sexta-feira, 25 de dezembro de 2020

Quero Terminar com Elaine

 


Quero Terminar Com Elaine!

Escrito por Abril Rocha

 

 

João Marcelo avistou o garoto vendedor de balas terminando de fazer sua primeira venda. Dentro do veículo ele pegou algumas moedas e as contou com uma agilidade de poucos, isso se deve ao o tempo em que trabalhou na feira com seu pai quando adolescente e precisava dar troco rapidamente, ou então tomava uma bronca do velho Gilberto. Dois reais em moedas de dez, cinco e vinte e cinco centavos. Ele abaixou o vidro, colocou a cabeça pra fora e assoviou chamando o menino.

- Ei, garoto!

Sem muito jeito pra correr o moleque correu segurando sua caixinha de Mentos de um único sabor. Bermuda curta e uma camisa bem maior que seu manequim, sem falar dos joelhos com cicatrizes de quedas antigas e recentes também.

- Quanto tá o Mentos?

- Dois reais.

- Só tem de extra forte? – reclamou João.

- Infelizmente.

- Já é, toma.

O menino agradeceu pela segunda venda e saiu. João Marcelo abriu a caixinha e jogou logo duas balas na boca e subiu o vidro da janela para não gastar o ar frio do ar condicionado. Mastigando o Mentos ele voltou a tamborilar com os dedos no volante aguardando a chegada de Elaine, sua namorada há quase dois anos. Só por que ele quer lhe falar algo, hoje ela está demorando mais que o normal. Essa conversa não pode passar de hoje, pensou. Há um mês ele vem tentando ter essa conversa, mas lhe faltou coragem. No rádio algum ouvinte débil metal pediu para que executassem um forró sofrência, na mesma hora João Marcelo fez questão de mudar de estação, para uma de notícias.

“ A pandemia segue fazendo suas vítimas em todo o país, hoje, chegamos ao absurdo número de mais de seis milhões de infectados e mais de cento e setenta e cinco mil mortos...” João achou melhor desligar o rádio. Ele conferiu se sua máscara reserva ainda se encontrava no porta luvas. O segurança respirou aliviado ao vê-la lá dentro. Por fim Elaine chegou. Tocou de leve com os nós dos dedos no vidro da janela do lado do carona. Com muita má vontade João se esticou para destravar a porta.

- Achei que já tivesse ido. – entrou no carro abaixando a máscara.

- Vontade não faltou.

Elaine deu uma boa encarada em João que fingiu em não ter visto.

- Vai dormir lá em casa? Podemos pedir alguma coisa. – pegou o celular e abriu o aplicativo.

- Esquece, vou pra casa hoje. – disse saindo com o veículo. – estou cansado.

- Sério? Pensei em jantarmos comida japonesa, você não gosta?

- Gosto, mas hoje não vai rolar.

- Hum, você anda tão estranho, quer me falar alguma coisa? – guardou o celular.

Silêncio. Durante dois minutos eles ficaram quietos e quando Elaine voltou a pegar o aparelho, João falou.

- Na verdade, sim, eu quero lhe falar algo, mas só quando chegarmos em sua casa. Certo?

- Quanto mistério. – brincou. – tudo bem.

João Marcelo e Elaine trabalham no mesmo shopping. Ele como segurança e ela como atendente numa perfumaria. Em uma das intermináveis rondas pelos corredores, João se encantou com a moça simpática, de sorriso fácil e muitos outros atributos que atraem um homem. De início Elaine não cedeu aos galanteios do “armário” como costumava chamá-lo, mas com o passar do tempo ela foi permitido que a paixão falasse mais alto e quando deu por si, já era tarde demais, Elaine estava perdidamente louca por ele. Quanto a João Marcelo, tirou sorte grande. Elaine era tudo o que ele imaginava e mais um pouco. Amiga, compreensiva, estudiosa e inteligente. Tudo isso ele admira nela, porém o que mais João ama em Elaine é como ela se comporta na cama. Aliás, como ela não se comporta na cama. No quesito amante a atendente tira nota mil.

A pergunta que não quer calar é; se Elaine o completa tanto na cama, como fora dela, por que então João Marcelo quer terminar com ela? O que está havendo de errado? O que Elaine fez? Em silêncio ele dirige de forma que ele sempre reprovou os outros motoristas, mudando de pista todo o tempo e buzinando cada vez que alguém toma sua frente. Elaine o olha de soslaio, mas não diz nada para não deixar o clima pior do que já está. Vou terminar com ela hoje, pensou. De hoje não passa, voltou a pensar e a mudar de faixa também. Elaine confere fotos no Instagram, mas o seu pensamento está a quilômetros da rede social. Ela tinha feito planos para essa noite. Elaine passou boa parte do dia se imaginando com a lingerie que ganhou dos dia dos namorados a qual a deixa apetitosa segundo João. Pensou na comida japonesa também, depois das três horas de sexo no sofá-cama. Pra ser sincera ela nem imagina o que se passa na cabeça de seu namorado.

 

*

 

O Corsa branco saiu da via principal e entrou numa secundária, justamente onde mora Elaine. João Marcelo entrou naquela rua de paralelepípedo esperando ser a última vez e parou enfrente ao portão e esperou sua namorada sair.

- Tem certeza de que não quer ficar? Vou fazer valer a pena. – tentou beija-lo. – nossa, o que deu em você hein?

Pela primeira vez em meia hora ele olhou para ela “ ela está muito gata hoje”. Olhou para o volante e depois para ela outra vez.

- Quero te falar uma coisa.

- Sou toda ouvido. – cruzou os braços por cima da bolsa.

- Veja bem, não há um jeito fácil de se falar isso, então, lá vai...

Elaine sentiu o coração bater na garganta.

- Quero terminar com você.

Elaine gelou e em seguida, para espanto de João, ela soltou uma ruidosa e incômoda gargalhada.

- Sério?

A resposta à pergunta não veio de imediato, João ainda tentava entender o porquê da gargalhada. O segurança sentiu uma vontade louca de dizer que tudo não passou de uma pegadinha sem graça, porém, a confirmação que saiu de sua boca foi algo inesperado até mesmo para ele.

- Muito sério. – manteve o olhar.

Elaine voltou a rir, mas agora de forma mais contida e isso o irritou.

- Não estou entendendo! – encolheu os ombros.

- Quem não está entendendo sou eu, João Marcelo, que conversa é essa de terminar?

- Exatamente isso que você ouviu, eu estou terminado com você, entendeu agora ou quer que desenhe?

- Mas, espera aí, aconteceu alguma coisa, eu fiz algo de errado?

Boa pergunta. O que Elaine fez para merecer o fim de seu relacionamento de forma tão abrupta e de uma certa forma traumática? João ficou em silêncio mais uma vez, talvez tentando formular uma resposta plausível, mas não a encontrou. Elaine seguiu olhando para ele, em sua mente às peças ainda não se encaixaram. Vendo que seu quase ex namorado não conseguirá lhe responder, ela tomou a iniciativa.

- E os nossos planos e sonhos?

- É... Terão que ser adiados. – não a conseguiu olhar nos olhos.

- Tem outra na jogada? Você cansou de mim?

- Outra mulher? Imagina. – bufou.

- Então? – os olhos se encheram de água.

João Marcelo não contava com isso. Ao vê-la chorar seu coração doeu como nunca havia doído antes. É incrível o capacidade do ser humano de se deixar levar pela reação de outro. Agora foi a vez de João se pegar com os olhos marejados, mas ele não deixou que Elaine o visse emocionado. Ela continuava ali, a seu lado, aguardando uma resposta. Nesse momento Elaine só gostaria de ouvir algo, poderia até ser uma mentira, mas ela ansiava por algo dito por ele.

- Não existe ninguém, Elaine, eu apenas não quero mais.

João Marcelo até agora vem seguindo a risca tudo o que Augusto, seu companheiro de trabalho recomendou. Terminar sem nenhum motivo aparente. A conversa rolou a dois dias depois do expediente sentados numa lanchonete bastante famosa por seus sanduíches. João passou boa parte do tempo calado, absorvendo os conselhos nada construtivos de seu colega falante.

- E você já fez isso antes? – perguntou João já cansado.

- Lógico. A garota ficou perdida. Ela achava que eu estava me arrastando de paixão por ela e aí quando eu falei que não queria mais ela ficou com aquela cara que quem não entendeu nada. – riu. – vai por mim.

- Mas, Augusto, eu gosto da Elaine.

- Ela não serve pra você, cara, se liga, sou uma cara que sabe das coisas. Mulher pra você chama-se Tatiane.

João ergueu o corpo e arregalou os olhos.

- A Tati? Sério?

- Ela mesma. Compare. – mordeu o hambúrguer.

- Bom, se for na questão física, Elaine tem tudo e muito mais.

- Caramba, estou vendo que você não percebe o que está ao seu redor mesmo. – limpou os cantos da boca. – Elaine pode ser gostosa pra caramba, mas a Tati vai além disso.

- Exemplo? – levantou uma sobrancelha.

- Imagina, de uma só tacada você terá uma cozinheira de primeira, uma dona de casa perfeita, uma amante pra todas as horas e o que é melhor, ela não vai ficar te cobrando nada e nem te enchendo o saco. E então?

João Marcelo pensou.

- E como você sabe disso tudo?

- Eu já te falei e vou falar de novo, sou um cara que saco das coisas da vida. Quando o assunto é mulher e relacionamento, o Gutinho aqui é especialista.

- Se você está dizendo...

- Vai por mim. Termine com Elaine e fique com a Tati e depois me conta.

 

*

 

Pois é, não está sendo uma conversa fácil. Na verdade, João Marcelo nunca terminou um relacionamento e pra ser ainda mais sincero, ele jamais teve um relacionamento sólido. Todas as garotas com quem saiu não significaram praticamente nada para ele, e ele para elas também não. Está aí o porquê dessa conversa indigesta dentro de seu carro.

- Então, quer dizer que naquela noite em que juramos um para o outro, amor eterno, não passou de palavras jogadas ao vento? – Elaine soluçou.

Isso aconteceu de fato. Eles haviam acabado de transar. Ambos ainda nus naquela cama de motel de quinta categoria. Fizeram um juramento. Para Elaine, aquele gesto de unir os dedos mínimos significou bastante, mas para João, que queria somente partir para o segundo tempo, não simbolizou nada.

- Promete me amar até o último dia de sua vida?

- Prometo. – falou revirando os olhos. Elaine não viu pois estava com a cabeça apoiada em seu peito.

Feito isso eles voltaram a fazer amor, João Marcelo queria fazer valer as quatro horas pagas na entrada do motel. Elaine falou sério naquele dia, ela o amava e já sonhava com o dia do casamento.

- Não estou lembrado desse dia.

- Como pode não lembrar? Foi o dia em que passamos mais tempo na cama, só paramos para comer. E você reclamou da comida.

João abaixou a cabeça. Pior que ele se lembrava daquele dia perfeitamente. A comida demorou pra chegar e quando chegou estava fria e o tempero não o agradou muito. Eles saíram do motel direto para uma lanchonete comer pizza.

- João, só me dê um motivo, por favor. – Elaine quase implorou.

Ela queria um motivo e isso o segurança não tinha de fato. Ele precisou inventar um, mas não colou. Elaine sabe que durante esses quase dois anos juntos ela se entregou de corpo e alma, acreditou que estava vivendo um conto de fadas. Antes de começar a falar ele pigarreou algumas vezes.

- Bom... é, eu... – desviou o olhar mais uma vez. Típico de quem está mentindo. – melhor terminarmos agora do que deixar para mais tarde.

- E quem disse que eu pensava em me separar de você?

Outro forte golpe e dessa vez pegou na boca do estômago. Está certo que de início ninguém acredita que um namoro possa se transformar em algo duradouro, essas coisas vão acontecendo com o passar do tempo e para Elaine bastou um ano e meio para ter certeza de que João Marcelo seria o homem que ela adoraria compartilhar seus dias. Um amor de verdade.

- Quer dizer que investi dois anos praticamente, em algo que iria terminar da forma mais sem sentido do mundo, me explica isso?

