sábado, 22 de março de 2025

Os Olhos Da Lua Cheia

 


Os Olhos Da Lua Cheia 


Vou direto ao assunto. Eu odeio o meu pai — Que o diabo o tenha. Quanto à minha mãe, tenho lá minhas reservas. Ela poderia muito bem ter me abortado ou sei lá o que, mas não. Ambos, imersos numa maldição e miséria infinda, decidiram pôr no mundo alguém inocente para sofrer junto com eles. Isso foi de uma ignorância sem tamanho.

 Seu Antônio Salgueiro, meu pai, ou melhor,(o cara que ejaculou dentro da dona Maura, minha mãe), sempre foi um homem pobre, daqueles que vendem o almoço para conseguir a janta. Seu Antônio conheceu Maura, uma mulher mais miserável que ele que, para conseguir ter um prato de sopa de mato precisou deitar-se com o porco do dono da vendinha do vilarejo, um coroa barrigudo que fedia a cigarro e a pinga de péssima qualidade. Antônio e Maura uniram-se e foram morar numa casa(se é que posso chamar aquilo de casa) no final do vilarejo, quase perto da mata. Ali viveram seus piores anos. Havia falta de tudo(tudo mesmo) segundo me foi relatado, ambos passaram um mês comendo calango e sobras que estavam nas latas de lixo dos vizinhos.

 Desesperado. Sem trabalho. Sem profissão e sem esperança. Certa noite, com o estômago encostando nas costas, seu Antônio resolveu sair pelas ruas em busca de algo para se alimentar. Minha mãe preferiu ficar rezando o terço debruçada na janela. Segunda ela, conversar com Deus a alimentava(mentira pura).

 O homem que me deu origem pegou um atalho o qual nunca tinha visto antes. Sua intenção era poder chegar até a cidade o mais rápido possível e catar nas latas de lixo dos restaurantes alguma “sobra boa”, mas tal atalho não o levou até o centro, mas sim a um tal de Valdo e uma tal de Tábata, que por sinal era uma mulher extraordinariamente linda. Eles estavam na beira da rua de barro, cada um segurando uma lamparina de querosene,(esqueci de falar que meus pais moravam na roça e na época ainda não haviam postes de iluminação).

— Estão perdidos? — Antônio perguntou.

— Não! — respondeu Valdo. — estávamos aguardando por você.

 O velho Antônio achou aquilo uma tremenda falta de respeito.

— Que conversa é essa? — rosnou.

— Não o leve a mal, Antônio. Valdo falou a verdade, nós estávamos mesmo esperando por você.

— Mas, eu nem sei quem são vocês…

— Nos perdoe a falta de jeito. Eu sou Tábata e este é meu companheiro Valdo e é verdade, queríamos falar com você e faz tempo.

— Se for para pedir dinheiro emprestado já vou logo dizendo, eu não tenho nem…

 A entidade masculina riu.

— Tá rindo do que? — Cruzou os braços.

— Sabemos disso. — Valdo seguia rindo. — Por isso queremos lhe fazer uma proposta.

 Antônio estreitou os olhos.

— O que acha de prosperar sem esforço algum? — Tábata abriu os braços.

— Prosperar, que diabo é isso? — enterrou as mãos nos bolsos.

— Prosperar, ter muita grana, poder viajar, comer do bom e do melhor. — Valdo continuou.

— Ah, sim. Eu acho bacana, mas…

— Então, Antônio. Mas para isso vamos precisar de uma assinatura sua…

— Como você sabe o meu nome?

 De repente a expressão de Valdo se tornou tão fria quanto a de um iceberg.

— Sabemos tudo sobre você, Antônio. Conhecemos o seu sofrimento, por isso estamos aqui para te ajudar. E aí, quer mudar de vida ainda esta noite? — Ele sorriu.

 Novamente a fome apertou e apertou pra valer e ante a isso Antônio não teve outra alternativa.

— O que tenho que fazer?

— Simples! Você só precisa beijá-la.  — Apontou para a mulher ao lado.

— O que? — Vociferou.

— O que ouviu, meu caro Antônio Salgueiro. Basta experimentar os lábios de minha companheira e serás próspero, agora. Já.

 Antônio tirou as mãos dos bolsos e em seguida cruzou os braços novamente olhando para a deusa parada ao lado do homem de cabelos muito bem penteados para trás. Não seria má ideia. Pensou.

— É só beijar e pronto, vou ficar rico?

— Não fui claro o suficiente? — Valdo abriu os braços.

 O trio ficou em silêncio se olhando por um tempo até que o estranho homem se mostrou impaciente.

— Acho melhor irmos, Tábata. Há outros que adorariam receber a nossa ajuda.

— É verdade.

— Calma aí. Eu só estou confuso. É só beijar a moça e pronto?

 Tábata caminhou lenta e sedutoramente em direção a Antônio ficando cara a cara com ele.

— O que achou dos meus lábios?

 O homem parecia hipnotizado.

— Lindos. — expirou.

— Sinta como são mornos.

 O hálito de Tábata era semelhante ao cheiro da maçã verde. O velho  Tonho não resistiu.

— Isso mesmo, sinta o gosto dela. — Balbuciou o outro ser.

 Antônio estava totalmente envolvido por Tábata ao ponto de não sentir e nem saber o que se passava ao redor. 

— Ótimo, Tábata, acho que já deu.

— Já deu o que? — Antônio estava desnorteado e respirava com dificuldade.

— Parabéns, você agora é um homem próspero. — bateu palmas Tábata.

— Assim que você chegar em casa, corra direto para o quarto. Embaixo do colchão você vai encontrar várias notas de cem, são todas suas, faça bom uso delas. — Orientou Valdo.

— Mas, era só isso mesmo? Só um beijo… e o que vocês ganharam em troca?

 A dupla do inferno riu maliciosamente um para o outro.

— Vá para casa, bom homem. Divirta-se com Maura e seja feliz. — Os olhos do sujeito pareciam brasas vivas.

 Antônio seguiu as orientações de Valdo. Ao chegar em casa ele foi direto para o quarto. Maura já estava no décimo quinto sono roncando feito um trator.

— Levanta, mulher.

— Caramba, você me assustou. — protestou ajeitando as madeixas negras como a noite.

— Saia de cima da cama. — falou ofegante.

— Mas…

 Foi preciso empurrá-la. Assim que o caminho foi liberado, Antônio levantou o colchão e como Valdo havia falado lá estavam as centenas de notas de cem reais. Maura quase infartou.

— Jesus, Maria e José. De onde saiu isso?

— Vou te contar tin tin por tin tin.

 Mas é claro que o malandro não contou sobre o lance do beijo de língua que deu na gostosa da Tábata, caso contrário ele não teria me feito naquela mesma noite.

 Meus “queridos” pais prosperaram de fato. Eles compraram a melhor casa do vilarejo. Passaram a comer bem e mais de cinco vezes ao dia. Dona Maura conseguiu até alguns quilinhos, coisa que agradou e muito ao senhor Antônio. Compraram um carro e uma moto. Tudo estava indo muito bem até que mamãe anunciou a famigerada gravidez desse que vos conta esta história. O velho Antônio sentiu vontade de fugir, mas o pior ainda estava por vir.


*


Quando minha mãe completou oito meses de gestação, seu Antônio mexia na caixa de ferramentas na varanda de casa em busca de duas chaves da boca. Elas haviam desaparecido fazia algum tempo. Isso era por volta das vinte horas quando o mesmo começou a convulsionar. Dona Maura se desesperou.

— Meu Pai!

 Antônio salivava. Gritava. Se contorcia e não conseguia ficar de pé direito. Mamãe entrou em pânico.

— Socorro. Alguém me ajuda. — Berrou.

 O cara que pegou minha mãe tentou ficar de joelhos. Após muito esforço ele conseguiu, mas algo ainda pior estava para acontecer. Mamãe assistiu apavorada a pele do marido perder o tom de cor e dar lugar a pelos. Sim meus amigos. Pelos de fios grossos, negros, e não só isso; às unhas, tanto das mãos como dos pés caíram nascendo no lugar garras enormes. Seu Antônio se transformou num lobisomem bem ali na varanda de casa, na frente da esposa grávida. Dona Maura não suportou a bronca e apagou.

 Ao despertar sentindo uma terrível dor de cabeça, dona Mauro ainda pode ouvir gritos de horror e falatórios vindos de todo o vilarejo. Um dos poucos vizinhos que ainda falava com eles(sim, meus pais eram pessoas de poucos amigos), foi em auxílio a minha mãe com os olhos esbugalhados de pânico.

— Maura, Maura, a senhora está bem, viu o coisa ruim?

— É o Antônio. — Chorou. — ele se transformou naquilo bem aqui.

— Tá de brincadeira, sério? Temos que chamar as autoridades.

— Meu Deus, o que vão fazer com meu marido?

 O vizinho a levou para sua casa e enquanto isso, seu Antônio, ou melhor, o lobisomem seguia deixando seu rastro de sangue e de terror por onde passava. Somente naquela noite foram mais de dez vítimas, todas devoradas até os ossos. Não só o vilarejo como o restante da região não foram mais os mesmos após esse incidente.

 Quando finalmente a lua cheia desapareceu, o lobisomem ainda mastigava parte de um intestino quando Antônio ressurgiu.

— Maura, cadê você amor? — disse segurando o órgão.

— Ela está bem, Antônio. — respondeu Valdo.

 Por incrível que pareça seu Antônio não se assustou. Ele apenas deixou cair o seu alimento e olhou para aquela figura estranha logo atrás dele.

— O que aconteceu comigo?

— Você prosperou, meu querido. Já se esqueceu? — sorriu.

— Sim, mas, se eu soubesse que iria me tornar num bicho…

 A criatura fez sinal de silêncio.

— Você aceitou a proposta, beijou a Tábata e diga-se de passagem, você gostou do beijo dela. Não foi?

 O licantropo abaixou a cabeça admitindo.

— Então, seja homem e assuma as consequências de seu ato. — olhou para o céu e viu as nuvens descobrindo a lua. — Hora do show.

— O que? De novo NÃO…

 O uivo foi tão alto e tão perturbador que Valdo precisou aplaudi-lo.

— Que belo animal, o mais belo que eu já vi. — o acariciou no focinho. — ainda com fome?

