terça-feira, 26 de julho de 2022

Os Mortos 2


 

Os Mortos 2

 

A grande verdade é que eu já não sabia o que fazer e nem o que sentir. Fiquei ali olhando aqueles defuntos forçando o portão do cemitério com suas mãos e braços apodrecidos. Entrei em colapso ao assistir tal cena, não havia como ser diferente. Virei-me e vi o garotinho que eu acabara de lhe devolver ao abismo e sem controle algum chorei calado. De uma coisa eu tinha certeza: eu precisava sair daquela guarita o mais rápido  possível.

O único jeito foi fazendo uso da força bruta. Empurrei a porta que se chocou contra o morto que caiu quebrando a cruz de um jazigo ali próximo. Era a minha chance. Corri para o lado oposto do portão com minhas botinas achafundando na lama. Meu desespero era tanto que não fui capaz de ver uma morta, caindo aos pedaços, se agarrando nos túmulos gritando por ajuda. Me lembro do dia de seu sepultamento. Foi a dois anos e ela já estava com a idade bastante avançada e seus familiares diziam que ela havia morrido em sofrimento. Pobre coitada. O cheiro e o aspecto me deixaram sem ação.

- Me tire do sofrimento. – ela dizia.

Olhei para o meu canivete e depois para ela. Meu Deus, eu estava me borrando. Ela ainda tentou segurar em meu braço com suas mãos que eram parte osso e parte carne podre. Berrei de pânico e num gesto de puro ímpeto encravei minha arma branca em sua têmpora. A velha morta voltou para a morte e eu segui meu rumo para a parte mais alta do cemitério.

*

Que dia esquisito. Que dia amaldiçoado. Ninguém jamais poderia prever que, um dia os mortos iriam voltar a vida. Quando eu era moleque, lembro-me de minha vó nos aplicando sermão sobre o juízo final. Junto com meus primos e irmãos, ficávamos ali, ao redor de sua cadeira de balanço, ouvindo histórias horripilantes do último livro da bíblia. Seria esse o Apocalipse? O dia em que a terra devolveria seus mortos? A profecia estaria se cumprindo?

Cheguei ao ponto mais alto e o que presenciei de lá foi o mais puro pesadelo. O lugar foi dominado por mortos-vivos, dezenas deles, todos com seus lamentos e grunhidos. Tive vontade outra vez de dar cabo a minha existência. Eu não podia fazer isso. Sou Cristão. Tenho mulher e filhos. Ser um covarde se encontrava fora de cogitação. Olhei para o céu e ele seguia cinza, chuvoso, mesmo perto das 22 horas.

- O portão não vai suportar tanto peso. – falei comigo mesmo.

Continuei andando até me deparar com a casinha de ferramentas dos coveiros. Quase gritei de alegria. A porta estava encostada. Entrei. Lá dentro havia um arsenal; foice, facão, enxada, pá, ancinho entre outras. Lógico que peguei facão, o chamado rabo de galo. Deixei a casinha dando de frente com um defunto se arrastando e arrastando sua perna esquerda segura por um fio de pele apenas. Aquilo me deixou em pânico. Ele olhou para mim e disse.

- Por que me tirou de lá?

- Volte para o inferno de onde veio.

Cravei o facão em seu crânio e desci correndo. Cheguei ao local das gavetas onde mais cadáveres deixavam suas sepulturas, um verdadeiro inferno na terra. Eu tinha que passar por ali, era o único jeito de chegar até o muro e pula-lo.

- E agora, meu Deus, o que eu faço?

Eles me olharam e logo os lamentos vieram. Alguns choravam, outros clamavam e  havia até os que gritavam coisas incompreensíveis. O que houve no mundo? Deus estaria nos punindo? Afinal, por que Ele concedera vida aos falecidos?

 


domingo, 10 de julho de 2022

Os Mortos


 

Os Mortos

Eu me lembro bem daquele dia. Foi realmente terrível. Pra começar, justamente naquela tarde eu não estava nenhum pouco afim de trabalhar. O dia havia amanhecido cinza, muitas nuvens e um chuvisco que não parava de cair hora alguma. Pra ser bem sincero estava bem frio na verdade, bom para ficar na cama tomando uma deliciosa sopa. Fazer o que? Sou pobre. Possuo dívidas. Tenho que trabalhar. Arrumei minhas coisas e fui.

Cheguei ao cemitério por volta das 17:45, bem próximo do rendimento do vigia diurno, Chico. Ao me ver cruzando os portões enferrujados o velho faltou me beijar de alegria.

- Que bom que chegou cedo. – me entregou às chaves. – que dia esquisito, não acha?

- Sim! Bastante estranho. – olhei para o céu com nuvens carregadas. – já conferiu o serviço de meteorologia?

