FALCÃO
PEÇANHA
Conto um
Estava bom demais para ser verdade. A segunda-feira havia
começado tranquila. Acordei pela manhã ainda cansado da noite anterior quando
Raquel e eu resolvemos fazer amor de madrugada, por volta das duas da manhã. Foi
muito estranho. Quando finalmente terminamos, o dia já despontava no céu e
minha namorada precisava se ajeitar para voltar ao trabalho. Eu ainda permaneci
algumas horinhas, mas levantei-me assim que o celular despertou às sete. Eu não
costumo dormir na casa de Raquel aos domingos, poucas foram às vezes em que fiz
isso. Nossos encontros limitam-se muito mais as sextas-feiras e sábados, isso
quando ela não está de plantão no hospital onde é enfermeira há doze anos.
Deixei a casa de minha garota e tomei café da manhã numa padaria meia-boca que
fica na esquina. Saboreei um delicioso Croissant de queijo com presunto junto
com um café puro coado na hora. Às oito e vinte deixei o estabelecimento e
dirigi sem pressa alguma até o DPN(Departamento Policial de Natalina) onde atuo
como investigador a mais ou menos vinte anos. Ao chegar, fui recepcionado por
Rubens Fragoso, capitão do DP, segurando uma folha de A4 pela ponta. Eu já
sabia muito bem do que aquilo se tratava.
— Toma, é seu. - deu-me as costas.
— Bom dia, capitão.
Fragoso girou nos calcanhares.
— Bom dia, senhor Lauro. Agora mexa-se.
O normal de Rubens é o mal humor e isso se intensifica ainda
mais as segundas-feiras, principalmente pela manhã. Eu gosto do capitão,
aprendi muito com ele e verdade seja dita: se Natalina é o que é hoje, em
questão de segurança pública, devemos muito isso a ele que possuí polícia nas
veias. Caminhei a passos curtos até minha mesa lendo a ocorrência e decidi ver
de perto toda a situação.
*
Parei meu carro no acostamento e desci ajeitando minha camisa
para dentro da calça. Sempre gostei de estar bem apresentável para ir a
qualquer lugar, mesmo que esse lugar seja uma suposta cena do crime. Passei
pelas viaturas da PM e me identifiquei para os agentes que guardavam o corpo. Haviam
muitos curiosos por ali fazendo seus registros. O ser humano é algo belo e ao
mesmo tempo complexo. Temos uma tremenda aversão a dor e ao sofrimento, mas
sempre que temos a oportunidade estamos ali, contemplando-os.
— Com licença. – falei ao passar por uma moça que não tirava
os olhos do cadáver. – foi você quem a encontrou?
— Sim! – seu nervosismo era tanto que ela mal conseguia me
responder.
— Pode me dizer em detalhes como foi que aconteceu?
— Acho que sim. Eu sempre passo por aqui a pé quando vou para
o trabalho, aproveito para apreciar a vista...
— Pois é, o lugar aqui é remoto, mas é bem arborizado, muito
verde.
— Dai então eu olhei e vi o saco de lixo preto e fiquei
revoltada. Como pode, jogaram lixo aqui? Foi quando desci e vi que... – a voz
ficou embargada. – vi a pobrezinha.
Passei a mão no rosto e solicitei que um dos PMs colhesse
mais informações com ela. Acocorei-me para ver o corpo mais de perto.
— Mulher branca, boa aparência, quarenta e cinco anos no
máximo, morta por disparo de arma de fogo na região do tórax. – olhei para o
PM. – uma execução.
— Tentativa de assalto?
— Não! – me levantei. – ela foi deixada aqui. Foi executada.
Quem cometeu o crime sabia o que estava fazendo. Tiro no peito. Queriam ela
morta.
O outro policial apertou os olhos e soltou uma piadinha sem
graça.
— Você é o Sherlock Holmes por um acaso?
— Não! – me afastei. – apenas estudei um pouco mais do que
você.
*
Meu pai foi um policial. Um baita policial diga-se de
passagem. Sempre que pode, dona Jurema, minha querida mamãe, faz questão de enaltecê-lo
nas reuniões de família. Segundo ela, o senhor Osmar Falcão Peçanha era
considerado o xerifão de Natalina e que com ele a bandidagem não tinha vez. Pois
é, meu coroa era bom no que fazia, ele tinha a profissão como um verdadeiro
sacerdócio. Eu me lembro e não foram poucas as vezes em que ele nos abandonou
no meio da madrugada para atender a um chamado de urgência. Meu pai, meu herói
e meu exemplo, é claro.
Voltei para o meu veículo lembrando-me do passado quando meu
telefone vibrou no bolso de trás da calça. Era Raquel.
— Oi! - sentei-me ao volante.
— Eu sei que passamos o final de semana inteiro juntinhos,
mas, será que podemos nos ver hoje?
Eu já sabia aonde Raquel queria chegar com aquela conversa.
— Por mim tudo bem. Só preciso avisar minha mãe.
Ela ficou em silêncio. Fazendo caras e bocas provavelmente.
— Tudo bem. Eu aguardo você avisar sua mamãezinha.
Minha mãe e Raquel nunca foram amigas, porém longe de serem
inimigas. O grande problema em questão é; Raquel Assunção quer se tornar a
senhora Falcão Peçanha de qualquer jeito e eu tento as duras penas fazer com
que ela mude de ideia. Casar pra que? Não podemos só morarmos juntos, ou
simplesmente seguirmos como namorados?
— Querida. Estou no meio de uma investigação. Te ligo depois.
Certo?
— Fico te esperando.
Precisei parar e fazer com que minha mente voltasse ao foco
do caso. Olhei para o lado e vi um dos peritos passando pelas fitas amarelas
que isolavam o local. Acenei para ela a pedindo que aguardasse.
— Bom dia! Já tem um parecer?
— Incipiente, mas sim. Sem sinais de violência física. Tudo
indica que ela foi morta e colocada aqui.
A perita era uma mulher esbelta, alta, cabelos cortados bem
curtinhos e não tirava os olhos de mim um segundo.
— Temos uma identificação?