João Marcelo sabia que seria bombardeado por perguntas das quais ele não teria as respostas. Quanto a isso ele resolveu mais uma vez seguir as orientações de Augusto. Frieza e firmeza, mesmo que às respostas não tenham fundamento algum.

- Eu já não estava feliz. – mentiu mais uma vez.

- Mas, como? Você vivia falando que eu era a razão de sua felicidade.

Caramba, ela não se cansa, pensou.

João estava sendo massacrado com as verdades ditas por Elaine, por isso ele achou melhor pensar em outra coisa, achou melhor pensar em Tati. Três dias depois da conversa com Augusto ele passou a observar melhor. Tatiane Santos é bonita, não tanto quanto Elaine, mas não é de se jogar fora. Ao andar, Tati parece desfilar, braços e pernas num sincronismo beirando a perfeição. Guto tinha razão, falou para ele mesmo ao vê-la passar. Com o passar dos dias o seu interesse por ela foi aumentando e isso ficou claro para ela também que passou a retribuir os olhares. Começaram os cumprimentos, sorrisos, gestos, até que o convite para almoçarem juntos aconteceu e daí não parou mais. Augusto os viu e vibrou de longe e na primeira oportunidade comemorou com o colega de trabalho.

- É isso aí, cara. Resta somente dar um pé na bunda da Elaine e pronto, caminho livre.

- Calma, eu ainda não estou com a Tati, não quero trair a Elaine.

- João, João, deixa essa ingenuidade, rapaz, o mundo é mal. A Tati foi feita pra você, não percebe isso?

- Poxa, quer dizer que, além de terminar com a mulher que eu amo, ainda terei que trai-la?

Augusto deu tapinhas na testa do parceiro.

- Hello, acorda, você só vai experimentar pra ver se o produto é bom. Não vejo traição nisso.

- Tem certeza?

- Absoluta.

Foi o que aconteceu. Só não rolou sexo, mas um beijo saborosíssimo, ah isso rolou. João Marcelo não teve dúvidas, é com ela que vou ficar. Não é que o desgraçado do Guto tinha razão, pensou logo após o almoço com Tati.

 

*

 

Elaine limpou às lágrimas que desciam dos olhos e entupiam suas narinas. João em silêncio estava e em silêncio ficou. Resolveu vencer pelo cansaço. Que clima péssimo. Antes de descer pela última vez do Corsa branco, ela ainda o espetou mais uma vez.

- Não se preocupe, não farei força para te esquecer. Coisas boas jamais devem ser esquecidas, e você, João Marcelo, foi algo bom que surgiu em minha vida. Boa noite. – saiu do carro.

João soltou a respiração assim que ela desapareceu fechando o portão. Página virada. Fim de história. O nó na garganta se formou e para parar de doer ele foi obrigado a chorar. Escondendo o rosto no volante ele soluçou a vontade. Chorou até ficar cansado. Antes de ligar o veículo ele conferiu seu aplicativo de mensagem. Haviam dois áudios, um de Tati e outro de Augusto. Ele tocou no de Tati.

“Dá uma passadinha aqui no apartamento. Tchau. Beijos!”

Fungando o nariz João tocou no áudio de Guto.

“Grande parceiro de labuta! Como estão as coisas, falou com ela?”

Ele pensou em digitar, mas preferiu mandar áudio.

- Mano, foi complicado, mas, consegui, terminei com ela e agora estou indo afogar as mágoas com a Tati. Te ligo mais tarde.

Jogou o celular no banco do passageiro e olhou para a janela do quarto de Elaine. A luz estava acesa, é bem provável que ela esteja encolhida chorando na cama. Fazer o que? Vida que segue. Manobrou o carro voltando para a avenida principal. Vida nova.

 

*

 

A noite passada começou um pouco conturbada, mas o seu término em nada lembrou o seu início. Tatiane fez o segurança esquecer que havia terminado um relacionamento a poucas horas atrás. O jantar foi bom, mas o que aconteceu depois dele foi extraordinário. João Marcelo dormiu no apartamento dela, não houve condições dele dirigir.

No dia seguinte eles foram juntos trabalhar. Assim que Tati ocupou o lugar que pertenceu a Elaine por quase dois anos, João pode sentir o impacto, “Ela não está mais ali”.

- Algum problema? – perguntou ela ajustando o cinto. – por que está me olhando desse jeito?

- De que jeito?

- Pareço uma estranha?

É verdade, Tati ainda é uma estranha para ele. Aquela manhã de sol fraco ainda lhe guardava outras fortes emoções. Entrar naquele shopping com outra pessoa que não fosse Elaine fez com que João pensasse que todos os seus colegas e conhecidos estivessem olhando para ele e o julgando. Mais isso não estava acontecendo, era algo da sua cabeça. Eles cruzaram todo o primeiro andar do shopping lado a lado, Tati ainda não se sentia tão a vontade para dar a mão em público e João agradeceu aos céus por isso. O seu maior desafio ainda estava por vir. Passar na frente da perfumaria e dá de cara com sua ex, será algo constrangedor e de uma certa forma inédito. E assim foi. Lá estava ela, Elaine, muito bem vestida, muito bem maquiada e para a sua surpresa, com uma cara ótima. A mensagem transmitida ficou bem claro para ele. Acabou!

Felizmente para alguns e infelizmente outros a vida não pode parar. João Marcelo e Elaine se cruzaram diversas vezes, se olharam muitas vezes também, porém depois daquela noite eles nunca mais se falaram. O tempo é o melhor remédio e Elaine conseguiu se curar e João por sua vez, fez do tempo o seu maior e pior inimigo. Elaine curtiu muito, dançou bastante, cantou e encantou, viveu intensamente cada segundo. Já João Marcelo se dividiu entre ficar com Tati, trabalhar e ouvir às orientações sem muito fundamento de Augusto. O que é a vida para um homem sem disposição para encara-la!

 

 

 

*

 

A pandemia passou. O uso de máscara já não é mais necessário. Por fim os maiores e mais importantes laboratórios de todo o mundo desenvolveram uma vacina cem por cento eficaz contra o vírus e houve uma imunização geral salvando milhares e milhares de vidas. O mundo voltou a sorrir. Às festas de fim de ano voltaram a lotar os calçadões das praias, o carnaval pode colorir inúmeras cidades, voltamos a nos abraçar, nos aglomerar, retiramos as barreiras do distanciamento. Livres em fim.

João Marcelo abriu os olhos naquela manhã fria e chuvosa. Ele não estava afim de trabalhar, mas se lembrou dos infinitos boletos em aberto. Girou para um lado e girou para outro e se levantou. O sedentarismo arruinou sua vida e ainda tem arruinado, João já não tem mais o corpo atlético de antigamente, sem falar da aparência que piorou bastante desde sua juventude. Doente, vivendo de freelancer e pagando aluguel, o ex segurança vai empurrando com a barriga – literalmente, o que restou de sua vida. Engoliu o único pedaço de pão existente e para ajudar a descê-lo, tomou de uma só vez o café dormido e frio da paupérrima garrafa térmica. Vestiu uma calça jeans larga e encardida, a camisa do seu time do coração e uma jaqueta e saiu.

Cinquenta e dois anos, apenas cinquenta e dois anos e João Marcelo parece que já passou dos oitenta. Seu andar é lento e arrastado, a barba por fazer complementa o terrível aspecto do que um dia foi um homem bonito e atraente. Ele caminha pela calçada molhada sem se desviar muito dos obstáculos e olhando com mais cuidado João parece puxar de uma das pernas. Seu local de trabalho não fica muito longe, somente duas quadras de onde mora e mesmo assim ele passa o dia reclamando da distância. Para garantir o suficiente para honrar as contas, ele precisa ficar oito horas por dia em pé pesando produtos num supermercado e ainda tendo que sorrir para os clientes.

Depois de se vestir com o uniforme do estabelecimento, antes de iniciar mais um longo dia, ele passa no refeitório para encher sua caneca com café fresco e seguir para o interior do mercado que a essa altura já conta com a presença de clientes. Tudo certo em seu local de trabalho. João mal respirou fundo e já recebeu algumas batatas para pesar no lugar de um bom dia. Trabalhar com o público, ele nunca gostou muito disso, mesmo quando era responsável por manter a ordem dentro do shopping ele não era chegado a se relacionar com as pessoas. Na verdade, tudo o que João Marcelo quer é que o expediente acabe logo.

 

Três da tarde. Hora de se livrar dos clientes, da música instrumental ruim do sistema de som precário do mercado, do uniforme incômodo e ir embora. João refaz o mesmo caminho se arrastando e agora tudo parece ainda mais difícil. Além das pernas cansadas e do sono, ele trás embaixo do braço um embrulho com pedaços de carne que comprou no trabalho. O pacote deve pesar no máximo dois quilos, mas para alguém sem saúde como ele, o troço parece pesar duas toneladas. Novamente ele caminha pela calçada esbarrando em tudo e em todos sem se importar ou pedir desculpas por isso. Sua distração é tão profundo que ele não consegue ver ninguém a sua frente.

- João Marcelo?

- Aham? – grunhiu girando os calcanhares.

- É você mesmo? – perguntou Elaine.

Sim. Era ela mesmo. Desde quando eles se separaram João tinha uma ligeira impressão de que seu coração já não batia mais, ou até duvidava de sua existência, ele se sentia um morto vivo andando pelas ruas. Hoje o órgão vital deu sinal de vida. Elaine, sim, ela, bem a sua frente.

- Oi? – apertou os olhos.

- Meu Deus, como são as coisas. Ainda hoje pela manhã estava pensando em você. – disse gesticulando e segurando algumas sacolas de lojas famosas de vestuário.

- Sério? – arqueou às sobrancelhas.

- É sério, nunca mais nos vimos. E como você está, como tem passado?

João já esperava por essa pergunta.

- Ah, levando. E você?

- Eu estou ótima. Você está com pressa?

- Ah, é, não. – coçou a nuca.

- Eu só estou passando por aqui. Venha, meu carro está logo ali. Vamos dar uma volta.

João Marcelo não teve como escapar. Por mais que ele quisesse, estar diante da mulher que ama é quase impossível negar um convite como esse. O constrangimento também foi grande. Mal vestido, sem se barbear, e talvez mal cheiroso, esse é o quadro atual do ex namorado de Elaine. Está mais que claro que ela subiu na vida. Não é preciso saber, basta ver. Roupas de grife famosas, sem falar do carro. João mal soube como entrar no veículo.

- Pensei em irmos comer algo no shopping. – sugeriu Elaine ligando o carro.

- Qual, o que trabalhávamos?

- Lógico que não. Vamos num shopping de verdade.

 Elaine e ele tem a mesma idade, mas ao contrário de João Marcelo, ela está bem conservada. Uma pele bem cuidada. Dentes alinhados. Olhos brilhantes, enfim, Elaine está com tudo em cima. Muitas coisas foram faladas durante o percurso, mas a que ambos queriam mesmo deixaram para falar somente quando chegassem na praça de alimentação.

- Nunca entrei nesse shopping. – falou João descendo do carro.

- Eu praticamente vivo aqui. – acionou o pequeno controle travando as portas do veículo.

- Não diga. – enterrou às mãos nos bolsos.

- Sim, só que a trabalho. Meu marido e eu somos sócio de uma loja.

A palavra marido não desceu muito bem. João foi obrigado a engolir seco.

- Ah, tá!

Agora eles estão sentados. Frente a frente. João Marcelo não se cansa de admira-la. Elaine melhorou um milhão de vezes. Como ela está linda, feliz, radiante e por que não dizer, rica.

- Vou pedir uma refeição que a juventude adora, hambúrguer e batata frita. Me acompanha?

- É, acho que sim. – tentou sorrir, mas não conseguiu.

Ela chamou a atendente que tirou os pedidos. Ele observava os gestos, a maneira educada de tratar as pessoas e imaginou se eles ainda estivessem juntos, com certeza a realidade seria outra. A menina da lanchonete levou os pedidos. Elaine sorriu para João.

- O que tem feito da vida?

Ele já esperava por essa pergunta também.