- Não! – voltou para a guarita. – fiz café e tem um pedaço de bolo na geladeira. Pode comer se quiser.

- Valeu, Chico.

O vigia diurno pendurou sua bolsa surrada no ombro e olhou de maneira bastante intrigante para o cemitério.

- Realmente às coisas ficaram estranhas hoje, durante o dia todo. – fez o sinal da cruz.

- Está falando sério? – peguei a garrafa de café. – o que houve?

- Sei lá! Por diversas vezes senti que andavam entre os túmulos. – outra vez Chico fez o sinal da cruz.

Sorri e olhei para além do lugar.

- Não será coisa da sua cabeça?

- Tenho 70 anos, mas não estou caduco. Ainda. – sorriu mostrando dentes amarelos e podres. – Deus lhe proteja, filho.

- Amém.

Chico se foi em meio ao chuvisco. Olhei para o céu e ele seguia nublado, feioso, parecendo que a qualquer momento uma tempestade iria cair. O portão do cemitério foi fechado ruidosamente. Eu voltei para o interior da guarita e me servi do café. Conferi o horário. 18:04 e ainda era dia. Acinzentado, mas ainda assim era dia. Dei de ombros para essa situação e resolvi comer do bolo deixado pelo meu velho companheiro de trabalho. Bolo de cenoura com cobertura de chocolate, nada mal. Um pedaço pequeno, mas o que vale é a intenção.

- Me dá um pedaço?

Com meu coração querendo sair pela boca virei-me dando de frente com um menininho. Ele tinha o olhar triste e seu terninho estava sujo de lama.

- Como conseguiu entrar aqui? – engoli seco. – aonde estão seus pais?

- Eu não sei. – coçou a cabeça.

- De onde você veio? – nesse momento eu já estava apavorado.

- Dê lá! – apontou para a parte onde às crianças são sepultadas.

- Tem certeza?

- Sim! Aonde estou? – choramingou.

Eu estava tremendo de medo, confesso. Reparei bem naquele garoto e ele ainda trazia nas narinas os algodões. Ao perceber isso a minha vontade era de sair gritando dali, mas ao invés disso eu me belisquei.

- Tem que ser um sonho.

- O que está fazendo? – ele seguia me olhando de maneira soturna.

- Nada!

Lá fora tudo continuava como fora o dia inteiro. Ainda morrendo de pavor peguei minha lanterninha e meu canivete dentro da gaveta e sai.

- Fique aqui.

- Aonde vai? – perguntou quase chorando.

- Vou dar uma olhada por ai.

Ao girar o pescoço consegui visualizar alguém vindo entre os jazigos. Segurei firme o canivete e entrei. Fechei a porta da guarita enquanto o menino me olhava choroso. De repente as batidas. Batidas fortes. O meu pânico só crescia.

- Abra, por favor.

Olhei pela fenda da porta e vi um cidadão vestindo um terno barato azul escuro e com a pele em adiantado estado de decomposição. O odor quase me fez vomitar o bolo do Chico.

- Abra, por favor. Eu te vi entrar ai.

Comecei a rezar, a orar, sei lá mais o que. Eu não queria acreditar que um defunto estava de pé lá fora batendo na porta da guarita e o que é pior, havia outro lá dentro comigo.

- Por que não o deixa entrar? – questionou o garoto.

- Eu, eu, eu estou com medo. É isso.

- Medo do que?

- Estou com medo de vocês. – vociferei. – vocês deveriam estar mortos.

O menininho me olhou intrigado.

- Mortos? Como assim? – perguntou o defunto do lado de fora. – o médico disse que eu sobreviveria. Eu não estou morto.

Ele voltou a esmurrar a guarita. Eu segurei o canivete com firmeza, precisava agir rapidamente.

- Eu não estou morto! – berrava o zumbi lá fora.

Olhei outra vez pela fenda e vi que sua expressão já não era a de antes. Ele estava furioso. O garoto começou a chorar alto me levando a loucura.

- Fique quieto.

De nada adiantou pedir.

- Mais que merda, menino. Cale a boca.

Ele não me deu alternativa. Enterrei meu canivete em seu crânio e ele caiu ali mesmo. Voltei a olhar pela fenda e lá estavam outros mortos circulando pelo cemitério. Tive vontade de encravar o canivete em minha própria cabeça.

sábado, 2 de julho de 2022

Assinado: Cadú

 


Assinado: Cadú.

