quarta-feira, 28 de setembro de 2022

A Única Testemunha

 


A Única Testemunha

Um conto policial com Luís Souza

 

 

O garçom passou com a bandeja contendo meia dúzia de taças com o a melhor  e maior marca de champanhe do mundo, prato cheio para um apreciador de bebidas finas como Lauro Mota um dos professores de uma das maiores universidade de Norma. Pelas contas essa será a sua quinta taça e pelo visto não irá parar nela. O salão de festas está cheio. A faculdade organizou esse evento afim de promover entre os funcionários e professores uma melhor interação entre os mesmos. Lauro por exemplo, segundo o que dizem é um dos que deram maior apoio para que o jantar acontecesse e por isso cabe a ele fazer o discurso.

      Verônica Cury, professora de direito, orgulho da instituição. Verônica foi aluna naquela universidade. Passou parte de sua vida dentro daquelas quatro paredes, correndo atrás de seu objetivo e hoje ela tem a honra de poder fazer parte do corpo docente. Negra de traços bem marcantes como o nariz e a boca bem  característicos, professora Verônica por onde passa esbanja beleza, inteligência e principalmente a imagem de uma mulher forte e determinada.

     — Seria melhor o senhor parar de experimentar todas as bebidas oferecidas, o seu discurso será daqui a alguns minutos.

     — Você está linda nesse vestido branco.

     — Não começa, Lauro. – se afastou.

     — Vou ao banheiro.

     — Seja rápido e pare de olhar para a minha bunda.

     Ruborizado Lauro se encaminhou para o corredor.

 

      Se esforçando para ficar sóbrio, Lauro jogou um pouco mais da água fria no rosto. Se olhou no espelho e reparou que as rugas vem lhe ocupando os cantos dos olhos. A velhice chega mais cedo ou mais tarde, não tem jeito, pensou. Ele voltou a jogar água no rosto quando sentiu uma forte ardência em sua nuca. Em pânico ele deu às costas para o espelho e deu de frente para uma figura mascarada que voltou a lhe golpear com a faca de caça no pescoço.

     - Argh, Deus, por que?

     O sangue é jorrado. Com uma precisão cirúrgica o assassino mais uma vez o acertou rompendo sua jugular. Com o terno lavado em sangue o professor de filosofia caiu por cima da pia e depois desabou no chão. Para se certificar da morte de sua vítima o mascarado ainda desferiu mais alguns golpes, todos na região do pescoço. Lauro Mota está morto. Seu assassino retirou a máscara a qual há uma caveira desenhada e olhou para o corpo e cuspiu.

 

    Decidida a ceder aos xavecos de Lauro, Verônica foi até o banheiro masculino. Olhou para o final do corredor e empurrou a porta dando de frente com o assassino que imediatamente cobriu o rosto, porém não foi rápido o bastante. Verônica viu sua identidade e também o corpo de seu colega de profissão boiando em seu próprio sangue. Em choque a professora disparou corredor afora deixando o homem mascarado a gritar palavras de ameaças. Verônica passou pelo salão correndo e pedindo por ajuda.

      — Socorro, Lauro foi morto.

 

*

 

Luciano olha para Márcia como se ela fosse uma relíquia procurada por séculos e séculos. Embora eles estejam jantando num dos restaurantes mais requintados de Norma com todas as suas trinta mesas ocupadas, Luciano Couto parece estar sozinho com a policial. Jovem, e com uma carreira executiva promissora, Luciano ultimamente vem vivendo um verdadeiro sonho ao lado de Márcia  que é dez anos mais velha do que ele.

     — O que está achando? – Perguntou Luciano enrolando o macarrão.

     — Em se tratando desse restaurante, eu não poderia esperar por outra coisa. Comida maravilhosa.

     — Eu ouvi dizer que esse chefe de cozinha já trabalha aqui a quase vinte anos e que já recusou convites para o exterior.

      — E por falar em trabalho, como vão as coisas na empresa? – Márcia terminou o prato.

      — Fluindo. No fim da semana passada eu apresentei um projeto para os diretores e sai de lá bastante otimista.

      — Com 24 anos, uma carreira de sucesso, o que Luciano Couto espera da vida?

      Ele também terminou de comer. Limpou os cantos da boca olhando para ela. Tomou um curto gole do vinho e falou.

      — Quem sabe viver para sempre ao lado de uma policial maravilhosa.

 

      Essa noite ficara marcada na história de Márcia Bernardo como sendo a noite onde um rapaz de apenas 24 anos a levou para passear na lua naquela cama de hotel. Foi intenso, cercado de carinho, cuidado e sexo da melhor qualidade. Foi tudo muito bom, antes, durante e depois. Luciano acariciava as belas curvas da mulher por debaixo do lençol reascendendo-lhe o fogo.

       — Se continuar passando a mão ai, acho que vou querer partir para o segundo tempo.

       — E você acha que eu estou fazendo isso pra que?

       — Safado!

 

*

 

      Chorar agora é algo frequente na vida da professora Verônica. Mesmo diante de Luís Souza ela não consegue evitar que as lágrimas desçam. Educadamente o detetive lhe ofereceu mais uma vez lencinhos descartáveis. Aquela imagem de Lauro estirado em meio a uma poça de sangue não sai de sua cabeça. Lauro Mota poderia ser chato ou até mesmo inconveniente, mas quando ele queria usar seu charme, isso ele fazia muito bem. Foi realmente uma perda irreparável.

      — Não tenha pressa, professora, quando se sentir bem fique a vontade para dar seu relato.

      Foi preciso alguns segundos para Verônica se recompor e se ligar que agora é hora de passar com riqueza de detalhes tudo o que aconteceu naquele metro quadrado do banheiro do salão de festas. O rosto do assassino e sua voz aguda a ameaçando assim que ela fugiu da cena do crime. Hora de colocar aquele maldito na cadeia.