- Bom! Eu hoje trabalho num supermercado pesando os produtos e só.

- Não quis mais ser segurança? – se ajeitou na cadeira.

- Pois é. Houve um problema na empresa e eu fui um dos muitos demitidos e...

- Eu fiquei sabendo que você havia feito concurso para a polícia federal. Me conte essa história.

João sentiu seu corpo inteiro derreter como se fosse uma vela.

- A Tatiane... – engasgou.

- Ah, sim, o que tem ela? – ainda sorrindo.

- Ela engravidou nessa época e me fez optar em seguir outro caminho. O concurso me levaria tempo e dinheiro, coisa que não tínhamos, então...

- Ah!

- E foi isso. Consegui outro emprego, mas não de segurança. Preenchi uma vaga de auxiliar de serviços gerais numa médio empresa. Ganhava pouco, não dava para cobrir os gastos do bebê e Tati sempre me cobrando. Por fim, comecei a trabalhar a noite como entregador. Ou seja, quase infartei de tanto trabalhar...

- E a Tati, não te ajudava? – cruzou os braços.

- Não. Mais a culpa não era dela. No início do casamento. – fez sinal de aspas quando falou casamento. – eu disse a ela que mulher minha não trabalhava fora. Acabei me estrepando. Trabalhava feito burro de carga e mesmo assim não conseguia bancar minha esposa e nem honrar as dívidas.

Às palavras de João vinham carregadas de tristeza, arrependimento e principalmente de frustração, isso Elaine podia sentir sem fazer muita força. Ela já estava com pena dele. Apesar de tudo, João Marcelo era bom no que fazia. Tantas foram às vezes em que ele evitou que o pior acontecesse no shopping onde trabalhava. Ele se sairia bem como um policial federal. A vida é feita de escolhas e infelizmente muitos optam pelo lado menos trabalhoso ou dão ouvidos a pessoas derrotadas, mal intencionadas.

- Meu Deus. E a Tati, o que aconteceu com ela? – dessa vez Elaine realmente estava querendo saber.

- É uma longa história, mas vou tentar resumir. Tati se cansou de viver ao lado de um perdedor e foi embora para a casa dos pais dela no interior do estado. Levou nosso filho. – nessa hora a voz ficou embargada. – essa é o pior parte da história. Não poder ver o Felipe dói bastante. Resumindo. Nada deu certo na minha vida.

- Jesus! – colocou a mão na frente da boca.

- Bom. Acho que já chega de falar sobre mim. Me fale de você. – João disfarçou o choro sorrindo.

Como Elaine esperou por esse dia, por esse momento e por essa pergunta. Como foi aguardada essa hora em que ela poderá jogar tudo na cara de João sem dó. Pois é. Todas essas coisas se dissiparam do coração da empresária assim que ela colocou os olhos nele lá na rua. Não será necessário dizer a ele o quão idiota ele foi ao dar ouvidos a Augusto, em ter terminado com ela para ficar com Tati. Não, não será preciso. No fundo ele sabe que escolheu muito mal. Mas, já que ele quer saber...

- Então. Depois que você terminou comigo, decidi mudar a rota. Entrei na faculdade de administração. Me formei, estagiei e graças a Deus arrumei um bom emprego numa multinacional. Fiz minha vida. Comprei meu apartamento. Tudo isso solteira, não queria atrapalhar meus planos. Só depois de estabelecida foi que comecei a pensar em arrumar alguém. – riu envergonhada. – durante uma série de conferências conheci o Fausto, hoje meu marido. Me apaixonei. Ele tinha planos de seguir a carreira do empreendedorismo, mas não tinha força, e é claro, nem recursos financeiros. Eu acreditei nele, por isso embarquei junto na jornada. Custei cursos e mais cursos, fizemos investimentos juntos, conquistamos tudo juntos e hoje somos bem sucedidos. Nossos filhos estão bem encaminhados, graças a Deus.

Quando Elaine terminou de falar, João Marcelo parecia um balão de festa, só que murcho. Se arrependimento matasse, ele já estaria em decomposição, essa que é a verdade. Ela era a mulher para ele. Quem mandou seguir conselhos de um porcalhão como Augusto?

- Uau! – foi só o que ele conseguiu falar.

Os pedidos chegaram.

Eles comeram, beberam, bateram bastante papo e foram embora, mas algo ainda deixava João incomodado. Elaine o deixou no portão de sua casa. Antes de descer ele criou coragem e a perguntou.

- Você faria o mesmo por mim, não faria? – os olhos cheios de água.

Ela apenas assentiu.

- Você me amava! – abaixou a cabeça.

- Você não tinha ideia.

Foi como uma lança atravessando o peito.

- Era com você que eu gostaria de viver, ter filhos, construir uma família. Eu não tenho dúvidas de que hoje você seria o policial federal que tanto sonhou em ser. Mas...

João Marcelo abriu a porta e sem olhar para Elaine ele se despediu.

- Boa noite, Elaine!

- Boa noite, João, a gente se vê por aí!

FIM.

 

 

 

 

 

 

 

 

 


domingo, 18 de outubro de 2020

O Vigia

 



O Vigia


Quando criança Geovane cansou de ouvir da boca de seu próprio pai que ele seria um zero a esquerda, de que sua vinda a essa terra não valeria de nada. Pois bem. Tudo isso era dito em sua presença e muito mais em sua ausência. Na escola Geovane sofria as piores perseguições, sofria com os xingamentos e tiração de sarro. Ele nunca deu muita bola para isso, ouvia tudo calado, engolia e digeria facilmente. Tudo o que ele queria era viver sossegado em seu canto. Quanto as notas da escola isso sim lhe causava problemas. Seu pai e sua mãe não o perdoavam. Foram inúmeras e inúmeras surras dentro do quarto e mesmo assim o pequeno Lopes não conseguiu concluir o ensino fundamental inteiro.

       Quando chegou a adolescência as coisas só pioraram para Geovane. Já que não conseguia aprender nada na escola, seu pai o obrigou a trabalhar para ajudar nas dispensas da casa. A palavra trabalho nunca soou legal aos ouvidos dele, nunca mesmo. Quando completou 14 anos Geovane foi trabalhar de empacotador num supermercado. Pouco ágil, lento e bastante introvertido, tudo isso só somou para sua demissão com apenas quatro dias de trabalho.

      - Por que voltou para casa cedo? – perguntou seu pai já sabendo a resposta.

      - Fui dispensado. – passou pelo pai e se jogou no sofá.

       - Como assim, dispensado, você está doente? – colocou as mãos na cintura.

       - Não pai, fui demitido, é isso.

       - Você é mesmo um bosta Geovane, o que será de você meu filho? – vociferou.

       - Eu não sei, diga o senhor mesmo. – fechou os olhos.

       - O que disse? – trancou os dentes.

       - Isso mesmo, o senhor vive dizendo que eu não serei nada nessa vida. Então diga o senhor o que será de mim.

       Aquela tarde foi a pior da existência de ambos. Para o senhor Lopes foi ainda traumático. Ele bateu com tanta força no filho que deslocou o ombro. Já Geovane sofreu as piores agressões, mas com certeza as verbais foram as que mais machucaram. Enquanto era socado ele foi obrigado a ouvir “seu porcaria” “coco do cavalo do bandido” “você não vale uma titica” e daí pra baixo. Quando dona Sofia chegou a noite encontrou Lopes sentado a mesa da cozinha bebendo e com os olhos marejados.

      - O que houve Aldair? – colocou as bolsas na cadeira.

      - Geovane. – balbuciou.

      - O que tem ele?

      - Foi demitido e...

      - Aí meu Deus do céu, o que vocês arrumaram?

      - Eu, eu acho que passei do ponto. – fungou o nariz. – desloquei o ombro e tudo.

      - Misericórdia. – passou as mãos no rosto. – e cadê ele?

      - No quarto.

      O cenário encontrado por Sofia Lopes foi de cortar o coração. Seu filho, seu único filho, enrolado no edredom dormindo e ainda soluçando. Não restou mais nada a fazer do que acariciar os cabelos do garoto e pedir aos céus que o iluminasse, foi só o que a auxiliar de serviços gerais pode fazer. Ela sabe que tem um filho covarde, medíocre e um tanto quanto preguiçoso, mas ainda assim é o seu filho, o presente dado por Deus. Geovane passou a noite ali, enrolado, sem jantar e com o corpo moído.

      Quando amanheceu, perto das sete, o garoto foi acordado por seu pai de uma maneira não muito agradável. Geovane mal pode tomar café da manhã e foi direto para o velho carro caindo aos pedaços de seu Aldair onde havia uma pilha de jornais.

      - Vamos, entre, temos muito trabalho pela frente.

      - Mas pai, eu...

      - Já chega de conversa, entre, agora.

     Foi um dia inteiro de pouca conversa, sem diálogo, sem pedido de desculpa. Geovane sabia que seu pai estava arrependido do que fez, mas Aldair Lopes era um sujeito durão, não dava bola para esse tipo de sentimento. O dia tinha tudo para terminar mal, mas algo de bom aconteceu. Aldair e Geovane passaram preciosos minutos comendo besteira numa padaria. Foi bom, muito bom.


*


    O tempo passou e nada mudou. Geovane agora é adulto, casado e com sérios problemas no casamento. Ele está casado com Fernanda e com ela teve uma filha, Barbara. Como seu finado pai falou no passado, Geovane não deu para nada, não tem profissão, não tem estudo, não almeja nada da vida, vive um dia após o outro vendo no que vai dar.

      - A escola da menina vai vencer amanhã? – perguntou olhando para o jogo na TV.

      - Já venceu, há dois dias. – respondeu Fernanda visivelmente aborrecida.

      - Como assim, há dóis dias, e você não me falou nada?

      - Eu falei, Geovane, mas você falou que não tinha dinheiro.

      - Pode deixar, vou dar um jeito nisso.

      - Pois é. – se levantou. – você vem dando um jeito a dez anos. – foi para o quarto.

      Geovane sabe que vem deixando falhas, o problema é que ele não sabe como repara-las e pelo visto ele também não tem condições físicas e nem financeiras para isso. Um homem que vive de bico os chamados freelancer jamais conseguirá construir algo sólido para sua família. Ele segue assistindo a partida de futebol, mas a sua mente se encontra em outro lugar. Fernanda anda muito distante, muito fria, vive de cara fechada e já andou falando em divórcio. Geovane não quer se separar, Nandinha vale ouro. Ele desligou o aparelho de TV e foi até o quarto.

       - Vamos conversar? – parou na porta.

       - Sobre? – continuou mexendo no celular.

       - Sobre a gente.

       Fernanda se ergueu e se sentou na cama colocando o celular de lado.

        - Sei que você não está satisfeita com tudo que vem acontecendo, só que você precisa me entender também, as coisas estão difíceis pra mim. Não consigo emprego...

        - E pelo menos você procura? Nunca vi você sair cedo para procurar, nunca vi você se inscrever em nada, só vive andando por aí nos bicos da vida.

       - É o que tem colocado comida em nossa mesa.

       - Desde quando arroz, feijão e linguiça é comida?

       - Nandinha, pelo amor de Deus, você precisa erguer as mãos para o céu e agradecer, nem todo mundo tem isso em casa.

       Muito contrariada ela bufou e cruzou os braços, olhou para o esposo e voltou a se deitar.

       - Vai querer mesmo se separar? – apertou os olhos.

       - Estou pensando seriamente. – pegou o celular.

       - Tem outra pessoa nessa história? – cruzou os braços.

       O olhar de Fernanda para Geovane foi um disparo de bala de canhão. Eles ficaram se olhando, conversando por telepatia quase. Nandinha é uma mulher bonita, um pouco maltrata, mais ainda assim é uma mulher linda. Há quem diga que Geovane e Fernanda são pessoas que pertencem a mundos diferentes. Ela bonita, inteligente, esperta e corajosa. Ele um songa monga de marca maior, até mesmo na forma de andar ele não inspira confiança.

      - Então, tem algo a me dizer? – andou até o meio do quarto.