Eu costumava não ter medo, medo de nada mesmo. Poucas coisas me causavam espanto. Dizem por aí, que tudo que é oculto nos fascina. Comigo às coisas funcionavam exatamente dessa forma. Sempre fui fissurado por coisas do tipo, almas do outro mundo e de seres que habitam a escuridão. Não tenho vergonha em dizer que eu amava ir ao cemitério. Sei, parece loucura, mas é verdade. Não sei explicar o porquê dessas coisas, mas elas faziam parte do meu dia a dia. E por falar no meu dia a dia, digamos que eles eram recheados de climas ruins com uma ligeira dose de insuportabilidade. Barra pesada mesmo. Minha família sim me causava espanto, principalmente por parte do meu pai. O ódio é um sentimento nocivo, prejudica muito mais quem se deixa dominar por ele. Eu tentei. Eu juro que tentei nutrir dentro de mim o mínimo de amor por ele, mas o velho Alberto era osso duro de roer. A presença dele me fazia mal. Dele sim eu tinha medo.

 

Cadú recém completou 19 anos. É um rapaz branco de semblante marcante. Ele não se acha bonito, mas é. Quem não o conhece o julga ser um garoto esnobe, metido e arrogante. Na verdade, Cadú, como qualquer outro ser humano, tem seus dias em que não gostaria de ter acordado. Carlos Eduardo para os desconhecidos. Para os mais íntimos ele é o Cadú, apelido que sua irmã mais velha lhe colocou e pegou. Seu pai Alberto não o suporta, prefere chamá-lo pelo seu nome de registro. Para um ex policial como ele, apelidos é coisa de bandido. Cadú cresceu num lar conturbado, cansou de assistir sua mãe ser agredida. Não fisicamente. Alberto fazia questão de deixá-la na lona usando palavras. Carlos Eduardo tinha certeza absoluta de que sua irmã Laura era abusada sexualmente por ele. Quando questionada a menina negava, mas era perceptível nos olhos dela a mentira. Cadú passou a notar alterações no comportamento da irmã. Na época Laura era só uma garota de 14 anos, estava ainda em formação, mas se comportava feito uma mulher adulta. Era difícil de acreditar, mas, Cadú sentiu que sua maninha mais velha gostava do que seu próprio pai fazia a ela.

Cadú viu muita coisa acontecendo ao mesmo tempo. Coisas ruins diga-se de passagem. Certa feita ele voltava da escola uma hora antes do habitual. Nesse dia ele não teve os dois últimos tempos de matemática e sua turma foi dispensada. Assim que abriu o portão ele olhou para a garagem. O carro do velho Alberto Feitosa ainda estava lá. Deu a volta passando pelo jardim torcendo para que seu pai tivesse ido para o trabalho de ônibus. Ao passar pela janela do quarto dos pais ele ouviu um grito seguido do que parecia ser um tapa. Cadú acelerou os passos. Empurrou a porta da cozinha. Deixou sua mochila sobre a mesa e abriu a primeira gaveta do armário onde eram colocados os talheres. Sim, lá estava ela, a faca de churrasco.

- Hoje eu acabo com a raça desse desgraçado. – disse se dirigindo ao quarto de seus pais.

Carlos Eduardo foi abrindo a porta devagar. Enquanto isso sua mente funcionava a mil por hora. Segurando firme o cabo da faca ele calculou a distância e o melhor ponto para apunhala-lo. Mesmo fervilhando de ódio ele não queria que seu pai sofresse antes de morrer. Uma vez ele leu em algum lugar que uma facada na nuca a pessoa só iria perceber que havia morrido quando já estivesse no além. Algo indolor. Pronto. É isso que ele quer e é isso que ele vai fazer. Cravar a faca em sua nuca. Agora a abertura da porta já o permitia ver o que realmente estava acontecendo. Seu pai sentado na cama, sem às calças, somente com a parte de cima da farda. Sua mãe entre suas pernas, ajoelhada, lhe dando prazer e recebendo tapas no rosto. Cadú não pode controlar a onda de vômito que jorrou no carpete do quarto. Dona Sônia ficou petrificada, rosto ruborizado. Ajoelhada estava, ajoelhada ficou. Seu pai se levantou ainda ereto. Ao ver a cara do filho caiu numa gargalhada diabólica.

- O que foi, quer se juntar a nós? – zombou.

Outra vez o carpete recebeu uma enxurrada de vômito. O pobre garoto deixou o quarto dos pais em choque. Não foram poucas às vezes que Cadú ouviu gemidos vindos daquele cômodo, para ele não seria novidade alguma se seus genitores estivessem transando, mas fato é que sua mãe já não amava seu pai. Sônia era obrigada a fazer coisas que ela não queria por medo e pavor. Por ela já não suportar mais ser humilhada, ela se submetia as loucuras de Alberto. Aquele dia ficou marcado na vida do rapaz. Ele perdeu o apetite, pouco falou e não saiu do seu quarto nem para ir ao banheiro. Ele não tinha coragem de encarar seu pai e principalmente sua mãe. Cadú remoeu aquela raiva, aquela mágoa, aquela repulsa a noite inteira e quando acordou no dia seguinte ele sentia que ele já não estava mais no controle de seu corpo. Algo o dominou.

