terça-feira, 12 de fevereiro de 2019

Território Da Morte 2





É bastante complicado voltar a esse lugar. Pra falar a verdade Wander gostaria de nunca mais ter que passar por ali. A estrada, o ar pesado e quente, o mesmo cheiro, o mesmo ponto onde ele encontrou seu pai morto com três tiros no rosto, marca registrada de seu assassino. Djalma Brando, o maldito desgraçado que colocou um ponto final na vitoriosa trajetória de seu pai, xerife Francisco Neves.
      Hoje ele tem a oportunidade de se vingar, honrar o nome dos Neves. Se tudo der certo Djalma cai hoje e da mesma forma. Ele tem consciência de que ele deveria seguir o procedimento. O certo era Wander dar voz de prisão a Brando e levá-lo algemado para Crateras. Isso lhe renderia status e com certeza sua fama como o xerife que enjaulou o pior matador da região chegaria além das montanhas.
       Wander Neves desce do cavalo. A estrada empoeirada é o tempo todo acalentada pelo vento morno. Ele caminha até onde seu pai foi deixado e procura por manchas. Claro que elas não estão mais lá. Já fazem 2 anos. Dois malditos anos. De repente um barulho o deixa em alerta. O revólver é sacado do coldre e apontado na direção do barulho.
      - Não precisa se esconder, sei que está ai, saia.
      De trás de algumas árvores de médio porte Djalma aparece com sua arma na cintura. Wander sente sua carne se incendiar e a vontade de puxar o gatilho se torna maior que ele.
       - Djalma Brando, rasteiro feito uma serpente.
       - Então você é Wander Neves, lerdo feito uma ovelha.
       O insulto só ajudou a tornar o incêndio ainda mais devastador. Seu olhar para o matador é o retrato de um homem consumido pelo ódio. Wander sabe do potencial de seu oponente. Se Djalma quisesse já o teria matado.
     - Xerife, sei o que quer, mas digo logo, vim em paz.
      - Você leu o bilhete? – segue mirando no rosto do bandido.
      - Li sim, o senhor mandou eu enfiar a bandeira branca no rabo, porém deixa eu lhe dizer algo. Sou um novo homem. Tudo o que quero é apagar o meu passado de morte. Eu vi quando o senhor chegou, eu poderia executá-lo se eu quisesse. Veja, estou com minha arma no coldre.
       Atirar num homem desarmado é o ápice da covardia. Seu pai não ficaria satisfeito com essa vingança. Sujeito homem encara frente a frente, aceita o duelo.
       - Pegue sua arma Djalma, vamos duelar. – diz entre os dentes.
       - Eu não vou duelar com o senhor, deixe-me ir.
       Hesitante Wander volta com o revólver para o coldre. Caminha com cuidado até próximo do matador. Agora eles estão a três metrôs um do outro. Um momento de silêncio perturbador entre os desafetos.
       - Xerife Juarez Marques. – Diz Wander.
       - Sim, o que tem ele?
       - Você o matou e mais uma vez ficou impune.

Antes

Basílio Andrade já está em seu quinto drinque quando Lauro Lima adentra ao salão de Josué. Ambos são ricos, poderosos donos de terras. Os dois já passaram dos  cinquenta e a saúde anda variando, mesmo assim teimam em encher o organismo com álcool e tabaco.
       Lauro Lima é baixo, cabelos brancos e ralos e ostenta um bigode grisalho que esconde sua boca. Basílio Andrade é mediano, não usa barba e nem bigode, apenas um tapa olho de pirata no olho esquerdo.
      - Bebe alguma coisa senhor Lauro? – Basílio ergue o copo com uísque.
      - Eu estou evitando, mas a ocasião pede uma dose. – retira a capa e o chapéu.
      - Josué, mais um desse.
     Lauro puxa a cadeira e como é de praxe as gemidas antecedem sua acomodação. Basílio acompanha o calvário do fazendeiro e agradece em silêncio por ainda conseguir sentar sem sofrer.
        - Vamos lá senhor Basílio, sei o que quer e a minha resposta será sempre não.
       - Tem certeza? Pense direito, com aquelas terras podemos aumentar três vezes mais a nossa arrecadação.
       - A vida não é só lucro meu caro Basílio. Pense, são quilômetros de mata devastada, um desastre ambiental colossal, coloque a mão na consciência homem.
        A bebida chega. Josué se afasta.
       - Lauro, imagine seus netos no futuro desfrutando de seu investimento hoje.
       - Já chega, Basílio, essa conversa tem fim agora, deixe aquelas terras onde elas estão. – se levanta gemendo. – Josué, a conta.
       - Melhor cuidar da saúde senhor Lauro Lima.
       - Está me ameaçando seu ganancioso desgraçado?
       - Claro que não. – se levanta e joga uma nota de cinquenta na mesa. – estou realmente preocupado com sua saúde. – estala os dedos. – Josué paga a minha e a do senhor Lima aqui. Fique com o troco.

