sábado, 30 de junho de 2018

Nível Máximo 3


        O departamento de polícia nunca esteve tão agitado, tão movimentado, praticamente um furação devastador. Paulo Alves quase consome suas unhas com seus olhos atentos na tela do monitor. Sidnei Lessa, esse desgraçado vem lhe tirando o sono desde o seu surgimento. No início o detetive achava que ele não passava de um ladrãozinho pé de chinelo, mas com o passar do tempo, Paulo se viu lidando com um profissional. Agora ele se encontra ali, parado concentrado observando imagens de uma câmera de segurança aguardando o momento em que o gatuno agirá.
- Apareça, desgraçado.
Finalmente ele aparece com seu típico caminhar, sem se preocupar muito em ser identificado. Ele passa pela câmera e ainda faz um gesto obsceno e depois some. Paulo Alves se vê segurando com força o controle da TV. Momentos depois Sidnei passa mais uma vez segurando sua sacola pesada e desaparecendo em seguida. Dessa vez foi muito rápido. Muito nervoso o detetive congela a imagem e vai até seu armário pegar um mapa. Ele o abre em sua mesa e começa a fazer círculos com um piloto vermelho. Nessa hora um outro policial invade a sala mastigando amendoins.
- Qual a boa, Paulo?
- Sidnei Lessa, dessa vez eu pego ele, tracei alguns pontos onde ele gosta de agir, resta agora nos anteciparmos, o que acha?
O policial volta a colocar alguns amendoins na boca e depois observa o mapa.
- Tudo certo, pelos cálculos o próximo assalto será nessa região.
- Dessa vez eu pego ele.
*

Sapatos caros e bem engraxados, camisa de ceda cor vinho e calça. Bem barbeado e perfumado. Sidnei entra na sala do todo poderoso Barbosa Neto segurando sua sacola com as joias do último roubo. O escritório é sujo, empoeirado, Barbosa Neto faz questão ficar ali quase que o dia inteiro fechando negócios com seus “fornecedores”. Ao lado do chefão um segurança gordo segurando uma pistola. Sidnei faz um gesto de cabeça para o segurança e depois abre um sorriso falso para o mafioso.
- Grande Barbosa Neto, tenho novidades.
- Sem muita enrolação hoje, Sidnei, tenho muito o que fazer. - diz com a mão espalmada.
- Tudo bem. - abre a sacola e a mostra para o bandido.
  Os olhos escurecidos do velho se abrem ao ver o conteúdo da bolsa.
- Onde arrumou isso?
- É uma história muito longa. - dá ênfase no muito. - então, posso dar o meu preço?
- Por favor. - aponta para uma cadeira.
Lessa sai do escritório satisfeito em ter feito negócios com o chefão do crime. Ele sai na rua e seu coração vem a boca ao ver uma viatura passando. Ele entra em uma lanchonete e olha pelo vidro o carro diminuindo a velocidade e parando. De dentro do carro descem dois policias que entram no escritório de Babosa Neto. Certamente vieram pegar a mensalidade da semana. Cambada de corruptos. Uma simpática atendente o aborda.
- Quer experimentar um dos nossos lanches, senhor? - lhe oferece o menu.
Até que um sanduíche de frango com salada cairia bem.
- Sim, claro.

*

Sidnei aguarda a chegada de seu pai no portão. No estômago somente o café da manhã. Seu pai havia prometido trazer pão doce, só de lembrar o estômago do menino de nove anos se retorce. Quanta fome. Já são quatro da tarde e lá vem seu Dirceu Lessa arrastando seu chinelo segurando uma sacola de supermercado e olhar soturno.
- Pai, pai, trouxe?
- Vixi, filho, hoje o patrão não deu vale.
- Mas pai a mamãe e eu não almoçamos. - cruza os braços aborrecido.
- Filho, o papai também não comeu e mesmo assim tive que trabalhar.
- O que vamos comer?
Sidnei corre para rua limpando as lágrimas com seu estômago ainda reclamando e a boca amargando. O menino só para de correr ao ver uma frangueira assando alguns galetos. O valor é exposto e Sidnei enfia a mão nos bolsos do short e só sente as coxas. Que droga de vida. Por que alguns tem muito e outros simplesmente não tem nada? Por que preciso passar por essa situação? Não, tem algo de errado nisso. Mudarei minha história.
O garoto Sidnei se aproxima da frangueira observando cada movimento do proprietário. Não será tarefa fácil. De repente o dono dos galetos se vira para ele.
- Vai levar um garoto?
- Si, sim. - arregala os olhos.
- Vou tirar pra você. - abre a assadeira. - quer escolher?
- Aquele ali. - escolhe o mais parrudo.
Gentilmente o homem coloca o frango inteiro na bandeja e se vira para pegar a embalagem. Quando se volta para o garoto ele já não está mais lá e nem o frango.
- Mas que moleque sem vergonha.
Lessa corre segurando o frango que queima sua mão. Ele sorrir. Correndo ainda mais ele consegue chegar num terreno baldio. Salivando e sentado numa pedra não muito confortável ele devora o frango. Um pequeno cachorro vem ao seu encontro.
- Já sei, você vai querer um ossinho. - retira a asa. - toma.
A vida agora é outra. Sidnei ainda não é um homem realizado, porém fome ele não passa mais. Naquele quarto de hotel ele vislumbra um futuro diferente de seus pais, um futuro próspero, glorioso. Hoje ele tem dinheiro, pode dormir numa cama confortável, anda de táxi pra cima e para baixo, come nos melhores restaurantes sem se preocupar se a grana vai faltar. Sim, esse império ele vem conquistando e construindo vivendo do perigo.