      — Bom. Vamos lá. – fungou o nariz. – eu me lembro que ele usava uma máscara de caveira.

      — Máscara de caveira, a senhora conseguiu ver o rosto dele? – Souza entrelaçou os dedos.

      — Sim. Feições marcantes e olhos profundos.

      — O Caveira. – disse Souza para ele mesmo.

      — O que disse?

       — Esse sujeito tem uma ficha gigante na polícia, trata-se de um matador de aluguel, muito perigoso, ninguém nunca soube sua verdadeira identidade, mas pelo visto, a senhora o viu sem a máscara.

       — Aí, meu Deus. – colocou as mãos na boca.

       — Não se preocupe, professora, vou colocá-la no programa de proteção de testemunha. Enquanto isso vamos trabalhar na prisão desse marginal.

        — Obrigado, detetive Souza.

 

*

 

Luciano está empolgado, motivado e também um pouco mais nervoso do que de costume e não é por menos. Estar frente a frente com o  diretor geral de maior multinacional a qual trabalha faz com que suas vísceras se torçam e o coração bata acelerado na garganta.

      — Eu acompanho o seu trabalho desde quando ingressou em nossa companhia senhor Couto e posso adiantar que dentro de muito em breve sua tão almejada promoção acontecerá.

      — Eu lhe agradeço, doutor Camargo, continuarei trabalhando afinco.

      — Eu também assisti, mesmo por vídeo conferência, a sua apresentação e sem demagogia alguma, superou minhas expectativas. Parabéns. – estendeu o braço.

      — Mais uma vez, eu quem lhe agradeço.

      Atravessar aqueles corredores extensos e ainda digerindo tudo o que ouviu do diretor geral, para Luciano é algo que ele jamais imaginou que alcançaria, não tão cedo. Assim que entrou em sua sala ele ligou para Márcia que o atendeu ao segundo toque.

      — Bom dia?

      Bom dia, aconteceu alguma coisa?

      — Na verdade, sim, aconteceu.

      Diga logo!

      — O diretor geral da companhia solicitou a minha presença em sua sala e ele disse que em breve minha promoção irá sair. Não é demais?

      Aí, estou feliz por você, amor.

      — Gostaria tanto que estivesse aqui.

      Quem sabe mais tarde?

      — Passo aí para te pegar.

      Ótimo!

 

      Assim que encerrou a ligação Márcia se voltou para Souza que sorria para ela.

       — “É o amor...” – cantarolou o investigador.

       — Para com isso, Luís. – as bochechas ficaram rosadas.

        — Fico feliz em saber que você encontrou uma pessoa legal, você merece. – deslizou uma folha na direção de Márcia. – Verônica Cury, testemunhou o assassinato do professor de filosofia Lauro Mota e para seu azar, ela também viu a identidade do assassino. O caveira.

       - Guilherme Brito? Ninguém merece.

       — Pois é, tenho cem por cento de certeza de que ele voltará para terminar o serviço, não estamos lidando com um amador, por isso, eu mesmo farei a proteção da professora.

       — Montarei uma força tarefa na busca do Caveira, vamos virar Norma de ponta cabeça.

 

*

 

Depois de inspecionar cada canto da casa, enfim Verônica teve a autorização para entrar. Logo atrás Souza com sua pistola em mãos. Tudo em seu devido lugar. Luís pôde reparar que Verônica Cury é uma legítima apreciadora de arte. Tanto em cima dos móveis quanto penduradas nas paredes há réplicas de obras famosas e outras nem tão conhecidas assim.

     — Aceita uma bebida, detetive?

     Souza negou gesticulando com a mão.

     — Ah, sim, está trabalhando. – se sentou no sofá. – nunca imaginei ter que passar por isso.

      — Achamos sempre que essas coisas só acontecem com os outros, ou nos filmes polícias. – colocou a arma no coldre. – bom. Vou ficar na varanda.

      — Por que não se senta, detetive? Há uma viatura lá fora também.

      — Por hora ficarei montando guarda. A senhora pode seguir com suas atividades normais.

      — Acho que minha vida nunca mais voltará a normalidade. – limpou uma lágrima disfarçadamente.

      — Nunca mais é muito tempo, professora. A polícia de Norma garantirá sua proteção.

      Souza foi para a varanda, um lugar fresco onde é possível ver toda a extensão da rua. Como Verônica falou, a viatura se encontra estacionada bem em frente a casa com dois agentes altamente treinados. Para garantir que a vida da professora universitária esteja segura, ele próprio se dispôs a ser o agente que ficará de guarda dentro da residência.

    Enquanto observa o movimento da rua ele pensa em Suzana e Jeferson. Uma semana sem contato, uma semana sem notícias. A saudade bate e maltrata um coração já baleado. Por que tinha que ser assim? Por que não deu certo a união entre Suzana e ele? Por que? Como ele gostaria de acompanhar o crescimento do filho, vê-lo se tornar um homem, auxiliá-lo no primeiro barbear, ou então orientá-lo quanto as meninas. Coisas de um pai para seu filho. Jeferson Souza, sua continuação, sua herança. Com sua total atenção para o trabalho o detetive apenas ouviu a voz de Verônica da porta com duas canecas de café.

      — Acho que o senhor não resistirá um café.

      — Ah, sim, acho que vou aceitar. – pegou a caneca e provou da bebida. – ótimo. Vamos entrar, não é seguro aqui fora.

      Claro que como homem Souza reparou o quanto Verônica Cury é uma mulher bonita, uma beleza natural, uma verdadeira deusa ébano de traços fortes e marcantes. Antes de se sentar ao lado dela, ele também reparou em seu corpo exuberante, magro, porém cheio de curvas acentuadas.

      — É casado, detetive? – se virou para ele.

