que, com pequenas ações eles conseguem melhorar a vida de alguém. Hoje em dia, o chamado “enxugar gelo” vem se tornando cada vez mais evidente no serviço policial. Possuímos uma corporação corrompida, desacreditada e porque não dizer falida. Quantos Ângelos e quantas Magalis há entre agentes deteriorados pelo sistema? Quantos Sodres dispostos a fazer a coisa certa? Você pode ter certeza que há muitos e só por isso a nossa vida não está tão ruim.
Fim.