sábado, 25 de dezembro de 2021

Noite de Lua Cheia

 


Noite de Lua Cheia

 

A cabana que se localiza solitária no coração da floresta  encontra-se num breu total. O silêncio é ameaçador. Chove. Trovões rasgam o céu negro de nuvens densas e carregadas. Dentro da cabana, Lurdes dorme sem preocupação alguma, deitada em algo que ela chama de cama. O sonho é perfeito. Mesmo adormecida, ela balbucia palavras de carinho, paixão e até mesmo algumas mais picantes. Um trovão um pouco mais escandaloso a arrancou do sonho erótico a fazendo saltar de seu leito, melhor dizendo.

— Maldição!

Lurdes tinha a visão desfocada, mas ainda assim viu que a cortina da janela do quarto não estava totalmente fechada. Mesmo a essa distância é possível ver as árvores e outras plantações sendo jogadas de um lado para outro pela chuva e o vento. A mulher calçou suas sandálias de palha feitas por ela mesma. Fechou a camisola e andou encolhida até a janela. O relógio na parede marca 03:41. Bocejando ela deu uma rápida olhada lá fora e viu alguém vindo. Um homem. A cabana não possui uma cerca ou muro, mas sim um caminho de mato sulcado e cascalhos. Ao ver a figura andando sem pressa alguma em meio a um dilúvio, Lurdes sentiu seu coração bater na garganta. Três toques na porta.

— Já vou, um minuto.

Lurdes se olhou no espelho. Com o dedo mínimo retirou as remelas dos cantos dos olhos e testou o hálito que estava péssimo por sinal. Amassou as madeixas e correu para abrir a porta.

— Bom dia, me desculpa a demora.

— Não se preocupe com isso, conheço bem as mulheres.

O sobretudo do sujeito se encontrava ensopado e ele não parecia se importa com isso. Ele entrou deixando para trás uma grande poça na varanda.

— Quem é vivo sempre aparece, né? Mesmo às três e cinquenta da manhã. — brincou Lurdes.

— Pois é, Maria. Era urgente e eu só podia vir hoje, nesse horário. — parou no meio da sala. — como vão as coisas por aqui?

— Desde a sua última visita, às coisas estão do mesmo jeito. — fechou a porta.

O estranho não pode deixar de notar o corpo da mulher.

— Acho que não, você está bem melhor do que da última vez. Não é?

Lurdes sorriu e cruzou os braços.

— E olha que já passaram-se noventa anos e...

— Noventa e cinco, para ser mais exato. — uniu às mãos protegidas por luvas pretas. — bom, vamos ao que interessa. Onde ele está?

Lurdes engoliu seco e pigarreou antes de responder.

— Acorrentado. Na floresta. — gaguejou.

— E por que o acorrentou?

Outra onda de medo circulou por seu corpo.

— Ele me pediu. Ele já não aguenta mais essa vida, se é que podemos chamar isso de vida.

O homem andou até ficar cara a cara com Lurdes. Ele a segurou pelas bochechas. Seus olhos se tornaram como brasas vivas.

— Senti um tom de insatisfação em sua fala, Maria.

Lurdes permitiu que seus olhos ficassem incandescentes também.

— Jamais! Sou grata ao senhor por ter mudado a minha vida.

— Então, qual o problema?

Lurdes afastou a mão gelada do sujeito de seu rosto e se afastou. Ela ocupou a cadeira paupérrima encostada perto da porta.

— Ele já tem cem anos e a cem anos vem vivendo de carnificina. Ele implorou-me para acorrentá-lo. Ele não quer mais devorar ninguém. Marcondes perdeu tudo, até sua mulher e filhos ele os matou...

— Você por um acaso está comovida, Maria? — deu às costas e andou até a porta do quarto.

— Claro que não, pra mim é indiferente, eu só estou repetindo o que o próprio Marcondes falou.

O homem ficou em silêncio olhando a “cama” desarrumada. Observou também o armário em frangalhos lá no canto. Ele girou nos calcanhares.

— Quantos amantes já se deitaram com você aqui?

Lurdes foi pega de surpresa.

— O que disse?

— Quantos homens já se deitaram ali? — apontou.

Maria cruzou às pernas. Não queria responder, não estava confortável.

— Sou uma feiticeira, esqueceu? Você me transformou em uma bruxa. Sou uma tarada compulsiva. Além de fazer e desfazer trabalhos, eu sacio os desejos dos homens, e os meus, é claro. Você é o culpado.

O homem riu.

— Confesso que exagerei na dose. — abaixou a cabeça. —retomando o raciocínio. Você precisa dar um fim em Marcondes e encontrar outro.