— Sim! Sônia Soares.
Ela me mostrou o documento. Eu não tinha luvas ali no momento,
por isso analisei o material nas mãos da perita. Sônia Soares, uma mulher
madura, olhos vivos em um semblante bastante comum. Por que a mataram?
— Ótimo! Não quero lhe atrasar.
— Que nada, foi um prazer.
Ai, ai, ai essas mulheres!
*
Jurema Falcão Peçanha, minha mãe, a mulher mais enigmática do
mundo. Nem meu falecido pai o qual conviveu com ela cerca de trinta e cinco
anos a conheceu direito. Ele vivia dizendo “Jureminha, minha querida, você é um
mistério profundo”. Ela adorava quando ele dizia essas coisas para ela, talvez
tenha sido isso que o fez ser louco por ela todos aqueles anos.
Eu passei o final de semana todo na casa de Raquel e quando
isso ficou decidido, eu apenas a comuniquei e ela deu de ombros como sempre
faz. Dona Jurema se faz de durona, finge que não se importa, mas no fundo ela se
corrói de ciúmes por dentro e não é por menos. Sou filho único. Quarenta anos e
ainda moro com ela e não pretendo largar da barra de sua saia tão cedo.
— Oi, coroa! – falei assim que ela me atendeu.
— Coroa é a sua mãe!
— Você é a minha mãe. – ri.
— Já sei: vou passar na casa da Raquel mais tarde.
Acertei?
— A senhora deveria jogar na loteria.
— Lauro, meu filho, você já é um homem barbado, vê se toma
jeito e case-se com essa moça, ela parece ser legal.
Só me faltava essa. Sofrendo pressão dos dois lados.
— Tudo bem, mãe. Vamos com calma. Só liguei para avisar.
— Tudo certo, meu filho. Agora deixa eu voltar a assistir meus
vídeos de culinária em paz.
Agora sim eu poderia seguir com meu trabalho bem mais
tranquilo.
*
Mais tarde lá estava eu envolto de meus pensamentos aguardando
minha namorada surgir na porta de saída do hospital para termos definitivamente
uma conversa sobre o nosso relacionamento. Um bom policial nunca perde tempo,
dizia meu querido pai. Aproveitei para deixar Fragoso a par do que havia
acontecido.
— Eu já descartei a possibilidade de latrocínio.
— Acha que foi uma execução, então?
— Positivo. – respondi acenando para Raquel que deixava a
unidade hospitalar.
— Siga com o trabalho. Quero relatório completo a cada
passo, copiado?
— Copiado.
Raquel entrou de maneira ruidosa jogando seus pertences no
banco de trás.
— Oi! – me beijou. – estou morrendo de fome, podemos comer
alguma coisa?
— Serve um dogão da esquina?
— Claro que serve, amo os podrões.
Parei o carro bem ao lado do famoso hot dog vinte quatro
horas que localiza-se em uma das praças mais movimentadas de Natalina. Essa
praça é muito conhecida e considerada o maior polo gastronômico da região.
Quase tudo relacionado a comida tem ali. Desde culinária Árabe a maravilhosa
comida mineira. Raquel foi correndo para a fila do dogão e eu, mais uma vez, botei
a mente para funcionar. Sônia Soares e sua execução. De repente notei uma
movimentação suspeita de um indivíduo. Ele circulava por entre os transeuntes
parecendo esconder algo por baixo da blusa.
Perto da barraca do frango frito haviam duas meninas comendo
e jogando conversar fora. Alvo fácil. Desci segurando minha pistola ainda no
coldre. O tal malandro as abordou com uma faca de cozinha. Eu apertei meus
passos sacando minha Glock.
— Polícia, parado. Jogue a arma no chão.
Um animal acuado costuma atacar ou fugir, nesse caso ele
decidiu fugir. Eu até esbocei correr, mas minhas condições físicas não andam lá
essas coisas. Preferi acionar a patrulha mais próxima e ficou tudo certo.
Raquel veio segurando dois cachorros-quentes bem caprichados.
— Você está bem? – ela olhava ao redor.
— Estou! Vamos nessa.
*
É sempre bom estar com Raquel. Além de ser uma mulher
extraordinariamente bonita e gostosa, ela é inteligente e agradável. Lógico que
não ficaríamos somente no dogão sentados no sofá assistindo a TV. Fizemos amor
ali mesmo e na hora do banho, reiniciamos às atividades. Ao final eu estava
fraco, por isso me joguei na cama ainda nu.
— E então, senhor Lauro Falcão Peçanha. Quais as suas
pretensões comigo?
— As melhores possíveis. – falei com a cara enterrada no
colchão.
— Estou falando sério, cara. Eu já tenho 37 anos. Quando vai
parar de me enrolar? – se envolveu na toalha.
— Eu não estou te enrolando. Nós podemos morar juntos, seria
a mesma coisa. Ou não?
— Não acho. Prefiro casar. – mexeu nos cabelos molhados o que
a deixou ainda mais linda.
— Eu curto o nosso lance. - levantei-me. – posso pensar?
Ela me olhou e depois olhou na direção do meu membro e
sorriu.
— Eu quero me casar, detetive. Nada diferente disso, se
não...
— Se não? – cruzei os braços.
— Vamos ter que dar um tempo no namoro.
*
Lembra de quando falei que tudo estava bom demais para ser
verdade? Pois então. Eu falava justamente do fato de Raquel ter me colocado
contra a parede e praticamente exigir que eu me case com ela. As coisas não
devem ser assim, não desse jeito. Eu a amo muito, mas eu também penso que, casamento é um passo muito sério a
ser dado. Não pode ser levado como uma brincadeira de casinha. Dar um tempo
no namoro. Não sou do tipo que aceita pressão e se tiver que ser assim...
Fui até a residência dos Soares, mas confesso que minha
cabeça não estava nenhum pouco preparada para tal tarefa. Normalmente as
conversas com parentes ou familiares de vítimas de homicídios não costumam ser
nada agradáveis. A casa é simples. Muros altos. Portão social e portão de
garagem combinando. Interfone. Típico lar de pessoas de classe média.