*

Basílio chega em sua fazenda cuspindo marimbondos. Ele quer as terras a qualquer custo. Atualmente o velho fazendeiro conta com mais de vinte empregados trabalhando duro nas lavouras. Sua produção é a mais bem sucedida de Crateras, quase não há concorrência. Se conseguir a aquisição das outras terras seu rendimento será três vezes maior que o atual. Ele deixa seu cavalo com o funcionário responsável.
     - Dê comida e água, mais tarde vou precisar que ele esteja inteiro, você ouviu?
     - Sim senhor. – temeroso o negro suado responde.
      Dentro de casa o velho Basílio é considerado como o faraó regendo a todos com braço de ferro. Até mesmo sua mulher o teme por isso procura fazer o que ele manda sem hesitar. Ele sobe as escadas que dão acesso ao quarto xingando Lauro Lima até seu último fio de cabelo. No quarto Dora se assusta ao ver seu marido entrando feito um animal feroz.
      - Eita homem, assim você me mata do coração.
      - Não comece, Dora. – senta na ponta da cama e começa a tirar as botas. – hoje deu tudo errado.
      - Como foi a conversa com Lauro? – volta a se olhar no espelho e a pentear as longas madeixas grisalhas.
      - Uma porcaria. Você acredita que ele insiste em não fazer nada com aquelas terras, que elas são útil para o nosso meio ambiente. Conversa fiada.
      - E o que você pensa em fazer?
      - Ah, sei lá, alguém precisa dar um jeito nesse sujeito, isso sim.

*

Senhor Lauro Lima mesmo com sua saúde debilitada ajuda no trabalho de sua fazenda. Sempre que pode ele recolhe os ovos e limpa o galinheiro. Todos os seus trinta funcionários o tem como pai devido a sua generosidade. Nem sempre ele foi o homem rico e poderoso de hoje. Para conseguir tudo que tem ele precisou cortar muita cana, ajudar a carregar carroças e mais carroças e transportá-las para outras cidades. Lauro valoriza cada funcionário. Conhece a realidade de cada um.
      - Senhor Lauro, como foi a conversa com Senhor Basílio? – pergunta um jovem negro sem camisa ajudando a recolher os ovos.
      - Basílio se deixou levar pela ganância. Para ele não importa se o que lhe dará lucro prejudicará o próximo. O que importa é o dinheiro. Isso é errado.
       - Então, aquelas terras estarão seguras?
       - Sim, Joaquim. – acaricia a cabeça do garoto. – estarão seguras sim.

*

O sol é quente e mesmo assim Joca segue trabalhando na lavoura. A cada enxadada o suor pinga da testa. Vez por outra ele retira o chapéu e se abana com ele. Não tem outro jeito. Para conseguir levar uma mixaria para casa no fim do dia ele precisará ficar debaixo desse sol cavando sem parar. Valdinha, sua esposa chega com a comida. Eles procuram por uma sombra para juntos almoçarem.
       - E os meninos?
       - Ainda estão na escola. – abre a marmita.
       - Que escola o que, eles precisam trabalhar para ajudar em casa, isso sim.
       - Joca, é esse o futuro que você quer para os meninos, é?
       - Conversa fiada.
       Nessa hora um sujeito montado num cavalo preto, usando capa e olhar penetrante os surpreende.
       - Boa tarde?
       - Boa tarde senhor. – diz Joca com a boca cheia.
       - Você por um acaso é o Joca?
       - Sim senhor, em que posso ajudar.
       - Já ajudou.
       O homem da capa preta saca o revólver e acerta o peito do lavrador. Valdinha se desespera jogando a comida para o alto.
       - Meu Deus, meu marido.
       Djalma desce do cavalo e caminha até próximo de Joca que ainda agoniza no chão segurando o peito. Ao som do choro irritante da mulher o matador dispara ainda três vezes no rosto do pobre trabalhador.
       - Socorro. Por que fez isso? – grita.
       - Moça, seu marido sabe por que morreu. Agora com licença.
       Sem dó. Sem piedade. Não importa se é chefe de família ou não. Quem nasceu para matar precisar anular tais sentimentos. Djalma abandona a pobre viúva abraçada ao corpo do marido e desaparece estrada afora.

