Noite de Lua Cheia
A cabana
que se localiza solitária no coração da floresta encontra-se num breu total. O silêncio é
ameaçador. Chove. Trovões rasgam o céu negro de nuvens densas e carregadas.
Dentro da cabana, Lurdes dorme sem preocupação alguma, deitada em algo que ela
chama de cama. O sonho é perfeito. Mesmo adormecida, ela balbucia palavras de
carinho, paixão e até mesmo algumas mais picantes. Um trovão um pouco mais
escandaloso a arrancou do sonho erótico a fazendo saltar de seu leito, melhor
dizendo.
— Maldição!
Lurdes
tinha a visão desfocada, mas ainda assim viu que a cortina da janela do quarto
não estava totalmente fechada. Mesmo a essa distância é possível ver as árvores
e outras plantações sendo jogadas de um lado para outro pela chuva e o vento. A
mulher calçou suas sandálias de palha feitas por ela mesma. Fechou a camisola e
andou encolhida até a janela. O relógio na parede marca 03:41. Bocejando ela
deu uma rápida olhada lá fora e viu alguém vindo. Um homem. A cabana não possui
uma cerca ou muro, mas sim um caminho de mato sulcado e cascalhos. Ao ver a
figura andando sem pressa alguma em meio a um dilúvio, Lurdes sentiu seu
coração bater na garganta. Três toques na porta.
— Já vou,
um minuto.
Lurdes se
olhou no espelho. Com o dedo mínimo retirou as remelas dos cantos dos olhos e
testou o hálito que estava péssimo por sinal. Amassou as madeixas e correu para
abrir a porta.
— Bom dia,
me desculpa a demora.
— Não se
preocupe com isso, conheço bem as mulheres.
O sobretudo
do sujeito se encontrava ensopado e ele não parecia se importa com isso. Ele
entrou deixando para trás uma grande poça na varanda.
— Quem é
vivo sempre aparece, né? Mesmo às três e cinquenta da manhã. — brincou Lurdes.
— Pois é,
Maria. Era urgente e eu só podia vir hoje, nesse horário. — parou no meio da
sala. — como vão as coisas por aqui?
— Desde a
sua última visita, às coisas estão do mesmo jeito. — fechou a porta.
O estranho
não pode deixar de notar o corpo da mulher.
— Acho que
não, você está bem melhor do que da última vez. Não é?
Lurdes
sorriu e cruzou os braços.
— E olha
que já passaram-se noventa anos e...
— Noventa e
cinco, para ser mais exato. — uniu às mãos protegidas por luvas pretas. — bom,
vamos ao que interessa. Onde ele está?
Lurdes
engoliu seco e pigarreou antes de responder.
—
Acorrentado. Na floresta. — gaguejou.
— E por que
o acorrentou?
Outra onda
de medo circulou por seu corpo.
— Ele me
pediu. Ele já não aguenta mais essa vida, se é que podemos chamar isso de vida.
O homem
andou até ficar cara a cara com Lurdes. Ele a segurou pelas bochechas. Seus
olhos se tornaram como brasas vivas.
— Senti um
tom de insatisfação em sua fala, Maria.
Lurdes
permitiu que seus olhos ficassem incandescentes também.
— Jamais!
Sou grata ao senhor por ter mudado a minha vida.
— Então,
qual o problema?
Lurdes
afastou a mão gelada do sujeito de seu rosto e se afastou. Ela ocupou a cadeira
paupérrima encostada perto da porta.
— Ele já
tem cem anos e a cem anos vem vivendo de carnificina. Ele implorou-me para
acorrentá-lo. Ele não quer mais devorar ninguém. Marcondes perdeu tudo, até sua
mulher e filhos ele os matou...
— Você por
um acaso está comovida, Maria? — deu às costas e andou até a porta do quarto.
— Claro que
não, pra mim é indiferente, eu só estou repetindo o que o próprio Marcondes
falou.
O homem
ficou em silêncio olhando a “cama” desarrumada. Observou também o armário em
frangalhos lá no canto. Ele girou nos calcanhares.
— Quantos
amantes já se deitaram com você aqui?
Lurdes foi
pega de surpresa.
— O que
disse?
— Quantos
homens já se deitaram ali? — apontou.
Maria
cruzou às pernas. Não queria responder, não estava confortável.
— Sou uma
feiticeira, esqueceu? Você me transformou em uma bruxa. Sou uma tarada
compulsiva. Além de fazer e desfazer trabalhos, eu sacio os desejos dos homens,
e os meus, é claro. Você é o culpado.
O homem riu.
— Confesso
que exagerei na dose. — abaixou a cabeça. —retomando o raciocínio. Você precisa
dar um fim em Marcondes e encontrar outro.
— Os tempos
mudaram, senhor. Antes era mais fácil encontrar quem quisesse fazer um pacto e
se transformar em lobo em noites de lua cheia.