 Outro uivo.

— Certo! Não vou tomar seu tempo. Vá caçar, vai.


*


Após três noites de puro inferno naquela região abandonada pelo resto do mundo, finalmente a lua cheia desapareceu de vez e o pobre Antônio pode voltar para casa. Estranhamente minha mãe o acolheu. Ele se encontrava sujo, ferido e com o seu emocional abalado exalando um mal cheiro fazendo arder as narinas. Maura o levou até o banheiro e o ajudou a se banhar. O cheiro era de embrulhar o estômago, mas ela suportou mesmo perto de dar a luz.

— Eles estão vindo. — falou se enxugando.

— Eles quem?

— As autoridades. Eles virão me prender e eu não vou resistir.

— Mas, como assim…

— Maura, eu sou um criminoso, um assassino, você testemunhou o que aconteceu comigo, isso não pode continuar assim.

— Eu sei, mas o que será do nosso bebê.

 Boa pergunta, dona Maura. O que seria de mim? Claro que o covarde do Antônio não tinha essa resposta e minha mãe precisou se virar nos trinta para seguir com a vida.

 Dito e feito. O delegado e sua equipe foram lá e sem dificuldade alguma algemaram Antônio e o levaram para prisão. Lá ele foi humilhado. Surrado e hostilizado por outros detentos e graças a isso ele foi posto numa espécie de solitária onde por alguns dias pode se recuperar das surras e humilhações. Certa noite, quando já dormia profundamente, meu “father” recebeu a inesperada visita de Tábata que apareceu do nada dentro daquele espaço turvo e abafado.

— Parabéns, papai do ano. Que belo garoto você fez, hein!

— Jura, você o viu? Correu tudo bem com a Maura?

— Ela está bem. Sentindo muito a sua falta, mas está bem.

 Antônio pode reparar na vestimenta da mulher. Um vestido vermelho sangue vivo justo ao corpo e um delicioso decote em “V”. Isso aguçou sua curiosidade.

— Quem é você, o que você é?

— Ainda não é a hora de você tomar ciência disso.

— E quando será?

 Tábata deu as costas para Antônio exibindo sua linda protuberância.

— Menos do que você imagina. Eu só vim lhe informar sobre o nascimento do Pedrinho. — falou seguindo para o fundo da cela.

— Espere, aonde você vai?

 Tábata girou nos calcanhares.

— Valdo e eu estaremos à sua espera lá fora para lhe contar toda a verdade. Beijos! — Acenou e desapareceu em sequência.

 Pois é meus amigos. E assim aconteceu. A lua cheia apareceu novamente e o velho Antônio se transformou lá dentro da solitária quase destroçando as grades de ferro. Vendo que a fera estava quase conseguindo rompê-las, o delegado pegou seu fuzil de mira largando o dedo uma dúzia de vezes até o bicho parar de uivar de vez. Foi triste, mas fazer o quê? No chão banhado de sangue a criatura infernal deu lugar ao homem dilacerado pelos disparos.

— Meu Pai amado. — disse o delegado fazendo o sinal da cruz.

 Lá fora, a dupla de entidades aguardava o espírito de Antônio deixar a delegacia. De sorrisos e braços abertos eles o receberam.

— Como se sente, Antônio? — Perguntou o estranho homem.

— Não sei lhe dizer.

— Vai se acostumar. — Valdo tocou em seu ombro. — Quer saber quem é ela?

 Antônio anuiu.

— Apresente-se, Tábata.

— Prazer, sou a Morte. Irei conduzi-lo ao seu destino final.

— Não tem outro jeito, não é?

— Não! — Foi categórica.

— E você, Valdo, quem você é?

 Desdenhando, ele olhou para a Morte.

— Preciso mesmo responder? Para onde ele vai os outros irão falar para ele.

Tábata deu de ombros e Antônio abaixou os olhos.

— Nem é preciso responder mesmo.

— Então fim da linha. — começou Valdo. — Leve-o e não demore muito tempo por lá, certo?

 Tábata assentiu.

 Pois é, o senhor Antônio Salgueiro foi conduzido para o inferno de mãos dadas com a Morte e não pode reclamar. Minha mãe foi notificada de sua morte ainda na unidade de saúde e quase morreu também. Mulher, pobre, viúva e com um bebê recém nascido para cuidar. Algo complicado de aceitar. Por não saber lidar, dona Maura gastou todo o dinheiro e permitiu ser enrolada por seres aproveitadores da ignorância alheia.

 Fui criado como uma criança normal, mas no fundo, tanto eu como minha mãe sabíamos que eu carregava uma porção daquele fatídico beijo em Tábata. Em noites de lua cheia era comum a minha fome por carne crua aumentar ao ponto de eu desejar devorar algumas das criações dos vizinhos. Eu não sabia, mas a minha hora estava chegando.


*


 Dona Maura partiu quando eu já trabalhava como ajudante de padeiro na cidade. Foi horrível vê-la sofrer e pior ainda assisti-la indo embora. Aos 18 anos eu já era independente morando sozinho em um casebre tenebroso. Quando eu completei vinte anos e já como um padeiro profissional disputado a tapas pelas maiores e melhores panificadoras da região, eu namorava com Solange, uma garota grande, negra, dez quilos a mais que eu e dona dos beijos mais enlouquecedores do mundo. Eu era louco por ela. Nós estávamos fazendo amor em meu sofá quando Valdo apareceu na sala sem mais nem menos.

— Preciso falar com você. É importante. — Entrelaçou os dedos.

— CARAMBA! — Vociferei. Solange achou que fosse devido a nossa transa que estava pra lá de boa. Por isso ela intensificou os movimentos.

— Ok! Termine aí. — Evaporou-se.

 Meia hora depois Solange dormia profundamente esparramada no sofá e eu conversava seriamente com aquela entidade parada no meio da sala. Valdo era muito estranho de fato. Possuía uma coloração de olhos jamais vista e também uma expressão de fazer congelar a espinha dorsal.

— Um lobisomem? Quer dizer que eu herdei esta merda do meu pai?

 Valdo anuiu.

— E quando irei me transformar?

— Na próxima lua cheia. Daqui a uma noite. E se eu fosse você dispensaria a Solange, caso contrário, ela será sua primeira vítima.

 Engoli seco por duas vezes.

— Eu não quero viver assim. Como faço para quebrar esta maldição.

 Valdo pôs a mão esquerda no queixo e passou a andar em círculo.

— Não há como quebrá-la.

— E se eu pular de um prédio ou coisa parecida?

 A gargalhada do sujeito foi tão sombria que até eu fiquei com medo.

— Você se transformaria antes de atingir o chão. Não tem como escapar disso, Pedro Salgueiro.

— Mesmo durante o dia, sem a lua cheia? — Gaguejei.

— Bingo! — Estalou as falanges. — Lembre-se que eu estou no controle. — Abriu os braços. — eu já vou indo. Só vim lhe informar sobre sua transformação daqui a uma noite. Forte abraço! — Sumiu.

 E assim aconteceu. Eu me transformei numa fera assassina. Eu não tenho lembranças do que aconteceu depois disso, mas segundo o que eu vi e li nos noticiários o lobisomem causou uma carnificina horrível e o que é mais triste. A minha querida Solange não sobreviveu. FIM.


 

 


sábado, 25 de janeiro de 2025

Bala Negra

 


BALA NEGRA 


Um ano. Há um ano Marli Porto investigadora da polícia vem numa verdadeira caçada a Nilton Lins e hoje, finalmente, se tudo der certo, ela terá o prazer de algemá-lo. Dar uma resposta a sociedade é pouco para ela. O ato criminoso de Lins custou a vida do casal de idosos e também o casamento da detetive. Desde quando foi escalada para assumir o caso, Marli mergulhou fundo deixando sua família em segundo plano. Pedro, seu marido há dez anos, não conseguia entender tal dedicação da esposa. Para ele foi apenas mais um crime. Basta fazer os procedimentos corretamente e pronto, Nilton estaria atrás das grades. Para um leigo como Pedro as coisas funcionam dessa maneira, porém Nilton não é qualquer fora da lei. Ele não é um bandidinho formado na esquina. Lins matou o casal Batista a poder de machadadas. Roubo seguido de morte e não foi só uma vez. Nilton é violento, temido até por outros criminosos. O assassino do machado precisa ser tirado de circulação imediatamente. 

Marli também quer pôr as mãos em Lins porque ele, de forma indireta, destruiu seu casamento com o homem que ela ama. Pedro não suportou o fato de ter sido jogado para escanteio por causa de uma investigação. Marli não quer admitir nem mesmo para ela, mas verdade seja dita, a policial ficou paranoica. Sua mente vivia em constante ebulição devido às pressões sofridas. 

— A sociedade, a imprensa e o que é pior, o governo precisa de uma resposta. – falou o delegado acomodado em sua cadeira.

— Nilton é escorregadio demais. Ele está sempre a um passo à nossa frente. 

— Marli, confiamos esse caso a você. Você já provou que é eficiente e que não está aqui para brincadeira. Se Lins está sempre a um passo à nossa frente é porque você vem dando esse espaço a ele. – entrelaçou os dedos. — lembre-se, Marli Porto, só avança quem encontra espaço. 

Porto se lembra desse dia como sendo o pior de sua vida. Delegado Cardoso estava coberto de razão, porém ele não tinha a menor ideia do que sua  melhor agente do departamento estava passando dentro de casa. Ela é uma agente da lei cumpridora de seu dever, mas por trás daquela negra alta imponente, portando uma arma e um distintivo existe uma mulher como todas as outras. Marli estava a ponto de explodir e cada vez que uma operação correspondia ao esperado ela sentia vontade de chorar trancada em seu quarto, ou simplesmente recostar a cabeça no peito de Pedro e ficar ali durante horas. Mas ela não pode se dar a esse luxo. Demonstrar fraqueza está fora de cogitação.