 

*

 

Eu sei que na verdade eu não fui um bom filho, tão pouco um bom irmão. Laura, minha irmã, vivia perturbando minha paciência pedindo para que eu participasse mais, que eu fosse pró ativo, mas eu não sabia como fazer isso. Ela gostaria que eu fosse menos indiferente e mais cúmplice. Não adianta. Eu não conseguia entender. Nem sempre eu fui assim. Eu me importava com tudo que acontecia em minha família. Veja o poder com que às coisas ruins nos afeta. Elas foram tão intensas que eu me tornei impermeável, digamos. Nada mais me causava incômodo, perdi a sensibilidade para o absurdo. Meu pai violentava minha mãe e minha irmã e meu coração sequer demostrava qualquer ponta de revolta. Me tornei um robô.

Se tem algo dessa época a qual sinto saudades, foi o tempo que passei com Camila. Desses dias sim eu sinto falta. Camila, além de namorada ela era minha amiga. Compreensiva toda vida, me ajudou bastante. Como diz a letra de uma canção, “ O pra sempre, sempre acaba” não foi diferente entre Camila e eu. Acabou. Eu tinha medo que acabasse e mesmo assim, acabou. Houve um culpado? Sim, sempre haverá um culpado.

 

Camila terminava de vestir o vestido enquanto que Cadú pedia que ela ficasse mais um pouco. Eles passaram a tarde inteira juntos, transando no quarto dele e mesmo assim ele a queria mais.

- Não posso. Prometi a minha mãe que a ajudaria com o jantar.

- Mas ainda são dezoito horas, vamos fazer só mais um pouquinho. – voltou a se deitar na cama.

- Nossa, mas, eu cheguei aqui depois da hora do almoço, nem lanchamos, transamos pra caramba, e você ainda quer mais, o que você tem tomado?

- Ah, qual foi gata, quem tem uma mulher gostosa como você não precisa de aditivo. Agora chega dessa conversa e vem pra cama.

- Cadú, vou ficar te devendo o terceiro tempo. Realmente eu preciso ir, tá bom? Eu te ligo quando chegar em casa. – o beijou.

Cadú ainda demonstrou alguma desistência, mas foi vencido.

 

Eu me lembro que depois desse dia a nossa relação mudou. Fiquei com raiva. Fazer sexo com Camila, para mim, além de ser prazeroso, funcionava como uma válvula de escape. Quando eu estava com ela os problemas ao meu redor desapareciam. Era bom. Lembra quando eu falei que sempre haverá um culpado? Sim! Esse culpado era eu. Camila era o amor da minha vida e eu passei a trata-la mal. Cada vez que ela se negava a transar comigo, eu me transformava num monstro, igual ao meu pai.

 

- Eu juro, Cadú, estou com medo de você.

- Não precisa ter medo. – falou acariciando o braço da garota.

- Você está precisando de um tratamento, urgente. Veja o que você fez com o meu braço.

- Fugiu do meu controle. Perdão. – abaixou a cabeça.

- Cara, você precisa se controlar, se continuar assim vamos ter que dar um tempo.

Só em ouvir a frase “ vamos dar um tempo” foi o suficiente para que eu perdesse o controle outra vez. Segurei firme o mesmo braço já dolorido dela. Camila emitiu um curto gemido agudo e me olhou nos olhos. Eu me lembro que nesse momento seus olhos miúdos estavam possessos de medo. Meus dedos entraram novamente em sua carne até encontrarem o osso. Ela abriu a boca para pedir ajuda mas a dor foi  tão forte que nada saiu.

- Você não teria essa coragem.

A minha voz saiu baixa e rouca, um pouco grave, estranha, eu mesmo fiquei assustado. Eu a amava e não entendia porque eu fazia isso com ela. Para se livrar de minhas garras, Camila precisou me estapear e sair correndo do meu quarto. Não adiantou eu implorar ou ir atrás dela pedindo perdão. Ela não suportou o fato de existir a meu lado. Camila se foi, me deixando furioso, salivando feito um lobo maluco na calçada da minha casa. Voltei para o meu quarto para esmurrar às paredes até meus punhos ficarem inchados. Foi o que fiz até chamar atenção de minha mãe.

- Cadú, o que está acontecendo, por que Camila saiu daqui daquele jeito?

Coitada da minha mãe. Dona Sônia Feitosa era a verdadeira face do desânimo e do arrependimento. Ela entrou no meu quarto numa péssima hora.

- Não interessa! – rosnei.

- Como assim, não me interessa? Interessa sim, senhor, você é meu filho.

- Mãe, por favor, agora não. – dei às costas para ela.

- Não vou permitir que você aja igual ao seu pai.

Comparação nunca é legal e ela me comparou ao pior ser humano que já vi viver. Explodi.

- Meu pai é um covarde desgraçado e você é a putinha dele.

