terça-feira, 21 de janeiro de 2020

As Duas



As Duas

     Primavera. Poucos dias de sol quente e muitos nublados e até frios. Essa primavera tem sido estranha, cinzenta, chuvosa, bastante atípica. Para Isabel os últimos dias foram conturbados, noites sem dormir e pouco apetite. As coisas só pioraram depois que Cris ligou para ela. Aquela manhã de Sábado foi atormentadora, Isabel precisou fazer uso de calmantes até por fim cair apagada na cama. Quando acordou já era quase noite e sua cabeça parecia que iria explodir. Cris, como ela a encontrou, como ficou sabendo o número de seu celular? Hoje em dia ninguém está escondido, infelizmente. Quarenta primaveras e nenhuma chegou aos pés dessa em questões de adversidades.
       A conversa com a tal de Cris durou somente um minuto e meio, mas bastou para fazer da vida de Isabel um inferno. Se os dias já não estavam legais, agora então se tornaram quase que impossível de vivê-los. A voz dela era intragável, nojenta, voz de mulher da vida, baixeza total. Isabel se lembra que sentiu náuseas durante toda a conversa. Ela deu graças a Deus quando ouviu o “até breve” vindo do outro lado da linha. Uma semana se passou, uma longa e dolorosa semana se foi e Isabel ainda não conseguiu engolir aquele telefonema. Terceiro sábado de uma primavera desastrosa.
     Engana-se quem pensa que a semana passou rápido. Pelo menos para Isabel ela se arrastou, os dias foram esticados ao máximo e ela já não aguentava mais de tanta ansiedade. Quando por fim o outro sábado chegou a cozinheira profissional estava pronta para encarar a mulherzinha de voz de meretriz. O lugar combinado foi uma praça onde há uma pequena fonte e um lago artificial com peixes, perfeito para selfies ou fotos para álbum de casamento. Isabel foi a primeira a chegar, estranhamente ela tremia e não era por causa da brisa fria do meio da tarde. O encontro com Cris literalmente mexeu com ela.
      Ela ocupou o banco perto das plantas ornamentais. Calça jeans, blusa social dobrada até os cotovelos e cabelos recém feitos. Sem maquiagem e semblante sereno, essa é Isabel Nascimento, mulher simples, comum, mãe, profissional, muito comprometida com a família. Assim que se acomodou no banco da praça ela olhou o interior de sua bolsa e lá estava ela, a faca. Depois que fechou a bolsa ela consultou o relógio em seu pulso – a vaca está atrasada, pensou furiosa. Quando pensou em se levantar para ir até a barraca de açaí Isabel avistou uma mulher negra, cabelos implantados, pele bem cuidada, lábios e olhos grandes, uma beleza negra peculiar, era Cris. Pendurada no ombro direito uma bolsa rosa.
     - Oi? – o hálito de Cris cheirava a chiclete de canela.
     - Oi!
     - Me desculpa a demora, só consegui sair de casa agora. Posso me sentar?
     Se tem bunda você pode se sentar, pensou Isabel.
      - Por favor. – Isabel se afastou.
      O silêncio quase sempre fala mais alto. As duas mulheres estavam lado a lado, uma negra e uma branca, uma cozinheira e uma caixa de supermercado no momento desempregada. Isabel e Cris ocupando o mesmo assento.
       - Quando ele te contou? – perguntou Cris.
       - E isso importa? – falou ainda olhando para a barraca de açaí.
       - Sei lá. – deu de ombros.
       - E você, sabia? – mexeu nas unhas.
       - Não, mas, você sabe, homem dá muita bandeira, ele me falou que não era casado, mas o jeitão dele falava outra coisa. No segundo dia ele teve que me contar.
       - E mesmo sabendo que ele era um homem casado, ainda assim você manteve o relacionamento?
       Cris demorou um pouco para responder, olhava para baixo, parecia escolher a melhor resposta. Jogou os cabelos para trás e se voltou para Isabel.
       - Me apaixonei. – disse rindo.
       - Qual a graça? – levantou uma das sobrancelhas.
       - Aí, me desculpa, quando eu fico nervosa eu costumo rir, me perdoa.
       - Ah, sim. – finalmente olhou para Cris. De perto ela é ainda mais bonita.
       - Acho que nós, mulheres precisamos...
       - Nos valorizar, você não acha? – a voz saiu mais alta do que o esperado por Isabel.
       - Epa, espera aí, vai engrossar pro meu lado?
      Elas se encararam. Cris viu em Isabel uma pessoa vivida, safa, inteligente, porém com marcas profundas da vida. Já Isabel viu uma mulher forte, guerreira mas vazia, com carências, precisando de oportunidades.
       - Não, não vou baixar o nível, não fui eu quem marcou esse encontro. Mas me diga você o que quer?
       - Bom. – pigarreou. – desde já quero que saiba que jamais em tempo algum eu imaginei que seria a outra, o meu mal foi ter me apaixonado pelo Roberto, foi mais forte do que eu.
       - Como era o sexo?
       A pergunta teve o mesmo peso de um soco no estômago, Cris se viu sem saída. Na mesma hora ela se lembrou das intermináveis noites de prazer nos motéis com o marido de Isabel. Em todas as vezes em que se encontravam o sexo acontecia logo em seguida. A caixa de supermercado engoliu seco várias vezes antes de responder.
      - Pode ser sincera. – Isabel cruzou as pernas.
      - O sexo era intenso, frequente...
      - Me diga uma coisa. – apertou os olhos. – ele te pediu para fazer aquilo?
       - Aquilo? Aquilo o que? – sorriso enviesado.
       - Ah, aquilo, lá trás.
       Cris não conseguiu controlar a gargalhada coisa que deixou Isabel bastante irritada.
        - Sim! – cobriu o rosto com as mãos.
        - E você fez? – trancou os dentes.
        - Ah, fiz sim. – olhou para Isabel. – por que?
        - Eu jamais aceitaria isso.
        Cris torceu o rosto, fez uma careta e pensou “não sabe o que perdeu”.
        - E os filhos de vocês? – não foi nada fácil para Isabel fazer essa pergunta.
        - Júnior e Camila estão bem e os de vocês?
        - Duas meninas se você não sabe, Patrícia e Kelly, elas estão quase na faculdade, um orgulho para a família.
        - Bom, o Juninho já sabe o que quer da vida, jogar futebol, agora, Camila tem me dado dor de cabeça.
        - Duas mulheres, duas famílias, como foi capaz de fazer isso comigo, com as meninas, eu fui muito ingênua mesmo. – meneava a cabeça enquanto falava. – tá explicado o distanciamento, a falta de dinheiro, a falta de tempo, ele construiu uma outra família. Canalha.
       - Faltava as coisas para vocês? – perguntou meio hesitante.
       - Demais. Houve época de eu ter que pedir socorro para minha mãe. Eu sempre achei que a falta de dinheiro se devia ao baixo salário dele, mas, não era nada disso. Ao invés dele suprir as necessidades da família Roberto estava gastando dinheiro com, com uma...
       Cris ficou de pé. Colocou as mãos na cintura e aguardou o fim da frase.
       - Vamos, fala, eu sei que você está doída pra falar. – gingou com o corpo. – ao invés dele suprir as necessidades da família, ele estava gastando dinheiro com uma negra vagabunda da bunda grande, pode falar.
      - Você sabe quantos aniversários nós deixamos de fazer? Sabe quantos planos foram por água abaixo, você tem ideia? – se levantou também.
       - Um homem só procura na rua o que não encontra dentro de casa, você pode ser essa mulher bonita, bem vestida, cheirosa, mas na hora do vamos ver a Isabel nega fogo, fica de frescura. Eu não. – bateu no peito. – eu levava meu homem ao delírio sacou.
       - Seu homem uma ova. – colocou o indicador no rosto de Cris que sentiu vontade de mordê-lo.
       Os transeuntes olhavam para as duas esperando que ambos partissem para as vias de fato, até mesmo o dono da barraca de açaí se ajeitou para assistir uma seção grátis de UFC feminino. Não aconteceu. Cris e Isabel se acalmaram e voltaram a estaca zero.