*

O xerife Juarez Marques ainda não caiu no gosto da pequena população de Crateras. Poucos o queriam como líder da segurança da cidade. Seu jeito de agir ante uma situação extrema o carimbou como sendo inadequado para a função. Dizem as más línguas que antes de ser policial Juarez fez parte de um bando de justiceiros, exterminadores que tiravam a paz de habitantes de outras regiões. O líder do grupo tinha Marques como seu guarda costas e que ele executava a sangue frio quem ousava se aproximar de seu chefe. Nada disso ficou provado. Hoje Juarez é o temido xerife onde malfeitores preferem a morte do que cair em suas mãos.
       Com as mãos amarradas para trás, sentado numa cadeira quase nú e vendado, esse é o estado do bandido capturado por Juarez depois de roubar um carregamento de produtos agrícolas na entrada da cidade. Ele não estava sozinho, porém foi o único que não conseguiu fugir. Juarez praticamente o arrastou até a delegacia, por isso os ferimentos em seu corpo.
       Temendo por sua vida o bandido soluça e a cada barulho ele fica em estado de choque. Juarez em companhia de dois policiais entra na sala. Enrolada na mão uma corrente grossa. A passos lentos o xerife permite que o meliante curta cada momento de sua angústia.
       - Acho que, mesmo com os olhos vendados você reconhece esse som, não é?
       O ladrão volta a soluçar e diz que sim com a cabeça.
        - Você havia dito que não entregaria o resto do bando, nem sob tortura, não é?
        Uma lágrima escorre do olho esquerdo e finalmente ele fala.
        - Não!
        - Certo!
       Bem devagar a corrente vai sendo tirada da mão do xerife. É de proposito. Juarez gosta do barulho e também dará tempo do bandido pensar duas vezes antes do martírio. Como não há remissão, Juarez desfere o primeiro de muitos golpes de corrente nas costas e na lombar do prisioneiro. Os dois policiais acompanham com suas expressões de satisfação. Juarez Marques parece uma máquina de bater. Aos poucos as manchas roxas vão dando lugar a pequenos ferimentos e ele não para.
      - Fala logo desgraçado, fala. – Vocifera.
      Cinco minutos depois o rosto de Juarez está salpicado com sangue e mesmo assim ele segue batendo. Os polícias agora estão congelados ante a tanta violência. Um deles é atingido pelo sangue e pede licença.
       - Senhor.
       O xerife olha para seu subordinado com ódio.
        - Esse sujeito é casca grossa, veja, o senhor já está esgotado e ele em carne viva, ele não vai entregar o resto do bando.
       Juarez cospe o sangue que escorre da testa até sua boca.
       - O que sugere então?
       O jovem policial abaixa a cabeça.
       - Os ferimentos ainda são superficiais, tenho certeza de que quando forem mais profundos esse bosta não suportará. Agora, se você está com pena, sugiro que o senhor o leve para sua casa e cuide dele.
        - Mas, senhor...
        - Cale a boca e me deixe trabalhar. – grita.
        As correntes voltam a castigar o corpo do bandido e agora com mais força, mais ódio. Enquanto bate o xerife rosna e baba.
        - Fale, fale, desgraçado, fale.
       Foi como Juarez mesmo disse. Quando os ferimentos se tornaram profundos a dor passou a ser alucinante o obrigando a falar. O sangue escorre de suas costas alcançando o chão daquela sala abafada e suja.
        - Pelo amor de Deus, eu falo, eu falo.
        - Ótimo. – limpa o suor misturado com o sangue no rosto. – agora sim você tomou uma decisão inteligente. – volta a olhar para seus homens. – viram? É assim que se faz.

*
Ter aquelas terras é tudo que Basílio mais quer nessa vida. Em seu escritório ele refaz as contas e chega a conclusão de que seu faturamento será monstruoso e isso faz crescer dentro dele os piores sentimentos quanto o seu opositor. Ele se levanta com o papel da contabilidade erguido no ar e sorrir. Anda em direção a janela e contempla todo o seu poderio.
      Não foi nada fácil chegar até ali. Seu velho e falecido pai suou sangue para conseguir toda a fortuna que tem hoje. Os Andrade são conhecidos por sua influência no meio empresarial e político. Andrade pai financiou a construção de diversas indústrias que até hoje lhe rendem montantes e mais montantes de dinheiro. Mas Basílio Andrade quer mais, muito mais, nem que para isso ele tenha que matar, ou contrate alguém que faça o serviço.

