sexta-feira, 5 de agosto de 2022

Os Mortos | Parte final

 


Os Mortos

Final

 

Não havia outro jeito, eu tinha que passar por aquele corredor e enfrentar os mortos-vivos. Não adiantava fingir que eles não estavam ali, porque sim, eles estavam. Cheiro forte de carne podre. Vozes pastosas. Ruídos dos dentes batendo o tempo inteiro. Algo horrível de se ver e de ouvir.

Segurei firme o facão. Respirei fundo e fui. A passos largos. Mentira! Eu estava correndo na verdade. O primeiro morto teve seu pescoço cortado. Ele girou o corpo perdendo o equilíbrio caindo sobre o outro defunto. Segui correndo. Mais um veio em minha direção na tentativa de me estrangular. Eu disse tentativa porque cravei o facão em sua testa e ele desabou. O golpe foi tão forte, tão preciso que o sangue esguichou.

- Droga! – gritei cuspindo.

Eu já havia alcançado a metade do percurso quando ao pular a poça cai batendo meu tórax com toda força no chão molhado. Imediatamente dois defuntos vieram pra cima de mim.

- Aonde estamos? – disse um deles babando um gosma negra que caia em meu rosto.

- Sai daqui. – o empurrei com o os pés. Levantei-me já furando o peito do outro.

Eu já estava bem cansado. A chuva de uma hora para outra apertou e a essa altura o que era um chuvisco se transformou numa tempestade com direito a trovões. Perto do muro havia outros cinco zumbis, os detonei sem grandes dificuldades. Pulei. Claro que ao me chocar contra o chão torci o pé. A dor me fez grunhir e chorar.

- Mais que merda.

*

Mesmo cansado, sentindo dor, enjoado por causa do forte odor dos mortos, caminhei pela cidade vazia, abandonada, largada e com corpos por toda parte. Eu estava exausto, a ponto de cair ali mesmo no asfalto ensopado. Antes de perder os sentidos, olhei para trás e vi um bando de mortos vindo. Passei em frente a igreja católica do pároco Januário, quem sabe ele não me abrigaria até eu estar cem por cento bem? Subi às escadas e esmurrei a grande porta de madeira bruta.

- Padre Januário, por favor, me deixe entrar. Padre.

Como uma criança sem o amparo dos pais eu comecei a chorar, perdi as forças das pernas e me ajoelhei ainda batendo com força na porta.

- Padre Januário, me perdoe por não ser tão assíduo nas missas.

Os mortos subiam as escadas dizendo coisas que mal davam para entender. Eram muitos. Eu não daria conta mesmo. O jeito foi fechar os olhos e pedir a Deus que minha passagem não fosse tão dolorosa. De repente a porta do templo se abriu apenas o suficiente para se passar o cano de uma espingarda que ao disparar me trouxe de volta a realidade.

- Entre, rápido. – disse o padre.

Entrei me arrastando. O sacerdote disparou mais duas vezes e nos trancou. Ele me olhou com seus enormes olhos azuis me ajudando a ficar de pé.

- Você está um lixo.

- O senhor está sozinho aqui?

- Estou! Todos se foram. Perderam a fé. Fazer o que? Isso é bíblico. Venha, o conduzirei até meus aposentos.

- O senhor sabe de alguma coisa?

- Sobre os mortos voltando a vida? Pouca coisa. São os sinais dos fins dos tempos, meu filho. Cristo disse que coisas estranhas aconteceriam e aqui estamos.

Engoli seco.

- Mas, já é o fim do mundo?

- Claro que não. Esse é o chamado princípio de dores. Coisas ainda piores virão. Lembra da pandemia a alguns anos? Então! Quem viver verá.

Entramos no quarto do padre.

- Preciso ligar para minha casa.

- Esqueça. Nada funciona. E mais uma coisa. Lamento muito, mas é bem provável que sua mulher e filhos estejam mortos. Sinto muito.

- Mas...

- Tome uma ducha. - mostrou-me o banheiro. - O jeito é rezar. Lhe aguardo aqui.

Passamos um bom tempo rezando. Devido ao cansaço e a tristeza eu peguei no sono. Padre Januário orou a noite inteira de joelhos. Quando despertei ele me olhava com lagrimas nos olhos.

- O que foi padre?

- As ruas foram tomadas. Ao redor da igreja há mortos por toda parte.

- E a sua arma? – me ergui.

- Não tenho munição o bastante. Morreremos de fome aqui.

Corri até onde fica o campanário e realmente a coisa estava feia. Não havia como escapar. Chorei de ficar batendo as mãos no meu peito. Por que, Senhor? A chuva piorou. O céu seguia encoberto.

- Meus filhos, minha esposa. Deus, por que?

Ouvi um disparo.

- Padre Januário?

Desci correndo, sem me importar com a dor em meu tornozelo. Cheguei até o templo e ele estava vazio. Andei com pressa até o quarto do sacerdote e me deparei com o pároco caído, cabeça explodida. A espingarda estava a seu lado ainda fumegante. e ele tinha na mão direita um bilhete.

Perdoe-me a fraqueza, meu filho. Preguei por tanto tempo a importância da vida e no entanto acabei por tirar a minha. Não há como viver num mundo dominado por mortos. Deixei uma bala pra você. Vá em frente. Assinado: Padre Januário.

O que eu poderia fazer da minha vida? Como sair daquela igreja? Se ficasse eu morreria do mesmo jeito. O número de zumbis do lado de fora aumentara de maneira assustadora e já era possível ouvi-los forçando a porta do templo. Minha morte era uma questão de minutos. Óbvio que antes de puxar o gatilho e explodir minha cabeça igual ao padre eu me ajoelhei e pedi perdão a Deus por esse ato. Assim que ouvi a porta de entrada da igreja sendo aberta e as vozes dos mortos ecoando pelo templo, tratei de pegar a espingarda, colocá-la em minha boca e pronto. Cai na escuridão da morte.

 

Enquanto isso, nesse mesmo momento, uma mulher segurando duas crianças se aproximou do portão do cemitério desesperada buscando por ajuda. Uma das crianças chorando disse.

- Mamãe, o papai deve estar escondido lá dentro.

FIM