*
     O sol fraco e tímido que apareceu naquele sábado não chegou a animar. A primavera segue sem se apresentar de fato aos fãs de tempo de folhas caindo e temperaturas que deixam o tempo abafado. Isso favoreceu as duas mulheres que continuam a conversar sentadas naquele banco de concreto bruto. Isabel vez por outra se lembrava da arma branca que tinha em sua bolsa. Cris olhava para ela e não conseguia encontrar uma brecha para lançar seus argumentos. Apesar de tudo, Cris reconhece qual o seu papel nessa história, ela sabe que ela não passa da amante que direta ou indiretamente destruiu o casamento da mulher a seu lado.
      - Quantas vezes ele falou que te amava? – um nó se formou na garganta de Isabel.
      Mais um forte golpe no estômago de Cris. Na mesma hora sua expressão se tornou pesada e seus olhos marejaram. Isabel sentiu pena, mas não pode retirar o que perguntou, ela precisava saber.
       - Bom, sabe. – limpou os olhos. – não me recordo, acho que nunca.
       - Apesar de tudo, não houve uma manhã que ele não me dissesse que me amava.
       Outra vez o silêncio. Dessa vez Isabel jogou pesado. “eu te amo” palavras que para Cris são inexistentes. Ela tinha todos os motivos do mundo para ter trauma da figura masculina. Seu pai foi o pior exemplo de homem para ela. Relapso, violento, machista e beberrão, tudo que poderia haver de desprezível num homem seu pai tinha em dobro. Jorge morreu e nunca declarou que a amava.
       - O lance com Roberto, inicialmente era só sexo e curtição. Depois que engravidei as coisas mudaram muito. Ele pode não ter verbalizado isso, mas com certeza ele me amava.
      Isabel sentiu raiva. Sua vontade era de arrancar um por um dos seus implantes.
      - Só pode. – Isabel olhou ao redor e viu que a praça começara a ficar cheia de pessoas batendo fotos ou simplesmente caminhando. – ele te assumiu, assumiu os filhos de vocês. Bancou estudos, saúde, aniversários entre outras coisas.
       - Exatamente.
      Isabel percebeu que esse encontro já estava se encaminhando para um desfecho nada agradável. Ela pensou na faca dentro da bolsa. Sua raiva aos poucos estava tomando o controle da situação e isso não era legal. Foi Cris quem ligou, ela deu o primeiro passo, claro que ela tem algo a dizer além de ficar revirando o passado.
      - Por que estamos aqui, Cris?
      - Eu só queria...
      - Já sei. – limpou as lágrimas e fungou o nariz. – só queria saber como estava a otária, a babaca, a ruim de cama. Saiba de uma coisa, eu estou bem, muito bem e pro seu governo já penso em partir pra outra.
       - Hum, olha isso, a dondoca descendo do salto, dando show em praça pública. – Cris colocou as mãos nas escadeiras.
       - Vou lhe mostrar quem é dondoca. – Isabel se levantou. Colocou a mão na lateral da bolsa e sentiu a faca.
       - Vim lhe entregar isso.
       Cris tinha na mão um pedaço de papel com alguns números escritos. Isabel olhou para ela e depois para o papel.
       - O que é isso?
       - Dados de uma conta. É sua. Sorte na vida. – ajeitou a bolsa no ombro e começou a se afastar.
       - Mas...
       - Ele sabia que não iria durar muito tempo e resolveu acertar as coisas antes de morrer. Uma conta pra você e outra pra mim.
       - Calma aí, e por que ele não resolveu isso comigo? – falou ofegante.
       - Ele bem que tentou, mas você o expulsou de casa, por isso ele me procurou. Não é muito mais dá pra aliviar um pouco. – começou a andar.
        - Cristiane, espere.
       Cris parou mas não se virou.
        - Eu não sabia da existência desse dinheiro e provavelmente jamais iria saber, você poderia muito bem ficar com a outra parte e...
        Finalmente Cris se virou e seus grandes olhos castanhos estavam vermelhos. Ela olhou para Isabel e permitiu que as lágrimas descessem.
        - Cansei de ser a pivô da destruição de um lar. Cansei de ser vista como a outra, a vaca usurpadora de casamento. Minha vida, nunca, nada foi fácil, tudo o que conquistei até hoje, por trás há choro de alguém, lamento de alguém e isso cansa. Eu poderia sim ficar com a outra parte, usar quem sabe para colocar um implante melhor, roupas, passeios no shopping ou abrir um negócio, mas eu não ficaria em paz. Você não errou, Isabel. Quem errou fui eu, o Roberto, nós somos os vilões dessa história. Bom. – limpou os olhos. – seja feliz Isabel.
       - Cris, espere. – Isabel andou na direção de Cris. – você não destruiu lar nenhum. Quem fez isso foi ele, ele sim é o culpado. Você estava lá, quieta na tua, menina solteira, bonita e atraente. Roberto usurpou sua vida, o sem vergonha conseguiu ao mesmo tempo estragar nossas vidas. Veja, que atitude nobre a sua, você é honesta, íntegra, uma mulher de fibra. O dinheiro é o que menos vale nessa história. Cris. Não precisamos ser inimigas.
       De repente a praça estava lotada. Era sábado. Anoiteceu e elas não viram o tempo passar. Duas mulheres, duas fortes mulheres com algo em comum, a vontade de começar tudo do zero.
      - Sim, claro, não precisamos mesmo. – o sorriso de Cris iluminou o rosto de Isabel.
      - Vamos tomar um açaí? Adoraria provar o batido com morango.
      - Opá, falou e disse cumadre. 
      - Eu pago. – Isabel mostrou seu verdadeiro sorriso.
      - Melhor ainda.
FIM


      

quarta-feira, 15 de janeiro de 2020

Questão De Honra - Conto Policial Com Luís Souza


Questão de Honra


Prólogo


Felipe está nervoso, nervoso até demais para um jovem como ele requisitado por todos na faculdade. Finalmente, depois de dois longos anos sem namorar ele marcou com Letícia na ponte do canal as três da tarde de um sábado de muitas nuvens. Ele termina de roer os últimos pedaços de unha do polegar quando a menina desce do táxi sorrindo para ele.
- Oi! - Letícia o abraça deixando a marca do batom vermelho nos lábios de seu novo namorado.
- Oi!
Sem muitos rodeios eles se beijam ao som do motor do táxi que acelera saindo de cena. Felipe e Letícia. Com certeza esse casal será o centro das atenções na universidade onde estudam. O beijo termina mas o gosto do chiclete de morango permanece vivo na boca do ruivo.
- Quer comer alguma coisa? - Felipe pergunta?
- Quero, mas não agora, que tal ficarmos ali, olhando aqueles pássaros?
- Não sabia que gostava de animais?
- Sou admiradora número um desses seres. Então vamos descer?
- Vamos.

Para chegar a margem do canal é preciso descer por uma escada estreita feita de concreto. Como um bom cavalheiro Felipe ajuda a menina loira natural a descer os poucos degraus até o gramado. Outro beijo e mais uma vez o estudante de Física sente o doce da boca de Letícia. O clima vai esquentando e quando dão por si eles estão deitados no gramado não se importando para quem olha lá de cima da ponte. Letícia está de olhos fechados e quando os abre ela vê algo estranho no canto embaixo da ponte.
- O que é aquilo? - para de beijar.
- O que?
- Ali, bem perto da estrutura da ponte, parece um embrulho, será algum animal morto? - Letícia começa a andar na direção da estrutura.
- Espere. - estufa o peito. - eu vou na frente.
A cada passo a tensão vai aumentando. Mesmo sendo o sujeito mais descolado da faculdade, Felipe nunca deixou de lado o seu lado covarde. O medo o quase faz gritar. Se estivesse sozinho ele jamais ousaria em chegar perto daquilo. Mas Felipe precisa impressionar sua nova namorada, mostrar que ela tem um homem de verdade ao lado.
De repente um odor os atinge com força. A menina coloca as mãos na boca e Felipe cospe algumas vezes. Eles chegam perto. Perto o suficiente para ver que não se trata de um animal, mas sim um cadáver enrolado num lençol.
- Ai, meu Deus! - resmunga o futuro Físico.
- Vamos chamar a polícia, vamos, já, agora.

1

O canal principal está lotado com pessoas aglomeradas em cima da ponte. Lá embaixo no gramado a polícia isolou os acessos com fitas amarelas. O trânsito ali perto ficou complicado e o barulho das buzinas ensurdecem quem é obrigado a estar ali. O casal Felipe e Letícia acompanham o trabalho dos agentes quando uma viatura descaracterizada para e um policial negro de calça social preta e camisa polo cinza desce caminhando rapidamente. Luís Souza desce a pequena escada até o gramado e cumprimenta os colegas ali presentes.
- Boa tarde pessoal, o que temos aqui?
- Garota negra envolvida em lençóis, adolescente, treze anos aproximadamente, morta com um corte profundo no pescoço. - resume um PM.
- Quem encontrou o corpo? - Souza olha para os lados.
- Aquele casal ali. - aponta para Felipe e Letícia. - segundo a moça eles estavam perto da escada quando viram o corpo.
Nesse momento peritos deixam o local.
- E ai? - indaga Souza.
- E ai que eu tenho quase certeza que a vítima sofreu violência sexual.
- Estupro seguido de morte. - enterra as mãos nos bolsos da calça.
- Ou vice-versa, somente com exames mais aprofundados vou poder saber.
- Posso dar uma olhada antes de levá-la?
- Você quem manda.
Esse tipo de crime costuma mexer e muito com o detetive. Durante esses anos em que está na polícia, Luís já se deparou com monstruosidades capazes de fazer congelar a espinha dorsal. Vinte metros o separa do cadáver e seu coração dá saltos dentro do peito. Ele se agacha e afasta o plástico preto descobrindo o rosto infantil da pobre menina. Souza engole seco.
- Jesus!
Ele permanece ali olhando o corpo e imaginando o tamanho do sofrimento de seus pais quando souberem da notícia. Quanta dor. Como pai ele é capaz de sentir o peito rasgar com o sofrimento de perder um filho. Márcia toca em seu ombro e ele não esboça reação.
- Temos a identificação, quer ver?
- Diz! - fala com voz sumida.
- Luciana Mendonça, 13 anos, moradora de uma comunidade aqui perto, quer ir lá?
Souza se levanta com uma expressão mista. Tristeza e raiva dão as ordens no momento. Ele volta a olhar para o corpo e depois para sua assistente.
- Sim, mais antes vamos colher informações com o casal, venha comigo.
Felipe está mais nervoso que Letícia. Todo esse clima e a grande movimentação de homens uniformizado e exibindo armas deixou o jovem estudante com os nervos a flor da pele. Seu corpo estremece ao ver aproximação do melhor agente da cidade. Vendo o estado em que seu namorado se encontra, Letícia toma a frente.
- Boa tarde! - diz Souza.
- Oi!
- Podemos conversar um pouco?
A conversa não demorou muito. Márcia anotou todo o depoimento do casal em seu bloquinho. Souza ouviu atentamente cada detalhe relatado por Letícia. Lá trás o corpo é retirado do canto do canal por dois funcionários da defesa civil. Pessoas que assistiam o trabalho começam a gritar pedindo por justiça. Alguns mais exaltados foram contidos por PMs. Souza deixa o local determinado em colocar o desgraçado na cadeia o mais rápido possível. Sua assistente conduz a viatura rumo a casa dos Mendonça.