      Na verdade Souza já esperava esse tipo de pergunta. Desde quando a conheceu no DP ele vem notando seus olhares para ele e as jogadas de cabelo.

       — Fui, não sou mais. – tomou mais café.

       — Eu também. – fez uma pausa. – juramos no altar e perante a um sacerdote que viveríamos um para o outro, mas, enfim, quis o destino que tudo terminasse assim, meio traumático. – se virou para Souza. – como foram as coisas no seu caso?

       Luís poderia não saber como responder, mas sabia aonde essa conversa iria chegar.

       — Digamos que não houve uma certa química entre a família dela e eu. Ela não quis abrir mão e deu no que deu.

       — Imaturidade leva a isso. Ela não priorizou o casamento e nem o homem que tinha ao lado.

       Souza voltou a notar o olhar da professora. Tudo fala ao mesmo tempo que a boca. Seu corpo, os gestos, o jeito que leva a caneca a boca, tudo mudou nesse momento.

       — Pode ser. – Souza cruzou as pernas. – às vezes penso que Suzana e eu éramos pessoas totalmente diferentes, algo que jamais se encaixaria, entende? antagônicos. Um contraste absurdo. – Eles voltaram a se olhar. – e quanto a senhora, professora, o que deu errado?

       Verônica colocou a caneca em cima da mesa de centro. Respirou profundamente antes de responder. O seu casamento com seu ex teve três fases, o conturbado, o confuso e finalmente o avassalador, esse último a deixou com marcas, principalmente as que não se podem ver.

   — Digamos que Rogério e eu também éramos antagônicos. Não era para dar certo, ou melhor, não era para ter existido aquele encontro. E para uma coisa que não deveria ter existido, até que durou bastante, oito anos.

       O olhar de Verônica se perdeu. Luís Souza percebeu que tudo o que de fato ela precisava era de um carinho, um afago. Isso se encontra fora de cogitação, pelo menos por enquanto. O seu dever ali é protegê-la e não se aproveitar de sua fragilidade. Para que as coisas não se debandasse para o outro lado o policial resolveu dar fim a conversa.

     — Bom. Farei minha ronda. Fique tranquila.

 

*

 

A saia é levantada e Márcia tenta de várias formas fazer com que o fogo de Luciano seja controlado, afinal de contas eles ainda estão em horário de trabalho. Tudo está acontecendo dentro do carro do executivo. Márcia conseguiu dar uma escapadinha do corre corre do departamento de polícia para se encontrar com o namorado que a levou a um lugar um pouco distante do centro.

      — Luciano, por favor, agora não.

      O rapaz a beija no pescoço enquanto que suas mãos a apalpam nas pernas e seios. Ela não quer ceder as investidas do namorado, sabe que é ilegal transar em locais públicos, porém a vontade é maior que ela.

     — Lu, Lu, para, não podemos. Não agora. – fecha o botão da camisa.

     — Tudo bem, me desculpa, eu não aguentei vê-la nesse terninho maravilhoso. Será que podemos nos ver ainda hoje?

     — Acho que sim. – se olha no espelho ajeitando os cabelos. – tenho que voltar para o DP.

     — Certo. – ligou o veículo. – me liga.

 

*

 

Aquela negra viu o meu rosto, agora ela sabe quem sou eu, ninguém jamais viu o rosto do Caveira, que droga de profissional eu sou? Agora ela está lá, cercada de agentes, loucos por minha captura e eu aqui escondido feito um rato dentro do bueiro. Essa situação só me deixa ainda mais furioso. Quando as coisas fogem do meu controle eu costumo agir fora dos meus princípios. Eu não mato por matar. Eu mato só quem merece morrer. As pessoas contratam meus serviços e eu executo o trabalho sujo e nesse caso, aquela professora viu a verdadeira face do Caveira. Ela precisa morrer.

 

*

 

Conhecer o campo inimigo é um dos principais pontos estratégicos para se iniciar uma guerra. Conhecer o seu inimigo, suas vulnerabilidades, com certeza é o primeiro passo para se ganhar um conflito. Enquanto os agentes dentro do carro matam a fome devorando alguns sanduíches de uma rede de lanchonete famosa, a passagem de um cidadão montado numa bicicleta caindo aos pedaços passou despercebida. Ele passou sem sequer ser notado, sem levantar qualquer suspeita. Ele simplesmente passou. Dentro da viatura os dois disputam quem fica com a última batata frita.

      Para que sua mente grave com riqueza de detalhes, o tal sujeito da bicicleta diminuiu as pedaladas e olhou fixo para o portão da casa da professora Verônica e depois olhou rapidamente para trás e viu quando um dos agentes saiu do carro para jogar o lixo fora. O serviço terá que ser bem feito. O erro nesse caso será fatal. Um caminho sem volta. Hora de pensar um pouco mais.

      Um matador profissional precisa antes de tudo construir um cenário em sua mente. Ele precisa saber o que pode e o que não pode acontecer numa ação tão suicida como esta. Eles no caso não merecem morrer, mas devido as circunstâncias onde a liberdade e a identidade do Caveira estão em jogo ele precisará agir fora de seu propósito. Que seja assim então. Ele volta a pedalar mais rápido saindo do alcance de visão dos policiais. Um recado. Tudo não passará de um simples recado.

 

*

 

Sentada na cama. Mergulhada na trama a qual iniciou a dois meses e por um motivo ou por outro ela ainda não concluiu o livro, Verônica de repente se dá conta de que do nada sua vida se transformou em uma verdadeira história de terror e pânico. Ela olhou para a janela e imaginou o assassino da máscara de caveira entrando segurando aquela faca de caça, pronto a terminar o que começou naquele salão de festas. Verônica também voltou a ver o corpo de seu amigo de trabalho morto naquele chão frio. O que Lauro aprontou para merecer uma morte tão cruel? Ele era apaixonado por ela e ela sabia disso. Mais um pouco e Verônica cederia a seus encantos, mesmo sabendo que Lauro era comprometido. Como é a vida.