      - Eu não tenho nada pra falar, Geovane, por favor, quando sair apague a luz. – puxou o lençol e virou para o canto da parede.


*


       Na placa pendurada numa das maiores empresas de cosméticos do país a CH cosméticos informa que precisa-se de vigilante para o período noturno. Geovane é conduzido por um funcionário até a sala do diretor da firma. O escritório fica na parte dos fundos e Geovane é recebido de maneira não muito amistosa.

       - Bom dia, me chamo Geovane Lopes, vim por causa da placa.

       - Vigilante? Você? Será?

       - Pois é, vi também que não é preciso pegar em arma, já gostei.

       - Sim, não é preciso de arma, mas eu preciso de uma pessoa ágil, safa, que tenha um olhar clínico, entende?

        - Por favor, me dê uma chance.

        Carlos Henrique passou a mão na barba. Olhou para o candidato a sua frente. Realmente Geovane não passa confiança alguma. Um homem de aparência frágil, abobalhada e um físico de dar inveja a um galeto.

        - Tudo bem, Geovane, a vaga é tua, mas saiba de uma coisa. Qualquer falha você será penalizado, ok?

        - Tudo certo. Quando começo?

        - Hoje, a noite.


      As 18:00 Geovane já havia se despedido de Fernanda. Uma despedida fria, sem o tradicional beijo na testa e depois um selinho. Não, Não houve nada disso. No quarto da filha ele fala a grande novidade.

       - O trabalho é temporário, mas vai ajudar a salvar as coisas por aqui.

       - Papai, você e a mamãe vão mesmo se separar?

       Geovane sentiu um gosto de fel descer por sua garganta.

       - Sua mãe falou isso pra você?

       - Não, mas nem precisa. – abaixou a cabeça.

       - Isso vai passar filhinha, vai passar.

       Agora a desgraça ficou completa. Sua filha de 11 anos não precisou que alguém falasse para ela que seus pais estão pensando em se divorciar, ela mesma chegou a essa conclusão. Isso retrata o nível do clima dentro de casa. Uma criança não precisa de muita coisa para saber o que está acontecendo entre seus pais. Em seu primeiro dia de trabalho Geovane se apresentou com vontade de voltar para casa e se desmanchar em seu sofá. Um velho magrelo o recebeu com uma cara de poucos amigos e o levou até sua sala.

        - Preste bastante atenção garoto, tudo o que você precisa fazer durante o turno é verificar os corredores, os muros, principalmente o muro de trás do galpão, procure não acender as luzes, use aquela lanterna ali. – apontou para o objeto em cima do armário. – caso aconteça alguma coisa acione o alarme ou chame a polícia, não tente fazer nada, entendeu?

        - Sim, senhor.

        - Vou embora, fique com Deus.

        - Amém.

        Por enquanto tudo dentro da normalidade. O galpão e imenso, há caixas de madeira com produtos armazenados. Há armários lacrados onde estão guardados perfumes, hidratantes, cremes e outros tipos de cosméticos. Geovane pegou a lanterna de led e foi fazer sua primeira ronda. O silêncio num local desconhecido pode lhe causar um certo receio, um certo medo, por isso o novo vigia caminha a passos curtos jogando a luz da lanterna em todos os cantos.

      Quando chegou perto dos escritórios o clima ficou um pouco mais leve, Geovane conseguiu ouvir barulhos vindos da rua. Há vida depois do grande galpão. Ronda feita, hora de voltar e conferir se há pelo menos uma cafeteira ou mesmo um fogão. Como ele gostaria que sua esposa estivesse ali para ele não ter o trabalho de passar o café, só de pensar dá uma preguiça. Por falar em Fernanda, o que ela estaria fazendo agora? Assistindo TV? Mexendo no celular? Marcando encontro com o suposto amante? E Bárbara, o que estaria fazendo? Está certo que ele não é lá essas coisas, mas, traição? Ela seria capaz disso?


*


      Um caminhão baú e logo atrás um carro. Eles entram na rua onde há o galpão da CH cosméticos. Na condução do caminhão está o chefe do bando com seu inseparável palito de dente no canto da boca. Isso lhe rendeu um vulgo, Ferrão, homem sério, perverso. A seu lado está Dudão um negro alto e musculoso. Na verdade Dudão não passa de um guarda costas de Ferrão só que ele mesmo não sabe disso. Entre eles estão dóis fuzis e nas cinturas pistolas.

       - Chegamos. – falou Ferrão.

       - Valeu, vou reforçar o plano com os outros. – a voz de Dudão é grave e rouca.

       Ferrão desceu do caminhão ajeitando o macacão de uma companhia de armazenamento. Antes de tocar o interfone ele se olhou no retrovisor e treinou sua careta de idiota. Conferiu o relógio e tocou. Não obteve resposta. Tocou mais uma vez e olhou para o restante do grupo. Nada. Começando a se irritar o líder fez um gesto rápido. Hora de plano B. Um dos homens pegou um alicate de cortar vergalhão e depois de muito esforço conseguiu romper os cadeados.

      - Vamos entrar e lembrem-se, devemos ser rápidos. – Dudão orientou.

      - E se houver um vigilante, e se ele estiver armado? – questionou um sujeito segurando um trinta e oito.

      - Simples, mate-o. – finalizou Ferrão.


      Lá dentro, na parte dos fundos, Geovane ainda lamentava sobre seu casamento estar uma droga quando escutou o barulho do portão se abrindo. O coração foi até a garganta e voltou, seria o senhor Carlos Henrique? Mas a essa hora? Imediatamente o vigia se levantou. Pegou sua lanterna e foi conferir. Devagar e tremendo Geovane foi passando por caixas, armários e estantes até chegar na parte da frente onde pode ver dez homens armados até os dentes invadindo o galpão.

      - Meu Senhor amado.


*


     Geovane voltou correndo para os fundos. Apagou as luzes e se escondeu no quartinho onde são guardados os materiais de limpeza. Todo o seu corpo tremia sentindo uma incrível vontade de ir ao banheiro. O suor escorria frio da testa e ele sentiu a boca ficar amarga.

      - Calma Geovane Lopes, você vai sair bem dessa.

      Agora os maus pensamentos voltaram a assolar sua mente. O que será de Fernanda caso ele seja morto? Como Barbara vai receber a notícia? Não demorou muito para que as lágrimas começassem a molhar seu rosto pálido.

       - Eu não vou sair daqui, jamais.

      Ferrão e seu bando ocuparam a parte da frente. Dudão segue gesticulando pedindo atenção ao grupo.

       - A partir desse ponto iremos nos separar. Não se esqueçam, dinheiro e material e se o vigia aparecer fogo nele.

       O assalto é claro foi planejado por Clodoaldo, ou melhor, Ferrão, Clodoaldo não suporta ser chamado pelo seu nome, segundo ele, Clodoaldo mais parece nome de pintor de parede do que líder de gangue. Foram três longos meses pensando, analisando, conferindo o território para aí sim convocar a turma. Eduardo o Dudão sempre foi o seu fiel escudeiro, até nos pequenos crimes o gigante negro estava presente. Hoje Ferrão pretende sair daquele lugar um pouco mais rico e de preferência vivo.

      O galpão se encontra numa escuridão e silêncio quase palpáveis. O grupo criminoso se separou e dentro do quartinho existe um certo Geovane Lopes cagando nas calças. O confinamento tem dessas coisas, fazer você refletir na vida, ainda mais em situações tão delicadas como essa. Lopes transpira bastante, por todos os poros, até em lugares onde achava que não suava. Ele pensou em seu pai, o xingando de bosta. Pensou em sua mãe fazendo ouvido de mercador e especialmente pensou em Fernanda o chamando de porcaria de homem.

        - Melhor um covarde vivo do que um valentão morto. – esse sempre foi o seu lema.

       Geovane abriu bem devagar a porta, o suficiente para ver dóis bandidos vindo em sua direção. O medo tomou conta e ele precisou respirar fundo para não gritar.

        - Aí Deus do céu, fuzis, não acredito.

        Sua mente voltou a girar – se me encontrarem aqui vão me matar – enfiou a mão no bolso e puxou o celular. Procurou pelo número da polícia. Geovane estava pronto para disca-lo quando a voz de seu pai soou nítida em seus ouvidos.

       - Seu bosta, vai ligar para polícia, seu Zé ruela, covarde.

       Minha vida precisa fazer sentido. Na verdade eu sempre me escondi, sempre me posicionei na retaguarda, nunca fui capaz de guardar minha família, nunca salvei uma vida, nunca movi uma palha para ajudar, eu, eu atrapalhei mais do que auxiliei. Esse jogo precisa virar e vai virar. Faço minhas as palavras de John Rambo “viver por nada ou morrer por alguma coisa”. É isso, esse quartinho não será meu último destino. Farei valer a pena a vinda a esse mundo. Vamos nessa Geovane Lopes.


*


      Fernanda ainda não conseguiu pregar os olhos. Por mais que ela esteja com sono ela não consegue dormir. Mais uma vez a aliança em seu dedo anelar da mão esquerda lhe chamou atenção. O anel está fosco, sem brilho, precisando de um polimento, seria isso o reflexo de seu casamento? Toda mulher precisa se sentir segura, protegida. Com Fernanda é exatamente ao contrário. Ao lado de Geovane sua insegurança dobrou, ela não consegue ver em seu marido um provedor, o cara que bota a cara pra bater. Casada com ele a dez anos, Fernanda sempre precisou fazer muita força e isso a vem deixando cansada, muito cansada.

       Fernanda entrou no banheiro e se olhou no espelho, como o tempo tem jogado contra ela. Rugas e marcas de expressão já começam a danificar o que outrora era denominado “rosto de princesa”. Culpa de quem? Claro que é daquele traste que ela jurou amor eterno. Ela sente raiva de si mesma, do quanto foi burra, tantos avisos a alertaram sobre a conduta de Geovane, mas ela era uma menina apaixonada. Se arrependimento matasse...

      Além de ter que conviver com esse dilema, Fernanda precisa decidir se irá manter sua palavra, se continuará fiel ao matrimônio. Não é nada fácil. Antes de Geovane aparecer em sua vida, Fernanda namorava um rapaz, futuro profissional promissor, ele era louco por ela. Hoje em dia eles ainda mantém contato, basta um sim dela e adeus Geovane Lopes para sempre.


*

    

     A porta do quartinho foi aberta, de lá de dentro um novo Geovane Lopes surgiu. Na mão esquerda uma barra de ferro de sessenta centímetros utilizada para auxiliar na tranca da única janela do quartinho. Perto das caixas de madeira um sujeito mediano confere a inscrição do que há no interior delas. Para ver mais de perto ele girou a bandoleira jogando o fuzil para as costas. Terá que ser um único golpe, o bandido não pode gritar. O plano é mata-lo e pegar a arma. Sentindo a garganta seca ele caminhou sem fazer barulho por trás do homem. O golpe foi forte, bem no meio da cabeça, sem chance de reação. Geovane ainda ouviu um som de coisa se rachando antes do meliante cair. Matar uma pessoa não é legal, mas não há tempo para pensar nisso agora. O sangue já esvaia da cabeça quando por fim Lopes conseguiu tirar a arma do defunto.

       - Max, você está aí? – Geovane ouviu uma voz vinda do outro lado.

       O outro bandido ao ver o corpo do companheiro no chão não conseguiu conter sua reação e correu para avisar o chefe. Ferrão e Dudão no momento observam a parte de cima do galpão.

       - Ali deve ficar os cremes e pomadas, temos que levar também. – disse o chefe.

       Nessa hora eles são surpreendidos pelo comparsa assustado.

       - Max está morto.

       - O que? – Dudão apertou os olhos.

       - Alguém o acertou na cabeça e o que é pior, levaram o fuzil dele.

       - Merda. – Ferrão cuspiu o palito de dente. – vamos lá.

      A transpiração desce fria e agora de fato Geovane sabe o que é suar frio. Nas mãos a arma, ele nunca segurou uma, ainda mais um fuzil 762. Engolindo seco olha para ambos os lados do corredor formado por enormes caixas de madeira. Uma ponta de arrependimento começa a querer fazê-lo voltar para dentro do quartinho. Não. Claro que não. Agora que ele começou terá que ir até o fim.