A prisão do inimigo público número um agora é questão de tempo. Durante um ano Marli e sua equipe elaboraram um esquema infalível que certamente terminará com Nilton enjaulado. Não há como sair errado. Assim todos esperam. Essa manhã foi ainda mais atípica. Além de ter que se acostumar a viver uma nova vida de mulher separada e ter que acordar sem Pedro a seu lado na cama, Marli foi notificada sobre a presença de Lins nas imediações de seu bairro.  Foi preciso deixar a preguiça e o desânimo de lado e partir. A primeira fase do plano, digamos, seria a pior: a identificação do inimigo. Encontrar Nilton seria como tentar procurar uma agulha num palheiro. Todos da equipe tinham plena convicção de que seria difícil, quase impossível, porém não sabiam que seria tanto. Para começar, Nilton Lins estava totalmente diferente desde sua última aparição. Os longos cabelos e barba já não existem mais. Ele agora posa de galã com cabelos bem cortados e sem barba arrancando suspiros das desavisadas de plantão. Foi preciso um olhar microscópico  para identificá-lo.

Equipe alertada. Equipe focada. Cada um em sua posição e pronto. Resta somente esperar e abordá-lo. A segunda fase do plano foi um pouco mais fácil. Seguir os passos do assassino, tentar entrar em sua rotina. Foi um trabalho fácil? Sim, foi, porém cansativo, chato e enfadonho. Lins não é um cidadão comum, vale lembrar que ele é um foragido da polícia e a rotina para um fugitivo é sinônimo de prisão certa. Demorou, por fim conseguiram saber o que o matador fazia todas as manhãs. Restou apenas organizar a operação para um minucioso mapeamento de seus passos e aguardar que a fera mordesse a isca.


Antes 


Nilton já havia sondado aquela casa há alguns dias. Descobriu que o casal de idosos moravam sozinhos e que dificilmente recebiam visita de filhos ou amigos. Lins também percebeu que o velho demorava alguns longos minutos para fechar o portão depois do passeio com o cachorro todas as tardes. Daí pra frente foi fácil. Certo final de tarde ele aguardou o aposentado passar arrastando suas sandálias em frente a uma construção inacabada puxando o vira-lata.

— Vamos andando Pipoca.

A vítima passou. Lins se apossou do machado recém comprado. Esperou até que seu Batista se aproximasse de seu portão e foi atrás. Como era de se esperar, o septuagenário demorou para fechar o portão devido às dores nas mãos.  Foi abordado. 

— Cala a boca e entre. Vamos! 

— O que, como assim?

Nilton o empurrou. O idoso perdeu o equilíbrio, caindo e batendo as costas no chão. A cadela começou a latir e foi a primeira a estrear o fio do machado.

— Santo Deus. – gemeu Batista. 

— Levanta, vamos e nem tente alarmar. – Lins o puxou pelo braço com truculência. 

Lá dentro é uma típica casa de classe média. Os móveis são poucos, porém valiosos, sem falar nos eletrodomésticos. Mas o que realmente interessava Nilton era o dinheiro. Sim, apesar do charme, da boa aparência, Nilton Lins não passa de um ladrão de residência barato. Aos empurrões o dono da casa foi conduzido até onde sua esposa se encontrava cozinhando, adiantando o jantar.

— Fale para ela o que está acontecendo. – jogou o velho contra a mesa.

— Por favor, não nos faça mal, leve o que quiser. – implorou o aposentado. 

— Batista, meu Deus, o que está acontecendo aqui? – Dora soltou a faca.

— O dinheiro, eu quero o dinheiro e não adianta dizer que não tem porque eu sei que tem. – vociferou ameaçando-os com o machado.

Dora olhou para o esposo que trazia no rosto a face do pavor. Depois voltou a olhar para Nilton que transpirava e respirava perigo. Ele está falando sério, pensou a ex professora.

— Promete nos deixar em paz? – perguntou Dora.

— Não posso prometer nada. – bateu no cabo da ferramenta. 

As coisas não acabaram bem para o casal Dora e Batista. O crime repercutiu e sensibilizou a todos. O sentimento de revolta também foi generalizado. Nilton saiu da casa dos idosos naquele início de noite carregando a arma do crime – limpa é claro e como uma boa soma em dinheiro. Os corpos foram encontrados três dias depois por vizinhos que estranharam a ausência e também o forte odor. Eles acionaram a polícia. Como não há crime perfeito e nem mal que dure para sempre, Lins pecou ao não averiguar se havia câmeras de segurança na casa. Poderia não haver na casa de Dora e Batista, mas do outro lado da rua, exatamente na calçada do vizinho da frente existia uma e registrou tudo, inclusive a saída ligeira do assassino. Marli Porto enquanto analisava as imagens trancava as mandíbulas e socava a mesa sem parar.

— Eu te pego desgraçado. 




Esse crime foi sem dúvida alguma horrendo, terrível, notório. Até a imprensa internacional ficou chocada com o ocorrido. Para se ter uma ideia, no dia do sepultamento um dos maiores jornais americano cobriu o acontecimento e ainda conseguiu uma exclusiva com a policial responsável pelo caso. Marli não estava afim de falar, o momento não pedia esse tipo de exposição, porém foi vencida pelo cansaço. Quando a jornalista posicionou o microfone e disparou a primeira pergunta, Porto agradeceu por ter feito, mesmo contra sua vontade, o curso básico de inglês.

— O que a senhora tem a dizer sobre o caso?

Marli pigarreou antes de responder.

— Bom! A polícia vem fazendo o trabalho dela. O que eu posso dizer é que, um crime brutal como esse não pode e não ficará impune.

— E quanto ao assassino do Machado, Nilton Lins, segundo me foi passado, não é a primeira vez que ele comete um crime bárbaro como esse. A senhora confirma essa informação?

Se Marli fosse uma mulher branca estaria ruborizada de vergonha. A repórter tinha razão. Lins possui uma ficha quilométrica e mesmo assim a polícia ainda não conseguiu detê-lo. A experiente investigadora precisou ser rápida.

— Sim, confirmo. Nilton nos vem tirando o sono a muito tempo. A minha polícia trabalha com inteligência. Não estamos lidando com um criminoso comum mas, lhe garanto que a prisão desse assassino do machado, será prioridade.

Assim que a jornalista agradeceu a oportunidade, Marli pode voltar a respirar. O tempo passou e ela nem sentiu. Quando saiu da capela o cortejo já seguia rumo ao jazigo perpétuo da família Batista. Foi comovente demais, pesado demais, houve desmaios e até um curto, porém bastante intenso discurso por parte de um membro da família. Marli estava a uma certa distância e só o que conseguiu ouvir foi um ruidoso pedido de justiça que ecoou nos muros pichados daquele cemitério. Marli já havia ouvido e visto o bastante. Era a hora de voltar para o departamento e cuidar do caso.

Época atual 


A tensão aumenta a cada segundo. A qualquer momento Nilton entrará naquela lanchonete. Porto precisa se manter calma e fria como sempre foi. Sua sorte precisa mudar. Sua equipe a informou que ele adora os pães de queijo que são feitos naquele estabelecimento e que todas as manhãs Lins compra dois ou três para viagem. Olhando de longe até que a iguaria é realmente atrativa. Marli se viu tentada em pedir um, mas se conteve em ficar só na água com gás. Por falar em água, Pedro mais uma vez lhe veio à mente. Pra falar a verdade ele nunca saiu de sua cabeça. A água é a sua bebida predileta, depois disso só o café. Quanta falta ele tem feito, principalmente nessa fase. Marli sente falta do cheiro dele. Ela se recorda das brincadeiras de seu Ogro amado, como costumava chamá-lo.

— Você cheira a manteiga de cacau. – dizia ele a beijando no pescoço.

— E você a loção pós barba.

Claro que essas trocas de carinho terminavam sempre na cama ou ali mesmo, na mesa da copa. Marli pode dizer tranquilamente que se separou do marido fazendo sexo quase que diariamente. Três vezes por semana melhor dizendo. Era fantástico. Essas lembranças só fazem o ódio por Nilton crescer, “ele me afastou de você”. A história de Pedro com ela começou engraçada. Marli percebia os olhares dele, só não entendia por que ele não se aproximava dela. Foram seis meses até o professor universitário criar coragem para o primeiro contato. Marli estava parada no primeiro degrau da escada que a levaria até sua sala de aula no segundo andar. Pedro estava descendo e quando a viu ali, sozinha, tratou logo de lhe chamar atenção.

— Com licença, sua bolsa está aberta. – ele falou rápido.

— Ah, sim, obrigada, eu estou respondendo algumas mensagens. Já estou guardando o telefone.

— Ah, não, fique a vontade, não é permitido o uso do celular em sala de aula, mas nos corredores sim, ainda mais sendo você uma policial. – o policial saiu sussurrado.

Marli franziu o cenho.

— Me desculpa. – gaguejou empurrando os óculos pra cima. – na biblioteca, outro dia, você deixou sua pasta semi aberta e vi seu distintivo.

Marli ficou surpresa e assustada ao mesmo tempo. Outro mole desse e a faculdade inteira ficará sabendo da existência de uma policial na instituição.

— Professor Pedro Oliveira. – estendeu a mão.

— Marli Porto. – apertou firme aquela mão enorme e peluda.

Dali pra frente os encontros e esbarrões se tornaram frequentes até o dia em que Pedro a convidou para sair e ainda dentro do restaurante o professor se declarou para ela que aceitou sem hesitação. O beijo não aconteceu ali, naquela mesa, mas sim dentro do carro.

— Eu já estava afim de você também, por que demorou tanto? – declarou Marli segurando o rosto do namorado.

— Já lhe disseram que você é uma mulher imponente?

— Ah, sim, muitas vezes. – bufou.

— É! Isso assusta um pouco. Mas, agora quero mais um beijo.

Mais uma lembrança que entornou gasolina na chama de seu ódio por Nilton. Pedro agora está distante dela. O que pesa nisso tudo é saber que ainda existia amor verdadeiro entre os dois. Como todo e bom casal, eles discutiam, mas nunca foi cogitado a possibilidade de separação. Nem quando houve um certo desconforto por parte da família de Pedro que não aceitavam o fato dele estar se relacionado com uma mulher negra. Marli bateu de frente com a sogra e as duas quase chegaram às vias de fato. Foi uma noite a qual a policial deveria, mas não consegue esquecer. Pedro ficou contra sua família e resolveu apostar no relacionamento com ela. Esse era e é o homem que ela ama. Uma lágrima teimosa surgiu e ela a deixou escapar. O celular vibrou no bolso da calça. Sinceramente ela desejou que fosse Pedro, mas não era o seu amado.