2

A comunidade onde reside os pais de Luciana não é pacificada por conta disso os detetives foram obrigados a se encontrarem com a família em outro lugar. Souza não consegue esconder sua tensão. Os Mendonça são pessoas humildes. O pai, um senhor magro e com barba por fazer é o primeiro a entrar saber da morte violenta da filha. O choro é compulsivo e foi preciso ampará-lo. Em seguida a mãe foi notificada e mais uma vez os agentes entraram em ação.
- Ai meu Deus, minha Luciana. - lamenta seu Francisco.
- O que faremos agora Chico, sem a nossa Lu? - soluça a mãe.
Souza abaixa a cabeça e toma fôlego.
- Se preferirem podemos voltar outra hora.
Dona Lúcia Mendonça de repente deixa o marido de lado e se volta para o detetive. Seus olhos vermelhos e úmidos deixa claro o sentimento que a corrói. Justiça.
- Faremos o que for necessário para que esse porco apodreça na cadeia.
- Isso mesmo. - completa Francisco. - senhor Souza, queremos esse sujeito preso, que a justiça seja feita.
- Tudo bem, vamos conversar então.

Os agentes os levaram para um lugar mais reservado. Um café bar que Souza costuma frequentar. O clima piora acada instante, como se uma rocha os esmagasse. Quatro xícaras de café foram servidas. Dona Lúcia chora o tempo inteiro e seu Francisco mal consegue tomar o café. Com toda paciência os policiais aguardam seus restabelecimentos. Realmente a dor é quase visível. Lúcia Mendonça olha para o chão do bar e começa a falar.
- O sonho dela era ser médica voluntária em nossa comunidade. Francisco e eu já havíamos acertado como iriamos pagar os estudos dela.
- Quanta nobreza por parte de alguém tão jovem. - diz Márcia emocionada.
- Nossa filha era de outro mundo. - Francisco toma o café. - certa vez ela viu um gatinho quase morto na rua. Ela o pegou, levou para casa, cuidou dele, comprou os remédios e o gato está lá, vivo, até hoje. - volta a chorar. - quem seria capaz de fazer isso com ela, quem?
Souza une os dedos e pigarreia antes de perguntar.
- Os senhores sabem se ela tinha algum namoradinho, ou admirador? Ou até mesmo algum desafeto?
- Nossa filha era um anjo. - Lúcia fecha a expressão. - quero ver quem fez isso com Luciana na cadeia.
A conversa não foi lá muito produtiva e Souza entende. Perder um filho da maneira como os Mendonça perderam é algo surreal. Márcia e ele partem para o I.M.L depois que o legista lhes mandou uma mensagem. Vendo que seu superior ainda remói os últimos acontecimentos ela preferiu tomar a direção da viatura.
- Isso chama-se prevenção, certo?
- Como queira! - volta a olha para frente.

Na parte de fora o Instituto Médico Legal da cidade é algo simplesmente futurístico. Logo na entrada há um jardim com bancos pintados de branco onde as pessoas aguardam as liberações. Lá dentro o ambiente é um só, morte. Sinceramente Souza odeia ter que vir a este lugar lúgubre. Os corredores gelados e a pintura o deixam com uma ligeira tonteira. A sala do legista fica no final e ele já os aguarda na porta.
- Vamos entrando pessoal.
O corpo nu de Luciana repousa gelado sobre a mesa de aço já costurado. Douglas, o legista não faz rodeios e já lança as terríveis novidades aos agentes.
- A menina foi estuprada, e foi mais de uma vez.
- Merda! - resmunga Luís.
- A coitada ainda era virgem, deve ter sofrido muito. - aponta para a vagina.
- Conseguiu colher algum material do assassino? - Márcia dá a volta na mesa.
- Não, sem espermas, ele pode ser um monstro mas não é burro.
Deixar aquele lugar foi como renascer para Souza. Ver o corpo da adolescente durante aqueles minutos foi torturante. A investigação ainda não começou e o nível de estresse do detetive já está nas alturas. Ele precisa urgente de uma cerveja ou algo parecido. Depois de deixar sua assistente perto de casa ele parte para seu apartamento onde algumas latas as aguarda na geladeira. O dia de amanhã será ainda pior, assim presume o detetive.

3

Se há alguma coisa no mundo que me deixa irado é a falsidade das pessoas. Elas fingem o tempo todo. Fingem que gostam de você quando na realidade querem te ver morto. Eu sei bem o que é isso, vivi e senti isso na pele, é doloroso demais. Prometi a mim mesmo que um dia me vingaria e quer saber de uma coisa? Eu ainda não me dei por satisfeito. Quero mais, muito mais. Tento ser igual aos outros, viver no mesmo ambiente, mas, não consigo ser como eles. Minha natureza me impulsiona para o assassino que há dentro de mim. Permito que ele assuma minha alma e meu espírito, dando espaço ao meu corpo de castigar a outro sem piedade. Foi assim com ela e será assim com outras.

Souza chegou primeiro que Márcia ao departamento deixando a todos atônitos com o caso Luciana. Ele exige respostas. Será uma questão de honra dá uma resposta a população que cobra as autoridades justiça. No começo da manhã uma pequena multidão criou um motim na saída da comunidade. Foi preciso a intervenção da PM no local. Os manifestantes pediam a mais empenho e os mais exaltados foram contidos com bombas de efeito moral e balas de borracha.
O agente entra em sua sala tomando seu habitual cafezinho quando sua assistente também entra trazendo novidades embaixo do braço literalmente.
- Luís, bom dia, temos imagens de Luciana antes de ser morta.
Souza engasga com a nova.
- Está esperando o que, coloque logo isso.
As imagens mostram a linda menina andando lado a lado com um homem também negro perto da ponte. Os dois parecem bastante íntimos. Conversam e para num dos bancos e permanecem ali por alguns minutos. O homem gesticula bastante enquanto que Luciana apenas o observa. Depois disso eles voltam a caminhar até saírem do campo de visão da câmera.
- Quem cedeu as imagens? - Souza pergunta.
- Perto da ponte do canal há uma pequena loja de artigos para o lar, foram ele quem nos cedeu.
- Já sabemos quem é o homem?
- Sim, Armando Mendonça, tio de Luciana.
Será que Luciana fez a estatística ficar ainda maior quanto aos assuntos de pedofilia? Estudos apontam que na maioria dos casos de abusos contra crianças ou adolescentes, o agressor pertence a família. Souza e Márcia voam para a casa dos Mendonça. Tudo isso ainda soa com estranheza para o detetive. Algo diz que esse caso ainda tem muito o que apresentar. Luís Souza torce para que ele esteja errado, só dessa vez.
Para entrar na comunidade os agentes precisaram se disfarçar. Márcia vive seus momentos de senhora Souza andando de mãos dada com seu chefe. Quem por eles passa pensa em se tratar de um casal de namorados indo visitar um parente. A casa é simples com os tijolos a mostra e janelas enferrujadas. Quem os recebe é seu Francisco com uma aparência um pouco melhor do que a primeira vez.
- O que houve? - indaga o pai de Luciana.
- Armando Mendonça, ele é seu irmão? - Luís solta a mão da parceira.
- Sim, o que tem ele? - franze a testa.
- Luciana esteve com ele ante de ser morta, podemos conversar lá dentro?
Ainda atordoado Francisco conduz os policiais até o interior da casa. Realmente a precariedade é algo assustador. A impressão é que se um vento soprar um pouco mais forte, é capaz de levar toda a casa sem dificuldade.
- Como era o relacionamento do seu irmão com sua filha, seu Francisco? - Márcia pergunta.
- Quando Armando passava aqui, Luciana era só carinho com o tio, eles se gostavam muito, nunca vi uma pontinha de maldade por parte do meu irmão.
- Onde seu irmão mora? - Souza cruza os braços.
- Aqui mesmo na favela, posso pedir que ele dê um pulo até aqui.
- Por favor.