      Aprisionada dentro de sua própria casa. Isso é vida? O bom dessa história toda é que há lá fora um homem disposto a tudo. Luís Souza, o melhor agente em atividade em Norma. Verônica pensa em Souza, o quanto ele precisa descarregar suas cargas, o quanto ele está necessitado quê uma mulher o faça viajar numa cama. Por um instante a professora deixou o livro de lado e caminhou até a janela. Para dificultar qualquer ação foi recomendado que ela não abrisse as cortinas. Por precaução ela desligou a luz do quarto e afastou poucos centímetros a cortina. Está uma noite linda, fresca, ideal para ficar na varanda tomando um belo vinho e depois, quem sabe fazer amor ali mesmo tendo as estrelas como expectadoras. A professora suspira e em seguida ela se assusta com as batidas na porta.

     — Pode entrar.

     Souza apareceu na porta reprovando o agir de Verônica.

     — Acho que deixei bem claro que não era seguro ficar na janela.

     — Me desculpe, senhor guarda costas. – voltou a se sentar na cama. – eu só queria dar uma olhada lá fora. Já comeu alguma coisa?

     — Não. Vou dar mais uma sondada e depois sair.

     Verônica abaixou a cabeça.

       — Posso ir com você?

       — Acho melhor não darmos ocasião para o azar. Será rápido. Deixarei um agente aqui dentro e...

       Souza estava na metade da frase quando o vidro da janela explodiu. O susto foi grande. Verônica se deitou na cama gritando horrores e Luís se abaixou e retirou sua arma do coldre.

       — Merda! – falou sacando o rádio. – chamando Carlos e Moura, o que houve? – sem resposta. – Carlos e Moura, responda. – silêncio. – Professora Verônica, não saia do quarto, vou dar uma olhada lá fora.

      — Sim, sim.

     Luís Souza passou pelos cômodos daquela casa simples a passos rápidos e precisos e assim que alcançou a porta da sala ele desacelerou e olhou pela janela. Lá fora a viatura continuava parada no mesmo lugar onde esteve o dia inteiro. Nessas horas é preciso ter sangue frio. O agente abriu a porta e saiu. Souza passou pelo portão e ganhou a rua com sua pistola apontada. Ele correu até a viatura e o que presenciou foi de fazer seu estômago se revirar. Os policiais Carlos e Moura, ambos mortos com tiros na cabeça. O assassino fez uso de um silenciador, imaginou o detetive.

      — Desgraçado. – se afastou do carro e em seguida chamou o reforço.

 

*

 

    Quando a paixão é verdadeira ela proporciona longos momentos de satisfação e prazer e nesse caso, Márcia parece estar desfrutando dos dois ao mesmo tempo. Talvez por ter ficado um bom período sozinha ou até mesmo por não ter um amor correspondido, ela vê em Luciano a pessoa ideal para extravasar. Ela domina e se deixa dominar. Quando Luciano está no controle ela adora ser possuída até os ossos, de ser “maltratada” de ser chamada por nomes de baixo calão e assim eles vão levando a noite até caírem exaustos.

     — Nossa. – começou Márcia se abanando com uma das mãos. – acho que não tenho mais saúde para essas coisas.

     — Fala sério. – a beija no ombro. – até que você está em ótima forma. Então, vamos para o terceiro tempo?

     — Por um acaso você está fazendo uso de aditivo? Não é possível.

     — Que aditivo o que, aqui é saúde mesmo.

     Ela o abraçou e de repente a realidade bateu com força em ambos.

     — Tenho medo que isso tudo acabe. – Márcia apoiou a cabeça no peito de Luciano.

     — Não vai acabar. Eu já falei. Quero ficar velhinho a seu lado. – a beija na cabeça.

     — Não se importa mesmo de ficar com uma mulher mais velha?

     — Bom, desde que essa mulher seja inteligente, linda, fofinha e cheia de fogo, eu não me importo mesmo.

     Márcia se ergueu e olhou nos olhos dele.

      — Tire o fofinha e coloque gordinha, aí sim fica completo. – sorriu.

      Na cabeceira da cama do motel o celular de Márcia vibrou e tocou. Nua ela rolou até alcançá-lo.

      — Fala Souza?

       Mil desculpas, mas temos um problema, você pode vir até aqui?

     — Claro que sim. – se levantou. – chego aí em vinte minutos.

 

*

 

     Márcia chegou em menos de vinte minutos. A rua onde Verônica Cury mora se transformou em um estacionamento de carros polícias, todos eles com seus giroflexs ligados dando aos muros das casas as cores azul e vermelho. Souza permaneceu ali ao lado dos corpos todo o tempo. Sua inconformação pode ser vista a metros, por isso Márcia evitou certos comentários e se deteve somente no que cabe a um policial. Investigar.

      — Foi tudo premeditado. – Souza se adiantou.

      — Ou talvez um recado. – olhou para os corpos. – e Verônica?

      — Dentro da casa. – suspirou. – matar dois policiais, dessa vez ele foi longe demais. – começou a andar em direção ao portão da casa da professora. – temos que mobilizar o nosso DP. Volte para lá e organize as buscas.

       — Já estamos fazendo isso.

       Ele empurrou a portão e entrou falando.

       — Pegue o Caveira, já, é uma ordem.

 

       Verônica estava sentada na mesa da copa tomando chá e assim que viu Luís entrando ela se levantou e o abraçou. A princípio não houve retribuição do gesto. Souza preferiu manter os papéis em seus devidos lugares. Ela é a vítima, a testemunha e ele o seu protetor e só, ainda mais na presença de outros agentes.

      — Sinto muito pelo seus amigos.

      — Fique tranquila. – gesticulou com a cabeça dispensando os dois policiais parados em cada canto da cozinha.

