segunda-feira, 10 de agosto de 2020

Nublado

 


Revisão geral. Para alguns alunos algo importante. Para outros nem tanto uma vez que já entenderam a matéria. Agora, para a maioria, a revisão é algo imprescindível. Na relação de alunos dessa noite somente uma ausência. Ludmila Parente. Resolveu cabular aula justamente no dia da revisão, dois dias antes da prova. Dalton Braga, o professor, terminou de lançar os exercícios na lousa branca e voltou para sua mesa já pegando o celular. A sala está em silêncio. Ninguém fala ou respira. Todos copiam com atenção as dezenas de exercícios de matemática. O professor abriu o whatsapp e lá havia uma mensagem de Ludmila.

     “Preciso falar com você urgente depois da aula”

      Dalton viu que ela estava online e digitou.

      “O que houve, por que não veio a aula?”

      Ludmila visualizou mas não respondeu e isso causou uma certa irritação ao professor que precisou deixar o celular de lado e focar na explicação dos exercícios. Mesmo cansado por acordar tão cedo e dar aula o dia inteiro, Dalton ainda consegue energia para lecionar a noite num cursinho preparatório. Dez minutos depois ele terminou de explicar os exercícios tirando ou tentando tirar todas as dúvidas da classe. Esgotado ele se sentou e pegou o celular. Abriu o aplicativo de mensagens e o que leu lhe causou tontura momentânea.

      “Estou grávida”


*


     As dez em ponto, coisa que não costuma fazer, Dalton liberou a turma. Foi notado por alguns o seu nervosismo e abatimento.

     - Aconteceu alguma coisa professor? – perguntou um rapaz.

     - Nada não, só estou cansado mesmo. – tentou sorrir.

     Dalton desceu as escadas do prédio de dois em dois degraus. Alcançou a calçada onde estava sua moto e antes de sair ele ainda olhou no celular o tal endereço onde se encontrava Ludmila. Depois disso ele ligou para sua esposa.

     - Amor, vou chegar tarde hoje. – pausa. – vamos dar uma esticadinha na matéria, tá bom? Mais tarde nos vemos. Beijos, te amo também.

    Com o trânsito livre as dez e pouca da noite não demorou muito para Dalton chegar ao local. Uma lanchonete onde é servido o pior hambúrguer da cidade. Ludmila Parente já estava a sua espera terminando de engolir o último gole de suco.

     - Oi? – ela falou olhando para ele.

     - Só me diga que é mentira, por favor. – se sentou.

     Ludmila abriu a bolsa e retirou de lá um teste de gravidez de farmácia e o colocou na mesa.

     - Sabe como funciona? – usou de sarcasmo.

     - Por favor, Ludi, sem sacanagem pô.

     - Sem sacanagem digo eu. Estou grávida de você, Dalton Braga. Olha aí. – empurrou o objeto para mais perto dele.

     O professor fechou os olhos e passou as mãos no rosto – como fui dar um mole desse? Uma funcionária se aproximou segurando o menu. Dalton a dispensou, mas Ludmila não.

    - Vou querer mais desse suco e também um x-tudo a moda da casa. – ela olhou para ele. – agora preciso comer por dois.

     No ponto do táxi Dalton ainda tentava digerir tudo o que aconteceu. Ludmila o abraçou e o beijou no pescoço. Tudo o que ele menos queria naquele momento era uma demonstração de carinho por parte dela.

      - Ludi, por favor, minha cabeça não está legal.

      - Ah, amor, vamos comemorar. – colocou a mão no volume da calça jeans. – posso fazer aquilo que você gosta.

      - Não tenho motivo para comemorar. – a afastou.

      - Veja bem, professor, não irei assumir essa responsabilidade sozinha, meu filho ou filha tem um pai e ele se chama Dalton Braga. – apontou o indicador.