— Bom dia. Sou o investigador Falcão Peçanha, posso falar com
o senhor Luís Soares?
Aguardei a resposta e ela veio dez segundos depois. Uma voz baixa,
metalizado devido ao microfone do aparelho.
— Um momento!
O portão social se abriu e dele surgiu um cidadão mediano,
pele branca com algumas manchas vermelhas, óculos e incrivelmente calvo.
— Bom dia, senhor policial. Em que posso ser útil?
Luís Soares tinha porte de professor universitário.
— Podemos entrar e conversar?
— Sim! – falou me dando passagem.
Se eu fosse apostar, ganharia o prêmio sozinho. A casa por
dentro era ainda melhor do que por fora. Tudo do bom e do melhor havia ali
dentro.
— Sente-se detetive. Deseja tomar alguma coisa, um café
talvez?
A educação do sujeito era quase irritante.
— Pode ser.
Para quem acabou de perder a esposa de um modo tão terrível,
até que Luís Soares estava tranquilo. Tranquilo até demais para o meu gosto.
— Prontinho!
O cara acertou até na quantidade de açúcar que gosto.
— Podemos começar, detetive? – apertou os olhos por trás dos
óculos.
— Lauro Falcão Peçanha. – deixei a xícara em cima da mesa de
centro. – em primeiro lugar, lamento pela sua perda e dizer que estarei
trabalhando a finco para solucionar esse caso. E em segundo, gostaria de saber o
que sua esposa fazia ou fez para ser executada?
Luís Soares não tirava os olhos de mim um segundo sequer.
— Executada?
— Sim! Pelo menos é o que as evidencias mostram.
— Não foi um assalto? – falou sem esboçar qualquer movimento.
— A princípio acreditávamos que sim, mas, depois de
estudarmos melhor o fato, temos 98% de certeza de que sua esposa, Sônia Soares
foi executada.
Agora sim Soares desabou num choro comovente que por muito tempo
acreditava eu, se encontrara represado. Me fez lembrar um menino levado que acabara
de ter o pedido negado pela mãe. Incrível! O deixei terminar.
— Meu Deus! Aonde vamos parar? – tirou os óculos revelando
olhos miúdos. – minha Sônia era uma mulher tão boa, era capaz de tirar do nosso
filho para dar para outros.
— Lamento! – engoli seco. – o que ela foi fazer do outro lado
da cidade?
Os óculos voltaram a ornamentar o rosto. Luís parecia um
tomate de tão vermelho que estava.
— Ela saiu daqui dizendo que participaria de uma exposição de
artesanato. Nem meu filho e eu pudemos acompanha-la então ela decidiu ir
sozinha.
— Hum! O senhor e seu filho foram para algum outro lugar?
— Eu prometi ao Lucas que o levaria ao cinema.
— Tem como comprovar isso?
Se outrora o homem parecia um tomate, agora com o meu
questionamento parecia a beira de um derrame.
— Vamos ver se estou entendendo. - ajeitou-se na poltrona. – por
um acaso sou suspeito?
— Entenda uma coisa, seu Luís...
— Acho que podemos dar essa conversa por encerrada.
Me levantei ainda falando.
— Não há registros de ligações do senhor no celular da sua
esposa.
A respiração do viúvo passou a falar mais alto.
— Infelizmente minha mulher tinha sérios problemas com
relação ao horário, senhor policial. Estou acostumado a vê-la chegar muito
tarde da noite. Simplesmente achei que seria mais um desses dias. Entendeu?
— Ótimo! – andei em direção a porta. – tenha um bom dia,
senhor Luís.
— O senhor também, policial.
*
Fisicamente eu estava bem, mas mentalmente um bagaço.
Aproveitei as horinhas de folga para relaxar e quem sabe jogar um pouco. Tudo
isso foi planejado, porém me esqueci de um fator primordial chamado Jurema
Falcão Peçanha, minha querida mamãe.
Logo ao entrar pela porta dos fundos que dá acesso a cozinha,
dei de cara com ela picando alguns legumes para o seu famoso cozido.
— Bênção, mãe!
— Deus te abençoe, meu filho.
Eu já havia cruzado toda cozinha quando ela me fez girar os
calcanhares.
— Sente-se.
Seu pedido é uma ordem.
Puxei a cadeira. Me sentei e aguardei.
— Há pelo menos um mês tivemos uma conversa. Lembra? E você
disse que resolveria tudo com Raquel, então... vou direto ao ponto. Assunto
resolvido ou não?
Eu amo minha mãe. Daria minha vida por ela, mas tinha horas
em que ela testava meus limites.
— Conversei com ela sim.
Dona Jurema me olhou por trás dos óculos de leitura.
— E?
— Nada feito. – suspirei.
Minha mãe voltou com sua tarefa visivelmente irritada.
— Se eu fosse essa moça já teria lhe dado um pé na bunda.
— O que é isso, mãe?
— O que ouviu! Por que não joga limpo com ela? Por que não
diz logo; Raquel, estamos juntos, mas casar não é a minha finalidade. Pronto.
Fica mais bonito do que ficar enrolando a menina.
Ficamos em silêncio. Somente as batidas da faca contra o
vidro da mesa eram ouvidas.
— A senhora tem razão. – me levantei. – vou ligar para Raquel
e...
— Tome logo uma decisão.
Andei até meu quarto um pouco mais fadigado mentalmente. As
vezes penso que, relacionamento amoroso e investigação criminal são coisas que
jamais deveriam andar juntas e no meu caso há mais um agravante: sou policial,
sou solteiro, namorando e que ainda mora com a mãe viúva. É complicado demais.
As cobranças surgem de ambos os lados. Ao ver minha cama, meticulosamente
arrumada, pensei duas vezes em me jogar. Dona Jurema é sinistra. Não me joguei,
como era de costume. Me deitei fechando os olhos, quem sabe um cochilo antes de
uma tomada decisão não ajude?