       Sim o homem está morto. Ferrão procura no bolso outro palito de dente enquanto Dudão e o outro comparsa tentam entender o que aconteceu.

       - O mataram sem chance de defesa. – Dudão olhou para o chefe.

       - Não podemos perder tempo com isso. Não vou alterar o plano. Um grupo vai continuar com o assalto e o outro vem comigo, vamos encontrar esse cara.

       Eram dez, Ferrão ainda está com a vantagem e ele ainda tem Dudão. Eles avançam para mais fundo do galpão. O lugar é um mundo de tão grande e cheira a hidratante e a água de cheiro. Mais uma vez Geovane olhou para a arma e se ergueu. A essa altura eles já estão a sua caça e agora é preciso agir rápido. Coragem. O vigia saiu de onde estava e andou vagarosamente até a parte onde ficam os pacotes de panfletos. Se abaixou e espiou dois bandidos tentando abrir uma das caixas com um pé de cabra. Veio o medo. Não é hora para isso. Geovane conhece o terreno, conhece os caminhos, esse lugar pertence a ele. Geovane mesmo com uma certa dificuldade conseguiu mirar no sujeito com o pé de cabra e puxou o gatilho.


*


      Foi difícil, mas Fernanda conseguiu tirar a aliança. Ficou um certo tempo olhando para ela e depois a colocou em cima da cama. Pegou o celular. Abriu o whatsapp e viu que Marcos estava online. Antes de digitar ela pensou em Geovane, no dia em que eles se cruzaram pela primeira vez. Foi algo marcante, Fernanda já o conhecia como morador do mesmo bairro. Mesmo não sendo um cara bonito e meio desengonçado para andar, Geovane a encantou e eles iniciaram o namoro no primeiro encontro. Essa lembrança pesou bastante mas não o suficiente para evitar o contato com o ex.

       “Oi?”

       “Oi, que surpresa agradável, Fernanda”

       “Como tem passado?”

       “Trabalhando direto num projeto que estou desenvolvendo e você?”

       “Ainda casada...”

       Eles passaram um curto tempo sem conversar e depois Marcos digitou.

       “Eu ainda estou sozinho. Fiquei um tempo com uma pessoa, mas não conseguimos levar adiante”

        “Sério? Pode me contar essa história se quiser”

         “É um pouco longa. Teríamos que sentar e tomar um café juntos”

         “Eu topo, aonde?

*


        A bala do 762 disparada por Geovane destruiu o peito do homem que morreu na mesma hora. Assustado o outro se abrigou. Lopes disparou mais uma vez e depois se escondeu. Os tiros chamaram a atenção de Ferrão.

       - Droga. Isso aqui está começando a ficar fora de controle. Vamos pegar esse cara. – gritou.

      O bandido abrigado olhou para o companheiro morto no chão e tentou identificar de onde veio a bala. Sim, ele veio de onde estão os pacotes. Rapidamente ele mirou e disparou diversas vezes deixando Geovane encurralado.

       - Apareça seu covarde. – vociferou.

      Geovane já está acostumado com essa palavra. Ela o acompanha desde a tenra infância. Ainda sob fogo ele aguardou o momento exato para a retaliação. Assim que os tiros cessaram ele cuidadosamente viu o bandido abaixado no canto olhando para o outro lado. O sangue gelou e ele puxou o gatilho mais uma vez. O tiro acertou a perna do homem que berrou feito um urso ferido.

      - Desgraçado!

      Mais um tiro e o ombro do marginal foi para o espaço. Geovane sai de onde está e caminha até o moribundo. Depois de chuta-lo o vigia o interrogou.

      - Vocês estão em quantos? – pisou no peito.

      - Vá pro inferno.

      - Eu não estou brincando cara, fale! – pisou mais forte e colocou o cano no rosto do sujeito.

       - Merda, merda, em dez, estamos em dez, viemos assaltar, por favor me deixe vivo.

       - Tá louco? Você atirou em mim. Veja bem...qual o seu nome?

       - Carlos?

       - Veja bem, Carlos, esse é o meu local de trabalho, fui contratado para proteger esse lugar, então não me venha com essa conversar de por favor para te deixar vivo, talkey?

       - Você não é assim, eu estou vendo, você é um cara do bem.

       - Pois é, Carlos, péssimo dia para vocês invadirem meu trabalho, eu até poucas horas era do bem, agora acordei para vida, deixei de ser um zero a esquerda.

       - Vai me matar?

       - Sim! – o tiro a queima roupa dividiu em duas metades a cabeça de Carlos. – dóis já foram, restam oito, vamos nessa.


*


      Em primeiro lugar vem a vergonha, a vontade de voltar atrás e dizer que tudo não passou de um erro, um momento de fraqueza. Mas em seguida vem a raiva, a vontade de se vingar. Fernanda sabe que o que está fazendo é burrice, mas ela quer correr esse risco pelo menos uma vez na vida. Um vestido discreto, um batom pra realçar sua beleza escondida, cabelos soltos, hálito purificado por um Trident de menta e pronto, vamos para o encontro com o ex. Antes de sair ela vai ao quarto de Barbara e a beija na testa, o sono da menina é profundo, ela mal se mexe. Fernanda Lopes deixa sua casa no meio da noite de brisa fresca.


    O lugar já é conhecido por ambos. Quando Fernanda chegou Marcos já a aguardava. Um campo de futebol onde moleques costumam se reunir aos finais de semana para torneios de peladas. Na parte da noite aquele lugar é escuro e abandonado. Foi exatamente ali que a esposa de Geovane perdeu sua virgindade com Marcos.

       - Oi! – trocaram beijos nos rostos. – você está ótima.

       - Ah, obrigado, você também está muito bem. – falou ruborizada.

       - Nossa, você veio mesmo. Uau!

      Claro que Fernanda foi, qualquer uma atenderia ao pedido do senhor Marcos Freitas. O tempo só ajudou a melhorar o que já era bom. Bonito, alto, inteligente, cheiroso e agora ele ostenta uma barba desenhada bastante macia e bem cuidada. Tudo que Fernanda mais gosta de ver num homem é uma barba bem cuidada, infelizmente seu marido não possuiu uma volumosa como a de Marcos, a de Geovane é rala e quando ele a deixa crescer seu aspecto fica semelhante a de um mendigo.

      - Lembra daquele dia? – Marcos foi direto ao ponto vulnerável de Fernanda.

      - Claro que lembro. – ajeitou os cabelos atrás das orelhas.

      - Você nunca me falou se foi bom ou ruim.

      - Ah, Marcos, era minha primeira vez, né, como eu iria saber.

      Para não deixar que o assunto terminasse com o encontro Marcos partiu para outro. Ele falou sobre sua vida, seu trabalho como engenheiro, das mulheres que teve depois de Fernanda e é claro do que pretende fazer para o futuro. A mulher ficou boquiaberta não acreditando na péssima escolha que fez. Trocar Marcos por Geovane é como preferir morar na favela do que viver numa cobertura de frente para o mar.

       - E é isso tudo. Agora fala você.

       - Bom, eu não tenho muita coisa a dizer, sou uma dona de casa, vivo um casamento meio barro meio tijolo, tenho uma filha, minha princesa e só. – o semblante decaiu.

       - E só? E os seus sonhos, pelo que eu me lembro você queria se formar em odontologia.

       - Queria, você disse muito bem, eu queria ser dentista, mas desbravei horizontes tenebrosos, fiz escolhas erradas.

       - Geovane Lopes!

       - Geovane Lopes! –  Fernanda expirou.

     Eles passaram um certo tempo se olhando. Marcos conseguiu ver em Fernanda uma mulher triste, sem perspectiva, um futuro incerto, porém viu também uma mulher vibrante, com vontade de vencer. O vento passou e jogou os cabelos encobrindo o rosto dela. O engenheiro os afastou e aproveitou para acariciá-la.

       - Nandinha!


*


     O soco passou direto a centímetros de acertar em cheio o nariz de Geovane. O bandido não desiste de levar seu oponente a nocaute, por isso ele volta a investir pesado contra o vigia. Quanto a Geovane lhe resta somente se defender já que sua arma foi parar embaixo dos armários.

      - Vai morrer seu verme. – falou o meliante.

      Lopes nunca foi bom de briga. Na infância ele passava maus bocados por não saber e nem aguentar trocar socos com os garotos. No final de cada confusão ele terminava com um dos olhos roxo, boca e nariz sangrando. Depois que chegou a idade adulta ele passou a evitar esse tipo de confronto. Mais uma tentativa do sujeito em golpeá-lo que passou em branco. Não adianta, tudo o que Geovane sabe sobre briga é o que ele assiste nos filmes. Guarda mal feita, sem apoio nas pernas e muito medo envolvido. Para piorar ainda mais a situação do vigilante, o vagabundo ainda possui um aspecto tenebroso como rugas profundas na testa e olheiras bastante escuras.

       Dóis cruzados e Geovane vai se safando até que numa brecha ele o surpreendeu com um direto que só parou no olho esquerdo do bandido.

       - Miserável.

       A hora é agora. Se quiser sair dessa com vida Lopes precisa aproveitar que seu oponente se encontra desestruturado para lhe aplicar o golpe fatal. Geovane deu dois passos para frente e o socou no pescoço. O homem caiu segurando a garganta buscando ar desesperadamente. Como um exímio cobrador de pênalti o vigia o chutou no rosto lhe arrancando alguns dentes.

     - Seu filho da mãe. Achou que poderia me vencer. – outro chute e uma forte pisada na garganta e finalmente o bandido morreu.

      Geovane se encaminhava para pegar as armas quando tiros o fizeram se abrigar entre as caixas. Dois contra um. Se for rápido ele alcançará a arma do meliante. Outros disparos e Geovane se vê sem saída.

       - Você não precisa morrer vigilante, só nos deixe fazer o nosso trabalho. – gritou um deles. – o nosso chefe pode lhe propor um acordo, o que acha?

       O único acordo que Geovane aceitaria no momento é sair dali com vida e voltar para sua família. Na vida você precisa aprender a ouvir os dois lados, se Geovane não perguntar ele jamais saberá qual o acordo.

       - O que seria esse acordo?

      Os assaltantes se olharam.

       - Bom, de repente ele lhe daria uma parte da grana, sei lá.

       Errado. Eles me matariam na primeira oportunidade e outra, eu posso ser tudo, menos ladrão, assim ele pensou – fui contratado para proteger esse lugar e assim o farei. Sem preparo, sem noção, mais atrapalhado do que qualquer outra coisa, Geovane Lopes rolou do seu abrigo para onde estavam as armas. Se apossou da pistola e atirou. Um iniciante precisa contar com a sorte também. Um dos disparos acertou um dos assaltantes. O outro recuou e atirou também. Lopes correu para o lado direito perto dos caixotes onde são armazenados os hidratantes e cremes para pentear, dali ele teve maior visão dos dóis. Feito isso ele puxou o gatilho.

        - Sumam daqui. – berrou.

       Ferrão e Dudão estão assustados. Nada disso estava nos planos. Normalmente os vigilantes noturnos são velhos, aposentados ou simplesmente homens sem experiência no assunto, são contratados só para dormir no local praticamente. Confiado nessas informações, Clodoaldo planejou o assalto, ele não contava com um Bruce Willis no meio do caminho.

       - O que faremos, o cara já matou muito dos nossos. – Dudão coçou a cabeça.

       - E o tempo tá passando. Temos que encontrar esse vigia, mata-lo e cair fora, os tiros já devem ter chamado atenção da vizinhança.

       - Clodoaldo...

       - Não me chame de Clodoaldo, merda.

       - Me desculpe, Ferrão, vamos abortar essa missão...

       - Escuta aqui, Eduardo, já fomos longe demais para voltarmos atrás. – bateu no peito musculoso do gigante negro. – o assalto continua, temos armas e estamos em maior número, encontre esse vigia e o traga para mim.

       - Pode deixar.