De verdade, eu achei que fosse tomar outro tapa, mas na realidade quem foi esbofeteada foi ela. Minha mãe não esperava isso de mim. Magoei quem eu deveria abraçar e acolher. Ela só estava preocupada com o que aconteceu e no entanto...

 

*

 

Carlos Eduardo só gostaria de ser como outros rapazes de sua idade. Curtir final de semana numa piscina com a galera. Sair para comer no shopping com a gata. Namorar bastante e o claro lutar por um futuro menos complicado. Era só isso que ele queria. Todas essas coisas ele vê como sendo algo inalcançável, uma utopia. Como ser tudo e como ter tudo isso nascido num lar que é o retrato fiel de um mundo destruído? Como? Era para Alberto Feitosa ser o seu herói. Era para Sônia ser sua protetora. Era para Laura ser sua irmã mais velha de fato. Não. Nada foi configurado corretamente nessa família e agora Cadú está ali, sentado a horas sem ter noção do tempo em que está la. A paisagem a sua frente é de encher os olhos. Muito verde de diversas tonalidades. Pássaros que passam deixando para trás ecos de seus cantos. Tudo muito lindo. Deus caprichou nessa parte. Mas o garoto tem medo. O medo o consome, aliás, o vem consumindo desde quando tudo ruiu de vez. Cadú até tentou controla-lo, mas foi batalha perdida. O medo é natural do ser humano ele é até necessário de uma certa forma. O medo te faz ficar em alerta, te faz tomar precauções, mas, Cadú tem medo. Por isso ele está sentado ali, refletindo em tudo que aconteceu. Após a passagem de um veículo barulhento alguém tocou em seu ombro.

- Posso me sentar aqui com você?

Cadú sentiu seu coração queimar ao reconhecer quem falava com ele.

- Pai? – engoliu seco.

- Ué, agora eu sou seu “pai”, o que aconteceu como o “ desgraçado e covarde?”

Um gosto de sangue desceu garganta a baixo de Carlos Eduardo.

- E aí garoto, posso me sentar aqui também? Essa paisagem não foi feita só pra você, não é? – se sentou. – diz aí, o que veio fazer aqui?

Cadú apertou os olhos antes de responder.

- Eu queria ficar sozinho.

Alberto lhe deu uma cotovelada de leve no braço.

- Mentiroso. – riu. – você está aqui porque está com medo. – riu mais alto.

- Como sabe, que, estou com medo? – Cadú tem os olhos cheios de água agora.

- Eu te conheço, seus lábios estão tremendo, parece que viu um fantasma.

Cadú não conseguia parar de olhar o rosto, os gestos e até o cheiro de fumo impregnado nas roupas de seu pai, estavam todos ali.

- Mas, você, não pode ser real. – uma lágrima desceu.

- É verdade. – colocou a mão no ombro do filho. – você acabou comigo, agora estou me lembrando. Não sabia que eu tinha ajudado a criar um assassino.

Outro gosto amargo desceu pela garganta.

- Não vou lhe culpar. Você assumiu o meu papel. Fui um monstro. Abusei da minha própria filha. Fazia da minha mulher um saco de pancadas e você...

- Assistindo a todo esse espetáculo. – falou entre os dentes.

Ambos ficaram em silêncio. Cadú olhava para o pai e o pai admirava a paisagem.

- Logo vai anoitecer, filho. Engula esse medo. – se levantou. – eu já vou indo.

Só depois que Alberto desapareceu, foi que Cadú sentiu uma incrível vontade de abraça-lo.

- Pai! – sussurrou.

Pois é, o mundo segue girando independente do que vivemos no momento, parece que o universo não se importa com os nossos problemas. Qual o propósito de minha vinda a esse mundo? Pra que todo aquele esforço de minha mãe ao me dar a luz? Que sacanagem hein? Dezenove anos apenas, mas parece que foram mil, um milhão de anos vividos, sei lá. Só vi e fiz merda nessa droga de vida.

Mais alguém tocou em seu ombro. Diferente de seu pai, agora ele sabe quem o tocou.

- Camila!

- Oi! – se sentou. – só me responda porque? – fechou a cara.

- É, eu, sim...

Camila desferiu um tapa tão forte que o nariz do rapaz sangrou.

- Meu Deus, que diferença isso faz agora. O mal já foi feito. – Camila limpou às lágrimas olhando para frente.

- Eu te amo. Não suportaria lhe ver com outro.

- Cadú, eu ainda te avisei, você precisava de um tratamento, você não me deu ouvidos e aconteceu o que aconteceu. Eu te ajudei e você acabou com a minha vida. – começou a gritar. – eu tinha sonhos, sabia? Planos, por que fez isso comigo?

- Amor, puro amor.

- Uma ova. Você me usava. Tarado, você é um tarado, um maníaco sexual de merda. Você vai urrar no inferno.