*
Bem antes de ser acometida pela tragédia que infelizmente
tirou Sônia Soares do convívio da família, os Soares viviam bem na medida do
possível. Luís, até mesmo antes de conhecer sua esposa, já era um funcionário
público muito bem remunerado e sempre viveu como um verdadeiro playboy. Sônia,
ganhava a vida prestando seus serviços como explicadora e na época em que
começou a se relacionar com Luís levou a fama de aproveitadora. A golpista do
baú. Lógico que isso não a fez desistir do casamento. Entre Luís e ela existia amor
de verdade. Sônia não sabia que estava grávida quando propôs ao esposo que a
ajudasse com um empreendimento que, segundo ela, a renda mensal da família triplicaria.
— Uma loja virtual? – Luís tirou os óculos.
— Exatamente! Esse mercado vem crescendo muito nos últimos
tempos. – lhe mostrou o site na tela do notebook.
— E que garantias temos que esse negócio é promissor? –
cruzou os braços.
— Numa loja virtual estamos livres de aluguel. Tudo o que
precisamos é de um lugar para estoque, ou seja: custo baixíssimo.
— Hum! Não sei não. Vou pensar no assunto.
Quando Lucas nasceu, a loja virtual de Sônia já era um
sucesso e como foi previsto, a renda familiar foi parar nas alturas ao ponto do
próprio chefe da família se tornar um dos funcionários.
— Minha esposa querida e sua mente visionária. Que orgulho. –
a abraçou. – essa vitória merece uma comemoração a dois.
— Hum, gostei da ideia.
— Que tal um jantar logo mais a noite no restaurante onde lhe
pedi em casamento?
— Jura?
Luís anuiu.
A realidade é cruel e não poupa absolutamente ninguém, classe
social, etnia, cor da pele ou idade. Lucas Soares sofre com a ausência da mãe e
isso o faz chorar e ter pesadelos todas as noites.
— Oi, filho? – Luís entrou no quarto às pressas.
— Pai, a mamãe. – se jogou no colo do pai.
— Sonhou com ela de novo?
— Sim!
— Se acalme, filhão. Nós vamos superar tudo isso. Acredite no
papai.
— O senhor pode ficar aqui comigo?
— Claro. – o deitou. – papai vai ficar sentado bem aqui.
E assim tem sido às noites de Luís e de seu único filho Lucas
desde quando Sônia foi assassinada.
*
As vezes me pego pensando sobre decisões que tomei e às que
ainda preciso tomar. Eu digo as vezes porque quase sempre estou com a mente
direcionada ao trabalho. Confesso que não ligo muito para os assuntos
concernentes a minha vida amorosa. Eu amo ser solteiro e não vejo razão para
abandona-la. Quanto a Raquel e minha mãe, prefiro deixar com que o destino
resolva por mim. Sou investigador de polícia e quando sou comissionado para resolver
um caso eu não posso me dar ao luxo de refletir em questões paralelas.
Voltei ao DPN e minha intenção era seguir direto para a sala
de Fragoso e deixá-lo inteirado da visita que fiz ao viúvo de Sônia Soares, mas
antes que eu pudesse fazer isso ele me abordou no corredor.
— Como foi lá?
— Saí de lá com uma impressão de que terei que retornar.
Rubens cruzou os braços.
— Por que, acha que Luís Soares não foi convincente?
— Não sei! Só sei que eu preciso voltar lá uma segunda vez.
— Tudo bem! O tempo está passando. – começou a andar em
direção a sua sala. – quero que volte a residência dos Soares ainda hoje se for
possível.
— Sim, senhor.
— A mulher foi executada, Peçanha. Não é apenas só mais um
crime. Vamos checar os antecedentes. Conto com você.
— Pode deixar, chefe.
Como é bom saber que o nosso superior confia em nosso
potencial. Eu me lembro que, assim que ingressei na polícia ainda muito jovem,
o capitão anterior não era uma pessoa que delegava as funções e deixava o
profissional trabalhar com autonomia. Ele era inseguro e todos no departamento
sabiam disso e por isso, nada funcionava como deveria. Com a chegada de Rubens Fragoso
meus companheiros e eu conquistamos o que sempre sonhamos: confiança.
Capitão Rubens Fragoso é um líder nato, um sujeito de honra,
não alcançou o comando máximo da segurança de Natalina por acaso. Na época das
forças armadas foi o melhor de sua turma. Sua doação foi total ao ponto de
colocar sua vida em risco. Quando chegou nas forças auxiliares sua devoção por
fazer às coisas com paixão e dedicação triplicou. Logo de cara liderou uma
operação de tomada de terreno. O tráfico havia dominado uma certa região mais
precária da cidade e graças a sua inteligência e bravura, hoje os moradores
vivem tranquilamente lá.
Deixei o DPN e encarei o transito maluco em direção ao IML. Minha
cidade natal cresceu muito e se transformou numa metrópole muito parecida com São
Paulo com prédios e arranha-céus, verdadeiras montanhas feitas de concreto e
aço. Fantástico. Claro que, todo o crescimento tem o seu custo. Natalina agigantou-se,
se tornou bela, principalmente no período noturno, porém os meios de locomoção
a invadiram de forma monstruosa.
*
Dificilmente vou ao IML. O ambiente é pesado demais para mim
e sinceramente prefiro manter a distância. Lógico que há casos em que não dá
para se dar ao luxo de não ir a tal lugar. O caso de Sônia Soares por exemplo me
obrigou praticamente a me deslocar até lá e tentar encontrar peças que possam
solucionar a montagem do quebra-cabeças. Me identifiquei na entrada e cruzei o
corredor a passos apressados. Com dois toques na porta fui atendido pela mesma
perita de outrora.
— Que surpresa boa. – disse ela de jaleco e segurando uma
prancheta azul transparente.
— Olá, doutora Marta Lima. – vi seu nome no crachá.
— A que devo a visita?
Marta, como já falei, é uma mulher incrivelmente alta e
bonita também. Seu jeito de ficar em pé, sua postura, tudo nela é
exageradamente sedutor. Precisei me controlar o máximo que podia para não
canta-la logo de cara.
— Sônia Soares.
Ela arqueou uma das sobrancelhas muito bem feitas e encostou
o lápis que tinha na mão ao lado da boca.