“Ele acabou de sair e está indo nessa direção”


*


Sabe quando você acorda e aquele pressentimento de que tudo não sairá como o planejado te assola e mesmo assim você resolve arriscar por que não tem outro jeito te assola? Pois é, isso também acontece com pessoas da estirpe de Nilton Lins. Ele não teve uma boa noite de sono. Sonhou várias vezes que estava sendo preso e torturado. Se levantou no meio da madrugada para tomar banho, se livrando do suor denso. Em determinados momentos ele se perguntou o que ele fez com a vida daquele garoto que só queria curtir e brincar? Daquele menino que todos achavam que seria modelo fotográfico ou ator de novelas. O que ele fez de sua vida? Vida? Que vida? Ela acabou quando ele cometeu seu primeiro homicídio. Quando ele afogou sua namorada na banheira daquele motel cinco estrelas. Foi complicado no início, mas com o passar do tempo, Lins acabou tomando gosto pela morte. Ele não dormiu mais depois da quinta tentativa. Achou melhor ficar vendo fotos de mulheres nuas na internet até o dia clarear e por fim tomar um café e comer pão de queijo na lanchonete.




Quem disse que não seria fácil ser uma policial acertou em cheio. Realmente não é. E quem disse que seria difícil errou por muito. Ser uma policial do calibre de Marli, chega a ser quase um sonho impossível. Se ela chegou até aqui, foi por puro mérito. Ela tem coragem, é determinada e possui um espírito de liderança fora do comum. Para se ter uma ideia, há homens que preferem trabalhar com ela. Claro que nem sempre foi assim. A menina pobre, moradora de comunidade enfrentou sérias dificuldades no início de sua brilhante carreira no departamento policial. As barreiras foram duas, no caso. Uma, Marli é negra. Apesar de sua beleza natural exótica, ela percebia olhares não muito amistosos e questionadores. E outra, por ser mulher. O ambiente no meio policial, podemos dizer que em sua maioria é composto por homens. Todas essas dificuldades ela venceu trabalhando. Aos poucos ela foi conquistando seu espaço e mostrando seu valor. Hoje em dia, ninguém mais imagina aquele Departamento sem ela. Até mesmo o delegado Cardoso reconhece isso.

A prisão de Nilton Lins pode até lhe render alguma premiação, subida de cargo ou até mesmo fama, coisa que do fundo do coração ela não gostaria que acontecesse. Colocar Lins na cadeia a fará respirar novamente. Com certeza ele não é o seu último inimigo, mas é o sujeito que de forma indireta arrancou dela seu grande amor. Que destruiu sua vida sentimental. Nilton não tem consciência alguma disso, mas sofrerá as consequências. Uma mulher estressada tem um poder de destruição de magnitude mil.

Outra mensagem no WhatsApp.

“Lins está a poucos metros daí, senhora.”

Porto digitou rápido demais e enviou não dando bola para os erros de digitação. O que importa é que a mensagem foi respondida e que ela está ciente do que está acontecendo. Esse fato a fez lembrar de Pedro, de como isso o incomodava. Ele como professor universitário fazia questão de escrever certo e não tolerava quem fazia ao contrário. Analfabetismo funcional não era admitido por ele de forma alguma.

— A pessoa que sabe ler e não ler é pior que o pobre do analfabeto. E a pessoa que tem instrução e sabe escrever e mesmo assim não liga para os erros de escrita, sinceramente, deveria sair do meio dos analfabetos funcionais. Você não tem o direito de fazer parte desse grupo. – dizia em suas aulas.

Isso gerava discussões intermináveis entre o casal, mas Pedro acabou sendo vencido pelo cansaço. Hoje ela se recorda desses episódios dando risadas, mas que na época eram bastante complicados. Recordações e mais recordações. Lembranças e mais lembranças. Praticamente nesses últimos dias sua vida se resume a isso. Pedro não foi seu único namorado e provavelmente não será o seu último, mas o que acontece é que o professor a completa como nenhum outro a completou. Nesses quase quarenta anos de existência ela se envolveu com quatro homens e com todos eles ela teve o prazer de terminar o relacionamento. Não existia amor de verdade. Pedro, além de ser um excelente amante, ele também é amigo, cúmplice e o que é melhor, leal, coisa rara hoje em dia no meio masculino. Por isso ele faz tanto falta e pra falar a verdade, Marli não sabe se conseguirá seguir sem ele.


*


“ Eu me lembro de muita coisa daquele dia. Me lembro de quando chegamos naquele motel e o quanto eu a desejava. Era estranho. O meu desejo por Sabrina extrapolava o tesão, a pele, o prazer. Eu queria mais do que penatrá-la. Eu queria vê-la morrer. Minha mãe tinha razão, sou mesmo um doente mental. Não há diagnóstico melhor do que vivenciar a experiência de assistir alguém morrer. Pobre Sabrina. Achou que havia encontrado o príncipe encantado, chega ser engraçado. Afogá-la naquela banheira deu um certo trabalho, mas foi recompensador no final. Minha mãe sempre teve razão com relação ao meu lado irracional. Claro que antes eu a comi durante uma hora em cima daquela cama cafona. Realizei todos os seus pedidos mais quentes e depois a chamei para se banhar comigo. Pobre Sabrina. Tão linda, tão inocente, tão pura.”

— Me dê prazer em baixo d’água. – pedi.

— O que? Quer que eu faça submersa? – sorriu me tocando.

— Exatamente. – a essa altura eu já estava salivando.

— Tudo bem então.

“ Sabrina mergulhou. Assim que senti sua boca segurei em seus ombros e forcei seu corpo para baixo. Nossa. Ao bater os braços a menina jogou muita água para fora molhando o carpete. A coitada lutou muito contra a morte, mas não teve jeito. Só a soltei quando vi sua barriga ficar estufada de tanta água que bebeu. A morte por afogamento deve ser horrível. Deus me livre! Saí da banheira e notei que a minha ereção permanecia firme. Abandonei o quarto deixando para trás um corpo nu boiando. Assim que alcancei a rua senti vontade de comemorar meu primeiro homicídio com algumas doses de tequila. Foi o que fiz.”

Restam somente cento e cinquenta metros para a chegada a tal lanchonete onde Marli o aguarda. Nilton veste uma camisa azul social para fora da calça, na tentativa de esconder sua pistola presa ao cos. Seus passos são firmes, moderados e silenciosos devido ao par de tênis que usa. O cara não passa despercebido de jeito nenhum. Os olhares femininos são todos para ele, o centro das atenções. Finalmente ele pisa na loja e suas narinas sugam o cheiro do café fresco, do pão de queijo além de outros cheiros. Seu alerta interno foi acionado e ele não sabe o porquê. Seus olhos escuros como noite sem lua escanearam todo o lugar e nada captaram de estranho, são os mesmos clientes de sempre. Lins entrou e ocupou a mesa que fica de frente para a saída. Uma estratégia caso tenha que sair às pressas. Nilton não está à vontade, algo o incomoda bastante. Mais uma vez ele olha ao redor, olha para a entrada, olha para o balcão, para a pequena fila do caixa. Tudo normal.

— Bom dia. – disse a única garçonete do lugar.

Assustado, Lins mal cumprimenta a menina.

— Ah, oi!

— O mesmo de sempre? – a moça tem um sorriso exageradamente aberto.

— Sim, acho que sim.

— Tudo bem. Anotado.

Algo voltou a dizer dentro dele que ele não deveria estar ali, não deveria ter saído de casa. O coração do assassino do machado acelerou de repente. Péssimo sinal. Ele já sentiu isso uma vez e quase foi pego. Uma van de uma empresa de internet encostou e dois funcionários regularmente uniformizados desceram. Um deles pegou a escada que se encontrava fixada no teto do veículo e a posicionou no poste. Um deles olhou para dentro da lanchonete. Nilton colocou sua mão direita na arma.

— Mais que merda! – sussurrou.

Um susto seguido de outro e Nilton não está gostando nem um pouco disso. Até o barulho da escada sendo armada o fez saltar da cadeira. Seu pedido chegou e assim que bateu os olhos na bandeja ele percebeu que a fome já não existia mais.

— Me desculpe, é que prefiro que embrulhe para viagem, já estou de saída.

— Sem problema. – voltou com a bandeja ainda sorrindo.

Nilton tentou manter a calma respirando devagar porém as coisas pioraram quando uma dupla de rapazes passou na calçada e atravessaram a rua aproveitando o sinal fechado. Ambos ficaram parados, de costas olhando para a vitrine de uma loja de esportes que fica em frente. Hora de sair daquele lugar o mais rápido possível. A garçonete voltava com o pacote quando Lins cruzou a porta.

— Ei, senhor, o seu pedido.

Nesse momento Marli saiu do corredor que dá acesso ao banheiro feminino. Os olhares se cruzaram. O bandido sentiu suas vísceras se contorcerem. Marli ao ver seu alvo ali a menos de vinte passos sentiu os membros superiores ficarem fracos e mesmo assim ela conseguiu sacar sua Glock e lhe dar voz de prisão.

— Nilton Lins, fique onde estar, você está preso.

Corre corre e gritaria às nove da manhã dentro de uma lanchonete. Lins disparou pela calçada tirando sua arma da cintura. Os dois rapazes deixaram a loja de esportes correndo do outro lado.

— Atenção, o indivíduo está em fuga e está armado. – anunciou um dos policiais do outro lado da rua também correndo pelo calçamento.

Nessa hora ela agradeceu aos céus por ter escolhido um calçado leve e sem salto. Os transeuntes tentam entender o que está acontecendo, mas tudo o que conseguem ver é uma mulher negra, armada, correndo como louca atrás de um sujeito branco também armado. Não há muito o que fazer, Nilton não quer ir para a cadeia, por isso ele atira duas vezes. O tiro direcionado a dupla de agentes do outro lado explodiu o vidro da janela traseira de um Sandero preto parado em frente a um hortifruti. Os policiais deram graças a Deus por não haver ninguém no interior do veículo. O outro disparo passou longe de Marli, porém deixou alguém ferido atrás.

— Mais que droga. – vociferou Porto. – não resista, Lins, será pior.