      - Então é isso? – Djalma mexe na barba mal feita.
      - Quanto vai me custar? – Basílio parece desconfortado sentado naquela mesa de bar fora da cidade.
       - É. Lauro Lima não é qualquer pessoa. Fiquei sabendo que ele é amigo do xerife.
       - E isso é problema pra você?
       - Pra mim? Não. O meu trabalho eu faço bem feito. – diz olhando nos olhos do fazendeiro.
       - Então fale logo quanto vai me custar antes que algum conhecido nos veja.
       - 80 mil – pigarreia.
       Basílio engole seco.
       - Aquele velho pé na cova vale tudo isso?
       - É pegar ou largar.
       - Feito. Lhe dou uma parte agora e a outra só depois do fato consumado.
       O matador se levanta. Termina de tomar sua pinga e cospe.
        - Se eu suspeitar de qualquer coisa irei atrás do senhor. Certo?
         - Certo. – volta a engolir em seco.

*

O salão do Josué sempre foi o ponto de encontro de boa parte dos moradores de Crateras. É o lugar mais democrático que existe naquela redondeza. Por ali sempre tem no ar o cheiro de tabaco e cerveja. Passam por ali desde o dono de terras mais rico ao vaqueiro mais pé de chinelo. Ali também é lugar onde Juarez e Lauro se encontram para prosear desde quando o xerife assumiu o posto.
      Hoje a conversa é um pouco mais informal. Quando o velho bigodudo se junta ao carrancudo chefe da lei o papo é longo e ambos dão altas gargalhadas e a conversa não é outra a não ser as inúmeras mulheres que o fazendeiro teve ao longo de sua vida.
       - Eu me lembro de uma que não largava do meu pé, até mesmo quando eu estava na lavoura eu não ficava em paz.
       - Mais é claro que o senhor aproveitava que estava no meio do mato para conferir a rapariga. – o xerife saca do bolso da camisa um charuto.
       - Pois é, foi numa dessas que eu a engravidei e hoje o menino é meu braço direito nos negócios.
       Juarez acende o charuto e lança no ar uma bufada de fumaça. Olha ao redor e depois para o fazendeiro.
       - Como vão os negócios?
       - Ah, você sabe, eu vivo numa eterna gangorra, graças a Deus ao longo da vida consegui juntar uma boa soma e hoje não sofro tanto com a instabilidade do negócio.
       - O senhor é um bom homem, Lauro Lima, são pessoas como o senhor que quero proteger.
       - Então, um brinde a nossa amizade. – ergue o copo de conhaque.

*

Paciência. Essa é a palavra chave para alguém que se propõe a tal tarefa. Tirar a vida de alguém. Enquanto seu alvo joga conversa fora dentro do salão, o matador cutuca os dentes com um palito já gasto. Djalma aproveita para passar sua vida a limpo. As vezes ele se esquece a quanto tempo está nessa vida de exterminador e também o que o levou a entrar para esse ramo. Hoje em dia ele não sabe se foi por gosto ou por necessidade. Estar diante de alguém e você apontando o cano de uma arma para sua cabeça dessa pessoa e depois puxar o gatilho, não é a coisa mais fácil do mundo. Você precisa se despir de sentimentos nobres, dar ouvidos a outras vozes. Matar por dinheiro. E quando chegar a sua vez? Qual será o seu comportamento? Sua vida inteira nas mãos de um canalha.
     