— A pobre com um tiro no peito?
— Exatamente!
Eu estava uma pilha de nervos perto daquela mulher.
— Venha comigo.
Nossa! Até seu jeito de andar me fazia imaginar milhares de
coisas loucas. Entenda. Marta Lima não era do tipo mulherão, mas tudo nela me
atraia demais. Deus me livre!
— Pronto!
O corpo de Sônia jazia em cima daquela mesa com um orifício no
peito bem perto do seio esquerdo. Quem quer que tenha feito aquilo sabia o que estava fazendo.
— Confirmado execução? – perguntei com minhas mãos na
cintura.
— Sim! Sem sinais de violência física ou sexual. Não havia
nada nas unhas ou nos dentes. E se meus cálculos estiverem certos, ela se
encontrava morta naquele lugar a mais ou menos cinco horas.
Outra vez ela não tirava os olhos de mim.
— Vamos lá então. – falei dando a volta na mesa. – segundo o
marido, Sônia saiu sozinha para um evento. E demorou por lá.
Marta apenas assentia.
— Demorou também para voltar para casa. O marido, por já
estar acostumado com seus atrasos, não se preocupou em ligar e foi para outro
lugar com o único filho do casal.
Marta voltou a por a ponta do lápis no canto da boca.
— Quando eles voltaram Sônia Soares ainda não havia chegado e
mesmo assim ele não ligou para a esposa. Estranho, não acha? – olhei para o
corpo.
— Muito!
— Tenho mesmo que voltar a residência dos Soares e ainda
hoje.
— Sim! Faça isso.
Começava a andar em direção a porta quando Marta me faz
parar.
— Meu plantão termina às dezoito, hoje.
Me fiz de desentendido.
— Caso o senhor queira saber mais sobre essa pobre coitada.
— Às dezoito! Não vou esquecer. – cruzei a porta.
*
Lá estava eu, outra vez pressionando o botão do interfone da
casa de Luís Soares. Precisei ter paciência, a demora ao me atender quase me
fez enfiar o pé no portão. Aproveitei o tempo para enviar uma mensagem para Raquel
via Whatsapp.
Podemos nos ver logo mais?
Ela não estava online, provavelmente bastante ocupada naquela
loucura de hospital. Finalmente minha entrada foi autorizada. Luís parecia não
se agradar de minha visita inesperada. Acho que ninguém se agradaria.
— Como tem passado, detetive?
— Trabalhando bastante. Podemos conversar?
Luís deu-me as costas. Na sala o pequeno Lucas Soares brincava
entretido com um caderno de desenhos.
— Lucas, esse é o investigador Falcão Peçanha.
Lucas era incrivelmente parecido com a finada mãe e isso fez
com que meu peito ficasse apertado.
— Oi! – ele me olhou por segundos e depois voltou a desenhar.
— Bebe alguma coisa, policial? – Luís parecia um Lorde.
— Não, obrigado.
Realmente a presença da criança ali me incomodava muito, o
assunto a ser tratado era bastante delicado.
— Sua esposa costumava chegar muito tarde...
— Já tivemos essa conversa anteriormente.
— Sim! Porém algo não ficou claro. – olhei para Lucas e o
mesmo seguia com sua tarefa.
— O que não ficou claro, investigador? – Soares cruzou as
pernas.
— Sua esposa costumava chegar muito tarde, mas ela sempre
chegava e dessa vez ela não chegou e mesmo assim o senhor não ligou para ela.
Estranho, não acha?
Luís apertou os olhos e não houve reação alguma corporalmente.
— Sônia e eu havíamos brigado feio. Ela estava com raiva, eu também.
Pior do que isso foi ver meu filho nervoso com a nossa discussão. Lamento em
não ter contado isso da primeira vez.
— Foi a primeira vez? – fui direto ao ponto.
— Não! Foi a última de muitas. – tirou os óculos e limpou as
lágrimas. – confesso que me vi tentado a ligar pra ela e me retratar, mas,
permiti que o meu orgulho falasse mais alto. Eu a amava, detetive. A amava
muito.
Finalmente Luís Soares deixou transparecer o homem frágil por
trás daquela postura rochosa da primeira visita. O luto o estava consumindo de
fato.
— Lamento, senhor Luís. – olhei para Lucas. – estou me
esforçando o máximo nesse caso.
— Agradeço! – se levantou. – vou pegar um suco, o senhor
aceita?
— Sim!
O menino seguia desenhando. Cabeça baixa. Olhos compenetrados
no papel. Enquanto traçava suas figuras um pouco disformes, Lucas apertava os
lábios não se importando com a minha presença. Ele colocou os lápis de cor na
mesa de centro e andou em minha direção segurando o papel A4.
— Fiz pro senhor.
— Hum, que legal. Quem são?
No desenho haviam duas figuras masculinas de mãos dadas,
pareciam se cumprimentar.
— O papai. – pôs o dedinho indicador no homem careca.
— Sim!
— E esse é o moço do cabelo igual de mulher.
— Ah tá.
Observei melhor e vi que o cabeludo tinha algo na mão livre.
— O que é isso na mão desse?
— Dinheiro.
Nesse momento Luís voltava da cozinha com o suco. Lucas
voltou para o sofá reiniciando sua tarefa.
— Lucas adora desenhar, detetive. O senhor acha que devo
investir nisso?
Dobrei o papel e o guardei no bolso.
— Deve!
*
Já era noite quando cheguei na casa de Raquel. Ela estava
exausta e eu pensativo. Pensativo por dois motivos. O primeiro foi pelo fato
dela por condições ao nosso relacionamento. Eu não queria “dar um tempo em
nosso namoro" isso pra mim não existe. E o segundo, não poderia ser
diferente, o caso Sônia Soares. Ocupei a cadeira da mesa da cozinha analisando
mentalmente cada passo dado até ser interrompido pela indagação de Raquel.
— Já posso distribuir os convites?
— Convites? – apertei os olhos.
— Veja bem, Lauro, eu estou super cansada, tive um dia
intenso e sinceramente, gostaria de poder comer alguma coisa e me jogar naquela
cama. Diz logo o que você quer?