Em meio a toda aquela confusão, Nilton conseguiu ouvir o pedido da detetive. Não. Ele não está a fim de atendê-la. Tudo que ele quer no momento é seguir fugindo. Nilton Lins é um cara esbelto, está bem fisicamente, mas, na boa, ficar correndo a pé não dará em nada, pensou. Nesses casos o melhor a fazer é atrasar a polícia. Uma mulher deixava os correios quando foi baleada quase que a queima roupa no braço. Ela se assustou e caiu sentada na calçada. O assassino do machado deu uma rápida olhada para trás e viu Marli prestando socorro à vítima.

— Boa garoto! – vibrou.

Marli sinalizou para que um dos policiais assumisse o seu lugar.

— Fique aqui. Chama o socorro. Vou atrás do Lins. – disparou a correr.

— Cuidado, senhora.

Muitas coisas passaram pela mente de Marli. Duas delas funcionam como um combustível. Pedro é uma delas. Ela o ama e lutará para reatar seu casamento. A outra é justamente o seu nome, sua carreira como agente da lei. Nessa missão Marli não pode falhar jamais. Seu inimigo outra vez olhou para ela antes de atravessar um cruzamento. O que esse merda pensa que é? Pensou. “ A minha vontade é de mirar e atirar, pelas costas mesmo. Dane-se. Eu não tenho o dia todo, ainda tenho um casamento para recuperar”. Enquanto Porto pensava, seu adversário passava pelo cruzamento olhando para trás. Nilton foi surpreendido por uma motocicleta que avançou o sinal. O choque foi tão forte que seu corpo foi arremessado a mais ou menos a dez metros de distância. Marli viu tudo como se fosse em câmera lenta.

— Jesus Cristo! – exclamou boquiaberta.

Lins bateu no asfalto e ainda rolou só parando dois metros depois.

— Argh! Me ajudem, me levem para o hospital. – falou aos berros.

O lado direito do rosto está inteiro ralado. Seu antebraço esquerdo está com uma fratura exposta. Estranhamente ele começou a tossir e a cada tosse, novas manchas de sangue aparecem no asfalto. Uma possível hemorragia interna. Ele levantou a cabeça e visualizou Marli chegando e decidiu seguir fugindo. As pessoas estão perplexas. Como ainda consegue caminhar?

— Nilton, pare, já chega. – gritou Marli.

“ O que essa negra pensa que é para me dar ordens?” Lins apertou o passo. O sangue escorre da fratura exposta de seu antebraço deixando para trás grossas gotas de sangue. Sua visão de repente se torna turva e outra onda de tosse acontece.

— PARE! – Marli apontou sua Glock.

A investigadora parece não acreditar no que está acontecendo bem diante dos seus olhos. Nilton Lins se encontra gravemente ferido, necessitando de auxílio médico com urgência e mesmo assim o seu instinto de sobrevivência consegue falar mais alto. Ele voltou a sacar sua arma e a apontou para a policial. É possível ouvir o som estridente das sirenes das viaturas e é bem provável que haja ambulância também. Armas apontadas. Olhares frios. Nilton sente dores terríveis por todo o corpo, ele mal consegue impor a arma. Nessa hora Marli recorre a fé, “ Solte a arma, por favor, meu Deus, eu não quero atirar”

Os curiosos vão se aglomerando. Carros passando a uma velocidade abaixo do permitido congestionando o trânsito. Viaturas freando abruptamente e Marli sem muita opção. Nilton tosse outra vez despejando uma quantidade considerável de sangue pela boca. Seu olhar para a policial já não carrega mais aquele ódio.

— Solte a arma, Lins, você precisa de ajuda.

Ele sorriu sem graça. Apertou o cano da pistola contra sua têmpora e atirou.

Acabou. Tudo acabou. O corpo do assassino do machado ao atingir o chão produziu um barulho surdo. Marli engoliu seco. A Glock voltou para o coldre. Um nó se formou em sua garganta, mas ela não chorou. Está tudo acabado.  Em questão de minutos seus parceiros de operação foram ao seu encontro lhe prestar congratulações, mas a única coisa que ela gostaria de verdade era abraçar seu marido. Cansada, suada, Marli deveria estar feliz, mas não está. Ela viu o inimigo número um da cidade sair de cena, bem na sua frente, mas, nem por isso ela consegue se alegrar. Salvou toda uma cidade, mas não o seu casamento. Droga de vida.

Dentro da viatura, seguindo para o departamento, sentada no banco do passageiro, ela segura firme seu celular olhando a paisagem que passa voando. De repente o aparelho vibra. Sem querer olhar ela olhou.  Era Pedro. FIM.




terça-feira, 31 de dezembro de 2024

E VAMOS PARA 2025

 


Sim! E lá vamos nós para mais uma jornada que levará 365 dias intensos.

Venho por meio desta agradecer aos Senhor Deus pelas alegrias, lutas e porque não dizer, bençãos sem medidas. Valeu Senhor.

Quero agradecer a cada um que tirou um tempinho para me prestigiar vindo aqui e conferindo um pouco do que rola na minha cabeça. Vocês são massa demais.

2025 será diferente e ainda melhor para todos nós em nome do senhor Jesus Cristo. Fiquem na paz!!!

quinta-feira, 26 de dezembro de 2024

Impacto Policial | Parte Final

 





Capítulo 1 



Assistir alguém morrer não deve ser nada fácil. Ou pelo menos não deveria ser. Por estar a tanto tempo no ramo da criminalidade, Osmar Ruas conseguiu fazer com que seu coração — se é que ele ainda possui um — fique congelado enquanto o seu semelhante é brutalmente assassinado a centímetros de onde está. Nada o faz chorar. Nada o faz temer. Ele se tornou oco por dentro e para uma pessoa que ocupa uma posição hostil como a dele, tal coisa lhe caiu como uma luva.

— Está difícil aqui, chefe. O cara não morre de jeito nenhum. — falou o capanga bastante ofegante.

 Ruas terminou de beber seu vinho arremessando a taça contra a parede.

— Será que nem para matar um traidor vocês prestam? — Sacou a arma de dentro do paletó.

 Dois disparos no meio do rosto e mais um no peito. O assecla engoliu seco olhando a fúria tomar conta de seu patrão.

— Peço desculpas, chefe. O senhor queria que ele tivesse uma morte bem dolorosa, então…

— Sei muito bem o que pedi, Marcelo. Você só estava cumprindo ordens. — Guardou a pistola. — Minha cabeça anda a mil desde quando a Coelho foi presa. A essa altura a polícia já deve estar sabendo do plano.

— E o senhor ainda pretende executá-lo?

— Claro que sim. Foi um investimento muito alto para desistir assim tão fácil. Helenópolis é uma mina de ouro. Infelizmente ela se encontra nas mãos de gente incompetente, por isso sofremos o que sofremos.

— Mas, eu ainda não entendi. Se quer tanto mudanças, por que não se afilia a um partido e se candidata a algum cargo?

 Ruas olhou friamente para seu comparsa. Se ele não fosse seu fiel escudeiro há tantos anos e também, se Marcelo não fosse tão bom no que faz, Osmar puxaria novamente sua pistola e a descarregaria em sua face, mas…

— Encerramos por aqui. Vou precisar de você amanhã cedo. Quero que coordene as atividades na prefeitura.

— Sim, senhor.


*


A terceira e última bomba anda dando trabalho ao seu instalador. Além de ser um local de difícil acesso, o risco de ser pego mexendo na caixa de força da sede da prefeitura é bastante alto, por isso o trabalho precisa ser feito rápido. Do lado de fora, acomodado dentro da S.U.V preta, Marcelo, como fora comissionado por Ruas, coordena toda operação de instalação dos artefatos que por sinal anda bem atrasada.

— Se não terminar essa merda em cinco minutos, eu acabo com a raça de toda sua família. — Rosnou ao telefone.

— Não será necessário.

 Marcelo é um sujeito alto e negro. A calvície o acometeu quando ele tinha somente dezessete anos e desde então o gangster aderiu a raspagem por completo do couro cabeludo. Imponente, o ex militar das forças armadas presta seus serviços ao crime organizado em busca de grana. Muita grana na verdade. Ruas deposita toda sua confiança em sua habilidade em gerenciar grupos e na elaboração de estratégias, por isso faz questão de mantê-lo sempre bem a vontade e também sempre muito bem pago.

— Terminei! — Informou o operário.

— Ótimo! Mete o pé daí imediatamente.

 Marcelo encerrou a ligação com o funcionário e iniciou outra, mas agora com o patrão.

— Tudo pronto.

— Beleza! Volte para a base.


*


A sede da prefeitura de Helenópolis foi construída onde antes existia uma enorme vila cujo nome era Helena. Vila Helena para ser mais exato. Trata-se de um lugar arborizado, com pista de corrida, aparelhos de ginástica para a terceira idade, além de um pequeno pólo gastronômico ao redor.

 Dentro do prédio, tudo, absolutamente tudo foi cuidadosamente modernizado. Resultado do bom trabalho que Fernanda Ribeiro vem fazendo à frente da prefeitura há seis anos. Aos 49 anos, Fernanda segue firme no objetivo de alcançar o Palácio do Planalto nas próximas eleições. Conhecida como a prefeita diva por estar sempre produzida e cercada por dezenas de seguidores, Fernanda quando se encontra no cumprimento do seu papel, ela esquece que é uma autoridade popstar dando vez a mulher de pulso firme que sempre foi.

— Senhora prefeita. Ligação para a senhora na linha dois. — Informou a secretária.

— Pode me transferir.

— Como vai, prefeita Fernanda Ribeiro. A Diva.

 Fernanda não gostou nada de como foi iniciada a ligação.

— Com quem estou falando?

— Osmar Ruas.

— Passar trote é crime, ainda mais para a prefeita da cidade.

— Não precisa acreditar se não quiser, mas uma coisa eu garanto, nas próximas horas, tanto a senhora como toda a sede irão pelos ares.

 Ribeiro engoliu seco.

— Veja bem. Eu tenho um monte de coisas para fazer hoje e sinceramente não estou a fim de ficar ouvindo asneiras de um desocupado…

— Depois não diga que eu não avisei, prefeita. Pensando bem, vou dar uma chance da senhora checar. Peça que dêem uma olhada por aí e depois de confirmarem, ligue para o número que irei falar agora.

 Fernanda anotou rapidamente o contato.

— Boa sorte, Diva.


