Os Mortos
Final
Não havia
outro jeito, eu tinha que passar por aquele corredor e enfrentar os
mortos-vivos. Não adiantava fingir que eles não estavam ali, porque sim, eles estavam.
Cheiro forte de carne podre. Vozes pastosas. Ruídos dos dentes batendo o tempo
inteiro. Algo horrível de se ver e de ouvir.
Segurei
firme o facão. Respirei fundo e fui. A passos largos. Mentira! Eu estava
correndo na verdade. O primeiro morto teve seu pescoço cortado. Ele girou o
corpo perdendo o equilíbrio caindo sobre o outro defunto. Segui correndo. Mais
um veio em minha direção na tentativa de me estrangular. Eu disse tentativa
porque cravei o facão em sua testa e ele desabou. O golpe foi tão forte, tão
preciso que o sangue esguichou.
- Droga! –
gritei cuspindo.
Eu já havia
alcançado a metade do percurso quando ao pular a poça cai batendo meu tórax com
toda força no chão molhado. Imediatamente dois defuntos vieram pra cima de mim.
- Aonde
estamos? – disse um deles babando um gosma negra que caia em meu rosto.
- Sai
daqui. – o empurrei com o os pés. Levantei-me já furando o peito do outro.
Eu já
estava bem cansado. A chuva de uma hora para outra apertou e a essa altura o
que era um chuvisco se transformou numa tempestade com direito a trovões. Perto
do muro havia outros cinco zumbis, os detonei sem grandes dificuldades. Pulei. Claro
que ao me chocar contra o chão torci o pé. A dor me fez grunhir e chorar.
- Mais que
merda.
*
Mesmo cansado,
sentindo dor, enjoado por causa do forte odor dos mortos, caminhei pela cidade vazia,
abandonada, largada e com corpos por toda parte. Eu estava exausto, a ponto de
cair ali mesmo no asfalto ensopado. Antes de perder os sentidos, olhei para
trás e vi um bando de mortos vindo. Passei em frente a igreja católica do
pároco Januário, quem sabe ele não me abrigaria até eu estar cem por cento bem?
Subi às escadas e esmurrei a grande porta de madeira bruta.
- Padre Januário,
por favor, me deixe entrar. Padre.
Como uma
criança sem o amparo dos pais eu comecei a chorar, perdi as forças das pernas e
me ajoelhei ainda batendo com força na porta.
- Padre
Januário, me perdoe por não ser tão assíduo nas missas.
Os mortos
subiam as escadas dizendo coisas que mal davam para entender. Eram muitos. Eu
não daria conta mesmo. O jeito foi fechar os olhos e pedir a Deus que minha
passagem não fosse tão dolorosa. De repente a porta do templo se abriu apenas o
suficiente para se passar o cano de uma espingarda que ao disparar me trouxe de
volta a realidade.
- Entre,
rápido. – disse o padre.
Entrei me
arrastando. O sacerdote disparou mais duas vezes e nos trancou. Ele me olhou
com seus enormes olhos azuis me ajudando a ficar de pé.
- Você está
um lixo.
- O senhor
está sozinho aqui?
- Estou! Todos
se foram. Perderam a fé. Fazer o que? Isso é bíblico. Venha, o conduzirei até
meus aposentos.
- O senhor
sabe de alguma coisa?
- Sobre os
mortos voltando a vida? Pouca coisa. São os sinais dos fins dos tempos, meu
filho. Cristo disse que coisas estranhas aconteceriam e aqui estamos.
Engoli
seco.
- Mas, já é
o fim do mundo?
- Claro que
não. Esse é o chamado princípio de dores. Coisas ainda piores virão. Lembra da
pandemia a alguns anos? Então! Quem viver verá.
Entramos no
quarto do padre.
- Preciso
ligar para minha casa.
- Esqueça.
Nada funciona. E mais uma coisa. Lamento muito, mas é bem provável que sua
mulher e filhos estejam mortos. Sinto muito.
- Mas...
- Tome uma
ducha. - mostrou-me o banheiro. - O jeito é rezar. Lhe aguardo aqui.
Passamos um
bom tempo rezando. Devido ao cansaço e a tristeza eu peguei no sono. Padre
Januário orou a noite inteira de joelhos. Quando despertei ele me olhava com
lagrimas nos olhos.
- O que foi
padre?
- As ruas
foram tomadas. Ao redor da igreja há mortos por toda parte.
- E a sua
arma? – me ergui.
- Não tenho
munição o bastante. Morreremos de fome aqui.
Corri até
onde fica o campanário e realmente a coisa estava feia. Não havia como escapar.
Chorei de ficar batendo as mãos no meu peito. Por que, Senhor? A chuva
piorou. O céu seguia encoberto.
- Meus
filhos, minha esposa. Deus, por que?
Ouvi um
disparo.
- Padre
Januário?
Desci
correndo, sem me importar com a dor em meu tornozelo. Cheguei até o templo e
ele estava vazio. Andei com pressa até o quarto do sacerdote e me deparei com o
pároco caído, cabeça explodida. A espingarda estava a seu lado ainda fumegante.
e ele tinha na mão direita um bilhete.
Perdoe-me
a fraqueza, meu filho. Preguei por tanto tempo a importância da vida e no
entanto acabei por tirar a minha. Não há como viver num mundo dominado por
mortos. Deixei uma bala pra você. Vá em frente. Assinado: Padre Januário.
O que eu
poderia fazer da minha vida? Como sair daquela igreja? Se ficasse eu morreria do
mesmo jeito. O número de zumbis do lado de fora aumentara de maneira
assustadora e já era possível ouvi-los forçando a porta do templo. Minha morte
era uma questão de minutos. Óbvio que antes de puxar o gatilho e explodir minha
cabeça igual ao padre eu me ajoelhei e pedi perdão a Deus por esse ato. Assim
que ouvi a porta de entrada da igreja sendo aberta e as vozes dos mortos
ecoando pelo templo, tratei de pegar a espingarda, colocá-la em minha boca e
pronto. Cai na escuridão da morte.
Enquanto
isso, nesse mesmo momento, uma mulher segurando duas crianças se aproximou do
portão do cemitério desesperada buscando por ajuda. Uma das crianças chorando disse.
- Mamãe, o
papai deve estar escondido lá dentro.
FIM