     Uma fúria crescente e avassaladora tomou conta de Dalton e ele precisou ser forte para não segurar o dedo da garota e quebra-lo. Mentalmente ele contou até dez e respirou profundamente.

     - Dalton Braga é casado, é professor, tem uma reputação a zelar, esqueceu disso? – abaixou a mão dela devagar.

      - É mesmo é? – colocou as mãos na cintura. – por que não se lembrou disso quando ficava atrás de mim? Você vai assumir essa criança sim.

      O táxi chegou e Ludmila entrou no veículo.

      - Temos muito o que conversar, eu te ligo ou você me liga?

      - Eu te ligo. – colocou o capacete. – e nem pense em ligar para minha casa.


*


     Voltar para casa naquela noite foi torturante e perturbador. Enquanto pilotava pelas ruas vazias, Dalton voltava no tempo, na época em que foi contratado pelo curso preparatório, exatamente no dia que viu Ludmila pela primeira vez. Jovem, bonita não só de rosto, mas também de corpo. Ele sentiu que da parte da aluna existia um certo interesse. Demorou um pouco, mas não teve jeito, o velho e bom senhor Braga entrou em ação jogando pesado para o lado da ninfeta. Foi durante o intervalo. Ludmila não estava conseguindo resolver algumas equações e precisou ficar na sala durante o “recreio”. Dalton olhava para aquela morena clara, de cabelos lisos, negros e bochechas salientes e salivava.

     - 19 anos? – a voz do professor ecoou na sala vazia.

     - Sim, quase vinte. – sorriu.

     - Se você quiser eu posso lhe dar um reforço.

     - Faria isso por mim, Professor Dalton?

     - Só por você.

     Bastou para que Ludmila ficasse apaixonada pelo mestre dos números. O reforço foi marcado não só pelas equações, mas também pelas longas e saborosas tardes de sexo. E coloca sexo nisso. Ludmila Parente deixava Dalton esgotado ao ponto de não conseguir pilotar sua moto. Para não levantar suspeitas, o professor fazia questão de não deixar sua esposa em falta em casa. Houve vezes em que ele transava com Ludmila num motel beira de estrada e quando chegava a noite fazia amor com Fabíola. Bons tempos aqueles. Mas agora o que era curtição se transformou em pesadelo e dos mais terríveis possível. Ludmila grávida, isso não pode estar acontecendo. Quando Dalton deu um tempo nos pensamentos ele já estava na rua de sua casa. No relógio de rua - se não estivesse errado - marcava quase meia noite. Hora de encarar outra fera.

     - Oi, querida. Que dia foi esse, meu Deus. – pendurou as chaves e colocou a capanga em cima da mesa.

     - Pois é, reta final de preparatório não é fácil. – disse Fabíola tomando suco e mexendo no celular. – vai dar aula pela manhã?

      - Graças a Deus só a tarde. – abriu a geladeira.

      - Quer que esquente o macarrão?

      - Não. Vou tomar um leite, uma ducha e cama.

      Foi complicado. Fabíola queria namorar e Dalton só pensava em Ludmila grávida. Ela o beijava por inteiro, mas ele não conseguiu manter uma ereção, isso irritou sua esposa.

     - Qual o problema senhor Braga? – se sentou na cama.

     - Me desculpa, amor, acho que não vai rolar nada hoje.

     - Vamos ver se eu entendi. Primeiro você chega tarde, dispensou o meu macarrão com molho branco e agora está me dispensando. Tem caroço embaixo desse angu.

      - Só estou cansado, só isso.

     Fabíola não é de se jogar fora. 38 anos, corpão de mulher brasileira, rosto quadrado bastante marcante e uma boca grande, suculenta. Ela dormiu aquela noite muito furiosa e por que não dizer subindo pelas paredes. Dalton mal pregou os olhos, passou a noite entre pensar na criança que está por vir e os roncos pavorosos de sua esposa. Em pensar que o professor sempre sonhou em ter um filho ou filha, sempre se imaginou segurando em seus braços o fruto do amor entre Fabíola e ele. Como é a vida. Aos 44 anos ele será papai, mas tudo aconteceu fora de seus planos. Quando finalmente ele conseguiu dormir o relógio marcava quinze para as cinco da manhã.