      — Eles tinham família, mulher e filhos?

      — Infelizmente.

      Verônica finalmente tirou Souza daquela situação embaraçosa se afastando dele e voltando a se sentar.

      — Tudo por minha culpa. – chorou.

      — Ninguém tem culpa de nada aqui. O único culpado chama-se Guilherme Brito e eu vou pegá-lo. – Souza percebeu que sua voz saiu alta.

       — Tome um chá comigo, detetive.

 

Aquela noite seria impossível dormir, de relaxar ou até mesmo conseguir bolar um plano para auxiliar na captura de Guilherme. Lá fora, depois de horas de puro caos, por fim tudo voltou ao normal. Tirando a permanência de mais dois carros da polícia na frente do portão, toda aquela rua agora se encontra no mais profundo silêncio. Luís Souza evitou expiar pela janela. Caveira pode estar lá fora com seu rifle apontado sabe-se lá  de onde. Apesar das intensas buscas pelas casas vizinhas, Souza ainda prefere se resguardar. Ele está cansado, sua mente precisa de pelo menos uma hora de sono, por isso ele se sentou no sofá e por alguns segundos fechou os olhos. Em seguida a imagem dos companheiros mortos, a máscara da caveira e estranhamente Verônica. Por que Verônica Cury veio tão forte em sua mente? Ele abriu os olhos e lá está ela na porta da cozinha, em pé, com roupas de dormir.

      — Dormindo em serviço, detetive? – disse sorrindo.

      — Não. Só pensando um pouco. E você, por que ainda está acordada?

      — Você nunca relaxa? – caminhou e se sentou ao lado dele. – vá para casa.

      — Não posso. – apertou os olhos.

      — Não pode ou você não quer

     Um silêncio muito mais que revelador. Eles se olharam e para uma mulher como Verônica isso bastou. Para que o silêncio parasse de revelar certas verdades, Souza tentou mudar de assunto.

     — Temos que ver um outro lugar para você.

     — Você não quer me deixar, não é verdade? – pausou a mão em cima da mão do policial.

     Não se pode misturar as coisas. Não se pode deixar se levar por sentimentos como o que ele está sentindo. Ele é um agente da lei no exercício de sua profissão. O seu dever ali é protegê-la. Apesar de Verônica Cury ser uma mulher irreversível, Souza precisa espantar esse fantasma. O toque em sua mão foi o suficiente para sentir todo o calor emanado. Foi impossível interromper esse momento.

     — Acho que precisamos um do outro, não é?

     A vontade foi grande de dizer que sim, mas Souza se deteve, deixou que ela falasse.

     — Você, um homem forte, destemido, tem nas costas toda uma cidade, porém, todo herói precisa restabelecer suas energias. – chegou mais perto. – eu, uma mulher vivida, experiente, passei por maus bocados e sinceramente preciso de um conforto e... – aproximou o rosto do dele. – acho você o ideal.

      Definitivamente o cheiro, o toque, a boca e principalmente o clima favorável são coisas que Luís Souza não conseguiu evitar. Verônica o beijou. Não houve resistência. Ela investiu mais uma vez e agora sim o policial relaxou. Um beijo bastante significativo. Não foi apenas o reflexo de uma paixão, mas sim o que ambos procuravam a tempos, uma válvula de escape.

      Verônica Cury queria muito mais, por isso ela avançou todos os sinais que viu pela frente. Quando deu por si Souza tinha em seu colo uma mulher efervescente querendo sexo a todo custo e o que fazer em momentos como esses? Ceder seria a melhor e talvez a única saída.

 

*

 

     Enquanto aguarda na sala de espera da empresa, Luciano volta a relembrar o seu passado de menino pobre que vendia balas para conseguir comprar livros e estudar. Foram dias, meses e anos bem difíceis com direito a perca da dignidade. Luciano se recorda do dia em que teve que se submeter a serviços desumanos por causa de alguns trocados. Mas tudo valeu o pena. Hoje ele está a segundos de ser promovido numa das maiores empresas do país. A voz aveludada da secretária o tirou de suas lembranças.

      — O Senhor já pode entrar.

      — Ah sim, obrigado!

      Mais uma vez lá está ele na frente do chefe naquela sala enorme, bem refrigerada, iluminada e cheirando a café. Ainda atendendo a uma ligação o dono da companhia gesticulou para que ele se acomodasse. O telefone voltou para o gancho.

      — Luciano Couto!

      Luciano engoliu seco.

      — Conhece a China?

      — Não Senhor?

      — Então meu amigo, eu estou abrindo uma filial lá em Hong Kong, vou precisar de alguém para fazer o trabalho e eu não consigo ver nningué além de você é claro, apto para a função. Então, quer ser meu diretor geral em Hong Kong?

      De repente tudo o  que ele passou no passado foi deixado no lugar onde lhe é de direito, agora é hora de colher as benesses. Luciano apertou a mão fria do patrão já pronto para arrumar as malas e partir para Hong Kong.

       — Pode deixar comigo senhor.

       — Irei providenciar sua moradia no melhor lugar daquela cidade maravilhosa. Ao trabalho senhor diretor geral Couto.

 

*

 

      Viver e sobreviver da morte. Nada mal para alguém como Guilherme que passou parte de sua infância convivendo com a terrível presença da morte. Seu pai foi um sujeito violentíssimo, considerado como indivíduo de alta periculosidade, matava por nada. Na década de 1980 seu nome era comum nas páginas dos jornais sensacionalistas. Para ele não havia vínculo familiar, tanto que Brito pai matou a própria esposa e com requinte de crueldade. O pequeno Guilherme viu o corpo da mãe fatiado no chão sujo da cozinha. Mesmo sabendo que sua mãe não o ouvia mais, ele jurou vingança na mesma medida.