      Ferrão confia cegamente em Dudão. O que lhe falta em bravura sobra no negão. Ele sabe como ninguém como ganhar uma guerra. Em outras ações se não fosse as habilidades do brutamonte tudo estaria perdido. Sua ficha é extensa, no currículo há assassinatos de policiais e também bandidos rivais, esse vigilante de meia tigela não será obstáculo para ele.


*


      Primeiro o beijo, longo, saboroso, com sabor de saudade. Depois a mistura das respirações e em seguida os toques. Marcos já havia esquecido de como o corpo de Fernanda era. Um corpo esbelto, bom de se explorar. Ele a tocou no pescoço e ela não esboçou qualquer reação. O próximo passo foi nos ombros e Fernanda pagou para ver até onde ele iria chegar. O beijo segue até que as mãos de seu ex encontraram seus seios. Aí foi covardia. Marcos a envolveu e ela não soube como sair. Ela pensou em Geovane, o fogo se extinguiu na mesma hora, só então ela afastou seus médios seios das mãos dele.

       - Me desculpa. Eu não consigo.

       - Eu entendo. – pigarreou. – eu fui longe demais, você não teve culpa.

       - Bom, acho que o nosso encontro foi por água abaixo, não é?

       - Sério? Não precisa sair assim, vamos comer alguma coisa, conheço um lugar ótimo.

       - Ah, eu não sei, Marcos, é que...

       - Por favor, eu insisto. Vamos. – Marcos juntou as mãos em posição de oração.

       Fernanda sabe muito bem que estará pisando em terreno perigoso aceitando o convite, sabe onde essa história acabará e mesmo assim ela resolveu arriscar. Marcos realmente está irresistível. O cheiro, o toque, as palavras, tudo isso mexeu com a mulher de Geovane que quando deu por si já estava dentro do carro seguindo em direção ao restaurante sugerido por ele.


*


      Sangue nos olhos, foi assim que Dudão partiu para a caça ao vigia dentro daquele galpão gigantesco. Atravessada na frente do peito a metralhadora fabricada por russos. Ao lado do sub chefe estão outros capangas dispostos a tudo e sob o comando dele. Enquanto andam para o iminente confronto, Dudão segue passando as orientações. 

      - Seguinte galera, não sabemos com quem estamos lidando, se for um profissional e eu não acredito que seja, não podemos facilitar, atirem para matar. Agora, se for um vigilante amador o cuidado deve ser dobrado, o cara está com medo e por isso ele vai tentar e atirar em todas as direções, temos que ficar de olho vivo. Vamos nos dividir.


    E se esse for o seu último dia? E se nunca mais puder ver Barbara, acompanhar seu crescimento, vê-la se desenvolver, se formar, se casar e se não puder mais ver Fernanda? Esses pensamentos são frequentes enquanto Geovane muda de posição para atirar. Ele tem a plena consciência de que foi ele quem começou essa guerra e que agora é um pouco tarde para voltar atrás. Ele tem do outro lado um adversário que não cessa com seus ataques, quer vê-lo morto a qualquer custo. Belo primeiro dia de trabalho e onde está o socorro que não aparece logo? Vários disparos e nenhum chamou atenção dos moradores desse bairro? Enquanto sua mente viaja por esses questionamentos ele percebe que ficará sem munição.

       - Droga.

      Sobreviver é preciso, lutar também. Geovane parou para pensar. Ficar trocando tiros com os bandidos não o levará a lugar algum – talvez a morte. O negócio é agir com inteligência, fazê-los cansar, cada bala agora vale ouro. De repente ele escutou uma voz vinda da parte de cima do galpão.

      - Seja lá quem você for já alerto, melhor se render. – falou Dudão a plenos pulmões. – cedo ou tarde te acharemos senhor vigia. Meus homens estão por toda parte, a ordem é atirar pra matar.

       Geovane não respondeu, se fizer isso o som de sua voz entregará sua localização, isso ele viu num filme policial. A voz grave de Dudão é capaz de intimidar qualquer um. Em silêncio, abaixado, transpirando, essa é as condições do vigilante, sem falar do medo.

       - Nós iremos explodir esse lugar, mas antes quero lhe propor um acordo. – Dudão olhou para os companheiros. – o meu líder pode lhe pagar pelo seu silêncio, é só aparecer com as mãos para cima. Você não precisa morrer hoje.

       No esconderijo Geovane Lopes engoliu seco. Sentiu vontade de chorar – esse miserável está tentando me desestabilizar e eu acho que ele está conseguindo.

       - Tudo bem. Farei uma regressiva e quando chegar no zero, declararei guerra, agora é a nossa vez. 10, 9, 8, 7...

       Geovane fechou os olhos, soltou a pistola, sentiu o corpo congelando começando pelos pés até a cabeça, colocou as mãos no rosto e ouviu a voz de seu pai em sua mente “o que está fazendo? Pegue essa arma e parta pra cima desses merdas”

        - 5, 4, 3, 2...

      “Declare você, guerra, defenda o que é seu” seu pai falou forte mais uma vez e ele o atendeu. Segurou firme a pistola e aguardou o final da contagem.

       - 1, 0, legal, guerra declarada, que vença o melhor, no caso, nós. – estalou as falanges e houve rajadas de balas as cegas.

       O vigia se manteve intacto abrigado entre as caixas “viver por nada ou morrer por alguma coisa” os caras não estão para brincadeira, nem tão pouco ele.


*


      Uma deliciosa massa precisa ser acompanhada de um maravilhoso vinho. O restaurante é premiado, três estrelas Michelin. Fernanda jamais imaginou sequer passar em frente a ele. Ela deu graças a Deus por ter ido com uma roupa mais ou menos de acordo com o ambiente. Marcos passou boa parte do jantar hipnotizado pelo decote dela.

      - O que achou, Nandinha?

      - Perfeito.

      - Eu costumava vir aqui, mas aí...

      - Aconteceu alguma coisa?

      - Nada, só perdeu o sentido. Veja esse lugar, um homem pode frequenta-lo sozinho? É preciso haver uma pessoa especial. Você. – segurou na mão dela. – volta pra mim?

      Ao lado de Geovane a vida será sempre a mesma, dividas, apertos, dilemas, rotina enfadonha além de outros percalços. Com Marcos as coisas podem mudar e para melhor. Ele é rico, tem condições de lhe dar tudo do bom e do melhor, poderá dar um futuro melhor para sua filha.

      - Posso ver no seu rosto que você não o ama mais.

      - Não é tão simples assim, Marcos.

      - É claro que é, veja bem, se quiser eu conheço um advogado que pode resolver isso rápido, basta um telefonema meu. Fica comigo.

      Geovane ou Marcos eis a questão. Tudo pesa em momentos como esse. Por mais que seu marido seja um homem de pouca iniciativa e uma pessoa que faz uso da má vontade, ainda assim Fernanda acredita no ser humano forte que existe dentro dele, trocá-lo não seria uma decisão sábia. Mas agora fica a dúvida. E se Geovane não mudar? E se ela estiver de fato dando murros em ponta de faca? Basta um telefonema de Marcos e amanhã a vida será outra.


*


    Dudão desce as escadas em velocidade e depois entra no corredor central. Apoiada no braço direito que mais parece um tronco de árvore está sua metralhadora. Seus capangas tomam a frente, uma formação militar para proteger quem está no comando. De repente um barulho e todos atiram ao mesmo tempo. Na outra ponta do corredor Geovane Lopes aguarda o momento certo para atirar. Dudão ergueu o braço.

     - Ele está lá no final.

     - Como sabe? – questionou um sujeito com duas pistolas.

     - Esqueceu? Sou um cão de guarda, posso fareja-lo.

     Esse mesmo homem segurando as armas é alvejado no peito. Ele cai atirando junto com seus colegas de crime. Espumando de ódio Dudão mira e esquece o dedo no gatilho, a essa altura o homem atingido já é morto.

       - Matem-no. – berrou.

     Sob chuva de balas o vigia se manteve calmo. Hora de virar o jogo, entrar de vez na guerra. Assim que os tiros cessaram Geovane saiu do abrigo para matar. Andando com cuidado ele atira contra os ladrões que foram obrigados a recuar.

      - Fora do meu galpão. – gritou.

      Dudão conferiu a munição e zombou.

      - Ora, ora, ora, apareceu a margarida. – mirou e disparou.

      Geovane não tremeu e nem sequer tentou se proteger das balas. Ele simplesmente seguiu andando, mirando e atirando, quem quiser que saia da sua frente. Dudão se sentiu ainda mais desafiado, ainda mais afrontado. Para ele Geovane não passa de um homenzinho borra-botas com cara de idiota, ele não pode se deixar intimidar. O braço direito de Ferrão apontou sua metralhadora e atirou pra matar. Aquele corretor se transformou numa praça de guerra. Um confronto desigual, covarde, sete contra um.


*


     Do lado de fora do galpão os moradores estão alarmados com o tiroteio que vem quebrando o silêncio daquele lugar. A polícia foi acionada e já está a caminho. Na rua em frente a empresa as pessoas buscam saber o que de fato está ocorrendo. Uns dizem se tratar de assalto, outros de sequestro ou até mesmo briga entre os funcionários. As sirenes sooam longe, música para os ouvidos da pacata vizinhança.

      - Graças a Deus estão vindo. – disse uma senhora vestida com seu pijama.

      A imprensa também se deslocou para o bairro. Uma emissora de rádio foi a primeira a chegar e a colher informações. Todos querem falar, todos querem contribuir de alguma forma.

      - Eu vi quando o caminhão entrou e depois de um certo tempo os tiros começaram. – disse um rapaz de cabelo enrolado.

      - Disparos de armamento pesado? – perguntou o repórter.

      - Cara, acho que sim, eu não entendo nada de armas, mas o som era sim de coisa pesada.

      Assim que despediu o entrevistado o repórter entrou ao vivo na programação de rádio onde relatou o fato.

      - O galpão pertence a empresa de cosméticos CH onde desde o princípio da noite as pessoas vem ouvindo tiros vindos do interior do estabelecimento. Tudo leva a crer que se trata de um assalto ou tentativa de assalto onde houve resistência por parte dos vigilantes. A polícia nesse momento ocupa as ruas afastando os curiosos. Mais informações a qualquer momento.


*


     Ferrão observa a grande movimentação do lado de fora através das câmeras de segurança e entra em desespero. Definitivamente ele não contava com a resistência do tal vigia. Ele saiu da sala de monitoramento esfregando as mãos nos cabelos e exigindo a morte do vigilante imediatamente. O que importa agora não é mais o assalto. A polícia cercou o lugar. já era, tudo foi por água abaixo. Ferrão desceu as escadas segurando seu fuzil buscando Dudão que a essa altura troca tiros e despeja ordens.

     - Merda, Dudão, já era, a polícia está lá fora. Vamos dar o fora o quanto antes.

     - O que? – parou de atirar. – não chegamos  tão longe para desistir agora, ficou maluco. Eu vou acabar com esse vigia, ele é só um.

     Ferrão o segurou pelo colarinho demonstrando toda a sua fúria para o gigante ébano.

      - Você vai fazer o que eu mandar você fazer e o que eu quero é que aborte a missão agora. – vociferou.

      Dudão é um fora da lei safo, conhece todos caminhos do crime e não entra numa briga pra perder. Diante de seus liderados ele se sentiu diminuído por seu chefe. De uma coisa Eduardo está certo, ele não será preso e nem desistirá tão fácil. Ferrão o encurralou e nada mais perigoso é do que um animal sem saída.

      - Tudo bem, Clodoaldo, vamos abortar a missão se é o que quer.

      - Eu já falei pra não me chamar de Clodo...

      Ferrão teve o peito perfurado por uma dezena de balas vindas da metralhadora de Dudão. O corpo já sem vida caiu fazendo um barulho surdo. Eduardo olhou para o restante do grupo e sorriu.

      - Quem está no comando? – questionou Dudão.

      - Estamos com você. – disse um assecla.

      - Ótimo. Vamos acabar com esse vigia e depois cuidaremos da polícia com calma.