Cadú começou a se punir dando violentos socos em sua cabeça.

- Isso mesmo, bata mais forte seu nojento. – Camila aplaudiu.

Os golpes foram tão fortes e muitos que o rosto do rapaz passou do vermelho para o roxo. Os nós dos dedos também sofreram com as pancadas. Cadú queria tanto que tudo aquilo fosse um pesadelo, que ao abrir os olhos ele estivesse deitado em sua cama sentindo o cheiro do café fresco preparado por sua mãe. Ele abriu os olhos e Camila ainda estava lá.

- Que showzinho ridículo, hein?

- Some daqui. – rosnou.

- Está nervosinho, é?

- Vá embora! – grunhiu

- Ah, agora quer que eu vá embora, o que aconteceu com aquele tesão todo por mim?

Camila levantou o vestido lhe mostrando seu par de coxas roliças.

- Que tal? – botou o dedo indicador na boca sensualizando.

- Pelo amor de Deus, me deixa em paz. – juntou às mãos.

- Legal. Já vi o bastante. – se levantou. – se cuida, seu merda. – deu-lhe um tapinha na cabeça.

A onda de choro lhe causou um terrível mal estar. Cadú viu tudo a sua frente girar feito um redemoinho e o inevitável aconteceu. Um jato de vômito seguido de bílis saiu. O mal estar não passou depois disso. Para limpar a boca ele usou a manga da camisa ainda chorando. Em meio a catástrofe que se tornou sua existência, Camila era a única coisa que o fazia querer seguir em frente. Existia um sentimento puro de ambas às partes. Quando ela o pediu um tempo, Camila também sofreu, chorou a noite toda e teve vontade de ligar. Ela sim estava disposta ajudá-lo a sair da fossa. Assim que começou o namoro com Carlos Eduardo, logo de cara ela percebeu que estava adentrando num campo minado, num terreno desconhecido. Mas, por sentir que o rapaz poderia ser o homem de sua vida, ela investiu pesado nele. Por isso ele chora amargamente. Por mais que Cadú tente, ele não consegue se controlar.

- Prenda a respiração por dez segundos e depois a solte devagar.

Cadú temeu olhar para o lado e ver quem falava com ele, mas no fundo ele já sabia quem era.

- É, sou eu mesma, maninho, pode olhar. – Laura sentou-se bem perto do irmão e apoiou sua cabeça em seu ombro. – eu não sabia que você tinha essa coragem.

- Sim! – gaguejou.

- Eu tenho uma parcela de culpa nisso tudo. Quando o pai tocou em mim a primeira vez, eu tinha que ter falado logo para a mãe. Mas...

- A mãe não acreditaria em você. – fungou o nariz. – o problema da mamãe é que ela confiava muito nas pessoas e principalmente no pai.

- Não! Eu não contei porque eu gostava. Essa que é a verdade. Não queria que acabasse. Ele tocava em mim todos os dias. Despertou meu libido cedo demais, e aí então...

- Pois é. Então eu me tornei o irmão da vadia. – fechou o punho.

- Não me chame de vadia. Eu, eu queria largar aquela vida, queria voltar ser aquela Laurinha de antes, lembra? – chorou.

- Você não tem ideia do que é chegar nos lugares e ouvir da boca dos caras “ ei, Cadú, comi sua irmã ontem” ou então “ nossa, a boca da sua irmã parece veludo”.

- A vida era minha. – vociferou. – você não tinha o direito de acabar com ela. Eu aí mudar, eu iria me aliar a você e traçar novos rumos para nossa família.

- Nossa família era um caso perdido. – colocou a mão na frente da boca para evitar o pranto.

- Cada um de nós deu a sua contribuição. Não pense você que foi o único que sofreu. Apesar da vida que eu levava, eu não era uma indiferente como você. No início você não se importava.

- Isso. Jogue na minha cara. Eu mereço.

- E agora está aí, posando de bom moço, com medo...

Cadú se enfureceu.

- Eu não estou com medo. – Sibilou.

- Claro que está. Sempre teve medo e agora que tudo ruiu você se encontra a beira do pânico. Lamento em informá-lo, maninho, já era, um caminho sem volta esse que escolheu.

A voz de Laura ecoava em sua mente cada vez mais forte. Medo, medo, medo, ele sempre teve muito medo. Carlos Eduardo voltou a se punir, porém dessa vez ele berrava e pedia para que ela o deixasse em paz. Medo, muito medo. Aos poucos Cadú foi abrindo os olhos. Sua irmã já não estava mais ali. Algo muito estranho o acometeu. Ele sentiu saudades dela. Laura pode ter se transformado numa meretriz, numa vadia de beira de rua barata, mas ainda assim ela era sua irmã mais velha. Pelo menos ela era forte, tinha coragem para encarar o pai e incentivava sua mãe a ser mais mulher e não capacho. Laurinha se foi, porém o medo continua.