*


      Fabíola saiu um pouco antes das oito. Tomou seu café saudável, regado a aveia, suco e outras coisas mais. Dalton beliscava uma torrada com margarina e café puro em sua caneca do time do coração. Sem fome e muito preocupado. Assim que ouviu sua mulher sair com o carro ele ligou para Ludmila que o atendeu de imediato.

      - Como passou a noite?

      - Eu passei bem, quanto a você, acho que não pode dizer o mesmo, não é?

      - Vamos parar com esse sarcasmo, por favor.

      - Você quer uma menina ou um menino?

      Dalton se sentiu tonto e faltou pouco para ele vomitar o café.

       - Olha só garota, esquece, você não terá essa criança.

       - Ué! O que houve com aquele discurso conservador contra o aborto? Agora quer que eu tire a criança, professor? Pensasse antes de me comer sem camisinha.

        - Veja bem. Agora a situação é outra. Eu farei alguns contatos, vamos resolver isso rápido.

        - O que dona Fabíola fará quando souber dessa história, hein?

        - Não volte a falar no nome da minha mulher. – trancou os dentes e socou a mesa o café.

        - Eu sou sua mulher, sou eu quem está carregando um filho teu, professor Dalton Braga.

       Sentindo a casa girando Dalton teve que encerrar a ligação. Fortes náuseas o acometeram e por fim ele sujou o piso. Essa tempestade está tomando proporções gigantescas, daqui a pouco será impossível de controla-la. Ele buscou um pano de chão no banheiro e quando começava a limpar a sujeira que fez o celular tocou. Ludmila.

     - Desligou na minha cara por que?

     - Sei lá, acho que a ligação caiu. Preciso te ver hoje ainda. – falou de joelhos limpando o gofo.

     - Aonde, no mesmo lugar?

     - Sim.

*


    Outro local dos encontros do casal é a casa do padrinho de casamento de Dalton. Orlando está morando fora do país e deixou as chaves da propriedade com o mestre dos números. A casa está praticamente vazia, tudo que há é um colchão de casal que fica no chão do quarto e na cozinha uma geladeira e fogão e só. Dalton e Ludmila fazem sexo a uma velocidade fora do comum. O encontro precisa ser rápido para não levantar suspeitas. A estudante já se satisfez algumas vezes antes de seu parceiro chegar ao ápice do prazer. Para não correr risco Dalton preferiu jogar o seu precioso fora.

      - O que foi isso? – perguntou irritada.

      - Por precaução. – saiu de cima de Ludmila.

      - Você acha que eu estou mentindo pra você?

      - Relaxa, não precisa se estressar.

      - Você viu com seus próprios olhos o teste de farmácia, viu que deu positivo e agora vem com essa? – começou a juntar suas roupas. – o que pensa que sou?

      - Ludi, volte aqui, vamos conversar, por favor.

      - Mal caráter, é isso que você é, Dalton, sou uma trouxa mesmo, eu deveria ir até sua casa e contar tudo para sua esposa.

      Dalton nunca se levantou tão rápido em toda sua vida. Ele a segurou pelos braços e a balançou com truculência num descontrole de fazer medo na jovem.

      - Eu te falei para não falar o nome da minha mulher, será que você não entendeu isso? Eu tenho família, pessoas que se espelham em mim, uma reputação e não será uma mulherzinha metida a gostosa que vai acabar com tudo isso. Você me entendeu?

      - Aí, você está me machucando. – chorou.

      - Responde! Você me entendeu? – apertou um pouco mais.

      - Sim, sim, eu entendi, não me bata.