*


    Foi um encontro e tanto, Fernanda não se sentia tão bem assim a anos. Realmente a companhia de Marcos fez muito bem a ela. De volta dentro do carro do engenheiro a dona de casa ainda processa tudo o que viveu nessas últimas duas horas ao lado de seu ex. Como encerrar essa noite? Um adeus basta? 

      Quando Marcos fez a curva para entrar na rua que dá acesso ao bairro onde Fernanda reside, a mesma não se conteve e colocou a mão na perna dele que perdeu a concentração na direção. Marcos merece um prêmio depois de tudo que proporcionou a ela, nem que seja um beijo ou um carinho a mais. Não importa, essa noite não pode passar em branco. O carro parou no recuo. Fernanda foi praticamente arrancada do cinto de segurança direto para o colo de Marcos. O tesão foi tanto que Marcos abaixou as alças do vestido. Liberou os seios do sutiã e os cobriu com beijos fazendo a esposa de Geovane perder o fôlego. Que noite louca.


     Se Fernanda está arrependida? Sim, pode até estar, mas agora não é hora para isso. Ela nunca havia sonhado em transar dentro de um carro e ainda mais na rua. Foi gostoso demais. Marcos aumentou a potência do ar condicionado e ligou o rádio.

      - Uma musiquinha agora cai bem. – olhou para Fernanda que colocava o sutiã.

      - Boa!

      Marcos buscava a melhor sintonia quando passou por uma emissora de notícias e adivinha o que noticiavam na hora?

       - Seguimos com a transmissão direto do galpão da CH cosméticos onde acontece no momento um intenso tiroteio.

       Fernanda sentiu sua cabeça rodar quando o repórter mencionou o nome da empresa.

       - CH cosméticos? É lá onde Geovane está trabalhando. Meu Pai! – colocou a mão na boca.

       - Calma, Nandinha, calma, vamos ouvir. – aumentou o volume.

       - A polícia já fez o levantamento de tudo e ficamos sabendo que a empresa armazena seus produtos lá dentro e que conta com a segurança de um funcionário apenas na parte da noite. Vamos ouvir o que disse o policial que está a frente desse caso.

      - Um erro, uma empresa de nome como a CH jamais poderia contar com um vigia somente, ainda mais no período noturno. Se for mesmo um assalto, lamento em dizer, mas, acho difícil esse vigilante estar vivo.

      - Por que o senhor acha isso capitão?

     - Normalmente essas empresas contratam vigilantes, homens já de idade ou pessoas sem experiência no assunto. Por isso que a meu ver, se for mesmo um assalto esse tal vigia já deve estar morto infelizmente.

      Marcos assistia a expressão de Fernanda se transformar a cada palavra do policial. Seu rosto ficou banhado em lágrimas e faltou palavras para expressar nesse momento.

       - Aí, Meu Deus. Geovane. Não.

       - Fique calma, eu sei aonde fica, vamos até lá.


*

      Luzes azuis e vermelhas piscam sem parar. Viaturas, inúmeras, paradas nas calçadas e ruas ao redor do galpão e homens fardados e armados circulando tentando manter a ordem ou se mostrando ocupados. O capitão Neto fala via rádio pedindo prioridade para o caso.

       - Vejam bem, preciso de tudo o que tivermos a minha disposição, a situação e delicada por aqui, os homens lá dentro não são amadores.

       Nesse momento um agente chegou com novas informações e aguardou até seu líder terminar de falar.

       - Diga. – colocou o rádio no banco do motorista.

       - Dez homens, armamento pesado. O que faremos senhor.

       - Mantenha a multidão afastada, coloquem as viaturas em posição, vamos encurralar esses merdas.

       - Senhor, acredita mesmo que o vigia está morto?

      Neto olhou para a frente do galpão e depois para o policial.

      - Queria muito dizer o contrário, filho, mas olhe isso, o que você acha?

      - Lamentável.


*


     Dudão no comando. O que começou com um assalto se transformou num combate sangrento, cruel e desigual. Geovane se defende como pode, mas ele não foge da briga. Mais do que proteger seu local de trabalho ele tem uma família para sustentar, esse é o principal motivo que o leva a peitar esses homens. Lopes correu na direção da seção de perfumaria. Identificou dois deles e atirou. A bala acertou o ombro de um deles. O outro o empurrou e disparou também. Dudão ouviu os gritos de seu homem e saiu de onde estava para se juntar a eles.

      - Droga, ele está nos caçando, assim não vai dar, matem ele agora. – berrou.

     Geovane ficará sem munição em breve, mas antes disso ele precisa eliminar só mais um. As vezes o covarde dentro dele quer falar mais alto, o impedindo de sair do esconderijo e atirar. Agora o novo Geovane dá as ordens e o comando é, sair e atirar, seus adversários não estarão esperando tal atitude, só um idiota faria uma coisa dessa. Se tiver sorte ele acabará com dois coelhos numa só cajadada. Foi o que fez. Geovane saiu e viu o gigante negro no alto, junto com mais dois. Apertou o gatilho. Lá em cima o rosto quadrado de Dudão ficou salpicado pelo sangue da cabeça de seu comparsa. O outro tiro acertou de raspão o úmero do líder.

     - Maldição.

    Ao voltar para seu abrigo Geovane comemorou o feito. Menos um e se lembrou de seu pai quando dizia que nada era impossível se você perseverar. Rapidamente os pés de Lopes pisaram o chão, nada está ganho ainda. Na parte de cima há um sujeito furioso e o que é pior, furioso e ferido. Atenção dobrada.


     Eduardo protegeu o ferimento usando uma fita adesiva. De onde está é possível ouvir o barulho da movimentação da polícia lá fora. Uma decisão tem que ser tomada agora. Pegar o vigia e fazê-lo de refém, ou passar por cima da polícia com o caminhão e fugir com o que pegou de produtos. De uma coisa Dudão sabe muito bem. Nada deu certo hoje. Ele sai da sala disposto a dar um fim a essa história.


*


      Sob chuva de tiros o vigia voltou para o quarto de ferramentas. Cansado, com sede e com medo. Ele sabe que não pode ficar ali por muito tempo, mas mesmo assim ele se sentou no chão.

      - Cadê a polícia, meu Deus.

       Sua respiração é pesada, típica de um sedentário que resolveu fazer exercícios. O celular tocou em cima da mesinha aonde ele o deixou e seu coração bombeou sangue com  mais força. No visor o nome Fernanda o fez chorar pesado até salivar.

      - Amor da minha vida. – disse antes de atender. – alô, amor, eu...

      - Alô, é o Geovane Lopes?

      - Ah, oi, esse número é da minha mulher, quem está falando? – parou de chorar na mesma hora.

      - Sou o capitão Neto, eu estou no comando da operação. Sua esposa, Fernanda, chegou aqui dizendo que você é o vigia. Rapaz, como estão as coisas aí?

      - Terríveis.

      - Você está ferido, baleado, fala comigo Geovane.

      - Eu, eu... – chorou. – eu não tive escolha, capitão, eles não me deram escolha.

      - Calma rapaz, me diga o que houve?

      - Eu matei quatro deles.

      - Você o que?


     Do lado de fora Fernanda está abraçada a Marcos esperando o resultado da conversa do capitão com seu marido. Com os olhos vermelhos e tremendo, a dona de casa reza baixinho, pede aos céus que tudo termine bem. Capitão Neto se aproximou do casal e os tranquilizou.

      - Seu marido está bem. Com medo, mas está bem. Ele é um herói. – colocou a mão no ombro dela.

      - Herói, como assim? – limpou o rosto.

      - Graças a ele vamos enfrentar seis bandidos ao invés de dez.

      - Ele os matou? – Marcos arregalou os olhos.

      - Sim e disse que matará mais se cruzarem o caminho dele.


*



    Não se sabe como, mas a informação de que um vigilante, sozinho, sem experiência, mediano, fraco, executou quatro bandidos fortemente armados chegou a imprensa. Em poucos minutos o país inteiro já sabia e imediatamente uma corrente foi formada nas redes sociais. Geovane Lopes é a nova sensação do momento. Sua foto estampa a maioria dos noticiários noturnos e sites de notícias. Mas é claro que as opiniões se divergem. Pelo fato de Geovane ter executado quatro dos dez bandidos, fez com que o pessoal dos direitos humanos se mobilizassem pedindo a prisão do vigilante junto com a dos marginais. Em questão de horas houve uma batalha digital. Grupos defensores de Geovane contra os que defendem as minorias.


    Na parte de dentro do galpão nada disso importa. Tanto Geovane quanto Dudão querem o fim dessa história o mais rápido possível. O bandido desceu as escadas disposto a fazer daquele lugar um campo de guerra. É preciso virar o jogo, impossível que um só cara e despreparado consiga se safar dessa.

      - Ele está escondido em algum canto. Vamos força-lo a sair.

      - Certo, usaremos as granadas. – completou um dos meliantes.

      - Nada disso. Usaremos as granadas contra a polícia lá fora. Aqui iremos fazer esse vigia de peneira. Vamos caça-lo. 


*


     Sabendo que pelo menos lá fora a polícia já se certificou de tudo o que está acontecendo deu a Geovane um breve alívio, porém ele não pode relaxar jamais. Bem ali a sua espera estão seus inimigos, loucos pelo derramamento de seu sangue. Ainda dentro do quartinho, Geovane reflete sobre tudo que aconteceu até agora. Quatro mortos. Teria sido sorte? Ele acha que sim, mas ele também pensa no que um ser humano é capaz de fazer em momentos de crise, momentos onde a sobrevivência está em jogo. Para sua segurança ele desativou o som do celular deixando somente o vibrador. Enterrou o aparelho no bolso da calça. Verificou a munição e saiu do esconderijo.

     Lugar imenso, espaçoso, gigante. Dentro daquele galpão caberiam com folga quinze casas formando uma pequena vila. Com suas paredes de alvenaria e telhado alto, a CH cosméticos disputou quase que a tapas a aquisição do terreno. Se escorando pelos cantos, Geovane deixou seu lugar de conforto apontando sua pistola para todos os lados, qualquer movimentação faz com seu coração alcance a garganta. Perto das caixas onde os esmaltes são guardados o vigia conseguiu ver um dos marginais fumando com seu fuzil para cima. Ele é apenas um garoto, tem idade de ser seu filho. Geovane deu a volta, o pegará por trás, sem chance de reação. Mais uma vez ele deu sorte?

     Perfeito. Geovane tem o rapaz na mira. Quando o cigarro foi jogado no chão e esmagado pelo tênis encardido do bandido, o mesmo ouviu a voz abobalhada do vigilante o pedindo para lhe entregar o fuzil e em silêncio.

     - Qual foi cara, eu não tenho nada contra você não.

     - É mesmo?

     - Vai me matar não vai?

     - Vai depender de você. – pegou o fuzil.

     - Faço qualquer coisa.

     - Onde o seu chefe está agora, o que estão tramando?

     - Cara, desiste, Dudão está planejando lançar as granadas contra a polícia lá fora.

     - O que? – mirou o armamento na cabeça do assaltante.

     - A melhor coisa a se fazer agora é fugir, Dudão vai destruir esse lugar.

     - Eu não vou deixar, sou o vigia esqueceu?

     O rapaz riu zombando.

      - Qual a graça?

      - Vai me matar?

      - Eu vi você atirando em mim junto com esse tal de Dudão, vocês não são pessoas confiáveis, um homem não brinca com outro homem.

      - Mas...

      - Com licença. – atirou na cabeça. – tenho trabalho a fazer.

      Cinco mortos. Um fuzil e uma pistola. Pronto para o combate. O telefone vibrou no bolso.

      - Geovane, capitão Neto falando, ouvi um disparo.

     - Matei mais um. Era um garoto capitão.

    - Merda!

    - Já era capitão, eu me igualei a eles, me tornei um assassino. A minha morte agora é uma questão de tempo.

    - Escute, vigilante, você não pediu isso, os vilões são eles, quando isso tudo acabar faremos de tudo para ajudá-lo, agora coloque a cabeça no lugar e não morra. – pausa. – sua esposa Fernanda quer falar com você.