 

*

 

Menti ao afirmar que eu não tinha medo de nada. A mentira sempre foi minha companheira, a vida inteira. Fui uma criança que precisava de ajuda, eu não tinha a quem recorrer, precisei me acostumar com os fantasmas e o resultado disso tudo foi, que tornei um adulto desconfigurado. Alcancei 19 anos de vida, mas ainda sou aquele garotinho apavorado com medo de dormir sozinho no escuro. Se alguém tem culpa? Sim, claro que há culpados. Meu pai foi o principal deles. Minha mãe, uma pobre coitada que deu ouvidos a um sujeito feito ele e por causa disso passou a odiar sua existência. Dona Sônia até que lutou para manter nossa família em harmonia, mas foi uma briga desigual, uma Andorinha só não faz verão. Finalmente minha mãe cedeu. As coisas ficaram fáceis para o velho Alberto Feitosa. Só em lembrar do que aconteceu depois da derrota de minha mãe já me causa náuseas. Foi nesse ponto que a família Feitosa desapareceu em meio a avalanche. Mãe, não precisa mais fingir, eu sei, a senhora está aqui.

- Cadú, meu filho, o que fez de sua vida?

- Eu já não vivia mais, mãe.

Dona Sônia se acomodou ao lado do filho. Segurou em suas mãos e chorou.

- Quando sua irmã nasceu, seu pai a segurou e disse, nasceu minha princesa. Foi bonito de ver. Quando você nasceu, foi a minha vez de declarar algo. O médico ainda te puxava quando eu disse, nasceu o meu herói.

Carlos Eduardo começou a soluçar.

- Por que só agora a senhora está me contando isso?

- Porquê você foi mesmo o meu herói. Confesso que houve uma demora, mas você agiu na hora certa. Nada mais aqui fazia sentido pra mim. – sorriu mexendo na franja do filho.

- Mas, mãe...

- Cadú, você precisa ser homem. Sentir medo é normal. Eu tive medo a vida inteira. Lembra do vovô? – Cadú assentiu. – então, eu tinha pavor. O seu pai abusava sexualmente de sua irmã, e seu avô abusava de mim de outra forma, ele usava palavras. Minha mãe morreu deprimida por causa dele, aquele velho maldito. Eu consegui me livrar das garras dele...

- Acho que não adiantou muito, você, caiu nas garras do pai.

Sônia ficou um tempo calada olhando para o filho.

- Mamãe?

- Pois é, corri de um covil para cair em outro. Com Alberto as coisas foram mil vezes pior. O desgraçado ao invés de me agradecer por realizar o sonho dele de ter um casal de filhos, ele passou a me castigar. Sexo forçado, quase um estupro. Desvirginou a própria filha. Foi relapso com o filho problemático. Alberto foi um demônio, isso sim.

- Que vida de merda. – deu de ombros.

- Por isso eu digo e repito. Você é o meu herói. Aliás, herói de todos nós. – segurou o rosto de Cadú com as duas mãos.

- Como assim, mãe? – voltou a soluçar. – que tipo de herói faz o que eu fiz?

- Todos nós estávamos sofrendo...

- Menos a Camila.

Sônia apertou os lábios segurando o choro.

- Você tirou dela a chance de seguir em frente. Se tinha alguém que não merecia ser penalizada, esse alguém era Camila. O seu ciúme doentio, sua falta de controle fez isso com ela.

- Não. – tirou às mãos da mãe do rosto. – quem matou Camila foram vocês. Eu só fui um instrumento usado. Você poderia muito bem ter fugido com a gente. Você já havia feito isso uma vez, o que custava fazer de novo?

- Eu não podia...

- Podia sim. Podia sim. – falou entre os dentes. – mas preferiu ficar sendo abusada, assistindo sua filha sendo violentada e seu filho chafurdando cada vez mais na lama podre.

- Filho...

- Nossa vida poderia ter sido diferente, mãe, poderia sim.

- Pelo amor de Deus, Carlos Eduardo, pense, seu pai era um policial, um homem treinado, perigoso, ele nos encontraria fácil fácil. Do que adiantaria fugir?

Silêncio constrangedor.

Sônia estava certa. Alberto sempre foi um sujeito safo, malandro, conhecia as entranhas do submundo. Foi um bom agente, porém nem todas as suas vitórias foram conquistadas na base da honestidade.

- Ele nos mataria, não é? – balbuciou Cadú.

- Você tem dúvidas disso?

Mãe e filho permaneceram algum tempo em silêncio. O vento fresco do final de tarde começou a acaricia-los. A paisagem que outrora se mostrava radiante com a luz solar trazendo vida as cores, agora dá espaço aos fachos de luz alaranjados  anunciando a chegada da noite. A dona de casa observa a revoada dos pássaros e aponta fazendo questão que o filho olhe na mesma direção.