    Brito pai estava embriagado estirado no sofá. Depois que matou a esposa ele passou a conviver com pesadelos e por isso ele começou a beber e a beber muito. Guilherme já estava no terceiro dia sem comer direito. No estômago somente alguns biscoitos e na cabeça uma tremenda vontade de cravar uma faca no peito do homem que lhe deu origem. Da sala se ouvia os roncos e os balbucios. O menino magrelo entrou no quarto e mexeu nos pertences de Brito. Caso acordasse e o visse mexendo em suas coisas, Guilherme estaria sujeito a passar o restante de sua vida numa cadeira de rodas. Sem fazer barulho ele retirou de lá uma faca de caça, a mesma que hoje em dia lhe serve como instrumento de “trabalho”. Lá estava ele, dormindo, bêbado feito um gambá. Será fácil, Brito nem sentirá a morte. E assim foi. A faca entrou com pressão no peito, somente o cabo ficou amostra. Brito pai ainda tentou alguma reação, mas seu filho o acertou no pescoço. A morte lhe recebeu de braços abertos.

     Diferente de seu pai, Guilherme Brito não mata por qualquer coisa. Em sua mente doentia, morre só quem deve morrer e Verônica nesse caso está inclusa. Ele sabe que falhou na primeira tentativa e sabe também que da segunda não pode haver erro. O Caveira tem agora a polícia de Norma em seu encalço. Sua falha apenas serviu de alerta, por isso, agora as coisas precisam ser medidas, calculadas antes de serem executadas. Mãos a obra.

*

 

    A noite acabou e com certeza ela não será esquecida tão facilmente. Para um homem como Souza, a noite passada será marcada pela quebra de princípios e também, é claro, a noite mais deliciosa desde quando se causou com Suzana. Verônica Cury conseguiu fazer com que o policial navegasse em mares de puro tesão. Mas, tudo o que começa, um dia tem fim. Luís abriu os olhos e Verônica não estava no sofá. Mais que rápido ele vestiu suas roupas e andou até a janela. Lá estão as duas viaturas. Andou até a cozinha e a professora se encontrava tomando café na copa.

     — Me acompanha? – disse ela erguendo a caneca.

     — Acho que sim.

     Logo de cara o detetive sentiu que o clima não era o mesmo. Verônica tinha no rosto uma expressão fechada e olhos umedecidos. Ela não puxou mais assunto, seguiu comendo suas torradas sem levantar a cabeça.

     — Está tudo bem? – pegou a garrafa térmica.

     — Sim! – Verônica segue olhando para baixo.

     — Hoje iremos para outro lugar, leve somente o necessário.

     — Já fiz isso.

     — Olha, Verônica, se...

     — Souza, será que podemos passar uma borracha em tudo o que aconteceu ontem naquele sofá? Foi um momento de fraqueza de ambos. Você estava necessitado e eu também, não podemos eternizar isso. Você me entende?

      — Sim, claro que entendo, mas não podemos negar que o que houve foi muito mais que sexo.

      — Eu prefiro acreditar que tudo não passou de um momento de carência e então descarregamos, só isso.

      Será que Souza nasceu com esse terrível carma de se apaixonar por quem não quer absolutamente nada com ele? Verônica acabou de revelar que o usou para aliviar as pressões que vem enfrentando. Por um segundo ele teve raiva dela e no outro pena. Ele engoliu o café junto com ambos os sentimentos e se levantou.

     — Pegue suas coisas, vamos embora.

 

Dentro de uma das viaturas o que estava ruim ficou ainda pior. Verônica e Souza, dois estranhos. Na cabeça dele milhares de questionamentos e também muitas respostas. Enquanto a paisagem passa ele precisa fazer com que as peças se encaixem ou então ele terá que se conformar com sua triste realidade, nasceu para ser só. Luís volta a olhar para ela que está a seu lado ainda exalando o perfume da noite passada. Ele odeia sentir o coração palpitando, por isso fez questão de se concentrar no trabalho.

     — Evandro, não consigo ver a outra viatura. O plano foi ficarmos o mais próximo possível. – falou Souza ao policial no volante.

     — Já chamei pelo rádio e ainda não obtive resposta, senhor.

     — Mais que droga.

    Uma motocicleta passou em alta velocidade e atirando. Foi tudo muito rápido, Souza só teve tempo de se jogar por cima de Verônica e gritar para que o policial desse um jeito de sair da linha de fogo do atirador. O motociclista diminuiu a velocidade voltando a atirar explodindo o para-brisa dianteiro. O agente que estava no carona foi gravemente ferido e o motorista perdeu a direção da viatura e colidiu contra a mureta de proteção.

     — Evandro, Silva, como estão?

     Ambos estão desacordados. Verônica não consegue parar de tremer e chorar embaixo do detetive. Lá fora os curiosos já rodeiam o local do acidente. Mesmo com pouca visibilidade, Luís Souza conseguiu ver a moto indo em direção ao centro de Norma.

      — Fique calma, o pior já passou.

      — Aí meu Deus, que inferno se transformou minha vida. E seus amigos?

      — Vou chamar uma ambulância.

     Depois que Souza soou o alerta, imediatamente todo o DP de Norma se mobilizou indo atrás do motociclista e atirador. Em seguida o agente foi notificado de que os outros dois policiais que vinham na outra viatura foram mortos pelo mesmo motoqueiro.

      — Esse maldito Caveira já matou quatro dos nossos, peguem ele. – berrou ao rádio.

      Muito abalado, Souza apoiou a cabeça no teto da viatura e depois olhou para Verônica sendo amparada pelos socorristas. A vontade foi enorme de toma-la pelos braços e beija-la. Agora é um pouco tarde para tentar separar as coisas uma vez que eles já dormiram juntos. Verônica Cury não é mais uma simples testemunha. Ela é agora a mulher a qual ele se apaixonou e que fará de tudo para mantê-la bem.