A felicidade escolhe quem ela vai presentear, disso eu tenho certeza. Seria possível um ser humano viver o tempo todo infeliz? Eu costumo dizer que sim, é possível. Basta apenas ela canalizar essa infelicidade e desembocar em cima de alguém. E esse alguém não precisar ser seu inimigo necessariamente. No meu caso eu gosto de ver, sentir, tocar e saborear antes do golpe fatal. Isso sim é prazer.

Armando Mendonça, um sujeito humilde de olhar triste e de fala tranquila. Souza analisa o comportamento do tio de Luciana não deixando passar nada.
- Ela era minha sobrinha amada, só isso que tenho a dizer.
- Quando foi a última vez em que esteve com ela? - Márcia aguarda a resposta.
- Não lembro. - olha para o chão.
- Tem certeza? - Souza tranca os dentes.
- Desde quando eu soube do acontecido minha mente não anda nada boa, me desculpe.
Francisco olha para o irmão e depois para o detetive que não tira os olhos dele.
- O que você conversavam na ponte do canal no dia da morte dela? - o tom de voz de Souza agora é mais incisivo.
- Eu já falei, não me lembro, eu estou muito abalado com tudo isso. - chora.
- Senhor Armando. - começa Márcia. - temos imagens suas, junto com sua sobrinha no dia e local onde ela foi encontrada morta, como o senhor explica isso?
Francisco fecha o semblante para o irmão.
- Você a matou, seu desgraçado. - tenta agredir o irmão. Souza o impede.
- Calma, vamos com calma, seu Armando, o senhor terá que vir conosco.

4

A notícia da prisão preventiva do tio de Luciana causou um verdadeiro reboliço no meio da comunidade. Houve até tentativa de linchamento. Mas também houve quem o defendesse com unhas e dentes. Dona Lúcia e seu Francisco estão inconformados com a tragédia que os assolou. No caminha para o departamento Souza ainda não foi capaz de abrir a boca deixando sua assistente curiosa. Se ela o conhece bem, Luís Souza ainda não se deu por satisfeito. Em todos esses anos trabalhando juntos, ela jamais o viu tão concentrado num caso. É um baita de um profissional.
A chegada ao departamento foi tumultuada. Toda a imprensa local aguardava aos empurrões a parição do tio assassino da adolescente. Foi preciso montar um esquema forte de segurança para que a viatura entrasse. Lá dentro Armando ainda tentava se defender.
- Pelo amor de Deus, eu não matei minha sobrinha.
- Vamos apurar isso, seu Armando. - diz Souza.
A viatura entra por trás onde há uma entrada para os funcionários. Algemado e cabisbaixo, Armando é conduzido até o interior do departamento. Ao chegarem no corredor principal, dois policiais se encarregam de levá-lo até a sala de detenção. Souza e Márcia seguem para suas salas em silêncio.

Um grupo de jovens se divertem enquanto que Tiago se mantém destacado lendo seu livro de física atentamente. As risadas parecem não incomodá-lo, nem mesmo as piadinhas com seu nome. Ele apenas olha por trás dos óculos gigantes e não sorrir. Um dos colegas se aproxima.
- Grande Tiago, sempre lendo. - se senta ao lado.
- Nosso conhecimento é algo intangível, ninguém jamais poderá tirá-lo de você.
- Você sempre foi assim?
- Assim como? - fecha o livro.
- Assim, esquisitão, estudioso…
- Meu nobre amigo, esse tipo de indagação deixa claro que a busca por uma vida mais culta não faz parte de seu cotidiano, não é?
- Não, de fato não. - sorrir sem graça.
- Certo, e o que você pretende ser daqui uns dez anos? - Tiago olha fixo para o jovem colega.
- Se tudo dê certo, espero estar formado e trabalhando naquilo que me formei, eu acho.
- Você espera chegar aos píncaros somente com esse pensamento diminuto e medíocre?
- Opa, pega leve meu chapa. - se levanta.
- Está vendo, nem a verdade você aguenta ouvir, quanto mais se formar. - se levanta, pega sua mochila e vai embora. - faça-me o favor.
Tiago Carvalho, rapaz branco de aspecto nerd. Na faculdade ele é vítima de zombaria devido ao estilo de vida que leva. Seus cabelos ondulados dificilmente são cortados e suas roupas largas fora de moda também ajudam a aumentar a popularidade do esquisitão da universidade. De uma coisa ninguém duvida, Tiago é um gênio. Sua inteligência é capaz de causar admiração e ódio a todos. Sabe aquele tipo de garoto que passaria numa prova para a Nasa? Esse alguém, com certeza, é Tiago Carvalho. O que mais intriga aos colegas de universidade é justamente o passado ou a realidade de Tiago. Ele não se abre e quando é questionado ele prefere se isolar e enfiar a cara num livro. Esse é Tiago Carvalho.

5

Armando aguarda chorando a chegada de Souza a sala de interrogatório. Ele se encontra algemado na mesa de inox e a seu lado um PM reclamando da vida. Souza entra sem bater.
- Valeu Roberto. - o policial passa pelo agente sem falar nada.
- Seu Souza, acredite em mim, eu não matei minha sobrinha.
- Não. E o que fazia com ela lá na ponte do canal? - puxa a cadeira.
- Estávamos conversando sobre o futuro.
- Como assim. - se inclina. - o senhor havia dito que não se lembrava desse dia.
O acusado abaixa a cabeça.
- Sabe o que acontece com estupradores na cadeia? - se ajeita na cadeira. - se tornam mulheres. São molestados e até mortos pelos carniceiros lá dentro.
Armando volta a chorar. Dessa vez um choro mais contido.
- Se você confessar que estuprou e matou Luciana, ou seja, sua sobrinha, eu posso mover os pauzinhos e te livrar das mãos dos selvagens.
Depois de alguns segundos de silêncio, o tio da adolescente olha no olhos de Souza. Realmente foi um olhar diferente, quase tranquilizador. O detetive aguarda ansioso pelo o que virá depois disso.
- Eu amava minha sobrinha, de verdade, queria que ela se formasse em medicina. Eu tenho uma foto dela do dia em que ela passou do ensino fundamental para o médio, foi uma tarde emocionante. Meu irmão Francisco era puro orgulho. Saímos do salão e fomos comemorar comendo pizza. - os olhos voltam a ficar marejados. - eu a amava demais. - ele puxa o ar e volta a olhar para Souza. - policial, prenda quem fez isso com Luciana.

Enquanto dirige sozinho seu carro particular, Souza pensa em tudo o que ouviu de Armando e teme em saber da possibilidade de ter havido uma injustiça. Seus instintos estão lhe alertando para algo. Por isso ele decide voltar a cena do crime, sozinho.
Minutos depois ele está lá olhando para a ponte do canal e refaz o possível caminho que Luciana fez com seu assassino. O lugar está quase vazia. Depois do acontecido as pessoas vem evitando de circular por ali. Luís desce a escada e chega até onde a menina foi encontrada. Ele olha para as águas turvas e depois para a estrutura da ponte. O gramado parece um tapete e o seu verde é brilhante. O detetive tenta imaginar como é o local a noite. Souza observa os postes. Dependendo da iluminação, o lugar é um prato cheio para um bandido cometer seus crimes. Souza chega a conclusão de que Luciana foi deixada ali e isso ajuda muito.

Ninguém até hoje soube me explicar o que é o amor. Pensando nisso tirei minhas próprias conclusões; o amor é algo insuportável e destrutivo. Um amor na dose certa é bom, mas quando as coisas fogem do controle, ele é capaz de tudo, até matar. Foi o que eu fiz, a matei. Eu a amava. Eu só queria uma retribuição. Ela me forçou a isso. Foi mais forte do que eu. O pior disso tudo é que a vontade ainda não cessou. A sede permanece em seu nível máximo. Eu sei bem no que me transformei.

6

A comunidade em peso compareceu ao sepultamento de Luciana. Choro e revolta. Alguns vieram com camisas que mostram o sorriso encantador da menina que tinha um sonho. Outros erguem placas pedindo o fim da violência. A imprensa faz a cobertura colhendo depoimentos dos amigos e familiares. Souza e Márcia apenas observam.
- Agora com certeza Armando Mendonça ficará na cadeia. - diz Márcia.
- Tudo leva a crer que sim. - enterra as mãos no bolso.
- Caso encerrado? - a assistente olha para o chefe.
- Fazer o que, essas pessoas precisam de uma resposta.
Definitivamente o ambiente funesto de um cemitério mexe com o detetive. Mesmo distante do local do sepultamento ele sente o peso e dor do luto dos familiares de Luciana. Ela era tão jovem, tão cheia de energia, ela só queria fazer do mundo um lugar mais leve. Ao ver seu Francisco abraçar o caixão o nó na garganta aperta e vem em sua mente Jéferson, seu filho. Que sensação horrível. Que dor é essa que não cessa jamais. Uma ferida que não cicatriza. A perda de um filho é a mais dura punição que um ser humano pode sofrer.
O caixão com o corpo jovial de Luciana Mendonça é sepultado. Sua mãe sofre um desmaio repentino. Seu Francisco é amparado por amigos. Enquanto a urna é baixada os aplausos ecoam por todo o cemitério. Souza pigarreia. Sua assistente percebe que seu líder está sofrendo, por isso ela resolve envolvê-lo, mesmo que seja apenas um chegar mais perto. De soslaio Souza vê o carinho de Márcia e resolve retribuir. E eles ficam ali. Ela segurando no braço dele sentindo o calor do aconchego.