     De repente aquela mulher bonita, forte e independente deu lugar a uma menina frágil buscando conforto no peito do homem a sua frente. Dalton não resistiu e teve que envolvê-la em seus braços e quase chorou junto com ela.

    - Calma, calma. – a beijou na cabeça. – vamos resolver isso.

    - Promete não mais tocar no assunto sobre aborto?

    - Bom. Quanto a isso teremos que conversar com mais calma. Certo?

    - Certo. – fungou o nariz.

    - Vai ao curso hoje? – ainda abraçados.

    - Tenho que ir, passar nesse concurso é tudo que restou para mim.

    - Ótimo. A noite nos veremos.


*


    Depois que chegou do curso a noite Dalton estava se sentindo muito bem, mas ele sabia que isso era uma falsa sensação de bem estar. Ludmila com certeza ainda lhe causará um problema que talvez seja irreversível. Durante a aula a garota não tirou os olhos dele e não era um olhar de admiração nem tão pouco de mulher apaixonada. Era um olhar estranho, ela queria passar alguma informação para ele. Mais estranho ainda foi ela ter ido embora sem ao menos falar com ele, isso sim o deixou com a pulga atrás da orelha.

     Ele terminava de fazer algumas anotações em seu caderno quando Fabíola apareceu na sala olhando para ele com cara feia. Ela arqueou uma das sobrancelhas e se sentou a seu lado.

     - O que foi? – fechou o caderno.

     - Você alguma vez, estando casado comigo já desejou ter outra mulher?

     As vísceras deram um nó. Dalton ficou sem ar e ele acredita que nesse momento ele tenha perdido a cor também.

      - Que conversa é essa agora, Fabi?

      - Já pensou em me trair?

      - Calma, espere, eu...

      - Lembra da Claudia? – cruzou as pernas.

      - Sim, Claudinha, esposa do Jorge nosso ex mecânico, o que aconteceu?

      - Descobriu que o salafrário do Jorge a estava traindo e o que é pior, ele engravidou a outra. Que sacanagem.

      Dalton engoliu seco duas vezes.

     - Nossa, que barra hein.

     - Nem brinca com uma coisa dessas. – deu uma pausa e olhou para o marido. – vai dar aula amanhã de manhã?

     - Sim!

     - Então temos seis horas até de manhã. Podemos namorar pelo menos trinta minutos hoje?

     - Até mais se você quiser. – deitou em cima da esposa.


     Final de tarde. Dalton e Fabíola combinaram em lanchar juntos na mesma lanchonete onde rolou o primeiro beijo entre eles. O lugar é aconchegante. Música agradável, normalmente são executadas canções dos anos 70, 80 e algumas dos anos de 1990. Dalton se atrasou. O trânsito estava ruim até para quem estava de motocicleta. Quando entrou no estabelecimento suas narinas foram inundadas pelo cheiro de hambúrguer e bacon fritando. Não demorou muito até seus olhos encontrarem Fabíola sentada no canto na companhia de Ludmila.


*


Dalton sentiu sua alma e espírito saírem dele. O sorriso de Ludmila para ele o fez odiá-la como nunca ele odiou alguém.

    - Oi amor, essa é Camila. Camila, esse é Dalton, meu marido, não falei que eu tive sorte?

    - Pois é, muita sorte mesmo. Prazer, Dalton. – estendeu a mão.

    Relutante, hesitante, o professor apertou a mão da menina um pouco mais forte. Ele se acomodou ao lado de Fabíola que retomou o assunto.

     - Então você irá prestar concurso público?

     - Sim, já estamos na reta final. – olhou para Dalton.

     - Hum. Dalton dá aula de matemática num curso preparatório.

     - Ah, que legal. – embaixo da mesa Ludmila passou o pé na perna de Dalton.

     - Vamos fazer os pedidos, estou azul de fome. – falou Fabíola.

     - Se não se importam, eu posso lanchar com vocês, Acho que tomei um bolo do meu pretendente. – voltou a olhar para Dalton.