       Os olhares se cruzaram e ele entendeu a mensagem. Verônica é o seu trabalho. Ele sacou o celular do bolso e procurou o número de um velho amigo. Se afastou um pouco daquela confusão e aguardou ser atendido.

     — Pode falar, Santana?

 

*

   Estou feliz por você, Lu, conseguiu seu objetivo.

   — Pois é, demorou, mas consegui.

   Por que não está animado?

   — Márcia, minha promoção saiu e eu vou para Hong Kong.

    Silêncio por parte da policial.

   China?

   — Exatamente.

     Mais silêncio. Dentro do carro Luciano permite que seus olhos fiquem marejados.

     — Adiantaria perguntar se você gostaria de ir comigo?

     É que, sabe, Lu...

      — Eu vou entender se disser que não. Você é uma policial, aliás, uma importante policial ao lado do Souza, Norma precisa de vocês dois.

      Quero muito te ver hoje, pode ser?

      — Claro, quando quiser.

      Márcia encerrou a ligação e se sentou. O choro foi inevitável. Ela estava curtindo e muito o namoro com Luciano e acreditava piamente num futuro com ele. Foi um golpe muito forte. Para não ser surpreendida com a maquiagem borrada ela correu para o banheiro e ficou lá até quase as lágrimas secarem. Ao voltar para a sala ela se assustou com Souza em pé, parado olhando para ela.

      — Oi? – ela prendeu os cabelos atrás das orelhas.

      — Eu te conheço o suficiente para saber que minha assistente não está nada bem.

      — Impressão tua. – começa a mexer em alguns papéis.

      — Márcia, solte esses documentos, é uma ordem.

       Foi complicado. Entre choros e soluços Márcia Bernardo contou tudo ao seu chefe. Como se fosse um terapeuta ou um pai dedicado Luís ouviu tudo sem interrompe-la. Isso foi ótimo para ela que ao fim do relato já estava bem mais leve.

      — Fique a vontade se quiser ir para Hong Kong. Todos tem o direito de correr atrás da felicidade.

      — Não posso, Luís, eu batalhei a minha vida inteira para chegar aonde estou hoje. Eu sei que ao lado de Luciano eu terei uma vida de rainha, mas, ainda assim tenho meus sonhos pessoais.

      — Compreendo. Mas fique sabendo que tem meu total apoio se mudar de ideia.

      — Obrigado, chefe. – o abraçou. – vamos pegar o Caveira.

      — É assim que se fala.

 

*

 

    Por mais que Guilherme Brito já estivesse no radar da polícia, agora a sua prisão se tornou uma questão de honra para todos que possuem um distintivo. Souza, Márcia e mais algumas dezenas de agentes partiram na captura daquele que em questão de dias pegou o título de inimigo público número um. Norma será virada de ponta cabeça. Quatro policiais mortos. Isso não pode sair de graça.

     Claro que a essa altura Guilherme sabe que tem atrás dele homens nervosos, sedentos por tê-lo em suas mãos. Porém a sua maior decepção não é isso, mas sim não ter conseguido eliminar seu alvo. Ele tem um nome a zelar, não é atoa que sua outra identidade tem uma caveira como símbolo. A morte. Mas agora é do conhecimento de todos como ele realmente é, um homem de expressão forte e fechada com olhos fundos intimidadores. Guilherme está parado num ponto de ônibus usando um boné que encobre parte do seu rosto. O coletivo demora para abrir suas portas e isso o deixa ainda mais alterado. Ele percebe uma pequena movimentação no terminal. Na cintura sua arma descansa tranquilamente, mas a qualquer momento ela pode ser solicitada. Sim, há polícias dentro do terminal rodoviário, muitos deles. Hora de bater em retirada. Caveira sai da fila a passos lentos, sem ser notado e alcança a saída onde ficam os táxis.

     — Táxi, senhor? – perguntou um oriental.

     — Vamos.

     Dentro do carro Guilherme ocupou o carona e aguarda o motorista terminar de se ajeitar.

      — O cinto por favor. Para onde vamos?

      — Para fora de Norma. – sacou a arma.

      O taxista engoliu seco e saiu com o veículo com os faróis acesos. Um dos motoristas que aguardava lá fora viu o jeito que o colega saiu com o carro e chamou atenção dos policiais.

     — O que houve?

     — O china acabou de pegar um passageiro, acho que ele está em apuros.

     — Tem certeza, como sabe?

    — Nos temos um código secreto entre a gente. Aquele que estiver sendo roubado, ou transportando um marginal, deve sair com os faróis ligados.

     — Ótimo, me passa a placa do carro, vamos.

 

*

 

     Via rádio Souza recebeu todas as informações sobre o ocorrido no terminal. Tudo tem favorecido até agora. O policial que colheu as informações com o taxista enviou uma sonora do motorista relatando as feições do suposto Caveira e tudo leva a crer que seja mesmo ele.

     — Acho que temos o nosso homem e como estamos quanto ao táxi que ele pegou? – perguntou a Márcia que digita com rapidez num notebook sentada no banco de trás da viatura.

      — Ainda estou sem resposta do controle de tráfego.

      — Segundo o motorista o táxi pegou a pista sentido a rodovia principal, ele vai tentar sair de Norma. Entre em contato com a polícia rodoviária federal e peça para fechá-la, passe para eles a identificação do carro.

 

*

 

    Guilherme Brito pressiona o cano da pistola contra a têmpora do oriental que segue dirigindo sem ultrapassar a velocidade permitida, uma orientação do próprio Guilherme.

      — Tem filhos Takeda?

      — Sim, quatro?

      — Quatro? Na sua casa não tinha televisão? – zombou.

      — Jura não me matar? – chora.

      — Se você for um bom menino, ainda essa noite você  vai estar jantando com seus quatro rebentos.