       Senhor Lauro Lima deixa o salão acompanhado pelo xerife. Eles ainda conversam por alguns segundos e se despedem com um ligeiro aperto de mão. Cada um em seu cavalo. Mesmo sofrendo com dores o fazendeiro consegue subir no animal até com uma certa facilidade. Rumando em direção a saída da cidade um dos homens mais ricos do velho oeste segue sozinho atravessando os portões de Crateras. Djalma confere sua munição e volta a olhar para Lauro se distanciando. Hora do show.
       O caminho é arborizado. Tanto de um lado como de outro há árvores gigantescas que ajudam a deixar o clima mais ameno. Cantarolando uma velha cantiga o fazendeiro nem desconfia que seu tempo de vida está se esgotando. Ele observa o caminho onde há imensas rochas e dali é possível ver as terras as quais Basílio vem almejando. Seria uma coisa terrível se elas caíssem em mãos gananciosas como as dele. Isso ele não permitirá nunca.
        De repente o som inconfundível de cavalo galopando. Lauro não usa arma, não gosta e nem precisa. Ele defende a seguinte tese, bens materiais não são capazes de lhe iludir. Lauro apenas olha para trás para matar sua curiosidade. Tudo que o velho vê é um sujeito mal encarado, usando chapéu e capa preta olhando friamente para ele. Seu coração acelera, seria um salteador?
      Djalma o alcança ficando lado a lado com o bigodudo. Eles se olham.
       - Peça logo o que quer. – diz Lauro.
       - Senhor Lauro Lima?
       - E isso importa pra você?
       - Muito!
       Sem muita enrolação o matador saca o revólver e atira na cabeça do velho que ainda permanece em cima do cavalo até despencar devido o balanço da cavalgada. Djalma desce e caminha até o corpo já sem vida e atira mais duas vezes. Serviço feito com sucesso. Brando olha para todos os lados e depois bate no lombo do animal que dispara pela estrada. Vamos a outra parte da recompensa.

*

A notícia da morte de Lauro Lima se espalhou feito fogo num celeiro e a pergunta que não quer calar é: quem o matou? Por que o matou? Qual seria motivo, ou quais? Todos o viam como um homem de boa índole, admirador das coisas boas, gentil e principalmente, cumpridor de seus deveres como cidadão. Por que fizeram isso com ele? Quem fez isso? Em volta do corpo coberto por um pano as pessoas não cansam de lamentar o fato e no meio da aglomeração está Juarez enlutados e ao mesmo tempo tentando manter a ordem. Lima era seu amigo, confidente, parceiro de bebedeiras. As pessoas vão chegando curiosas e vão saindo com o coração destruído.
      Três tiros no rosto, Juarez observa bem. Coisa de profissional. Hora de retirar o corpo do local e deixar que a família providencie o funeral. Junto com o xerife estão mais cinco policiais. Ele os chama para um canto a fim de iniciar uma minuciosa investigação.
       - Não foi um assalto, foi execução, vamos colocar Crateras de ponta cabeça, quero esse sujeito preso, vocês entenderam?
       Os homens se dispersam. Juarez Marques monta em seu cavalo e volta a olhar para a mancha do sangue do velho Lauro. Foi uma grande perda. Sentimento igual a esse foi quando ele perdeu seu pai. Lamentável.

*
Basílio não consegue conter seu nervosismo. Ele anda de um lado para outro com os pensamentos borbulhando em sua cabeça. O fazendeiro anda até a janela para quem sabe vislumbrando a natureza mas os demônios em sua mente não o deixam em paz. De repente sua mulher adentra ao escritório trazendo uma noticia da qual ele conhece muito bem.
       - Basílio, mataram o senhor Lauro Lima.
       O que responder numa hora dessas? Foi ele o mandante do crime. Mandar matar alguém é ainda pior que puxar o gatilho. Mais uma vez os demônios em sua mente se movimentaram e faltou pouco para ele não explodir em cima de sua esposa. O jeito é dissimular.
        - Meu Deus, é verdade o que está dizendo?
        - Verdade verdadeira, disseram que foi assalto, mais o xerife Juarez já descartou essa possibilidade e está investigando.
       Basílio sente suas pernas fraquejarem. Investigação é algo sério. Pode até demorar, mas um dia tudo é esclarecido.
       - Temos que ir dar nossas condolências a família. – diz o fazendeiro se sentando.
       De uma coisa Basílio precisa comemorar. Com o velho bigodudo fora da jogada ele tem livre acesso as terras. Imediatamente ele começa a mexer os pauzinhos para a aquisição e finalmente a construção de um novo império.