Dentre tantos alunos conversando e outros trocando mensagens pelo celular, um se mostra interessado na matéria lançada no quadro. Tiago Carvalho copia rapidamente todas as informações e depois sai de sala rumo a biblioteca. Ali ele passa alguns minutos procurando um livro que lhe trará as respostas do questionário. Finalmente ele encontra e volta para a sala. Aquilo não é uma universidade, é um antro de animais, assim pensa ele voltando para o seu lugar. Mesmo com o barulho ele consegue se concentrar. Aos poucos ele vai respondendo uma a uma das questões.
O professor, um sujeito obeso volta do banheiro depois de uma dor de barriga repentina e se joga em sua cadeira. Com sua voz potente e grave o mestre cobra o dever lançado no quadro.
- Muito bem, quero crer que todos já estejam com o trabalho pronto.
- Ah, Aluísio, vamos deixar esse trabalho para semana que vem, vamos? - sugere um aluno.
- Infelizmente não posso atender ao seu pedido meu caro, semana que vem já teremos a nossa avaliação, por tanto, quero o seu trabalho em minha mesa em dez minutos.
- Professor, já posso entregar o meu? - vocifera Tiago.
A sala de repente se transformou num cemitério tamanho o silêncio.
- Ótimo, Tiago, deixa seu trabalho aqui.
A genialidade de Tiago causa ao mesmo tempo raiva e admiração. A matéria é difícil, a aula do professor Aluísio é chata e mesmo assim Tiago consegue se destacar. No intervalo como é de praxe Tiago se isola do restante. Agarrado aos livros ele procura seu cantinho para pôr a matéria em dia. Enquanto ele passa mentalmente tudo o que foi falado durante a aula, um cheiro doce invade suas narinas e ao olhar lado ele contempla Luísa.
- Oi! - ela diz.
- Oi?
- Atrapalho?
- Não. Em que posso ser útil? - fecha o livro.
- Nada, gostaria apenas de expor minha admiração por você. Posso me sentar?
- Sim, claro, desculpe a falta de delicadeza.
- Tiago, em que consiste a sua inteligência?
Tiago não consegue esconder o riso.
- Veja bem minha nobre colega, não há mistério algum, existe apenas uma enorme vontade de saber e uma incrível paixão por estudar. O que falta nessa galera é justamente isso, esforço, estudo, entende?
- Uau!
Tiago fica encantado com os olhos negros noite da jovem e de repente seu coração da sinais de alerta. Duas coisas podem estar acontecendo, ou ele está se apaixonando por ela ou algo de muito errado está por vir. Ele não sabe distinguir direito. A conversa segue e Luísa joga todo o seu charme contra o jovem que aos poucos vai sedendo ao encanto.
- O que vai fazer depois da aula? - Luísa cruza as pernas.
- Bom, estava pensando em ir a livraria do shopping e…
- Posso ir com você?
- Adoraria!

A justiça deu a resposta que a população exigia. Armando Mendonça em breve será levado para a penitenciaria e cumprirá sua pena por estupro seguido de morte de sua própria sobrinha. Caso encerrado. Souza volta para seu apartamento a noite e tudo o que ocupa sua mente é o fato de algumas peças não estarem se encaixando. Depois do banho ele se joga no sofá segurando uma lata de cerveja. Toma alguns goles e depois pega seu celular e liga para seu filho que mora no interior do estado.
- Oi filho, como vão as coisas?
- Oi pai, tudo em ordem, você vem passar o final de semana com a gente?
- Filho, isso vai depender de sua mãe, você sabe muito bem o que ela pensa disso tudo.
- Poxa pai, queria tanto que o senhor voltasse a viver com a gente.
- Esse também e o meu desejo filho, mas infelizmente as coisas nem sempre são do jeito que a gente quer.
- Tudo bem, pai, o senhor ainda assim é o melhor.
- Você não sabe como é bom ouvir isso. Boa noite filhão.
- Valeu pai!
A conversa com o filho parece que deu um novo gás a Souza. Ele se levanta e vai até a janela. A cidade ainda se prepara para dormir. Ele disca o número de Márcia que atente no primeiro toque.
- Oi!
- Armando Mendonça é inocente.

7

Sentir o corpo dela estremecendo a cada toque meu foi algo esplendoroso. Seu suor, sua voz já rouca de tanto pedir por ajuda, foi demais. Naquela hora os sentimentos mais puros desse planete se foram, tudo o que eu queria era me deleitar.

Souza estava de folga e mesmo assim fez questão de comparecer ao departamento junto com Márcia. Na sala do detetive os dois resolvem reabrir o caso Luciana.
- Temos que conseguir uma nova conversa com Armando, tenho certeza de que ele está escondendo algo. - Souza mexe algumas pastas.
- Luís, já era, o cara será levando para a penitenciaria.
- Pense comigo, Luciana já estava morta quando foi deixada no canal. Precisamos rever as gravações, depois investigarmos a fundo as amizades de Luciana e ai sim, Armando. Faremos tudo isso hoje. Traga as fitas de vídeo.

Com mais calma a dupla de investigadores observam as imagens da ponte do canal. Souza e Márcia, lado a lado diante do monitor olhando o vai e vem das pessoas durante alguns minutos até a aparição de Luciana e seu tio. Armando gesticula bastante. Luciana apenas permanece de cabeça baixa. O vestido florido da menina de apenas 13 anos lhe dão contornos de uma mulher já feita. Realmente uma linda negra. Eles param perto da pequena grade da escada quando Luciana resolve falar algo.
- Consegue ler os lábios dela? - pergunta Souza.
- Não dá, a distância não permite.
Armando faz um gesto. Ele coloca a mão nas costas da sobrinha que imediatamente se afasta. Isso deixa o detetive arrepiado. O que de fato estaria rolando naquela conversa? Por alguns segundo Luís fecha os olhos. E se eu estiver errado? Se realmente o tio estuprou a sobrinha e depois a matou?
- Já chega, Márcia, vamos conhecer os amigos de Luciana.

Ir a faculdade deixou de ser algo religioso para ser prazeroso. Tiago pela primeira vez se arrumou de fato. Penteou os cabelos e se perfumou. Na entrada ele busca pela menina branca de cabelos compridos e negros. Ele caminha com sua capanga marrom pendurada no ombro passando pelo pátio. Luísa conversa com outra menina perto do chafariz.
- Oi, posso falar com você?
A menina não move um músculo para responder.
- Agora não dá.
- Eu gostaria de saber se leu o livreto que lhe emprestei. - sorrir.
- Ah, sim. - abre a mochila e retira o livro enrolado. - toma, não tive tempo de lê-lo.
- É assim que você trata as coisas dos outros? - pega o livro.
- Tiago, não vê que estou conversando agora?
Foi como um tiro a queima roupa. O desprezo de Luísa destruiu o coração do CDF em milhões de pedaços. Aos poucos ele vai se afastando e desenrolando o livreto. Realmente ela mal tocou no livro. Mais um fora para a coleção. Quase se arrastando, Tiago chega ao jardim com um nó na garganta. Ele se deita no gramado e faz de sua capanga seu travesseiro. Ali ele contempla o céu com algumas nuvens imaginando uma longa e gostosa noite de amor com ela, Luísa, a menina de olhos como a noite. Vez por outra ele se culpa por ser tao ingênuo, como pode se apaixonar assim, claro que ela estava tirando uma com a sua cara. Fez papel de idiota. Ele não se conforma. O som estridente do sinal informando o início do primeiro tempo soa. Pesadamente ele se levanta arrastando sua capanga pelo gramado.