       A 800 metros a polícia rodoviária federal montou uma barricada e aguarda a chegada do táxi com cerca de quinze agentes fortemente armados. Dentro do táxi o Caveira segue zombando das tradições orientais do motorista quando por fim ele visualiza o aparato policial.

      — Mais que droga, o que você fez? – esbravejou e forçou ainda mais o cano da arma contra a cabeça de Takeda.

      — Eu juro, eu juro, eu não fiz nada, só dirigi pra você. – juntou as mãos em forma de oração.

       — Vamos voltar. – olhou pelo retrovisor e viu mais viaturas vindo. – essa não, você avisou a polícia não foi?

       — Não me mate, por favor.

      Para deixar o clima ainda mais tenso Guilherme pegou no bolso da calça sua máscara de caveira e a colocou, ao ver isso Takeda entrou em desespero.

       — Comece a rezar vendedor de pastel.

       Logo atrás as viaturas fecharam a rodovia principal. Por cima um helicóptero dá apoio. Souza e Márcia se organizam para uma negociação. A situação conseguiu piorar mil vezes mais.

     — Vou descer e tentar falar com ele. – Souza abriu a porta e desceu.

     — Boa sorte.

      O táxi está parado no meio da pista. Lá dentro alguém tem uma arma apontada para sua cabeça e segurando essa arma alguém que não tem nada a perder, Luís Souza terá que ser um pouco mais político se quiser mesmo salvar a vida do taxista. Muito esperto Caveira pede que Takeda coloque a cabeça do lado de fora e fale com Souza.

      — Ele vai me matar, policial. – fala chorando.

      — Calma, ninguém vai se machucar.

      — Ele falou para abrirem caminho. – gagueja.

      — Que garantias teremos?

      Takeda é puxado para dentro do carro e depois de dois minutos ele volta para a janela.

      — Ele disse que não há garantias.

      — Pergunte se eu posso me aproximar do carro. – Souza deu mais dois passos.

      — Se der mais um passo ele vai estourar meus miolos. Por favor, policial, eu tenho quatro filhos e um ainda mama.

      — Ele não fará isso. Ele sabe do risco que corre.

      Takeda volta a ser puxado para dentro. Souza olhou para o helicóptero e depois para a barreira da polícia rodoviária, tudo é ainda muito incerto. O motorista oriental voltou a aparecer na janela com o rosto ainda mais transtornado e banhado por lágrimas.

       — Ele pediu para que eu inicie uma regressiva, no zero ele vai me matar. Dez, nove, oito...

       — Quais são as exigências? – vocifera.

        — Sete, seis, cinco...

      — Por favor, Guilherme, fale o que você quer?

      — Ele quer passagem, por favor, nos deixe passar, quatro... – berrou.

      — Atenção pessoal.

      Os agentes rodoviários federais engatilharam suas armas e se prepararam. Souza escutou Takeda terminar a regressiva com o coração batendo na garganta.

     — Três, dóis, um...zero.

     Takeda é puxado e em seguida um disparo. Souza vê tudo em câmera lenta, inclusive a ruína de sua brilhante carreira. Um nó na garganta se formou e ele perdeu as forças nas pernas e fechou os olhos. Márcia não conseguiu conter o choro misturado ao soluço.

      — Aí meu Deus, tudo menos isso.

      Abatido, Luís Souza observa a porta do lado do motorista se abrindo e Takeda saindo gritando feito um alucinado.

      — Não atirem, não atirem, pelo amor de Deus. – caiu no asfalto quente com o rosto e camisa sujas de sangue. – ele deu um tiro na própria cabeça.

      Souza correu até o táxi com os vidros respingados de sangue ainda anestesiado com tudo o que aconteceu. Ele sacou sua arma e olhou para o interior do veículo e viu Guilherme Brito sentado com a cabeça estourada caída para trás.

     — Cristo! — vociferou o policial.

     — Ele, ele, disse que só matava quem merecia morrer e nesse caso eu não estava incluso, mas sim ele. Jesus. – chora caído no chão.

     — Venha, eu te ajudo a se levantar.

 

*

 

    O aeroporto de Norma é considerado um modelo para outros não só do país, mas para o mundo. Márcia e Luciano se beijam e choram ao mesmo tempo. É dolorosa uma despedida, ainda mais sendo ela de uma pessoa a qual amamos muito.

     — Prometo mandar notícias todos os dias ao entardecer. – disse limpando as lágrimas da namorada.

     — Ficarei aguardando.

     — Eu lhe admiro, Márcia, são poucas as mulheres que tomam uma decisão como essa. Suas realizações profissionais com certeza devem estar sempre em primeiro lugar.

     — Obrigado. – derramou mais lágrimas.

     — Tenho orgulho de você, xerife de Norma.

     Luciano Couto embarcou para China e Márcia voltou para o DP, arrasada, mas feliz por seu namorado ter conquistado o que sonhou por anos. Vida que segue.

     Longe dali, Souza apertou a mão de seu amigo enquanto que Verônica o aguarda dentro do carro.

     — Valeu por tudo, Santana.

     — Sempre que precisar estamos as ordens.

     Souza entrou no carro e sem cerimônia virou a chave, Verônica apenas o acompanha com os olhos e em silêncio. Durante toda a viagem os dois não trocaram uma palavra sequer. No portão da casa o detetive quebrou o silêncio.

     — Está entregue. Boa sorte na vida, professora.

     — Você pode me chamar de Verônica.

     — Melhor mantermos as formalidades. – coçou a nuca.

     — Eu só quero dizer que foi tudo maravilhoso naquele sofá, foi uma noite perfeita. Quem sabe um dia desses repetimos a dose?

     — Sério?

     — Eu não vou me mudar. – desceu do carro. – obrigado por tudo, Luís Souza. – deu as costas e se foi.

     Souza antes de ligar o motor ainda ficou ali processando tudo o que ouviu. Sorriu e saiu. FIM.