Pois é, minha amada Raquel estava diferente e pelo visto falou
sério sobre dar um “tempo” no namoro. Eu não tinha argumentos e o que me restou
foi dar o fora dali o mais rápido possível.
— Tudo bem. – me levantei. – eu só queria te ver...
Raquel mal olhava pra mim. Peguei às chaves e saí da cozinha.
— Boa noite! – saí.
— Boa noite!
Assim que Lauro deu a partida no carro a enfermeira correu
para o banheiro, arrancou as roupas e se enfiou embaixo das águas mornas do
chuveiro. Foi o único modo de não sentir as lágrimas descerem.
*
Bem depois de conversar longamente com dona Jurema e ter que
engolir suas broncas, broncas essas que fizeram me sentir com dez anos
novamente, fui para o quarto com o meu corpo pesando duas toneladas. Posso não
gostar dos puxões de orelha de minha mãe, mas tenho que admitir, ela sempre esteve
certa. Fechei a porta. Tirei minha camisa, minha arma do coldre e também meu
distintivo. Sentei-me na ponta da cama. Apoiei meus cotovelos nas coxas e com
às mãos segurei minha cabeça e chorei como nunca havia chorado.
Só após me sentir renovado foi que eu pude raciocinar com
facilidade. Enterrei a mão no bolso direito da calça e puxei o papel contendo o
desenho do filho dos Soares. O desamassei mal e porcamente e o coloquei no
chão. Lá estavam eles, os supostos Luís Soares e o homem cabeludo segurando o
dinheiro. O que poderia significar aquilo? Um prestador de serviços? Um
entregador? Um matador de aluguel...
Peguei meu celular para consultar o horário e vi que havia
uma ligação perdida. Quem seria, como não ouvi? Retornei a ligação. Ao segundo
toque a voz de Marta Lima penetrou aos meus ouvidos suavemente.
— Detetive, Lauro Falcão Peçanha.
— Oi, você me ligou eu nem ouvi, acho que diminui o volume do
telefone sem querer. O que mandas?
— Meu plantão terminou faz duas horas.
Caramba, que mulher insistente, mas eu estava gostando daquilo.
— É, sim, mas, nós marcamos alguma coisa? – cocei a cabeça
olhando para o desenho de Lucas.
— Sim! Você prometeu que me levaria para tomar um chopinho.
– mentiu.
— Nossa! – conferi o horário. – e aonde você está agora?
— Em casa.
Tive que ser muito rápido.
— Legal. Me passa seu endereço.
— Jura? Você vai vir aqui?
— E ainda vou levar as cervejas. Preciso consertar essa
falha.
Marta não brincava em serviço. Claro que ela me passou seu
endereço e mais uma vez lá estava eu diante de dona Jurema lhe comunicando
minha saída.
— Vá te catar! – vomitou assistindo aos vídeos de culinária
na internet.
*
Marta Lima. Perita criminal a um pouco mais de quinze anos.
Antes da realização do seu sonho de desvendar crimes sejam eles hediondos ou
não, a mais velha de três filhos homens de uma família humilde vinda do
interior, batalhou e muito nas roças de milho junto com o pai para conseguir pelo
menos o alimento. Quando o assunto era trabalho ela não media esforços e não se
poupava nunca. Sua entrega era tanta naquelas lavouras que seu pai a pegou
desmaiada. Sem comer direito, sol forte e trabalho braçal pesado. O resultado
não poderia ser outro.
— Caramba. – eu disse me servindo de mais cerveja. – mas, me
diz, quando começou sua virada na vida?
— Logo após esse desmaio no meio do mato. Meu pai jurou por
Deus e o mundo que a filha dele não sofreria mais na lavoura de milho.
— Desde então você veio para Natalina estudar, se formar e
trabalhar. Que bom que deu certo para você.
Marta estava super a vontade, a final de contas sua casa era
e é o melhor lugar para se voltar depois de um dia duro de labuta. Ela me recebeu
com uma blusa rosa solta e calça legue preta de academia. Muito gata mesmo.
— Eu não podia me dar ao luxo de dar errado, investigador. Ou
eu vencia na vida ou eu vencia na vida. Não havia outra alternativa.
— Claro!
Ficamos um certo tempo em silêncio, Marta mal conseguia
controlar sua respiração.
— E você, Lauro, como anda sua vida amorosa? Com essa pinta
de galã de novela das nove, a mulherada deve arrastar um bonde por você.
Pronto! Chegamos aonde ela queria.
— Será? – dei de ombros.
Tudo o que eu menos queria naquele momento era tocar no nome
de Raquel, mas foi inevitável.
— Você deve ter uma pessoa especial em sua vida.
— Como tem tanta certeza? – comecei a demonstrar nervosismo.
Marta jogou a cabeça para trás e sorriu da minha falta de
jeito.
— Ai esses homens. Eles apenas crescem e ficam velhos, mas
ainda são meninos. – ela voltou a me olhar. – o que veio fazer aqui, Lauro?
Boa pergunta!
Eu havia me metido numa enrascada e o único jeito sair dela
era tirarando proveito da situação e por isso não perdi tempo.
- Bem! Tirando o fato de você ser uma mulher extremamente sedutora,
inteligente e...
Marta simplesmente me atacou com um beijo tão gostoso o qual
me deixou sem reação. Tudo o que eu pensava com relação a ela foi confirmado naquela
noite.
*
Acordei e precisei aguardar alguns segundos até me situar. Eu
não estava em meu quarto, tão pouco no quarto de Raquel. Onde estou?
Girei minha cabeça para o lado direito da cama e não havia ninguém. Não
acredito! Olhei em direção a porta do quarto e ela estava aberta, era
possível ouvir a voz de Marta ao telefone. Por falar em telefone, o meu celular
se encontrava na escrivaninha perto da janela. Quando esbocei jogar o edredom
para o lado e me levantar, a minha perita criminal favorita surgiu no quarto
ainda com roupas de dormir. Meu Deus, que mulher!