*

Crateras está em polvorosa. Lauro Lima é sepultado sob chuva de lágrimas. A viúva recebe o conforto dos parentes e conhecidos. No cemitério onde minúsculas cruzes demarcam onde seus mortos descansam, Basílio observa atentamente cada passo de Juarez que espalhou seus homens por toda parte. O mesmo se aproxima do fazendeiro com as mãos apoiadas no cinturão.
      - Triste fato, não é seu Basílio.
      - Tem razão xerife. Nossa cidade está sofrendo muito com essa partida.
      - O senhor e Lauro andavam se encontrando, não é mesmo?
      Basílio é pego de surpresa.
       - Sim!
       - Posso saber o que conversavam?
       Nessas hora o melhor a fazer é agir com naturalidade.
       - Futuro, falávamos sobre o futuro de nossos filhos, netos, legado, o senhor entende.
       - Sei. Bom. Acho que aqui não é o local adequado para esse assunto. – se afasta.
        Mal pressentimento, aliás, um péssimo pressentimento. As coisas começam a sair fora dos trilhos e quando isso acontece o melhor a fazer é cortar o mal pela raiz. Basílio sabe da capacidade do xerife e conhece seus métodos nada convencionais para resolver seus casos complexos. Se a coisa tá feia ela pode ficar ainda pior.
       Lauro Lima é sepultado com honras,  com direito a um longo período de aplausos. Muito emocionante de fato. Enquanto assiste a urna sendo depositada naquela cova para apodrecer, xerife Juarez prometeu para si mesmo que chegaria ao culpado e o mataria, bem devagar.

*
Dois dias depois do enterro de Lauro, Juarez deu início ao que ele denominou de caçada. A ordem era para que todas as entradas da cidade fossem fiscalizadas e as saídas bloqueadas. Todo e qualquer comércio dentro e fora teriam que passar por uma revista. E assim foi. Enquanto isso o xerife segue investigando, unindo os pontos e juntando as peças do quebra-cabeça.
      Montado e seu cavalo ele passa por uma guarnição que fiscaliza a principal rua que dá acesso a saída de Crateras. Ao verem o líder os homens se agitam na tentativa frustrada em mostrar serviço. Juarez está tão concentrado nas investigações que mal deu atenção ao seus guardas.

*

Djalma esquenta sua sopa usando uma caneca encontrada no meio de um monte de entulho. Ele sabia que um dia ela lhe serviria. A sopa é rala, mais o que importa é o sabor. Ele a mexe usando um graveto. É sempre assim. Após um trabalho Djalma prefere dar um tempo escondido no alto de uma montanha ou no meio do mato até a poeira baixar. Ele sabe que a essa hora toda a cidade está comovida com a morte de Lauro Lima e que a essa altura o xerife já iniciou as buscas. Por isso ele prefere passar alguns dias sumido vivendo da caça e ao som dos pássaros.

*

Perto de uma estradinha de pedra quase esquecida há um pequeno bar com sua frente de madeira em avançado estado de putrificação. Até mesmo a placa onde certamente anunciava o nome do estabelecimento o sol e a chuva deixaram suas marcas. Juarez desce do animal e o amarra num cercado abandonado. Do lado de fora parece que não há ninguém lá dentro, o silêncio é absoluto.
      O xerife entra e tudo o que ele pressentiu se confirmou. O bar parece salão fantasma, somente o balconista entediado alisando o mármore  do balcão com o pano. Ao se virar e vê que se trata nada mais, nada menos que o xerife Marques, simplesmente o funcionário se ergue e esbugalha os olhos.
       - Opá, vamos entrando senhor xerife.
       - Como tem passado?
       - Bem, apenas com um probleminha de saúde mas nada grave...
       - Eu pergunto sobre o movimento.
       O homem engole seco.
       - Ah, sim, sei, bom, o movimento é sempre esse que o senhor está vendo, quase ninguém vem aqui. – força um sorriso.
        - Sei. – puxa uma cadeira. – me diga uma coisa senhor?
        - Adelino.
        - Adelino, penso eu que os frequentadores do salão são sempre os mesmos, não é?
        - Sim, senhor. – limpa as mãos no avental.
        - Então se entrassem pessoas diferentes você com certeza notaria, não é?
        - Claro.
        - Então, Adelino, me diga, alguém que normalmente não aparece por aqui passou por essas portas?
        Adelino é magro, uma magreza não muito saudável e olhos azuis sempre esbugalhados.
        - Se não me falha a memória, dois sujeitos entraram aqui na semana passada.
        - Adelino. – Juarez puxa outra cadeira. - sente-se e me descreva esses dois sujeitos.

A sorte de Juarez parece está mudando. Um dos homens descrito por Adelino com certeza é Basílio. Já o outro será mais difícil de identificar. Ele deixa o salão fantasma disposto a colocar o ricaço contra a parede, quem sabe forçar a barra um pouco mais. A final, o que Basílio fazia conversando um sujeito com pinta de matador num local isolado de Crateras? Certamente não queria ser visto. Seria negócios ou tramando algo? Hora de voltar para cidade e tirar essa história a limpo.