- Será que os pássaros entendem que são livres? – comentou Cadú.

- Absoluta!

Demorou, mas Carlos Eduardo entendeu o que sua mãe quis dizer lhe mostrando a revoada. Cadú deveria tomar como exemplo a atitude dos pássaros, ser livre, liberto, deixar para trás aquilo que o aprisionou a vida inteira. Chega de sentir medo. Chega de sentir pena de si mesmo. Do que adianta ficar ali se martirizando? É tarde para voltar atrás, o que foi feito , foi feito. Sônia colocou o braço envolta do pescoço do seu caçula e o puxou para mais perto dela.

- Sei o que está pensando agora. Eu também senti o mesmo que você naquela hora. O que há do outro lado é um mistério que nos deixa fascinados. Você teme o que há esperando por cada um de nós do outro lado. Isso você só saberá quando de fato deixar o medo ir embora e simplesmente fazer igual aos pássaros, meu filho.

- Tem certeza, mãe? – voz embargada.

Voltou a segurar o rosto do filho.

- Sim, claro que tenho. – limpou a lágrima com o polegar. – sua história será conhecida. Todos saberão quem foi Carlos Eduardo Feitosa. – sorriu. – agora seja homem e assuma o que fez.

Cadú chorou forte. Olhos fechados. O pranto foi tão intenso que sua saliva escorria pelos cantos da boca. Mesmo de olhos bem fechados, ele sentiu que sua mãe o deixara. Agora ele está sozinho. Pelo menos ali, sentado na beirada daquele prédio, ele se encontra sozinho. Ao olhar para baixo Cadú começa a ver curiosos se aglomerando com suas cabeças erguidas olhando para ele. Uma viatura policial parou abruptamente na calçada assustando os curiosos.

- Vamos nos afastar pessoal. A quanto tempo aquele maluco está lá?

- Eu não sei. – respondeu um senhor. – dizem que ele chegou ali no início da tarde e desde então ficou ali, sentado.

- Mais um suicida cansado dessa vida. – disse o outro policial. – onde estão os bombeiros?

- Chegando. Vou tentar manter contato com ele. – foi até a viatura e pegou o megafone.

Cadú ouviu tudo que o agente falou. Apesar de todo o esforço, o policial não obteve sucesso. Irredutível, essa era a palavra certa. Mais pessoas vindas de todos os cantos se juntavam as que já estavam lá para saberem o final da história. Carlos Eduardo consegue entender o fato deles estarem ali há horas. Não são todos os dias em que aparece alguém querendo encurtar ainda mais uma vida que já é breve. Muitos ali torcem por um desfecho feliz, porém outros querem a fatalidade, a tragédia, querem sangue. Os bombeiros ainda não chegaram. Cadú se colocou de pé. Olhou para baixo e visualizou seu pai rindo, zombando dele. Ao lado de seu pai estava Camila o chamando de covarde. Laura lhe fazia gestos, o incentivando a pular. Sônia, com às mãos no peito, apenas olhava para ele. Eles não estão lá embaixo, isso é coisa da minha cabeça, pensou.

- Eu não tenho mais medo do que irei encontrar do outro lado da vida. – falou para si.

Enterrou sua mão no bolso da calça e puxou um pedaço de papel. Uma folha de caderno para ser mais exato onde há alguns dizeres. Deu uma rápida lida e voltou a guardá-lo no mesmo lugar. Chega de sofrer. Chega de lamentos. Chega de sentir medo. Hora do show. Cadú se lembrou dos pássaros e pulou para a morte com os braços abertos.

 

*

 

O investigador abriu sem bater a porta da sala onde o médico legista terminava de examinar o corpo de Carlos Eduardo.

- Me chamou, Barbosa?

- Sim. Encontrei esse papel no bolso da calça dele. – apontou para a mesa. – tem luvas na gaveta.

O agente calçou as luvas. Com cuidado foi desdobrando o papel manchado de sangue. Começou a lê-lo.

- A quem interessar possa: Me chamo Carlos Eduardo Feitosa, acabei de completar dezenove anos e assassinei toda minha família e também minha namorada, Camila Magalhães...

A cada revelação o agente olhava para o corpo deitado naquela maca de aço inox. O legista seguia fazendo seu trabalho e quando o policial deu por si estava sentado terminado de ler o conteúdo do papel.

- Não  espero que entendam. Nada justifica o que fiz. Espero que não só eu, mas que todos da minha família tenham um sepultamento digno. Deixei os corpos dentro da casa onde vivíamos, segue o endereço... Fiz tudo isso hoje e sem nenhum arrependimento. Que Deus tenha piedade de minha alma. Assinado: Cadú.

FIM