— Tenho que ir trabalhar e eu acho que você também.
Ela tinha razão, mas antes eu precisava tirar uma dúvida.
Duas, aliás.
— Sim, claro, mas é só isso?
Marta Lima jogou-me um olhar que me desconsertou por inteiro.
— Só isso o que, investigador Falcão Peçanha? – colocou uma
das mãos na cintura e apoiou o peso do corpo na perna esquerda.
— Pelo que eu saiba, nós fizemos amor a noite passada. Não
foi?
— Fizemos “amor"? – vociferou e em seguida soltou uma
gargalhada não tão alta, mas que soou como uma explosão aos meus ouvidos. – nós
“transamos”, foi o que quis dizer, não é?
Tive que concordar mais uma vez. Confesso que eu, mesmo sendo
um homem vivido e um policial experiente, caí de joelhos perante a sagacidade de
Marta. Que mulher é essa, meu Deus?
— Você está certa. - levantei-me. – e por falar em trabalho,
acho que o dia promete grandes emoções. – corri até minhas roupas. – quero que
dê uma olhada nisso.
Minha perita pegou o desenho feito por Lucas Soares, o
analisou por segundos e depois olhou para mim encolhendo os ombros.
— Quem fez esse desenho foi o filho único dos Soares e eu
tenho quase certeza de que, esse menino me entregou o assassino de sua mãe.
Lima abaixou os olhos para o desenho.
— Existem profissionais que acreditam em hipóteses. Existem
profissionais que não descartam as hipóteses e existe Lauro Falcão Peçanha.
Preferi entender o comentário como sendo um elogio.
— Acha mesmo que o marido encomendou a morte da mulher? – me
devolveu o papel. Eu assenti.
— Sim! É esse... – apontei para o homenzinho cabeludo do
desenho. – é o assassino.
— Meu Deus! Desejo-lhe sorte. Vamos.
*
Tudo ocorreu exatamente como havia previsto no quarto de
Marta. Voltei para o DPN e mofei diante
da tela do computador vendo fotos e lendo fichas de suspeitos. Eu estava tão
concentrado e com minha mente girando a mil por hora que até me esqueci de
comer. Por volta das dezesseis horas meu capitão tocou em meu ombro me tirando
das analises.
— O que é isso? – apontou para o desenho. Lá vamos nós outra
vez.
Deixei Fragoso inteirado da investigação e ao final de tudo
ele me parecia descrente.
— Vamos ver se eu entendi. Você está buscando há horas um
suspeito cabeludo e barbudo com base num desenho de um menino de dez anos?
— Não posso descartar qualquer hipótese, capitão.
Rubens enterrou as mãos nos bolsos.
— Estou em minha sala. – saiu.
Voltei minha atenção para a tela do computador meio
aborrecido e também um pouco preocupado. Estariam Marta e Fragoso certos? Segui
com minha árdua tarefa e lá pelas dezoito e trinta, bingo.
— Daniel Santiago. Trinta e sete anos. Preso por: agressão e
pequenos furtos, bla, bla, bla.
Imprimi a ficha. Me acomodei em minha cadeira com uma dor de
cabeça em sua fase inicial. Eu precisava comer alguma coisa, mas também não queria
perder o foco. Daniel Santiago não tinha uma ficha tão longa e nem tão
expressiva, mas merecia toda uma atenção. Cabeludo e barbudo. Seria ele o mesmo
sujeito do desenho de Lucas Soares?
*
Pela décima quinta vez Raquel andou até o banheiro não com a
finalidade de fazer suas necessidades fisiológicas. Ao chegar ao box ela
retirou do bolso do uniforme seu celular e não havia sequer uma mensagem de
Lauro. Verdade seja dita, Raquel estava arrependida do que havia feito e agora poderia
ser um pouco tarde para isso. Assim que se conheceram ela sempre achou que ele
era o cara certo para se viver. Diferente dos outros relacionamentos, Lauro não
só expressava, mas demonstrava seu amor por ela e isso foi fundamental para
autenticar tudo o que ela imaginava dele.
Lauro talvez esteja certo. Casar pra que, morar juntos já não
basta? Muito chateada, Raquel pensou em ligar e até esboçou discar seu número,
mas hesitou. Quando pensou em enviar uma mensagem, alguém invadiu o banheiro a
sua procura.
— Raquel, vamos, o paciente do leito B não vai resistir.
O aparelho voltou para o bolso e para disfarçar a descarga
foi acionada.
— Estou aqui. Vamos.
*
Estacionei em uma das vagas de uma locadora de veículos que
ficava a poucos quilômetros de onde o corpo de Sônia Soares foi encontrado. Se
Daniel Santiago era mesmo o assassino de aluguel contratado por Luís Soares,
era bem provável que ele tenha alugado um veículo para o trabalho. Matadores
fazem isso normalmente. De cara visualizei o que tanto almejava: câmeras de
segurança. Subi rapidamente os quatro lances de escada e empurrei a porta de
vidro.
— Bom dia, em que posso ajudar? – me perguntou um dos
atendentes.
— Bom dia! Sou o investigador de polícia, Falcão Peçanha. –
me identifiquei. – esse cidadão passou por aqui? – lhe mostrei também a foto de
Daniel Santiago.
— Não me recordo, senhor. – ele apertou os olhos.
— Veja de novo.
— Passam por aqui diariamente cerca de cem, cento e cinquenta
pessoas. Fica difícil.
— Certo! Preciso ver se houve alguma locação em nome de
Daniel Santiago. Consegue isso pra mim?
— Entre, por favor.
Entrei. O lugar cheirava a café fresco. Andamos até uma das
mesas onde haviam computadores com a logomarca da empresa na tela de descanso.
A agilidade do funcionário me surpreendeu.
— Senhor! Não há registro de nenhum Daniel Santiago.
— Tudo bem. Veja se há no mês inteiro.
Outra vez a habilidade do atendente me deixou boquiaberto.
— Lamento, investigador. Não há.
Mais que droga!
Eu estava decidido a pedir as imagens do circuito interno
quando me ocorreu algo.
— Veja se há em nome de Luís Soares.