     - Por mim tudo bem e você amor?

     Dalton tinha na testa gotículas de suor.

     - Ah, sim, tudo bem por mim também. Eu não estou com tanta fome, vou pedir uma água com gás.

      - O senhor não me parece bem, professor Dalton. – Ludmila perguntou com ar de riso.

      - Nada! Acho que foi queda de pressão.

      - Eu já mandei ele tratar isso, com pressão arterial não se brinca. – Fabíola falou enquanto conferia o menu.


*



     Foram as duas horas mais complicadas e desconfortantes da vida do professor. Estar diante da amante e ao mesmo tempo ao lado da esposa foi de doer o fígado. Quando eles se despediram Dalton Braga se encontrava encurvado devido a pressão em que viveu. Ludmila e Fabíola trocaram números de telefone e a cada dígito era um olhar penetrante na direção da garota.

     - Vamos combinar de você nos fazer uma visita algum dia desses. – disse Fabíola.

     - Com certeza, amei conhecer vocês.

    Camila ou Ludmila se foi deixando para trás um Dalton bastante transtornado, ele pensa em várias coisas ao mesmo tempo e isso o deixou esgotado. Sua esposa terminou de pegar as coisas quando percebeu a distração do marido.

    - Algo de errado?

    - Não! Só estou pensando. Vamos.


    Mais tarde, enquanto Fabíola levava o cachorro para dar uma volta na rua, Dalton aproveitou para ligar para Ludmila e destilar todo o seu veneno sobre ela.

     - Você tem merda na cabeça garota?

     - Ficou com medinho é?

     - Escute bem o que vou te falar...

     - Vai falar o que? Que quer que eu tire o bebê? Que tem uma reputação a zelar, é isso? Veja bem, professor, foi o senhor quem começou com essa história agora aguente as consequências. Você vai assumir sua verdade como homem, caso contrário conto tudo para ela.

     44 anos vividos e Dalton jamais imaginou passar pelo que estar vivendo. Ele até já se envolveu com outras mulheres, mas nenhuma chegou aos pés dessa pirralha. Ela sim está lhe causando problemas. Mais uma vez foi preciso se controlar para não enlouquecer de vez de ódio.

     - Tudo bem, tudo bem. Vou assumir essa criança, mas terá que me prometer ficar de boca fechada e nunca mais me procurar. Entendeu?

     - Vou querer tudo certinho, dinheiro para o pré natal, consultas em hospital particular até o dia do parto, sem falar da pensão da criança.

     - Pode deixar comigo. Vamos marcar para resolvermos tudo direito, afinal, a criança não tem culpa alguma.

     - Me liga. – desligou.

    Foi um fim de noite onde os piores sentimentos tomaram conta e envenenaram o coração do senhor da matemática. Até na hora de dormir ele ainda era alvo deles, os demônios que gritavam com força em seus ouvidos – ela irá destruir tudo o que você conquistou, ela tirará Fabíola de você, seu otário.

     Dalton passou a noite em claro. Dividiu o tempo entre ir na cozinha beber água e ficar na janela admirando o lado belo da madrugada. Dizem que a noite é capaz de revelar os monstros que existem em cada ser humano. Talvez seja nisso que ele esteja se tornando agora, um monstro.


*


    O café na caneca já estava adoçado e mesmo assim Dalton continuava mexê-lo com a colher. Fabíola preparava seu desjejum na pia quando o som incômodo do metal em contato com a louça a alarmou.

     - Ei! Pare com isso.

     - Ah, oi? – voltou de seus devaneios.

     - Você não para de mexer esse café, acho até que já esfriou. Estava pensando no que?

     - Sou um profissional da educação. Sou bem sucedido na vida. Tenho uma casa enorme. Tenho carro e uma moto e principalmente, tenho você. – olhou para ela. – temo que um dia tudo isso acabe.