Foi difícil mais em fim a menina magra, branca de cabelos trancados topou conversar com Souza e Márcia numa praça perto da comunidade. Laura era amiga de Luciana e não consegue imaginar que tal coisa aconteceu.
- Você conhecia a família dela? - Souza pergunta.
- Um pouco. - mexe nos cabelos.
- Esse “pouco” que você diz, pode nos dizer algo? - Márcia olha para a menina.
- A mãe, o pai e até o tio, Armando, não acredito que tenha sido ele.
- E por que? - Souza entrelaça os dedos.
- Porque ele a amava. - uma lágrima finalmente desce.
- Laura, sinto que você tem mais a dizer, é verdade? - Luís olha para sua assistente.
- Nós eramos a dupla LL, tínhamos planos. - chora soluçando.
O clima ficou insuportável, principalmente para Souza. Ao ver Laura desmanchando ele quase desaba também.
- Me diga uma coisa, Laura, Luciana tinha algum namorado?
O choro cessa e olhar fica perdido. Laura limpa as lágrimas e depois olha para o detetive. Hesitante ela demora a responder, mas Souza já sabe a resposta.
- Ela andava envolvida com um carinha, sim.
- Era de conhecimento dos pais dela? - Márcia puxa o bloco.
- Não! - balança a cabeça ao responder
- E por que? - pergunta calmamente Souza.
- O cara era mais velho.
- Muito mais velho? - Márcia aguarda para anotar.
- Não muito, mas que ele era maior de idade, isso era.
- Sabe o nome dele? - Souza arqueia as sobrancelhas.

8

A vida é realmente uma caixinha de surpresas. Um dia você acha que pode tocar no céu, já no outro você se acha um lixo. E tudo isso devido a sua incrível capacidade de se deixar levar por um sentimento passageiro, a paixão. Foi assim da primeira vez, eu me apaixonei por ela, porém não tive o sentimento retribuído. Por isso, tudo em minha droga de vida termina assim, todos os que amo se vão.

Sua respiração é semelhante à de um animal enfurecido. Tiago não sabe o por que de está andando tão pela calçada. Seu rosto ruborizado demostra seu total descontrole emocional. Um homem apaixonado age dessa forma, sem freio, sem barreira. Ele passa por sua lanchonete predileta sem tomar conhecimento da nova promoção do sanduíche. Seu olhar é penetrante. Tudo o que escuta ao redor não passa de burburinhos. As pessoas, os carros, as árvores e tudo mais se transformam em borrões fantasmagóricos. Cego e surdo até uma voz firme de comando penetra fundo e ele para.
- Tiago Carvalho, podemos bater um papinho? - Souza surge a seu lado.
Sem saber muito o que fazer e o que dizer, Tiago olha e vê Luísa se distanciando. Agora ele sabe o por que de estar correndo. Ele volta a olhar o sujeito negro com um distintivo da polícia pendurado no pescoço e depois para a mulher gordinha bonita bem aseu lado.
- Qual o assunto?
- Luciana Mendonça. - diz Márcia.
- Pode ser outra hora, eu estou…
- Nada disso. - Souza se coloca a frente dele. - quero conversar com você agora mesmo.

Armando Mendonça é deixado numa cela separada de outros detentos. O lugar é um esgoto. Não há circulação de ar, é abafado e úmido. Encolhido no canto, ele escuta o barulho de seus futuros colegas. É possível ouvir gritos de dor e de desespero. Ser humano algum merece viver nessas condições. Dois guardas da largura de armários passam correndo segurando cassetetes. Em seguida urros de dor ecoam. Armando se levanta e se agarra a grade. Os dois agentes espancam um homem até quase matar. Depois arrastam seu corpo pelo corredor até a enfermaria. Armando sente seu corpo formigar ele volta a se agachar no canto da cela.

- Gostaria muito em poder ajudar meu caro policial, mas não vejo como. - Tiago se ajeita na cadeira da lanchonete.
- Simples, me diga qual era o seu relacionamento com Luciana Mendonça.
O jovem universitário faz sinal de espera para os detetives.
- Luciana Mendonça? - aperta os olhos.
- Isso, negra, bonita, elegante, morava numa comunidade. - Souza se mostra impaciente.
- Esse nome não me é estranho.
A paciência de Márcia também está por um fio.
- Vou pedir algo para beber, quem sabe refresca sua memória.
- Se for possível, gostaria de um chá, por favor. - ao ver a expressão do investigador o rapaz se intimida. - adoro o chá daqui, só isso.
- Sinto que você quer me enrolar, ou eu estou errado senhor Tiago?
- Droga! - abaixa a cabeça. - bom, eu realmente tive um pequeno caso com essa pessoa a qual o senhor se refere.
- E ai?
- E ai que acabou, faz algum tempo que não a vejo.
- Você sabia que ela foi morta? - Souza se inclina para próximo de Tiago.
- O que? - franze a testa. - como assim?
- Morta, vitima de estupro, foi jogada como um animal embaixo da ponte do canal, você não lê jornais ou assiste televisão?
- Sinceramente, não, não, prefiro livros. - olha para o lado da porta de saída. - meu Deus, que mundo violento, por isso o sumiço dela.
- Tiago, você teve algo a mais com ela?
Márcia chega com dois sucos e uma xícara de chá.
- O senhor sabe né, sempre rolava alguma coisa, uma mãozinha aqui, outra ali…
- O que o detetive quer dizer é se vocês transavam. - Márcia crava seus olhos negros no garoto.
- Ela nunca permitiu. Sempre foi o meu desejo, mas ela jamais permitiu. - engole o nó formado na garganta.
- Quanto tempo vocês ficaram juntos? - Souza segura o copo de suco de caju.
- O tempo com Luciana passava rápido demais, sinceramente eu não parei para contar.
- Não lhe incomodava o fato dela ser mais nova que você? - Márcia parece aborrecida.
- Não. - expira. - fato era, nós nos amávamos, e isso bastava. - ele olha para ambos os agentes. - se me dão licença, toda essa conversa me fez mal, já posso ir?
- Você não está detido, Tiago. - Márcia aponta o caminho da saída.
- Obrigado!
Assim que Tiago sumiu de vista os detetives se entre olham.
- O que achou? - Souza cruza os braços.
- Temos que ficar de olho nele.

9

Droga de vida. As vezes, pra não dizer sempre, penso em dar fim a isso tudo. Mas, logo em seguida algo me impulsiona e eu sigo adiante. Por que fui fazer isso? Em que tipo de ser humano me tornei? Um monstro impiedoso, um demônio sem noção? O jeito agora é dissimular para me livrar desse inferno.

Armando é acordado com um balde de água gelada. O sonho foi interrompido de forma abrupta e seu coração vem a boca. Dois guardas dão gargalhadas devido ao seu estado.
- Estava sonhando com amenina que você estuprou? - diz o mais alto.
- O que? - indaga Armando atordoado.
- Ficamos sabendo que vossa majestade estuprou e matou a própria sobrinha. - bate com o cassetete na palma da mão.
- Eu não fiz isso. - tenta se levantar.
- Seu lugar é junto deles. - o mais baixo aponta para o corredor.
- Pelo amor de Deus, eu não fiz nada, sou inocente.
- Todos eles dizem a mesma coisa, sabia? - o mais alto se inclina. É possível sentir seu hálito podre da manhã.
- O que vão fazer comigo?
- Lhe dar as boas vindas. - aplica um forte soco. - estuprador.
Armando é espancada e insultado ao mesmo tempo por dois ursos usando cassetetes. Seus berros ecoam naquela cela pequena e abafada. Seu sangue respinga no chão enquanto as risadas dão o tom da seção de espancamento. Dez minutos. Dez longos minutos de surra dura até o franzino homem perder a consciência. Os algozes param de descer a madeira somente quando o corpo de Armando se torna flácido.
- Legal, vamos deixá-lo ai. - diz o mais baixo ofegante e salpicado de sangue.

Tiago passou a noite em claro. Seus olhos vermelhos mostram o quanto a noite o castigou. Sua mente foi totalmente tomada por uma força chamada Luísa. Sua paixão por ela fez o universitário esquecer o que houve no passado com Luciana. Ele se levanta, coloca os óculos e abre a gaveta do criado-mudo. De dentro do móvel ele retira uma foto de Luciana. Uma foto não muito boa, mas que contém o sorriso iluminado da menina. Ele interrompe o sentimento voltando a depositar a foto na gaveta. Já chega dessas frescuras, hora de encontrar outro amor.
Dificilmente Tiago anda de bicicleta, raras foram as vezes em que ele passeou com o veículo de duas rodas. Hoje o momento pede urgência. Ele sabe mais ou menos onde sua amada reside. Mesmo morrendo de medo dos carros que buzinam freneticamente no trânsito pesado, ele pedala incansavelmente. Sobe rua, desce rua, dobra esquina, seque em frente e pronto. Finalmente a rua onde Luísa mora. Uma região de classe média com a maioria das casas possuindo mais de um andar. Olhando com mais cuidado é possível ver câmeras de segurança em pontos estratégicos. Tiago tem certeza, ela mora nessa rua, mas em qual casa? Ele acha melhor esperar.

Armando acorda e tudo o que sente é dor. Sua cabeça estala e sua visão está turva. Um filete de sangue escorre de sua testa. Molhado, humilhado e sem forças ele mal consegue se arrastar. Por todo o seu corpo há hematomas e quando tosse dói, dói muito. Qualquer barulho é motivo para ele se assuste. Armando olha ao redor tentando encontrar algo que possa cessar sua dor. Não a dor física. Sua alma grita por socorro. Ele vive um conflito interno intenso o qual o lado da morte diz que ele não conseguirá conviver com essa dor. Armando volta a chorar até soluçar. Ele já está morto.