— Os tempos mudaram, senhor. Antes era mais fácil encontrar quem quisesse fazer um pacto e se transformar em lobo em noites de lua cheia.

— Ledo engano, Maria de Lurdes. Hoje em dia, os seres humanos estão mais carentes, solitários e vazios. Será mais fácil de que há cem anos. — colocou às mãos para trás.

Lurdes levantou-se. Foi até a janela. A chuva não dava trégua e mesmo em meio aos estrondos dos trovões era possível ouvir o barulho das correntes.

— Assim que o dia surgir irei desfazer o pacto. — olhou para ele. — mais alguma coisa?

— Sim! Para ocupar o lugar de Marcondes, procure um jovem que tenha inclinação para o mal, de preferência alguém que já tenha executado outras pessoas olhando nos olhos delas. — passou a língua nos lábios.

— Um psicopata?

— Exato. — estalou os dedos.

Lurdes assentiu. O sujeito começou a andar em direção a porta. Maria respirava aliviada quando o mesmo parou e olhou para ela. O medo a possuiu de uma forma que a deixou sem ar.

— Lhe trouxe um presente.

Ele tirou do bolso interno do sobretudo uma pequena esfera vermelha brilhante.

— Era teu desejo poder levitar, não era?

Lurdes não conseguiu conter a gargalhada.

— Cento e cinquenta anos depois? Só o senhor mesmo.

Ele também riu.

— Não foi por maldade, eu só não via necessidade de fazê-la levitar por aí. Vai querer ou não? — esticou o braço.

— Lógico que sim.

Lurdes segurou a esfera com as pontas dos dedos indicador e polegar. Colocou-a na língua e a engoliu em seco quase se sufocando. O homem riu.

— Não era para engolir.

— Argh, o que? — colocou às mãos no pescoço.

— Bastava encostá-la em seu pulso e ela entraria em sua corrente sanguínea. — risos. — vocês são mesmo criaturas idiotas. — abriu a porta e saiu.

Assim que a porta fechou-se a bruxa deu o dedo do meio e na mesma hora uma cólica insuportável a fez cair de joelhos.

— Perdão senhor, perdão. Tenha piedade de mim. — gemeu.

 

*

 

Às sete da manhã a feiticeira sentia o vento frio cortar seu rosto em meio ao gás que a floresta expelia. Ela levita a uma velocidade moderada que lhe permitia abrir os braços e fechar os olhos. A três metros se encontra Marcondes, Acorrentado feito um cachorro em uma árvore. Ele está molhado, feridas por todo o corpo, principalmente na região do pescoço e braços. O velho está caído de barriga para baixo.

— Marcondes. Acorde.

— Ah, o que? — abriu um dos olhos.

— Vou te libertar desse sofrimento. — seus pés tocaram o chão molhado.

O idoso ficou de joelhos em posição de oração.

— Não, por favor, eu não suporto mais matar, já chega. — chorou.

— Pare com isso. — vociferou. — ele esteve lá na cabana e eu contei tudo.

— O senhor esteve lá, e o que ele disse?

Lurdes deixou que seu semblante decaísse. No fundo ela sentia muito pela vida do velho.

— Você já sabe.

Marcondes fitou o chão, seu olhar se tornou soturno.

— Vou para o inferno. Não verei minha Francisca e nem os meninos. Por que, meu Deus?

— Você aceitou fazer o pacto, Marcondes, lembra? Sabia das consequências. Agora abra a boca.

Marcondes estendeu o braço a pedindo para esperar.

— Quem sabe se eu rezar antes, Deus não me ouve.

Maria de Lurdes cruzou os braços e revirou os olhos bufando.

— Acha mesmo que Ele vai ouvir a prece de um demônio?

Marcondes chorou, berrou, clamou em alta voz por perdão. Lurdes aproveitou o momento e retirou dele o espírito do lobo. O idoso veio a óbito na mesma hora.

— Cada uma que me aparece.

O espírito do lobo levitara junto com Lurdes até chegarem na cabana. Ela o deixou do lado de fora e entrou afim de se arrumar para ir até a cidade. Enquanto se maquiava ela ouviu ruídos de gravetos sendo partidos e de pisadas fortes vindas do meio do mato. Maria abandonou o batom e abriu a janela. Da mata fechada surgiu um rapaz de no máximo dezoito anos pedindo ajuda.

— Socorro, moça, preciso me esconder.

A bruxa observou que o garoto tinha às mãos e os braços sujos de sangue e uma faca de caça na cintura, no cós da calça.

— Espere aí, menino, eu preciso...

— Não me faça perguntas e me deixe entrar. — puxou a faca.

Estranhamente Maria de Lurdes sorriu. Abriu os braços o saudou.

— Seja bem vindo.

FIM.