      - Aí Deus! – se sentou no colo do marido. – que lindo amor, mas confesso que estou preocupada.

      - Nada e ninguém vai tirar isso da gente. Nada. – pegou a mão da mulher e a beijou.

     Foi o café da manhã mais nutritivo da vida do casal Braga. Eles deixam a cozinha e foram para o quarto e fizeram amor até próximo do meio dia. Dalton deu a Fabíola a maior experiência sexual da vida dela. Ele tentou empurrar para fora tudo que estava entulhado dentro dele. Raiva, ódio, negatividade, enfim, tudo foi afogado durante aquelas horas de prazer. Ao fim de tudo Dalton Braga estava renovado, disposto a tudo. Nada será capaz de destruir sua vida, nem mesmo Ludmila Parente.


*

    Ludmila estava na garupa com os braços envoltos na cintura do professor numa autoestrada cortando a cidade. Pela décima vez ela perguntou se o lugar ainda estava longe. Dalton pacientemente respondia que sim.

    - Poxa, estamos fora da cidade já – falava com o vento batendo forte no rosto.

    - Relaxa, você vai se impressionar com o lugar.

     A moto saiu da via expressa e pegou uma secundária. Muito verde e poucas casas. Dalton diminuiu a velocidade quando chegou perto de um poço desativado.

    - Chegamos! – desligou a moto.

    - Aqui? Mas aqui só tem mato, de onde você conhece esse lugar?

    - Esse terreno eu comprei tem algum tempo e agora é teu. – falou olhando ao redor.

    - Tá falando sério?

    - Pode vender inclusive, ele deve valer uns cem mil, venda-o e compre um apartamento, sei lá.

    - Cem mil? – ficou boquiaberta.

    - Gostou? – abriu os braços.

    - Se gostei? Eu amei.

    - Vamos comemorar?

    - Professor Dalton, vai me dizer que o senhor quer transar aqui, no meio do nada?

    - Teremos os passarinhos como testemunhas.

    Dalton a segurou pelo rosto e a beijou. Ludmila foi se entregando. As mãos enormes do sujeito foram descendo até o pescoço e aos poucos ele vai as pressionando. A garota segue beijando inocentemente até ser derrubada por uma rasteira por trás. Ela caiu com as costas no chão rústico. Dalton a prendeu entre suas pernas ainda segurando em seu pescoço.

    - O que foi isso, Dalton, você está me sufocando.

     Dalton não respondeu. A menina de 19 anos ainda tentou lutar, mas sem sucesso, Dalton é infinitamente mais forte. O rosto de Ludmila foi ficando ruborizado e os olhos vidrados. Ele estrangulou com mais forte e ódio, você não irá atrapalhar. As pernas pararam de se mexer. O corpo foi ficando mole e os olhos fitando o nada. Ludmila Parente, segunda filha do casal Anselmo e Sueli, aspirante ao emprego público, está morta. Antes de soltar o pescoço da vítima, Dalton observou uma lágrima escorrer do olho direito dela. O homem apenas caiu para o lado esquerdo do corpo da jovem e abafou o choro amargo com as mãos. Deitado ao lado do cadáver o professor viu um filme passar diante dos seus olhos. A vontade que ele teve era de estar morto, assim como Ludmila. A poeira se misturou as lágrimas e suor dando ao professor um aspecto horrendo. Sem forças ele voltou a se deitar ao lado do corpo.

     - Mais que droga garota, por que tinha que se envolver justo comigo, por que? – acariciando a testa lisa da morta. – eu não vou conseguir conviver com isso, eu não vou. – voltou a cair ao lado dela.


     O céu passou do azul para o alaranjado e depois para o vestido negro da noite. Os olhos de Dalton ainda fixavam o horizonte coberto por estrelas quando ele deu conta que ainda havia trabalho a ser feito. Ele também percebeu que ficou ali deitado ao lado do corpo por horas e ninguém passou por ali. Ele olhou para o lado e lá estava Ludmila, com os olhos abertos, rosto contorcido, uma expressão de um terrível sofrimento pré morte. Ele voltou a chorar, mas não havia tempo para isso. Se livrar do corpo, é isso que ele precisava fazer.