*


O copo com café puro foi posto ao lado da pilha de pastas sobre a mesa abarrotada de outros documentos importantes de Ângelo. Magali vem percebendo o quanto o seu parceiro tem se empenhando em manter a organização das ocorrências e devido a isso ele quase não tem tempo de sequer se servir de um cafezinho fresco.

— Obrigado! Café nunca é demais.

— Minha avó costumava dizer que a vida sem café não é vida. — Puxou uma cadeira. — Alguma novidade sobre o Ruas?

— Nada! E é exatamente isso que me preocupa. Conhece aquela fala: criança muito quieta é porque está fazendo merda? Então…

— Que plano audacioso. Explodir o shopping Nova Helenópolis só para demonstrar força e poder. — Duarte sorveu outro gole do café.

— Pelo visto, teremos que manter nossos homens por lá por mais algum tempo, até agora nem sinal de nada.

 De repente o rosto petrificado e ruborizado de Sodré emergiu de sua porta berrando os nomes dos seus agentes. Seu humor agora à tarde está mil vezes pior do que o do período da manhã.

— É isso que dá confiar em uma vagabunda. A Coelho mentiu dizendo que Osmar Ruas faria um atentado no Nova Helenópolis.

 Negrão e Duarte se entreolharam.

— Merda! Vocês ainda não entenderam? — bateu na mesa. — Acabei de receber uma ligação da prefeitura. Uma bomba foi encontrada lá.

 Magali ainda segurava o copinho com café.

— Chega de cafezinhos por hoje. Iniciem as buscas por esse desgraçado. Quero Ruas fora de circulação agora e já. — Gritou.


*


Ao redor e nos arredores da sede da prefeitura o que havia de viaturas da polícia, bombeiros, ambulâncias e vans de veículos de comunicação não estava no gibi. A impressão que se tinha era que todo o departamento de polícia se deslocara para aquela localidade. Negrão e Magali, ainda ruminando o mal estar com Sodré, chegaram ao ponto dispostos a pôr um fim na festa do criminoso.

— Sei que está com raiva, mas peço que a partir de agora fique focada.

— Até parece que eu vivo tomando café e não trabalhando. Sodré é um idiota. — desceu do carro batendo forte a porta.

— Eu também estou chateado. Assim que terminarmos aqui marcaremos uma conversa com ele. Fique tranquila.

 Após as ordens de afastamento dos civis o colocá-los a uma distância segura do lugar, a dupla de detetives partiu em busca da prefeita. Ao vê-la pessoalmente, Negrão pode constatar o quão ela faz jus ao seu apelido. Diva da cabeça aos pés.

— Senhora prefeita, sou o detetive Negrão e essa é a agente Magali Duarte. Ruas fez mais algum contato?

— Até agora não.

 Fernanda também estava admirada com tamanha beleza negra da policial.

— Temos que tirá-la daqui imediatamente, senhora. — falou Magali.

— De maneira alguma. Deus sabe o quanto eu sofri e trabalhei para estar na posição em que eu estou. Não será um traficante de merda quem vai ditar as regras dentro da minha casa. — voltou para trás de sua mesa.

 Ângelo pensava em contestar a autoridade a sua frente quando o telefone sobre a mesa da prefeita soou deixando a todos apreensivos.

— É ele! — Disse Fernanda.

— Coloque no viva voz. — pediu Negrão.

— Olá, Diva. Vejo que agora eu tenho sua atenção. É lindo de se ver. Esse lugar se transformou em um centro de convivência de uma hora para outra.

— Ok, Osmar Ruas, já chega desse showzinho ridículo. Faça logo suas exigências…

— E quem disse que se trata de exigências, Diva? A essa altura o seu gabinete rosa deve estar apinhado de policiais querendo salvar sua pele. Acertei?

 Ribeiro deu uma rápida olhada para a dupla de agentes parados analisando a conversa.

— Eu não faço ameaças, prefeita. Quando eu digo que irei explodir a sede da prefeitura junto com a senhora e quem mais estiver aí, eu falo sério?

— Você é muito sujo mesmo. Faço questão de sair daqui e vasculhar a cidade até te encontrar seu marginal…

— Perdendo a compostura, dona Fernanda Ribeiro? E outra coisa, quem disse que a senhora pode sair? 

 Houve silêncio.

— Quer mais um conselho? Nem pense em pedir aos vermes para desativar as bombas. Elas me custaram os olhos da cara, mas valem cada centavo. O sistema ao ser desativado inicia uma regressiva e aí…

 Magali olhou para Negrão que também não estava acreditando no que seus ouvidos acabaram de captar.


*



Olhando atentamente a cada movimento feito por seu chefe ao telefone com a prefeita, Marcelo tenta imaginar o que se passa na cabeça de alguém de reputação tão negra como a dele. Assim como Osmar Ruas, Marcelo vem galgando os mais disputados degraus da criminalidade até alcançar o ponto máximo do submundo. Carregar o título de o maioral entre todos os malfeitores é algo que muitos ambicionam, mas poucos são os que realmente conseguem bancar. Vale lembrar o quanto Marcelo o admira por tamanha coragem de encarar o poder público. Ser o responsável direto por mandar a sede da prefeitura pelos ares junto com sua gestora e ainda assinar o feito não é pra qualquer um.

— E aí, chefe. Sucesso ou processo nas negociações com a Diva? — Perguntou limpando sua arma.

— Não há negociação alguma, meu caro Marcelo. Eu tenho a vantagem. Fernanda Ribeiro vai comer na minha mão. E quando isso acontecer, Helenópolis pertencerá a Osmar Ruas.

— Eu não quero ser pessimista, mas o senhor não acha que agora não fomos longe demais?

 Ruas abandonou sua mesa andando em direção a janela. Assim que a abriu, o som da movimentação urbana invadiu o recinto.

— “Situações extremas requerem medidas extremas”. Esta frase não é minha, mas responde bem a sua pergunta. Passar do ponto às vezes se faz necessário. Eu prefiro pecar pelo excesso.

 O capanga entubou tudo o que ouviu. Guardou sua pistola no cós da calça e se levantou.

— Qual o próximo passo?

 Osmar sorriu olhando para seu fiel escudeiro.

— BOOM! — Vociferou lhe mostrando o dispositivo que detona a bomba.


*


Helenópolis em crise. A incrível metrópole de edifícios suntuosos infelizmente conseguiu chamar a atenção — negativamente — de todo o país e até do exterior em questão de horas. Em cada casa, bar, apartamento ou esquina não se fala em outra coisa a não ser o sequestro da sede de sua prefeitura. Claro que todo esse mal estar deixou a todos de mau humor — todos mesmo — e Rubens Sodré é a maior prova disso. Não foi preciso elaborar um gabinete de crise, mas diante das declarações do governo do estado e até Federal, de que Helenópolis se tornou o grande centro do crime, Sodré já cogita essa possibilidade.

— Como assim Osmar não fez exigências? — Berrou ao telefone com Negrão.

— Exatamente, senhor. A única coisa a qual exigiu foi a permanência de todos na prefeitura, principalmente da prefeita.

 Os palavrões foram tantos que o próprio chefe de polícia não se reconheceu quando os pronunciou.

— O miserável está jogando. Se ele tivesse que explodir tudo isso aí já o teria feito. Nossos homens já estão nas ruas. Não se preocupem, vou tirá-los daí em segurança.

 “O exemplo arrasta” foi o que Sodré aprendeu na época em que defendia as cores da bandeira do país quando era um soldado das forças armadas. Estar a frente de um departamento de polícia, sentado confortavelmente atrás de uma mesa impondo suas ordens é algo relativamente fácil. Rubens gosta de estar em combate. Sempre gostou. Assim que encerrou a ligação com Negrão ele correu até a sala de armas e se apossou de uma submetralhadora e vestiu o colete.

— Venham comigo. — Falou para dois agentes na saída da sala.


*


Com a polícia nas ruas bloqueando vias e estradas, invadindo desde a mais humilde comunidade até o mais luxuoso condomínio, sem contar com as batidas em prédios, a cidade inteira entrou em estado de choque. O plano de Sodré é sufocar o rato até que ele saia da toca. Ou pelo menos incomodá-lo até sua rendição. A estratégia deu certo. Alertado por Marcelo, Ruas foi obrigado a ligar a TV e se informar do que estava ocorrendo na cidade.

— Fomos longe demais. Eu avisei.  — disse o assecla de pé olhando cada reação de seu patrão. — Em pouco tempo irão nos encontrar. Algo precisa ser feito e rápido.

 Outra vez o coração de Osmar se inflamou contra seu subordinado.

— Nada irá mudar aqui, Marcelo. Se está com medo recomendo que fuja enquanto há tempo para isso. — falou ainda olhando para o aparelho de TV.

— Exploda logo a merda da prefeitura… — gritou abrindo os braços.

— Com quem pensa que está faltando seu… — Ruas girou o corpo rapidamente batendo de frente com a pistola de seu escudeiro apontada para ele.

 Grana. Marcelo é movido por dinheiro. Um sujeito como ele jamais pode correr o risco de incendiar toda uma cidade e não ganhar nada com isso. É claro que esta insatisfação não começou agora. Ele vem percebendo a perda de controle de Osmar há algum tempo. Chegou a hora de alguém de pulso firme assumir o controle. Sangue novo na jogada. O peito do traficante chefe foi atingido por dois disparos que o fizeram cair sobre a mesa onde estava a TV.

— Legal! Eu assumo daqui. — Pegou o detonador no bolso interno do paletó do cadáver.


*


O tempo estava passando e muito rápido por sinal. Se por fora Ângelo Negrão transparecia ser um monge budista no auge de seu relaxamento, por dentro ele estava bem próximo de explodir. Ficar parado dentro de um ambiente que corre sério risco de voar pelos ares sem poder fazer nada é simplesmente torturante. Outro agravante é o fato de estar à mercê de um louco que pensa ser o líder absoluto do mundo.

— Alguma ideia? — Magali voltava para o gabinete.

— Várias, mas… — cruzou os braços. — e a prefeita?

— Reunida com sua equipe na outra sala. Eu não gostaria de estar na pele dela, deve ser uma pressão horrível.

— Mas nós estamos na pele dela de uma certa forma. Não é?