Quem espera sempre alcança” essa ditado popular pela primeira vez fez sentido para Tiago. Depois de alguns minutos aguardando, lá está Luísa, deslumbrante como sempre, linda, capaz de fazer um homem como Tiago se arrastar a seus pés. Logo o coração se acelera e ele tem palpitações. As dúvidas começam a surgir de imediato. Qual será a reação dela? Por que as mulheres são tão complicadas? De uma coisa Tiago tem certeza, o “não” ele já tem. O que custa se aproximar e falar tudo o que sente? Ele toma fôlego e vai.
- Oi, Luísa?
- Ah, oi, Tiago. - continua andando.
- Posso falar com você um minuto?
- Tem que ser agora? Estou atrasada para o grupo de estudo.
- Juro que serei rápido. - une as mãos.
- Ótimo! - para.
- Estou gostando de você.
A menina olha nos olhos de Tiago prendendo o riso.
- Fala sério, Tiago.
- Eu nunca falei tão sério em toda minha vida, estou apaixonado por você.
- Esqueça, sem chance, você é muto esquisito. - sai andando.
- E o que foi aquilo lá na faculdade? - aperta os olhos.
- Eu estava tirando uma com a sua cara, só isso. - aperta o passo.
- Você me feriu, sabia. - engole seco. - me feriu.
Luísa não olha para trás deixando Tiago despedaçado. Puxaram seu tapete, tiraram seu chão. Ele quase perde o equilíbrio ao tentar andar. Ele monta na bicicleta chorando quando de repente seu pranto cessa.
- Chorar é para os fracos. - diz para ele mesmo.
Souza e Márcia passam de carro na rua principal ainda em tempo de vê-lo pedalando como um louco.
- Onde será que ele vai? - Souza no banco do carona.
- Quem seria aquela menina?
- Uma namorada nova, sei lá.
- Você acha mesmo que foi ele? - Márcia não olha para seu chefe.
- Por enquanto estamos tirando a história a limpo. - Luís olha para o GPS. - vamos atrás dele.

A dor física não se compara a dor da alma. Ela castiga mesmo, sem piedade. Meu Deus, por que dói tanto? O senhor não me responde por que? Estou a ponto de cometer outra loucura e até agora nada do Senhor me responder. Muito bem. Quem cala consente. Vamos enfrente.

10

Gemendo e tremendo, Armando consegue rasgar sua camisa. As lágrimas ensopam seu rosto magro e sofrido. Ele consegue fazer um laço e passá-lo no pescoço. Hora de pôr fim a sua existência. Uma existência nada agradável. Ainda jovem ele foi espancado por engano. Foi confundido com um marginal. Os dias em que ficou internado foram os piores. Ele questionou sua fé em Deus e sua existência. Afinal, qual foi a intensão de Deus em colocá-lo na terra? Para sofrer?
Ele olha e vê a ponta de um cano. Um bom lugar para se enforcar. Judas, é assim como ele se sente, um Judas. O apóstolo traiu a Jesus e ele está aponto de trair a vida. Fim de história. Armando se pendura. Sua mão segura firme o cano e a camisa enrolada no pescoço aguarda o momento em que irá estrangulá-lo. O tio de Luciana solta o cano e seu corpo cai. Fim da linha.

Suas pernas estão doendo, mas a sua raiva é o combustível certo para que ele continue pedalando e cortando os carros. Enquanto segue pela avenida Tiago se recorda das recomendações de sua mãe que sempre dizia para ele andar na calçada. Hoje em dia tudo isso ficou para trás. Um homem com seus sentimentos feridos se transforma num animal sem domínio de existência. Entre soluços e até alguns gritos, o universitário pedala e pedala ignorando a dor nos joelhos. Tiago sai da avenida e ganha uma rua secundária pouco movimentada. Luísa vem vindo segurando sua bolsa. Ele desce da bicicleta e caminha até um monte de lixo. Com os pés ele revira as sacolas até encontrar o que tanto procurava. Uma garrafa. Sem hesitar ele a quebra no meio fio e aguarda a chegada da menina.
- Como chegou tão rápido? - Luísa se espanta.
- Digamos que sou dotado de super poderes.
- Lá vem ele com esse papo, com licença. - começa a andar.
- Você falou sério?
- Sim!
- Essa é a sua última palavra? - uma nuvem negra deixa o rosto de Tiago transtornado.
- Sim!
Engolindo seco Tiago revela a garrafa de vodca quebrada.
- Vem comigo, sem gritar e sem fazer gracinha.
- Ficou louco? - gesticula.
- Sim, muito louco, agora suba na bike, agora.

Luísa está pálida e treme bastante. Tiago pedala e sabe muito onde está ainda. Seus grunhidos de ódios são baixas, porém a menina consegue ouvi-los.
- Para onde está me levando? - chora.
- Não interessa, cale a boca.
Ele segue por uma rua de paralelepípedo e depois por outra sem asfalto. Ele alcança outro bairro chegando a uma região de mata.
- Desça.
- Onde vamos? - pergunta gemendo.
- Anda! - vocifera.
Luísa vai na frente. Atrás ele admira o belo corpo da princesa. Ele se pega salivando de desejo por ela. Seria ele um louco ou apenas um sujeito com seus sentimentos feridos? O caminho fica cada vez mais difícil devido as pedras e poeira. Tiago olha ao redor e vê um monte de árvores.
- Será ali! - aponta com a garrafa quebrada.
- Será ali o que?
- Siga em frente.

Souza desce do carro furioso olhando para todos os lados. Márcia pede que ele entre e se acalme. Muito contrariado ele volta para o interior do veículo.
- Como pode, uma bicicleta ser mais rápida do que um carro.
- Está dizendo que a culpa foi minha?
- Esquece, vamos por essa aqui. - aponta para a principal.

O lugar ao qual Tiago se refere é cheio de mato que dificulta a visibilidade de quem olha de longe, lugar perfeito para quem deseja cometer qualquer tipo de atrocidade. Luísa continua gemendo e para ao lado de uma árvore.
- Podemos conversar?
- Lógico, estou sempre aberto a diálogos. - muda a expressão.
- Preciso me desculpar com você, não era minha intensão te ferir. - chora.
- Você não foi a primeira, Luísa, e, com certeza, não será a última.
- Eu, eu, posso te ajudar a contornar essa situação, vamos sair dela juntos.
Tiago olha nos olhos de Luísa e solta uma gargalhada assustadora.
- Como assim, agora você quer me comprar, é?
- Não, não é isso, eu só quero…
- Sim, já sei o que você quer, mas agora não importa. - passa a língua nos lábios. - tire a roupa e venha aqui.
A menina aperta os olhos.
- O que?
- Isso mesmo, quero fazer sexo com você e não me obrigue a usar isso. - ergue a garrafa quebrada.
- Não! - se afasta.
- Como assim, não?
- Não farei isso, prefiro morrer. - grita.
Tiago sente o sangue ferver em suas veias. Ele anda até perto de Luísa.
- Sua vagabunda! - a esbofeteia. - tire a roupa, se não cravo isso em seu pescoço, anda logo.

O carro dirigido por Márcia chega a uma rua de asfalto precário. O detetive desce e saca sua arma.
- Aonde vai? - Márcia olha para o lado.
- Aquele moleque não deve ter ido longe, vou seguir por essa rua, a pé.
- Quais as recomendações?
- Você fique aqui e me chame pelo rádio caso aconteça qualquer coisa.
Souza segue rua acima. O lugar é feio. As casas são humildes ainda com a alvenaria exposta. As crianças brincam perto de uma vala que é puro esgoto a céu aberto. Um descaso total e vergonhoso. Logo na parte de cima há uma saída onde dará para a mata. Luís anda mais um pouco e topa com uma cerca caindo aos pedaços. Ele a pula e sua calça se enrosca no arame farpado. Um palavrão e nada mais. Pronto. Ele consegue se livrar da armadilha.

11

Aos pouco a luz branca vai invadindo seus olhos e ele é obrigado a fechá-los novamente. Onde estou? Outra vez ele abre os olhos e logo a dor toma conta de seu corpo por inteiro. Onde estou? De repente uma mulher vestida de branco e com estetoscópio pendurado no pescoço aparece.
- Oi?
- Onde estou?
- Enfermaria da penitenciária. Você sabe seu nome?
- Armando!
- Senhor Armando fique calmo, daqui a pouco alguém vem falar com o senhor.
- O que aconteceu comigo? - pergunta tentando se erguer.
- Fique deitado. - a enfermeira é incisiva.
Assim que a mulher se afasta, Armando força a sua mente a lembrá-lo do que houve naquela cela úmida e abafada. Alguns minutos depois ele molha o travesseiro com suas lágrimas. Tudo é muito injusto. Armando olha ao seu redor e tudo o que vê são grades com suas pinturas descascadas ou desbotadas. Será ali que ele passará os últimos dias de sua vida. Um guarda e um sujeito de jaleco branco entram na enfermaria.
- É esse o paciente? - pergunta o de jaleco.
- Sim senhor. - responde o guarda mal encarado.
- Nos deixe a sós.