     Ele a segurou pelas pernas e a arrastou até perto do poço desativado. Afastou a tampa pesada de madeira. Não conseguiu ver nada lá dentro devido ser noite. Sacou seu celular e ativou a lanterna e iluminou o fundo. Parecia haver um pouco de água podre lá embaixo. Dalton pegou o cadáver nos braços e antes de solta-lo ele ainda a beijou na testa e fechou seus olhos.

      - Sinto muito. – jogou o corpo.

      O barulho do corpo batendo no fundo do poço deixou Dalton ainda pior. Chorando horrores ele fechou o poço. Correu até sua motocicleta e partiu de volta para a cidade.

      - Me perdoa Deus, ela só era uma menina, me perdoe.


*


      Quando chegou em casa havia dezenas de mensagens de Fabíola no whatsapp, Dalton entrou em desespero, sabia o que lhe esperava ao entrar. Ele se olhou no espelho retrovisor da moto e viu seu rosto, ficou assustado. Se limpou e entrou. Sua esposa se encontrava diante do notebook navegando por sites de beleza e moda.

     - Oi! – Dalton passou por ela na sala.

     - Amor, o que houve, você sumiu o dia inteiro. – se levantou. – não viu minhas mensagens?

     - Não! – tirou a camisa.

     - Você está estranho, posso saber o que aconteceu com você?

     - Posso tomar um banho antes? – abriu os braços.

     Fabíola deu de ombros.

     Dalton não quis jantar, não queria falar, não queria estar ali. Ele não conseguiu dormir mais uma vez. Passou a noite sendo assombrado pelo olhar de Ludmila morta dentro daquele poço abafado e úmido. Quando se levantou da cama para ir até a geladeira ele se lembrou de que havia guardado uma garrafa de uísque. Barato, mas mesmo assim um uísque. Por hora serviria. Ele abriu o armário da cozinha e nos fundos do móvel se encontrava ela, a bebida dourada. Rapidamente ele pegou um copo de dosagem dupla e o encheu. Respirou fundo e tomou de uma só vez. Se arrepiou, fez cara feia e voltou a encher o copo, eu preciso ficar bêbado. Virou o copo e dessa vez as reações foram mínimas, eu preciso esquecer. A bebida estava na metade quando Dalton sentiu seu corpo mais leve, parecia que o chão era feito de algodão. Sim, estava funcionando, a embriaguez o pegou de jeito. Mais uma dose e ele achou que poderia dançar mesmo sem música. Foi o que fez.


   Pela manhã Fabíola abriu os olhos e se virou para abraçar o marido. Ele não estava lá. Dalton não acordaria tão cedo assim. Semi nua ela se levantou da cama e o procurou no banheiro. Ninguém.

    - Amor?

    Andou até a sala, lá estava ele, caído no sofá. Na mesinha de centro a garrafa vazia de uísque. O tapete estava vomitado, Fabíola sentiu vontade de acorda-lo jogando água fria mas se conteve. Alguma coisa aconteceu, Dalton nunca foi de beber assim, pensou ela. Correu até a cozinha e passou um café megaforte e o acordou.

     - Precisamos conversar. – disse segurando o rosto do marido.

     O dia foi tenebroso, difícil de ser vivido. Dalton teve que driblar os questionamentos e reclamações o tempo todo, ele já estava de saco cheio. Sem falar da dor, do remorso, houve horas que ele pensou em sair correndo gritando pela vizinhança. No curso os alunos não paravam de perguntar por Ludmila. Duas meninas conversavam no corredor sobre o sumiço da jovem.

     - Meu Deus, os pais dela estão desesperados e já tem polícia na jogada.