     Um bálsamo. Um santo remédio ouvir a voz da mulher que ama. Geovane não impediu das lágrimas descerem. Aos soluços ele conversou com ela ainda olhando o corpo no chão.

     - Geovane, como você está?

     - Nada bem. Acabei de matar mais um bandido e ele era apenas um garoto. Quando eu vi já havia puxado o gatilho.

     - Meu Deus!

     - Você vai me perdoar? – voltou a chorar.

     - Geovane, por favor, você precisa sair daí primeiro.

     - Conseguirá dormir ao lado de um assassino?

     - Pare com isso Geovane... – Fernanda ouviu um tiro e depois o gemido do marido. – aí, meu Deus, ele foi morto.


*


     O tiro acertou o antebraço esquerdo de Geovane. A risada inconfundível de Dudão ecoou por todo o galpão. O vigia se protege como pode no meio das caixas de madeira, nada seguro para alguém ferido. A dor é forte. Agora ele sabe como é ser atingido por uma bala. Estaria a sorte o abandonando? Dudão parou de rir e atirou mais duas vezes, um delas passou perto – o desgraçado sabe onde estou e está vindo pra cá. O braço ferido treme bastante e Geovane precisa atirar. Ignorando a dor ele firma o fuzil e dispara-o.

     - Acabou a brincadeira, Dudão. – gritou.

     - Ah, fala sério, eu estava me divertindo. – atirou também.

     O sangue encharcou a lugar onde Geovane estava e na parte de cima ele viu uma certa movimentação – estão me cercando. O inimigo está a alguns metros de onde ele está, atirarão todos ao mesmo tempo, será impossível sobreviver. Como dizem no futebol: a melhor defesa é o ataque. O vigia contou dois vagabundos no andar de cima, hora de falar grosso com eles. Fuzil apontando, gatilho puxado. Dudão assistiu de um ângulo privilegiado seus asseclas serem mortos.

     - Não!


*



     Capitão Neto reuniu seus homens na frente do galpão para organizar uma invasão. Equipados com armamento de grosso calibre e escudos, os agentes da lei aguçam os ouvidos as orientações do líder.

      - Eram dez bandidos e iremos enfrentar menos da metade. Se hoje há alguém que mereça nossa dedicação esse alguém chama-se Geovane Lopes. Entraremos lá e o ajudaremos a acabar com os que faltam, estamos entendidos?

      A vibração do capitão contagiou a todos que imediatamente tomaram suas posições e marcharam em direção ao portão principal do galpão. Um pouco distante dali, Fernanda e Marcos ainda aguardam o desfecho da situação. Vendo sua ex naquele estado está mais do que provado de que ela ainda guarda dentro dela algum sentimento pelo marido. Ele não quer se tornar o vilão da história, nem tão pouco ser o pivô de uma separação. Geovane se transformou num herói. Logo ele que não inspirava confiança, um homem frágil e fraco, sem iniciativa alguma.

      - Fernanda, como você está? – acaricia os braços dela.

      - Eles vão entrar. Meu Deus. – chora com a cabeça apoiada no peito do ex.

      - Vai ficar tudo bem.

      - Marcos, eu escutei um tiro e também os gritos de Geovane, ele não está bem.

      Já não é a mesma mulher de horas atrás, Marcos então se reduz a somente um amigo na tentativa de conforta-la oferecendo seu ombro. Aos berros capitão Neto ordena que seus homens entrem e isso faz com que o nervosismo da esposa do vigia lhe cause ânsia de vômito.

     - Lembrando, os marginais que estão lá dentro não estão brincando. Avançar! – falou a plenos pulmões.


*


    Dudão mandou que os dois últimos capangas guardassem a entrada usado as granadas. No chão o rastro do sangue do vigilante. Ele está enfraquecido, ferido e provavelmente com seu psicológico abalado, será fácil quebrar cada osso de seu flácido corpo. Eduardo, o gigante negro, matador implacável, experiente em ações como essa ou até piores. Cada passo dado ele olha ao redor, a cabeça ligeiramente erguida, parecendo farejar algo no ar.

     - Não seja burro vigilante, saía de onde está e vamos conversar como dois adultos.

     Nenhuma resposta.

     - Vamos fazer o seguinte. lhe proponho uma luta. O que acha?

     Enfiado entre dezenas de caixas de papelão, Geovane vê quando Dudão deixa sua metralhadora de lado. Realmente o sujeito é de dar medo. Muito alto, músculos exageradamente nutridos por bombas e horas de treinamento. Encara-lo na mão é suicídio, Geovane será morto em questão de minutos. Será preciso surpreendê-lo atingindo os olhos ou o pescoço.

      - Vem me encarar covarde.

      E agora? Geovane nunca foi bom de briga. O que está em jogo é a sua vida então vamos nessa. Será que a sorte ainda lhe acompanha?

      - Uma luta limpa? – gritou Geovane.

     Dudão se virou na direção da voz.

      - Iremos lutar até a morte. Vem!

     Geovane resolveu dar crédito ao bandido e saiu de onde estava. O braço ainda dói. Dudão e Geovane. Apenas cinquenta metros separa os dois. A diferença de altura e porte físico é gritante. O vigia cerrou os punhos e engoliu seco. Dudão fez a mesma coisa e correu como um leão para sua presa. A primeira coisa que passou pela cabeça de Lopes foi de correr, não de encontro do oponente, mas sim para o quartinho. Tarde demais. Dudão cresceu na frente do vigia como se fosse um trem em alta velocidade. Mão fechada. Braço no alto. O rosto assustado de Geovane na mira. Foi mais que um soco, foi um atropelamento. O punho de Dudão atingiu o rosto do vigia que na mesma hora viu tudo turvo. Não precisou esperar muito e Lopes recebeu outro cruzado que o deixou fora de combate. Geovane ainda tentava se restabelecer quando sofreu outro golpe no rosto e caiu.

     - Já era. – se abaixou já batendo forte no peito e rosto.

     Geovane é literalmente massacrado, triturado pelas mãos enormes do bandido. A cada pancada ele sente sua alma o abandonando. Mesmo tentando se defender os socos vão penetrando e o acertando com muita violência. O último soco no peito fez Geovane cuspir sangue no rosto do negro.

      - Mais que droga. Agora vou te matar.

      Chutes, inúmeros chutes no tronco e cabeça. Geovane sente cada golpe como se fosse barras de ferro maciça quebrando cada osso. Dudão não vai parar, ele não tem a intenção de parar até vê-lo clamar ou morto. O monstro gigante de músculos está cansado de chuta-lo, mas as agressões não cessam.

     - Morre, morre, morre. Argh!

     Geovane ergueu o braço pedindo que pare. Seu rosto está desfigurado e sangrando. Dudão diminuiu os chutes mas não parou.

     - Por favor! – gritou.

     - Como é? Eu não ouvi, fale mais alto.

     - Eu tenho uma filha, preciso cria-la. Chega, você ganhou.

     - Eu não ligo pra ela. Dane-se. – mais chutes.

     Geovane entregou os pontos. Para ele já chega de lutar. Dudão pisou em seu pescoço e começou a estrangula-lo. Ele viu Fernanda e Bárbara chorando. Viu também seu pai o xingando de “seu bosta”. Um pouco mais de esforço ele viu Dudão salivando no canto da boca de ódio pisando em seu pescoço. Antes de convulsionar ele viu seu adversário berrar tirando o pé de seu pescoço.

      Dudão caiu ajoelhado ao lado do vigia segurado o ferimento de um disparo na altura da clavícula. A bala atravessou saindo pela frente.

      - Parado. Quieto! – gritou capitão Neto apontando sua pistola.

     O galpão foi invadido por homens uniformizados e armados. Neto pediu uma ambulância com urgência e permaneceu ao lado de Dudão, mas preocupado com o vigilante desacordado. O chefe do bando é algemado com as mãos para trás. Os dois capangas na entrada do galpão desistiram a voz de prisão e infelizmente perderam suas vidas. Lá fora foi preciso um pouco mais de rigidez por parte da polícia afinal, todos queriam ver o herói do momento. A imprensa rodeou o lugar posicionando câmeras e microfones, a todo momento algum repórter entra ao vivo.

    - A ação criminosa no galpão da CH cosméticos por fim chegou ao seu desfecho. Foram horas de um confronto desigual onde somente um vigilante, sem experiência conseguiu impedir um assalto diante de dez homens fortemente armados. Até então não sabemos o real estado de Geovane Lopes. Mais informações a qualquer momento. – concluiu um jornalista de uma emissora líder de audiência.

      Fernanda e Marcos também se encontram aflitos, ela mais do que ele é claro. O tempo todo a dona de casa permanece com a mão na boca numa tentativa vã de controlar o choro, ou impedi-lo. De repente uma grande agitação na entrada do galpão. Geovane é retirado de maca e o mesmo não acontece com Dudão. Uma enxurrada de flashes, perguntas, celulares gravando vídeos e tudo mais. Capitão Neto com o peito estufado conduz o assaltante até a viatura sem falar com a imprensa.

     - Com licença. Falarei depois. – falou empurrando o marginal.

     Fernanda fez questão de ir junto na ambulância com seu marido deixando Marcos em meio a multidão que ainda se aglomerava na calçada. Agora sim ele tem certeza de que a perdeu de vez para o songa monga do Geovane.


*


    Uma costela fraturada, um ferimento a bala no antebraço. Várias escoriações por todo corpo e também muitas dores espalhadas. O herói se recupera na enfermaria de um grande hospital. A seu lado, sua mulher, companheira, amiga, assim pensa ele.

     - Oi? – perguntou Fernanda.

     - Oi, só de falar dói. – fez careta.

     - Então não fale. – sorriu.

     - Achei que nunca mais fosse te ver, nunca mais fosse ver nossa filha. – chorou.

     - Descanse, não precisa falar nada agora.

     - Um beijo, pode ser?

     Fernanda sentiu como se alguém tivesse lhe dado um soco no estômago. Ela o beijou, mas não passou de um curto selinho. Claro que ele sentiu a frieza, a má vontade.

      - Precisamos conversar, Geovane.

      - Tudo bem.


    Dois dias depois Geovane recebeu alta. Dentro do quarto estão Fernanda, Barbara e capitão Neto que é só elogios ao grande herói do momento.

     - Menina, seu pai é o cara, se orgulhe disso. Parabéns vigilante, representou muito bem a sua classe. Farei menção disso na entrevista coletiva lá embaixo. Vamos.

     Fernanda está estranha, muito quieta, mesmo vendo o alívio de seu esposo ao receber alta ela consegue ao menos disfarçar sua insatisfação e isso é notado pelo vigia. Na saída ele é recebido pela imprensa como uma verdadeira celebridade, Geovane não esconde sua timidez diante das câmeras e microfones. As perguntas são praticamente as mesmas, como que um homem como ele conseguiu sozinho acabar com perigosos assaltantes. Meia hora depois Lopes se encontra dentro de sua casa, abraçado a sua filha enquanto que Fernanda termina de preparar um lanche. O clima não é legal e é sentido até pela pequena Barbara.

     - Vocês estão tão estranhos.

     Eles se olhando, a única filha não deixa de estar certa. Geovane pediu para que ela deixasse papai e mamãe a sós um pouco. Fernanda se acomodou ao lado do marido, cruzou os braços e pernas.

     - Geovane Lopes, o grande herói, estou orgulhosa. – falou sem olhar para ele. – precisamos conversar sobre nós dois.

     - Eis me aqui. – colocou a mão na perna dela e ela a retirou.

     - Quero o divórcio.


*


    Geovane foi homenageado, recebeu prêmios, participou de programas de televisão, almoços com prefeito, governador e jantar com o presidente, tudo isso sozinho sem sua família ao lado. Nesse período ele recebeu uma proposta irrecusável de se tornar um dos sócios da CH cosméticos e ele é claro aceitou. Agora o vigia mora sozinho em seu apartamento que fica na zona nobre da cidade. Quanto a Fernanda, ela voltou para Marcos e vivem muito bem junto com sua filha que graças a um acordo entre seus pais ela pode passar os finais de semana com Geovane. FIM.