Cansada, humilhada e machucada, tanto por dentro como por fora. Luísa desistiu de lutar e tudo o que resta é sentir a boca quente e úmida de Tiago lambendo seu pescoço. Ali, deitada naquele chão imundo com um monstro em cima dela, a universitária sente sua dignidade ir por água a baixo. Um pesadelo para qualquer mulher. Enquanto tem sua calça aberta violentamente, Luísa chora bastante a ponto de salivar.
- Não faça isso, Tiago, por favor. - geme.
Ele finge não escutar e rasga sua peça íntima tocando em sua parte genital. Num ato de puro ímpeto ela fecha as pernas enlouquecendo seu violador.
- Abra as pernas, vadia.
- Não!
A mão de Tiago cresce diante de seu rosto e o acerta em cheio quase quebrando o nariz. Ela ainda resiste, mas um outro forte golpe a faz perder os sentidos. Luísa mergulha na escuridão deixando seu corpo nas mãos de um monstro pavoroso.
De repente ela abre os olhos. Tiago não está mais ali a violentando. Ela está suja. Sua parte genital está pegajosa. Logo uma onda de pavor cresce dentro dela. “Só falta o desgraçado ter me engravidado”. Num salto ela se levanta. Procura por Tiago e sua bicicleta. Não os vê. Hora de fugir, procurar ajuda, tomar um banho agora é sua prioridade. Luísa caminha sem saber para onde ir até que ela escuta passos. Será Tiago? Ela para e espera. Os passos vão se aproximando e a vontade de gritar só aumenta. Mil coisas passam por sua cabeça. Será um animal? Nada pode ser pior que Tiago. Os barulhos dos passos estão a segundos dela. Luísa fecha os olhos e abre a boca para gritar quando uma voz grave invade seus ouvidos.
- Menina, o que faz aqui?
Ela abre os olhos e contempla um homem negro, meio calvo e com um distintivo no pescoço.
- Me ajude!
- Me diga o que aconteceu com você! - Souza se espanta.
- Acho que fui estuprada. - gagueja.
- O que?
- Foi o Tiago.
- Merda! - Souza saca o rádio e entra em contato com Márcia. - ele ágil outra vez.

Armando está sentado na cama da enfermaria com um olhar perdido enquanto que o psicólogo aguarda uma reação de seu paciente. Mais uma vez o doutor tenta extrair algo do condenado.
- Então, senhor Armando, por que quis colocar fim em sua vida?
- Sou inocente.
- Isso o senhor já falou. Tenho certeza de que há algo a mais lhe torturando.
- Luciana! - sussurra.
- O que? - levanta a sobrancelha.
- Eu não a matei, nós estávamos conversando, apenas conversando, o meu sentimento por ela excedia o amor de tio e sobrinha, eu, eu admito.
- O senhor estava apaixonado por sua sobrinha, é isso? - anota tudo numa prancheta.
- Sim! - a lágrima escorre. - e quando ela me disse que estava se relacionando com um rapaz mais velho, eu perdi o chão, o ciúme veio como fogo em palha seca, me consumiu. Foi justamente naquele lugar onde ela foi encontrada morta.
- Por que não disse isso para a polícia?
- Vergonha, muita vergonha. Imagine, eu, um velho magro feioso gostando de uma menina de treze anos e ainda mais, minha sobrinha.
- Creio que seja um pouco tarde para entrar com recurso, mas de qualquer forma, fica aqui registrada a nossa conversa.

Ao tentar guiar a bicicleta por uma estrada coberta de pedras e barro, Tiago perde o equilíbrio e se esborracha machucando os joelhos. O tombo foi feio. O universitário se levanta amaldiçoando Deus e o mundo. Verifica se o seu veículo sofreu alguma avaria e depois volta a pedalar. Antes disso ele escuta o barulho de um motor.
- O que é isso?
Fazendo um giro com o corpo ele consegue ver ao longo da estrada um carro vindo em alta velocidade. Assustado ele se esforça para pedalar. O sangue dos ferimentos escorrem chegando ao tênis. Aos pouco sua respiração vai ficando mais alta. Tiago infarta ao ver que precisa encarar mais uma subida.
- Vamos, vamos, suba. - olha para trás.
Dentro do carro Souza transpira de raiva ao ver o criminoso subindo e quase sumindo de sua vista. Ele pisa fundo deixando poeira para trás. O detetive sente que o caso pode ter um final trágico. Ele respira fundo. Olha para sua arma e segue em frente. Os pneus fazem um barulho estrondoso deixando Tiago apavorado.
- Tiago Carvalho, pare, você está preso. - fala ao megafone.
O rapaz não obedece e segue subindo o morro. Luís Souza acelera o carro e tenta mais uma vez fazer contato.
- Tiago, não complique mais as coisas, vamos conversar.
Tiago alcança o cume e percebe que se enfiou numa rua sem saída e tudo o que resta é um abismo. Ele para e solta a bicicleta.
- Ok, você venceu, estou aqui.
O motor do carro é desligado. Souza desce segurando sua pistola e olhando para o garoto.
- Podemos conversar? - pergunta Souza.
- Seja rápido. - se aproxima da beirada.
- Não faça besteira, você jovem ainda, eu posso te ajudar.
- Claro que não, ninguém pode me ajudar.
- Tiago,vou abaixar minha arma, certo. - Luís deixa a pistola no chão rochoso.
- Muito engraçado vocês agentes da lei, nos perseguem o tempo todo e quando finalmente nos alcançam, querem conversar como se fossemos melhores amigos, quer que eu ligue e peça uma pizza?
- Não quero que você faça besteira.
- Essa vida é mesmo uma droga. No início você descobre que sua mãe forçou um aborto e que seu pai era um bêbado e drogado. Você é jogado num esgoto junto com outros lixo como você. Cresci e resolvi tomar um rumo diferente de minhas origens. Até que conheci a felicidade, Luciana era minha única felicidade e, no entanto, ela me decepcionou por isso pagou com a própria vida. Conheci Luísa e ela puxou meu tapete, me fez acreditar que o amor dela por mim era verdadeiro. Não, ela apenas me usara como chacota. Eu deveria ter acabado com ela. Jurei para mim mesmo que ninguém mais me faria de idiota.
- Venha, vamos cuidar desses ferimentos. - Souza estica o braço.
- Você não ouviu uma palavra minha não é.
Rápido, inesperado. Tiago pula deixando o agente com o coração na mão. Ele ainda tenta correr mais o jovem some de sua vista rumo a morte. O barulho de seu corpo se chocando com o chão é surdo e assustador. Souza olha sacando do bolso seu celular.
- Uma ambulância, por favor.

12

Márcia atende Luísa na saída da rua quando a ambulância passa. Assustada a universitária comenta.
- Meu Deus, o que houve?
Logo atrás Souza para o carro e desce.
- Fim da linha para ele? - Márcia lamenta.
- Não! - abaixa a cabeça.
- Ele pulou do morro. - diz Luísa.
- Sim, mas não morreu, felizmente, quebrou as duas pernas e alguns dentes, teve arranhões, mas vai sobreviver.
- Bom, e agora? - Luísa se apoia no carro.
- Primeira coisa a se fazer é tirar o inocente da cadeia. - Luís olha para Márcia.

Com a morte da filha o tempo parece ter parado. Seu Francisco ainda não consegue dormir sem o efeito do remédio e dona Lúcia passou a ser uma mulher calada e indiferente aos outros problemas. A casa ficou grande demais sem as risadas e as músicas da adolescente. No quadro a princesinha exibe seu brilho inocente e encantador. Dói demais contemplar aquele passado estampado no quadro. Francisco se corrói por dentro em saber que o assassino de sua filha é seu irmão. Como ele pode fazer isso? A que ponto chegamos. Na cozinha Lúcia termina de passar o café e o coloca no copo para seu marido.
- Francisco, vem tomar café.
Em silêncio os dois tomam da bebida de sabor peculiar quando um ronco de motor interrompe o marasmo. Lúcia não faz questão de saber do que se trata, prefere continuar tomando seu café da tarde em paz. Alguém bate palma no portão e sem muita vontade seu Francisco se levanta e olha pela janela.
- É aquele detetive.
- O seu Souza? - Lúcia se ergue.
- Ele mesmo.
Com as pernas trêmulas e o coração palpitando os dois vão de encontro a sou que ajuda Armando a sair de dentro da viatura.
- O que ele faz fora da cadeia? - Lúcia se abraça ao marido.
- Senhor e senhora, cometemos uma injustiça e temos que repará-la.
Tudo foi esclarecido. Demorou um pouco mais Armando Mendonça está outra vez integrado a família. O abraço dos irmãos deixou Luís Souza mexido. Antes de ir ele ainda se junta para tomar do café fresco. O brinde proposto por Souza foi, ao um inocente livre. Todos concordam.

Com as duas pernas enfaixadas e curativos no rosto e braços, Tiago fita o teto branco gelo do hospital e se esforça para balbuciar algumas palavras, ele não consegue restando apenas seus pensamentos.
Droga de vida. Nem para tirá-la eu presto!