     Dalton não lecionou bem, não explicou direito e nem tirou dúvidas, houve reclamações por parte dos alunos, a aula terminou um pouco mais cedo. Ludmila lhe fazia companhia nos pensamentos sem cessar hora alguma, estou enlouquecendo. Tristeza, sofrendo em silêncio, o coração doendo, Dalton sente gosto de sangue na boca. Ele correu até o banheiro e vomitou a bílis se sentindo tonto. Chorou um pouco. Jogou água fria no rosto e foi embora.


    O trânsito também não estava ajudando. Mesmo de moto ele precisou ficar parado algum tempo na via. Xingou um bocado e decidiu seguir cortando os carros. Passou por um coletivo lotado de passageiros em pé. Dalton diminuiu e olhou. Lá dentro Ludmila acenava para ele, seu aspecto era infernal, cadavérico. O professor piscou algumas vezes, tudo não passou de algo formado por sua imaginação. Impressionado, Dalton se encontrava em choque. Acelerou ultrapassando o ônibus.

     Ele alcançou um ponto onde o trânsito já havia diminuído o fluxo. Chorando bastante chegando até salivar. Uma realidade cruel e implacável. O semáforo fechou para ele e abriu para outros. Sem tomar conhecimento disso ele passou. Uma van acelerou e eles se colidiram e Dalton Braga levou a pior, foi arremessado a metros de distância.


    Fabíola estava saindo do banho quando seu telefone tocou. Enrolada na toalha e pisando na ponta dos pés ela correu até a sala. O celular tocava e vibrava em cima da mesa de centro. De longe ela pode ver que se tratava de um número desconhecido. Hesitante ela atendeu.

    - Alô?

    - Boa noite, é a senhora Fabíola Braga?

    - Sim?

    - Então, dona Fabíola, o senhor Dalton Braga é o que da senhora?

    - Com quem estou falando? – apertou os olhos.

    - Sou do resgate, o senhor Dalton se envolveu num acidente grave e...

    Fabíola prendeu a respiração.

    - Sim?

    - E infelizmente ele veio a óbito, sentimos muito.

     O celular escorreu da mão e atingiu a mesa. Fabíola soltou um berro estremecendo as paredes frias. Dalton está morto.


*

    Dias depois Dalton foi sepultado sob aplausos. O cemitério estava cheio de parentes, familiares, amigos e conhecidos. O dia estranhamente estava nublado depois de dias de sol forte. A viúva não desgrudou do caixão sendo amparada por amigos do casal. Quando a urna foi deixada na cova, Fabíola não aguentou a emoção e desmaiou. Tristeza e desolação marcaram o enterro do professor.

    Dois dias depois foi a vez do corpo de Ludmila ser sepultado. Dor, muita dor e gritos de protestos. Os pais da jovem se abraçaram e pediram por justiça. A polícia segue com as investigações. Todos querem uma resposta, quem matou Ludmila?

     Mais tarde, na casa dos Parentes, seu Anselmo e dona Sueli ainda choravam sentados no sofá. Na cozinha, Tati, a melhor amiga de Ludmila preparava um chá de erva cidreira para os idosos, ela também tem os olhos vermelhos e inchados.

     - Fiz chá. – mostrou a bandeja com as xícaras. – bebam, fará bem.

     - Obrigado minha filha, você é um anjo. – disse dona Sueli entre soluços.

     - Posso ir até o quarto da Ludi?

    - Vá sim, filha. – falou Anselmo.

    O quarto é pura organização. Livros, CDs, revistas, tudo em seu devido lugar. Ludmila foi a última filha que restou solteira. Tati pegou a mochila rosa e chorou antes de abri-la. Lá dentro um caderno, uma agenda com capa de estampa infantil, estojo com canetas, lápis, borracha e um teste de gravidez de farmácia, Caramba, Ludmila era louca mesmo, guardou o meu teste com ela. Fim.