 Duarte ainda pensava no que responder quando Fernanda Ribeiro e toda sua equipe entrou trazendo junto o burburinho dos corredores. O cansaço e desânimo estampados no rosto da líder municipal deixava claro o tamanho de seu esforço.

— Nos deixando trancados aqui só ajuda a promovê-lo. Osmar Ruas quer demonstrar poder aos seus rivais. Temos que respondê-lo à altura.

— Disso a senhora não precisa ter dúvidas. Todo o DPH se encontra nas ruas. Chefe Sodré também está acredito eu. — expressou Negrão.

 O toque repentino do telefone da prefeitura fez todos sobressaltarem.

— É ele. — expirou a prefeita.

— Mantenha a calma, prefeita. Ele infelizmente tem o controle da situação. — orientou Duarte.

— Prefeitura de Helenópolis…

— Já chega dessas frescuras.

 Fernanda olhou para os agentes e sussurrou.

— Não é o Ruas.

— Exatamente! O Ruas precisou dar uma saidinha, acho que para o céu. Melhor dizendo, para o inferno. Agora Helenópolis tem um novo líder.

— Com quem estou falando? — Fernanda tentava manter a voz a mais tranquila possível.

— E isso importa? A senhora deveria estar preocupada em como sair viva dessa e seus funcionários também, não acha?

 Visivelmente em choque, a executiva buscava desesperadamente nos policiais uma melhor forma de negociação. Negrão fez menção de assumir o telefone, porém foi impedido há tempo por Magali.

— Sem mais delongas, preciso que seja depositado em minha conta o valor de vinte milhões.

 Quem seria o louco ao telefone com Fernanda exigindo tamanho absurdo? Vinte milhões é dinheiro pra burro e em mãos erradas pode vir a causar um inferno na terra. Magali dirigiu-se para um canto do gabinete juntamente com seu parceiro e ali expôs o que pensava.

— Se quem estiver falando com a prefeita tirou Ruas da jogada, a situação não está totalmente fora de controle. Penso até que ganhamos um tempo.

— Quem seria o segundo homem no cartel do Ruas? — Negrão cruzou os braços.

— Lembra quando impedimos a chegada de um avião lotado de armas e drogas num aeroporto clandestino na fronteira entre São Paulo e Helenópolis?

— Claro. Fomos recebidos por uma chuva de balas.

— Osmar Ruas não estava lá e sim um tal de Marcelo.

 Ângelo coçou o queixo.

— Vamos levantar a ficha desse sujeito. Vou ligar para Sodré.

 Fernanda ainda tinha os ouvidos invadidos pela voz rouca e uma conversa coberta por gírias do traficante quando Negrão se aproximou gesticulando bastante e propondo que a prefeita ganhasse mais tempo.

— Vinte milhões, e em quanto tempo? — Fernanda tremia os lábios.

— Que tal agora?

— Olha, eu não tenho esse dinheiro na minha bolsa. Me dê um tempo…

— Dúvido que não tenha. A prefeitura costuma arrecadar muito mais do que isso diariamente, sem falar da verba do governo federal.

 Todos olhavam atentamente para a linda mulher de indumentária social pendurada ao telefone praticamente paralisada.

— As coisas infelizmente não funcionam desta maneira, senhor…?

— Meu nome não importa no momento, Diva. Quero meus vinte milhões em duas horas. É um bom tempo, não acha?

 Magali fez sinal de positivo.

— Está certo. Duas horas.

— Até breve.


*


O que é um guerreiro sem batalha? Que sentido há na vida para um soldado quando os confrontos se cessam? Sodré sempre almejou atingir o cargo máximo dentro da instituição e após anos de dedicação e sacrifício ele conseguiu, porém o seu lado soldado combatente se tornou inoperante. Ter os melhores agentes a sua disposição pode até ser um privilégio, mas no fundo, tudo que um policial quer é estar no fronte. Voltar às intermináveis ruas de Helenópolis o fez revisitar um passado glorioso onde ele tinha o prazer de perseguir criminosos e capturá-los.

 Ao tomar ciência da suposta morte de Osmar Ruas o delegado redobrou os cuidados e também refez os planos juntamente com seus homens. Dentro da viatura com Negrão na linha, eles traçaram o perfil do novo chefe do cartel.

— Esse tal de Marcelo vive entrando e saindo do radar da polícia. Possui uma extensa ficha. Homicídios, associação ao crime, tráfico e até assaltos a banco. É barra pesada o cara.

— E agora que tem o poder nas mãos ele é capaz de tudo. O senhor precisa achar o ninho do rato.

— Creio eu que estamos perto.

 Às viaturas deixaram a avenida Leste a principal via da metrópole e entraram de forma ordeira na zona dos condôminos e mansões de luxo. Segundo informações obtidas de fontes altamente confiáveis de Sodré, nos últimos seis meses Ruas e sua gangue eram vistos por lá. Moradores do lugar também relataram que o mafioso esbanjava sua fortuna patrocinando festas e “importantes” reuniões com figurões de alta classe. Rubens contou também com a contribuição de Coelho que, assim como fez outrora com Ângelo Negrão, suas exigências foram bem claras.

— Estamos chegando na zona dos condôminos. O show vai começar. — Disse encerrando a ligação.


*


Para Marcelo, Ruas não passava de uma raposa velha teimosa, um líder antiquado que não aceitava e nem pedia ajuda de ninguém. Mas em quanta partida, Osmar possuía o que muitas vezes falta em gente como ele: manha. Osmar Ruas tinha a manha das ruas, dos becos. A malandragem que o fez ser quem ele era. Assim que foi informado sobre a chegada da polícia, mesmo não demonstrando, o desespero bateu forte em sua porta e nessas horas é praticamente impossível de se manter calmo e de tentar tomar uma decisão assertiva.

— O que faremos, senhor? — inquiriu um assecla.

— Não tem jeito. Temos que atacar.

— Mas, Marcelo, será um banho de sangue. Pense melhor.

 A tal da paciência e Marcelo infelizmente não nasceram um para o outro. Não saber lidar com situações adversas quando se está sob pressão é algo recorrente na vida do bandido.

— Veja bem. Ruas está morto. Eu o matei e a menos que não queira lhe fazer companhia no inferno obedeça minhas ordens. Ataquem os vermes.


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Um comboio com mais de quinze homens armados e dispostos a manter o império Ruas mais sólido do que nunca e mais poderoso do que antes desceu as largas ruas daquela localidade prontos para o confronto. Entre eles também se encontra seu novo mandante segurando com força seu armamento e despejando ordens a torto e a direita dentro de um dos veículos.

— Atirem para matar. — Gritou Marcelo mais uma vez.

 O inevitável aconteceu. Quando não se tem alguém preparado na condução de uma grande e árdua tarefa, os que estão na frente da batalha são os primeiros a serem sacrificados. Sodré e seu grupo não tiveram escolha a não ser abrir fogo contra o inimigo.

 A van prata pertencente ao grupo criminoso teve o parabrisa dianteiro atingido, assim como seu condutor também ferido no braço direito. Claro que isso não ficaria barato. A viatura teve um dos pneus alvejado e por pouco não capotou.

— Mais que droga, não podemos deixar que escapem. — Berrou Sodré.

 Dois bandidos desceram da van obedecendo às ordens de Marcelo. Os marginais abriram fogo dando cobertura ao restante da gangue. Como moscas diante do poder de um inseticida eles foram abatidos.

— Mais dois. — Informou um dos oficiais.

— Nós temos que achar o Marcelo. É ele quem está com o detonador da bomba. — Sodré falou ao rádio.

 Mais uma viatura na mira dos bandidos. O policial que ocupava o banco do carona teve o ombro e a coxa atingidos perdendo muito sangue. Na tentativa de proteger o amigo de farda, o motorista fez uma equivocada manobra sendo morto por um disparo que atingiu seu pescoço.

— Meu Deus! Chefe, temos uma baixa.

 Perder um soldado em batalha faz parte do contexto, mas nunca será algo fácil de aceitar. Rubens Sodré ainda não consegue lidar direito com esse tipo de situação e nessas horas o seu emocional fala mais alto do que sua razão.

— Me dêem cobertura. — saiu da viatura já mirando em outro carro inimigo.

— Chefe, não faça isso. — Tentou o impedir o motorista.

 Na época das forças armadas, Rubens foi um dos premiados por ser um bom atirador. Ele não era excepcional, mas sempre esteve entre os melhores. Derrubar um carro em movimento não foi tão difícil. Em questão de segundos o veículo com quatro meliantes rodopiava sem controle, levantando poeira densa. Ao tentarem sair do veículo todos foram mortos. Enquanto seus agentes comemoravam e elogiavam o feito, Sodré se mantinha frio como normalmente é.

— Vamos lá pegar o Marcelo. — Voltou para dentro da viatura.


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Após assistir a mais uma cobertura sobre o sequestro da prefeitura, Adalberto Negrão não conseguiu mais conter a vontade de ligar para o filho. Mesmo sofrendo com uma forte dor em uma das pernas, o velho Negrão andou até onde se encontrava seu celular carregando e ligou. Ângelo o atendeu no primeiro toque.

— Oi, pai, tudo bem por aí?

— Eu que pergunto. Como você está?

— Bem, na medida do possível.

— E a lindona?

— A oficial Magali Duarte também.

— Me diga uma coisa, meu filho. A prefeita é realmente uma diva como dizem por aí? — Riu.

 Esse velho não tem jeito mesmo, pensou Negrão se afastando para responder.

— Ela é tudo isso e muito mais.

— Que privilegiado você é, garoto. Salve a todos, meu filho.

— Pode deixar meu pai. Que tal uma cervejinha mais tarde?

— Com aquele torresminho?

— Pode ser.


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Família! Que palavra linda. Que significado glorioso. Uma pessoa que não possui uma está fadado ao fracasso existencial. Receber uma ligação de seu pai foi como ter recebido diretamente na veia uma injeção de renovo. E diga-se de passagem, como Negrão precisava deste auxílio. O tempo estava se esgotando e tudo o que ele e Magali sabiam até o momento era que Sodré e o restante da tropa trocavam chumbo grosso com Marcelo e sua gangue.

— Não aguento mais ficar aqui parada enquanto o pau está quebrando lá fora. — Duarte reiniciou as reclamações. — Vamos tirar a prefeita e sua equipe daqui. Já!