— Ledo
engano, Maria de Lurdes. Hoje em dia, os seres humanos estão mais carentes,
solitários e vazios. Será mais fácil de que há cem anos. — colocou às mãos para
trás.
Lurdes
levantou-se. Foi até a janela. A chuva não dava trégua e mesmo em meio aos
estrondos dos trovões era possível ouvir o barulho das correntes.
— Assim que
o dia surgir irei desfazer o pacto. — olhou para ele. — mais alguma coisa?
— Sim! Para
ocupar o lugar de Marcondes, procure um jovem que tenha inclinação para o mal,
de preferência alguém que já tenha executado outras pessoas olhando nos olhos delas.
— passou a língua nos lábios.
— Um
psicopata?
— Exato. —
estalou os dedos.
Lurdes
assentiu. O sujeito começou a andar em direção a porta. Maria respirava
aliviada quando o mesmo parou e olhou para ela. O medo a possuiu de uma forma
que a deixou sem ar.
— Lhe
trouxe um presente.
Ele tirou
do bolso interno do sobretudo uma pequena esfera vermelha brilhante.
— Era teu
desejo poder levitar, não era?
Lurdes não
conseguiu conter a gargalhada.
— Cento e
cinquenta anos depois? Só o senhor mesmo.
Ele também
riu.
— Não foi por
maldade, eu só não via necessidade de fazê-la levitar por aí. Vai querer ou
não? — esticou o braço.
— Lógico
que sim.
Lurdes
segurou a esfera com as pontas dos dedos indicador e polegar. Colocou-a na
língua e a engoliu em seco quase se sufocando. O homem riu.
— Não era
para engolir.
— Argh, o
que? — colocou às mãos no pescoço.
— Bastava encostá-la
em seu pulso e ela entraria em sua corrente sanguínea. — risos. — vocês são
mesmo criaturas idiotas. — abriu a porta e saiu.
Assim que a
porta fechou-se a bruxa deu o dedo do meio e na mesma hora uma cólica
insuportável a fez cair de joelhos.
— Perdão
senhor, perdão. Tenha piedade de mim. — gemeu.
*
Às sete da
manhã a feiticeira sentia o vento frio cortar seu rosto em meio ao gás que a
floresta expelia. Ela levita a uma velocidade moderada que lhe permitia abrir
os braços e fechar os olhos. A três metros se encontra Marcondes, Acorrentado
feito um cachorro em uma árvore. Ele está molhado, feridas por todo o corpo,
principalmente na região do pescoço e braços. O velho está caído de barriga
para baixo.
—
Marcondes. Acorde.
— Ah, o
que? — abriu um dos olhos.
— Vou te
libertar desse sofrimento. — seus pés tocaram o chão molhado.
O idoso
ficou de joelhos em posição de oração.
— Não, por
favor, eu não suporto mais matar, já chega. — chorou.
— Pare com
isso. — vociferou. — ele esteve lá na cabana e eu contei tudo.
— O senhor
esteve lá, e o que ele disse?
Lurdes deixou
que seu semblante decaísse. No fundo ela sentia muito pela vida do velho.
— Você já
sabe.
Marcondes
fitou o chão, seu olhar se tornou soturno.
— Vou para
o inferno. Não verei minha Francisca e nem os meninos. Por que, meu Deus?
— Você
aceitou fazer o pacto, Marcondes, lembra? Sabia das consequências. Agora abra a
boca.
Marcondes
estendeu o braço a pedindo para esperar.
— Quem sabe
se eu rezar antes, Deus não me ouve.
Maria de
Lurdes cruzou os braços e revirou os olhos bufando.
— Acha
mesmo que Ele vai ouvir a prece de um demônio?
Marcondes
chorou, berrou, clamou em alta voz por perdão. Lurdes aproveitou o momento e
retirou dele o espírito do lobo. O idoso veio a óbito na mesma hora.
— Cada uma
que me aparece.
O espírito
do lobo levitara junto com Lurdes até chegarem na cabana. Ela o deixou do lado
de fora e entrou afim de se arrumar para ir até a cidade. Enquanto se maquiava ela
ouviu ruídos de gravetos sendo partidos e de pisadas fortes vindas do meio do
mato. Maria abandonou o batom e abriu a janela. Da mata fechada surgiu um rapaz
de no máximo dezoito anos pedindo ajuda.
— Socorro,
moça, preciso me esconder.
A bruxa
observou que o garoto tinha às mãos e os braços sujos de sangue e uma faca de
caça na cintura, no cós da calça.
— Espere
aí, menino, eu preciso...
— Não me faça
perguntas e me deixe entrar. — puxou a faca.
Estranhamente
Maria de Lurdes sorriu. Abriu os braços o saudou.
— Seja bem
vindo.
FIM.