quinta-feira, 25 de maio de 2017

EM DECOMPOSIÇÃO - Gado


Um conto escrito por Matheus Garcia


Com uma tosse seca, Ana acorda e nota que não está mais na estrada. Sua última lembrança é de um barulho oco, como de pancada na madeira, e uma forte pontada de dor atrás da cabeça. Ainda zonza, ela tenta ver onde está. Tudo o que vê é branquidão e luz, e ela sente muito frio. A cabeça lateja. Então, algumas lembranças aparecem.
---
   Seguindo uma rodovia a pé, Ana ouviu um carro, se escondeu dentro do bosque, na beira no asfalto, e o observou passar. Quando se está a tanto tempo na estrada, durante o fim do mundo, você aprende que o problema não são os mortos, mas sim os vivos. Já de costas a caminhonete exibe a caçamba aberta. A visão dos dois homens amarrados, de roupas rasgadas, sujas de sangue e terra, deixou-na assustada. Ela se vira para descer pelo bosque e sair mais a frente na estrada, depois de uma curva. O caminho é maior, mas assim ela continua em seu caminho e sai do céu aberto por umas horas, evitando um possível segundo encontro.
---
   Depois dos primeiros minutos, Ana consegue se lembrar de algumas coisas. Sua visão volta a ter foco.
   Ana se vê numa banheira cheia, amarrada por arames farpados, numa sala revestida de azulejos imundos, até o teto -  que talvez já tenham sido brancos. Mais a frente da banheira tem uma mesa de metal, de onde escorre algo viscoso e negro. Quando olha pro lado, um grito, ao ver uma pessoa muito alta encarando-a. Mas logo percebe que se trata de alguém pendurado ao teto, por grandes anzóis nos ombros. Um homem nu, com o tórax repleto de costuras debaixo das costelas, no abdome, e um grande rasgo remendado, que ia da garganta até entre as pernas. A jovem fica tão chocada com a imagem, que não há ar para gritos. Ao olhar o rosto do homem, Ana o reconhece.
---
   Logo ao se virar para a mata, Ana da de cara com um zumbi. Com o sangue frio, ela puxa a faca e vai em frente e, quase na hora do golpe, ela se assusta ao ouvir uma palavra proferida da boca do morto vivo. Sem acreditar, ela se afasta, enquanto se pergunta se já não está a tempo demais sem comer. - Ajuda - lá estava a voz outra vez. Só agora cai na real e toca de que está olhando para um homem vivo - não muito - que mais parece alguém a quem não avisaram que morreu. O homem cai já desmaiado. Sua reação é olhar em volta, pra ver quem fez aquilo. Quando se abaixa, e confere o pulso do homem, Ana ouve novamente um barulho de carro. O desespero bate e ela sai em disparada quando percebe que era ronco do carro de antes - por mais conveniente que pareça Ana era filha de três gestações de mecânicos, então, de uma coisa ela entendia.
---
   Ao sentir as pernas dormentes, Ana olha pra baixo e sente um medo que ainda não havia experimentado. A água da banheira é negra, escura e espessa como o líquido que escorre da mesa. Quando tenta se mexer, os arames fazem seu trabalho, e a dor da pele rasgada em tantos pontos aparece, e não vai embora. Nessa hora sua mente começa a imaginar as piores alternativas possíveis. Desesperador não saber o que houve enquanto se dormia não saber como estão seus braços, sua barriga, suas pernas, se ainda as tem... Não saber se seus órgãos ainda estão lá.
---
   Em menos de um minuto, ela tropeça e se levanta com rapidez. É a primeira vez em muito tempo que o perigo é tão grande e imediato. Ana se emociona, não consegue mais ver para onde está indo. O medo de ser capturada de novo, não lhe dá força, mas sim vontade de desistir e pegar sua faca para acabar com aquele inferno que era sua realidade agora - e talvez fosse o que ela deveria ter feito.