— Esse tal de Marcelo pode ser louco, mas não é burro. Ele deve ter alguém lá fora de olho. — Andou em direção a janela.

— O que propõe, então?

— Venha. Quero conversar com a Fernanda.


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Se antes, Marcelo achava que havia se metido em uma enrascada, com a baixa de um de seus melhores homens, agora ele tem certeza absoluta. De maneira alguma Ruas encararia a polícia. A coisa mais certa a se fazer diante de uma encruzilhada dessas seria recuar ou na pior das hipóteses se render. Não! Partir para o tudo ou nada mesmo que isso custe sua própria vida e a vida de seus comandados é algo visceral. A ordem agora é atacar a polícia com todo o poder bélico presente.

— Venham comigo. — Ordenou deixando a van.

 Rubens Sodré pela primeira vez sentiu que algo poderia não terminar bem para ambas as partes com a atitude impensada de Marcelo e somente por isso o chefe de polícia decidiu usar todo o seu poder de negociação para tentar evitar um massacre.

— Marcelo! Aqui quem fala é Rubens Sodré, chefe de polícia de Helenópolis. Você não precisa fazer isso. — gritou a plenos pulmões da janela da viatura.

— Quer saber de uma coisa, chefe? Eu já estava de saco cheio de receber ordens do Ruas, então, não me venha dizer o que eu devo fazer. Diga à prefeita que o tempo está se esgotando. Eu quero os meus vinte milhões.

— Isso não será possível, Marcelo. Joguem suas armas agora. — Sodré tinha o rosto mais vermelho do que um pimentão.

— O senhor tem certeza? — puxou do bolso do blazer o detonador. — O poder é todo meu.

 Que maldito impasse. A última vez em que Rubens se viu diante de uma situação onde ele precisava tomar uma decisão rápida foi quando sua filha lhe pediu permissão para morar com o namorado.

— Ei, Marcelo. Eu dei uma olhada em sua ficha e vi que você foi o melhor de sua turma na época das forças armadas. Quantas medalhas por bravura?

 Mais que desgraçado! Pensou antes de responder.

— Eu parei de contar na décima segunda. — falou olhando para o grupo.

— Somos soldados, Marcelo. Eu também me esforcei, mas jamais alcancei o que você alcançou. Siga sendo um guerreiro. Peça ao seu pessoal que joguem as armas e ninguém morre.

 O jogo virou. Agora chegou a vez de Marcelo ser fuzilado pelos olhares aterrorizados de seus homens aguardando uma posição. O que Osmar faria agora? Pensou ele.

— Que se dane. Eu não tenho mais passado. — balbuciou. — Vamos acabar logo com isso. Ataquem!


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Do lado de fora da sede da prefeitura o movimento era gigantesco. Circular por ali sem pelo menos esbarrar ou ser esbarrado tornara-se uma missão praticamente impossível. Em meio a aquela multidão alvoroçada há alguém ali que, aparentemente, parece não se importar em estar constantemente sendo esbarrado e pressionando. Alguém cuja aparência fria pode enganar olhos despreparados, mas não olhos de um agente altamente treinado para identificação de maus elementos. Em pouco tempo o sujeito usando um boné de uma marca barata foi rodeado por cinco polícias à paisana sem chance de fuga.

— Sem gracinhas. Me passe o telefone e venha conosco.

 O outro agente informou a Negrão sobre o sucesso da ação. 

— Tudo certo por aqui, Ângelo.

— Positivo!


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A troca de tiros foi tão intensa. Tão violenta que, até mesmo homens acostumados com operações de alto risco em comunidades se deixaram abalar em alguns momentos. E como não poderia ser diferente, o número de feridos nesta incursão, tanto de um lado como do outro atingira graus absurdos. Ferido na perna, Sodré precisou mais uma vez ignorar a dor correndo até outra viatura a fim de abrigar-se melhor e dali tentar acertar seu alvo. Marcelo teve o ombro quase destruído e no momento ele se encontra deitado entre um veículo e outro tremendo dos pés à cabeça. Tudo estava acabado. Ele definitivamente havia perdido aquela guerra, mas antes precisava deixar sua marca. Explodir a sede da prefeitura, algo que com certeza seu antigo chefe não o faria jamais,e que o fará registrar seu nome na história da criminalidade. A vida por um fio. Sangue jorrando acelerando tal processo: a morte. Mãos geladas e trêmulas. Em meio as horrendas ondas de dor, Marcelo procurou pelo dispositivo dentro do bolso, gemendo horrores.

— Se liga, chefe. Vou cair, mas vou cair atirando.

 Pensando bastante em tudo que conquistou dentro da polícia. Dos longos anos no interior de uma viatura circulando para cima e para baixo por ruas e bairros considerados os mais violentos da metrópole, Rubens Sodré se equilibrou apoiando-se em seu armamento para tentar ficar de pé. Sob protestos de seus liderados, o comandante da operação andou sem medo e sem receio entre os disparos do grupo inimigo até alcançar onde o inimigo segurando o detonador estava. Mas para sua surpresa o mesmo se encontrava de pé o aguardando. Sodré foi atingido na clavícula e com isso sua arma caiu com o impacto. Mesmo sem fôlego ele conseguiu correr para trás das caçambas de lixo. Perdendo muito sangue e já desfalecendo, Marcelo caminhou vacilante ficando frente a frente com o alvo.

— Entre o lixo. Um bom lugar para morrer, não acha, delegado?

 Rubens somente esperava o momento dele puxar aquele gatilho e pronto. Tudo estaria acabado.

— Mas antes quero que veja o cumprimento da minha missão. — ergueu o detonador. — sua operação foi um desastre, delegado.

 Sim! Infelizmente Marcelo tinha razão. Internamente Sodré pediu perdão por não conseguir salvar a prefeitura e principalmente a vida de dois de seus melhores agentes. Ele se preparava para a morte quando o corpo do bandido caiu sobre ele, esvaindo sangue por um orifício na têmpora.

— Meu Deus? — Gaguejou.

 Rubens empurrou o cadáver de Marcelo para o lado ouvindo a voz de Negrão confirmando o abatimento do alvo.

— Agente Ângelo? — Sodré estava em choque tentando ficar de pé.

— O senhor está bem? Fique onde está, o socorro já está vindo. — informou Negrão segurando um fuzil de mira abrigado entre as árvores.

 Não suportando tanta dor, o chefe de polícia de Helenópolis apagou de vez preocupando a todos.


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Magali bem que tentou, mas infelizmente o seu nervosismo foi detectado pelos sentidos aguçados de seu parceiro na chegada ao hospital. Para piorar ainda mais a situação, a bela policial de traços marcantes precisou disfarçar ao se deparar com a família Sodré aos festejos pela notícia da possível alta de seu membro inusitado.

— Relaxa. Eles não mordem e nem soltam pelos. — disse Ângelo subindo as escadas.

— Tem razão. A mulher do chefe é uma gata, você viu?

— E tinha como não ver?

 A notícia se confirmou. Dentro de poucas horas Rubens estaria livre daquelas paredes brancas, frias e assustadoras daquela unidade hospitalar pública. Com a chegada de seus pupilos sua alegria triplicou não dando mais para esconder o sorriso de grande satisfação.

— Meus salvadores! — Bradou.

— Nem tanto, chefe. — retrucou  Negrão parado na porta.

— Quero ficar a par de tudo. É verdade que a prefeita fará uma homenagem à polícia no final de semana?

— E o senhor graças a Deus estará presente. — comemorou Duarte.

— E como foi que conseguiram tirar a Fernanda e toda sua equipe de lá a tempo?

— Não tínhamos muitas opções. O jeito foi agir do modo mais primitivo possível. Pedi para que agentes infiltrados entre a multidão identificassem o elemento, no caso o contato direto com Marcelo. Feito isso, para nos assegurarmos de que, tanto a prefeita como sua equipe não corressem o risco de serem identificados por outros possíveis olhos de Marcelo, pedi para que trocassem de roupas, tipo, o uniforme do serviço de limpeza urbana e auxiliar de serviços gerais, um por um foram retirados do local por uma saída a nexo a sede.

 Sodré estava boquiaberto.

— Deixei Duarte responsável por retirar o pessoal e corri para auxiliar na operação. Eu sei que o plano tinha tudo para dar errado, mas fato é que fomos rápidos demais e por isso estamos aqui lhe contando a história.

— Eu sei que no início fui grosseiro com vocês. — Falou olhando diretamente para Magali. — mas sempre acreditei no potencial de cada um de vocês. Parabéns.

 

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Na mesa havia algumas garrafas de cerveja já vazias e copos pela metade da bebida. O prato com torresmo e limão também estava próximo do fim, porém o que sobrava de fato naquela cozinha era a alegria. Seu Adalberto contagiava os dois jovens policiais com seus casos hilários de seu passado sem parar um minuto.

— Já pensou em registrar todas essas histórias em uma biografia, seu Adalberto? — perguntou Magali pegando outro torresmo.

— Até que não é má ideia. Aposto que seria best seller.

— Eu já até tenho um nome. — começou Negrão. — “Aventuras e desventuras do Negrão”. O que acharam?

— Legalzinho. — se levantou seu Adalberto. — Vou me recolher. Foi muito bom estar com vocês, crianças, mas é hora de velho ir para a cama. — ele olhou para Magali. — que bom que você veio, lindona.

— Obrigada, seu Adalberto. Já é tarde, eu também já vou indo.

— Eu te levo em casa. — Ângelo pegou as chaves perto das garrafas.

— Imagina. Você bebeu. Peço um Uber.

— Gostei de ver. Mesmo de folga ela faz questão de cumprir a lei. — Falou Adalberto deixando a cozinha.

 Ângelo e Magali têm plena convicção de que jamais poderão salvar o mundo, porém acreditam piamente que, com pequenas ações eles conseguem melhorar a vida de alguém. Hoje em dia, o chamado “enxugar gelo” vem se tornando cada vez mais evidente no serviço policial. Possuímos uma corporação corrompida, desacreditada e porque não dizer falida. Quantos Ângelos e quantas Magalis há entre agentes deteriorados pelo sistema? Quantos Sodres dispostos a fazer a coisa certa? Você pode ter certeza que há muitos e só por isso a nossa vida não está tão ruim.

Fim.