*

A cada dia que passa a ansiedade domina o velho Basílio que já não vê como escapar dela. Ele anda de um lado para outro com suas mãos para trás. Não come e nem bebe direito. As últimas notícias não foram nada boas. Ele agora sabe que Juarez está no encalço de Djalma e que captura-lo é uma questão de tempo. Ele não se imagina preso, isso seria a ruína dos Andrade, um desgosto profundo. Djalma não vai segurar essa bomba sozinho, assim que Juarez colocar as mãos nele o desgraçado dará com a língua nos dentes. Basílio Andrade caminha em direção ao grande armário que pertencia ao seu pai. Desse armário ele retira uma caixa de madeira onde há um minúsculo revolver. Antes de guardá-lo no bolso de sua casaca ele confere a munição. Certo. Se quer bem feito faça você mesmo.

*

O policial tem a sua frente uma lista com os nomes mais procurados ou que já foram presos. Com bastante atenção ele analisa com cuidado cada detalhe e chega ao nome de Djalma Brando, matador profissional. Seu sangue gela ao ver sua ficha. Ele se levanta de sua mesa e corre até a sala de Marques.
       - Com licença senhor, veja isso.
       Juarez lê com atenção.
       - Djalma Brando. – olha para o policial. – bate com a descrição de Adelino?
       - Não tem como errar senhor.
       - Bom trabalho. Vamos agir. – pega sua arma na gaveta.

*

O local combinado para a entrega da segunda parte do acerto fica na divisa com outra cidade. Um lugar onde o matagal domina boa parte da estreita estrada de caminho sulcado. Basílio é o primeiro a chegar. Ainda em seu cavalo ele confere se ali é realmente seguro. Os pássaros cantam e voam de lado para outro sob a luz fraca do anoitecer. O fazendeiro desce ainda bastante desconfiado, ele tem a ligeira impressão de que está sendo observado. Melhor aguardar.
       Como uma fera selvagem Djalma aparece do meio do matagal coberto por sua capa. Ele olha para Basílio que lhe devolve o mesmo olhar desconfiado.
       - Trouxe meu dinheiro? – rosna.
       - Podemos conversar antes?
       - Nada de conversa, quero a outra parte. Preciso sumir de Crateras agora.
       - Calma, precisamos acertar algumas coisas Djalma.
       A mão do matador encontra o coldre por debaixo da capa. Um vento frio e repentino passa por entre os dois, mas só Basílio o sente. Um pássaro negro pousa numa árvore pequena de galhos finos e inicia se canto triste e sombrio. Basílio olha para aquela figura sinistra e sente sua espinha congelar.
         - Fiz o que me pediu, Basílio, agora, com certeza o xerife está atrás de mim. Me dê o restante do dinheiro e eu sumo.
         - Sabe de uma coisa, Djalma, já vivi o bastante e conheço homens como você. São fracos, por isso tomei uma decisão.
       Basílio abre sua casaca. Olha para a pequena arma guardada no bolso. Sua mão sente o metal frio e quando ele vai saca-la um tiro certeiro atinge seu peito. Espantado e com uma queimação no peito provocada pelo disparo o fazendeiro olha para Brando que permanece envolvido por sua capa, mas que agora ela tem um minúsculo furo fumegante. O rico dono de terras não acredita que aquele desgraçado o acertou bem no peito e que a morte bate em sua porta. Sem força, com a visão escurecendo e secura na boca, Basílio aos poucos vai dobrando os joelhos até ficar completamente ajoelhado.
       - Isso não vai ficar assim. – diz com voz rouca.
       - Claro que não. – abre a capa e a joga para trás. Dá um passo a frente e atira mais uma vez acertando o rosto do fazendeiro que dobra para trás. Anda mais um pouco e atira mais uma vez na cabeça. Agora ele está a um metro do corpo de Basílio e atira finalizando. – mande lembranças ao Diabo.