Xeque-mate.
— Há sim, senhor. Ele locou um veículo no dia dez.
— Ótimo! Você fez um bom trabalho. Imprima pra mim todos os
dados da locação, por gentileza.
Em menos de uma hora eu deixei aquela loja com a marca e a
numeração da placa do carro. Eu havia feito uma golaço e agora era só correr
para a comemoração. No meio do caminho recebi uma mensagem de Marta Lima que,
surpreendentemente investigou por conta própria e descobriu alguns fatos que
não constavam na ficha de Daniel Santiago, coisas do tipo freelance para
grandes chefões do crime e até participação em execuções. Eu tinha o matador e
agora só restava pegar o mandante do crime. Em pouco tempo eu dobrava a esquina
da rua da casa dos Soares. Luís fechava o portão da garagem e ao me ver não
esboçou qualquer reação.
— Posso lhe atrapalhar um pouquinho? – falei sorrindo.
— O senhor nunca atrapalha, detetive. – desdenhou.
— O senhor locou algum veículo na semana da morte da sua
esposa?
— Não, senhor.
— Tem certeza? – olhei e vi Lucas sentado dentro do carro
aguardando o pai.
— Absoluta!
Abri as cópias dos documentos de locação e apontei com o
indicador para o nome e assinatura.
— Essa é a sua assinatura? Dê uma olhada na data também.
Luís Soares mal olhou para o papel, retirou os óculos e coçou
os olhos negando mais uma vez.
— Detetive Falcão, por que acha que mandei matar minha
esposa?
— Não é isso. Eu só quero saber qual a finalidade em locar um
carro na semana da morte da sua esposa.
— Eu não aluguei carro algum. Não há só um Luís Soares em
Natalina, compreende?
Eu estava ficando cansado daquela conversa, por isso resolvi
atacar.
— Daniel Santiago. Esse nome lhe parece familiar?
Luís olhou demoradamente para o filho e depois abaixou a
cabeça focando o chão da calçada.
— Não sei de quem se trata.
Peguei a foto do sujeito e o mostrei.
— Melhorou?
Ele encarou a imagem e em seguida seus olhos fuzilaram-me.
Estranhamente ele riu chorando.
— Tá certo! Você me pegou...
— Não! O senhor confessou o seu crime.
Luís arqueou uma das sobrancelhas.
— Lembra do que me perguntou agora pouco?
— Sim! Por que acha que mandei matar minha esposa. – se
entristeceu.
— Eu nunca falei isso. Sou policial, senhor Luís. Meu dever é
juntar provas, evidências e investigar e aqui estou eu.
Um choro amargurado. Um pranto que transbordava sentimentos e
ressentimentos. Luís Soares mais parecia uma montanha de gelo se derretendo.
— O que será do meu filho?
Olhei para o interior do veículo e Lucas mexia em seu celular
mergulhado em seu pequeno mundo. Luís passou a falar em voz baixa.
— Sônia havia mudado bastante desde quando a empresa passou a
sustentar a nossa casa. Ela se transformou numa mulher arrogante, não me ouvia
mais. Lucas também sofria muito com isso. Em nossa última briga, ela me chamou
de inútil. Foi a gota d'água, detetive...
— Por que não pediu o divórcio?
— Eu queria dar uma lição nela. A fúria consumiu-me até os ossos
e eu pensei; chega de tanta humilhação.
— Foi quando Daniel Santiago entrou na história?
Luís apertava a mandíbula.
— É! Entrei em contato com ele e tudo ficou acertado bem aqui
em casa mesmo.
Lembrei-me do desenho de Lucas.
— Aluguei um carro para que ele a raptasse e a executasse e
tudo aconteceu.
— Consegue dizer tudo isso para o juiz?
— Consigo! Eu só lamento pelo meu filho. A mãe morta e o pai
preso. Que tristeza, meu Deus.
Enquanto Luís chorava debruçado ao veículo, eu liguei para
Rubens Fragoso pedindo auxílio de uma viatura no local. O caso Sônia Soares foi
relativamente fácil, confesso que já houve outros em que eu tive que me abdicar
das noites de sono. Ao assistir aquele homem maduro, chorando feito criança, eu
pude entender o quanto podemos padecer quando não paramos para pensar e
refletir antes de tomarmos qualquer decisão.
— Senhor Luís, só mais uma pergunta. Aonde Daniel Santiago
mora?
Matadores de aluguel não costumam ter endereço fixo, mais eu precisava
encerrar aquele caso tirando de circulação um perigoso assassino. Ainda com o
celular colado em minha orelha direita passei o endereço dito por Soares a
Fragoso.
— Copiado, capitão. Assim que pegarem ele me avise, por
favor.
Em menos de vinte minutos uma viatura apareceu e Luís foi
algemado e levado ao distrito policial. Lucas voltou para dentro da casa na
companhia de um familiar. Eu voltei para o DPN a fim de começar logo meu
relatório.
*
Marta Lima e eu fazíamos amor no chuveiro como dois maníacos
sexuais. Ao saber que eu havia resolvido o caso Sônia Soares, a perita resolveu
me recompensar com um início de noite pra lá de prazeroso. Ela me fazia perder
a linha.
— Gostou do prêmio?
— Se gostei? Você foi incrível também. Obrigado por confiar
em minha intuição e faro policial.
— Você merece, Falcão Peçanha. Assassino e mandante do
assassinato atrás das grades, tudo isso num só dia. – se enrolou na toalha. –
diz ai, vai passar a noite aqui? Podemos pedir alguma coisa para forrar o
estômago.
— Claro que vou. Fragoso me deu folga. – eu ainda estava
excitado demais para deixá-la ir. – acho que vou precisar de uma boa perita para
estudar esse caso. – lhe mostrei meu membro enrijecido.
— Nossa! Pode deixar comigo.
O celular do policial que se encontrava em cima da mesa da
cozinha, recebeu uma nova mensagem no Whatsapp.
Oi! Tudo bem? Será que podemos conversar? Meu
plantão já terminou e só estou aguardando sua resposta. Beijos!
FIM.