*

Djalma dá as costas para o cadáver enquanto o pássaro segue cantando a melodia lúgubre. A voz de Juarez atravessa o canto do pássaro surpreendendo o matador.
      - Djalma Brando, fique onde está.
      Montado no cavalo o xerife aponta seu rifle. Num giro rápido Brando saca outra vez o revólver e atira. A bala passa de raspão. O bandido mergulha no matagal quando o fogo inimigo quase o atinge.
        - Você vem comigo vivo ou morto. – grita Juarez descendo do animal.
        Dentro do mato cortante o matador evita se mexer muito para não entregar sua localização. O xerife atira mais uma vez. Djalma se abaixa e prende a respiração. Fica parado e em silêncio. Aguarda outro disparo e ele vem. Agora ele sabe mais ou menos onde o policial está. Atira duas vezes. Silêncio do outro lado. Djalma vai se erguendo e contempla Juarez deitado segurando o ferimento. Rapidamente ele deixa o matagal e anda até o homem da lei que sangra pela boca.
       - O que está esperando? Me mate logo de uma vez. – tosse.
       -  Certo!
       Três tiros no rosto, sua marca registrada. Todos saberão que o maldito Djalma executou o temido xerife Juarez Marques. Do outro lado Basílio Andrade jaz em meio a uma poça de sangue com formigas em volta. Djalma desapareceu e não foi visto por um bom tempo.

Época atual

Por muito tempo Djalma se viu fugindo da lei e principalmente do fantasma do matador que vive dentro dele. Isso não é vida, não foi o que ele planejou. O tempo que ainda lhe resta nesse mundo ele quer viver em paz ao lado de Kátia. Mas uma coisa ele precisa admitir. As vidas que tirou clamam por justiça, suas almas gritam seu nome e ele as ouve do além. Pesadelos e mais pesadelos, castigo em cima de castigo. Como conviver com isso?
      Por outro lado existe um filho que anseia pela honra de seu pai e que agora tem a oportunidade de liquidar tudo e se tornar a principal figura daquela cidade amaldiçoada. Wander Neves permite que o ódio volte a ser o seu senhor e ele saca seu revolver.
       - Eu não negocio com bandido. Você vem comigo.
        - O senhor ainda não entendeu, xerife, eu não vou passar o resto da vida na cadeia.
        - Então duele comigo e vamos resolver logo isso.
       A experiência é tudo. Djalma sabe que se aceitar duelar com Wander o mesmo será morto. Morte, uma palavra que ele quer riscar de seu currículo.
       - Saque sua arma, Brando. – Vocifera.
       - Pense bem xerife Neves, o senhor é um bom homem, tem tudo para ser o melhor líder que Crateras já teve, melhor que seu pai.
       - Tire o nome do meu pai da sua boca seu cretino.
       Wander está irredutível. Djalma sabe que ficará ali gastando saliva tentando convencê-lo a não duelar e mesmo assim não conseguirá êxito. Ele saca seu revolver e o aponta para Wander que sente o peso do momento. Sua vida nas mãos de um miserável, ambos pensam.
       - Preparado, Xerife?
       - Há dois anos.
       - Ótimo!
       Toda aquela carga que um matador carrega volta a tomar conta de Djalma. O exterminador sanguinário que não perdoa nada e nem ninguém. Ele está de volta. O canto do pássaro negro invade sua mente e não lhe resta outra alternativa. Ele puxa o gatilho.
       Dois disparos. Duas balas. Tiros certeiros. Dois ferimentos. Duplo desespero. Dois corpos que caem esvaindo sangue. Wander e Djalma estão no chão, naquela estrada onde tudo teve início. Djalma olha para o xerife que ainda se esforça para manter sua arma apontada para ele. Djalma não quer matar, mas também não quer morrer, por isso ele volta a puxar o gatilho e mais uma vez dois disparos. Ambos arfam sentindo a bala penetrar em seus corpos.
      Deitados, feridos, morrendo, esse é o quadro triste entre os dois. O tempo todo eles buscam ar e ele teima em escapar dos pulmões. A morte anda devagar. Por um momento Djalma fecha os olhos e consegue vê-la chegando. Hora de dizer a deus a esse mundo tenebroso. O matador volta a abrir os olhos e o que ele vê incrivelmente não lhe causa espanto. O cano do revolver de Wander na direção de sua cabeça.
      - Vingue seu pai. – tosse cuspindo sangue. – eu mereço isso.
      Djalma se recorda da oração do Pai nosso e antes de ter a cabeça perfurada pelas balas ele a inicia. “Pai nosso que estais no céu, santificado seja o teu nome...”. Um, dois, três tiros, todos no rosto. A munição acaba e mesmo assim Wander segue puxando o gatilho. Djalma Brando está morto, ele sabe disso. Perdendo sangue, pernas fracas e visão quase fechando o xerife olha para o alto e sorrir, porém o sorriso é interrompido por um forte onda de dor angustiante e ele cai. Wander Neves está morto. O pássaro negro pousa no galho da árvore e inicia seu canto fúnebre ao por do sol. FIM!