*

A polícia vem fechando o cerco sob as ordens de Paulo Alves. De acordo com o mapa Lessa atacará outra vez na região onde sua mancha criminal é mais intensa. Se tudo dar certo a prisão de Sidnei é questão de tempo. As viaturas circulam dia e noite nos pontos mais críticos. Dentro da viatura Alves observa no mapa cada casa roubada. Ele se sente desafiado, ele se vê na responsabilidade de dar uma resposta a sociedade e também as vítimas que tiveram seus pertences roubados. O trabalho de um policial consiste em ter paciência, expertise, inteligência. Tudo isso ele usará. Hora de colocar Lessa atrás das grades. Fim           



 
                    




quarta-feira, 27 de junho de 2018

Nível Máximo 2


1


Como ele adora a noite, para Sidnei ela é o melhor período do dia, ela jamais deveria dar lugar a luz do sol. Lessa agora está parado olhando para aquela mansão. Em sua mão direita a máscara, na outra sua inseparável sacola. Ele consulta o horário.
               - Hora de trabalhar.
           A mansão pertence ao um famoso político. Os muros altos com câmeras de segurança em pontos estratégicos demonstram que lá dentro deve haver uma bela soma em dinheiro vivo e é claro joias. Ele atravessa a rua daquele condomínio. Com habilidade de poucos ele sobe no muro. Claro que além das câmeras há também uma cerca com sisteme elétrico. Sidnei olha ao redor e não percebe a existência de cachorros. A barra está limpa. O ladrão pula no jardim e rola para junto de uma pequena árvore. Começando a transpirar, Sidnei abre a sacola e saca sua arma, um trinta e oito. O bandido coloca sua máscara e se rasteja até perto da garagem. Aparentemente nenhum movimento dentro da mansão. Bom sinal.
          Sidnei só pensa nas joias, ou na grana, essa é a sua ambição, sua motivação. Antes de ser um ladrão ele era apenas um repositor de supermercado, um pobre miserável que tinha que esperar todo um mês para ganhar um salário de fome. Ele cansou, cansou das broncas, do patrão, do chefe, de todos. Agora ele é bem sucedido, o dinheiro é ilícito, mas para ele tá valendo.
           A garagem está fechada, péssimo sinal. Ele faz a volta e encontra uma pequena janela perto da piscina. Com cuidado e agilidade de um gato e chega até a tal janela e a força. Ela cede. Ele força mais um pouco e ela abre. Legal. Sidnei olha para trás, parece ter ouvido um barulho. Rapidamente ele passa pela janela. Lá dentro parece ser um quartinho onde colocam as coisas já sem uso como computador, vassouras, cadeiras e outras tralhas. Muita poeira e isso é péssimo para um alérgico. Sidnei segura o máximo os espirros.
            - Nossa!

2

Agora Lessa está na cozinha da mansão. O silêncio é sepulcral. O cômodo é gigante, tudo em aço inox, realmente uma beleza. Sidnei escorre até a sala. Aonde deve estar o cofre com a grana e as joias? Na sala há uma enorme estante com livros e enciclopédias. Uma TV de quase cinquenta polegadas, sofá de forro branco, tudo maravilhoso. Cadê o cofre? De repente as luzes se acendem. Sidnei só teve tempo de se esconder atrás das cortinas. Seu coração vem a boca. Lá está ela, a mulher do político, linda, um encanto de mulher. O que ela veio fazer na sala a essa hora?
           Realmente a esposa do deputado é um espetáculo. Claro, ela é mais jovem que ele alguns anos. Sidnei saliva ao vê-la naqueles trajeis de dormir. Ela volta da cozinha com um copo de água. A menina boceja e bebe. Linda. Para a surpresa do ladrão, um sujeito coberto de músculos vestindo apenas uma cueca box também aparece na sala. Ele a segura por trás.
                - O que foi, não consegue dormir? - questiona o rapaz.
                - Só vim pegar água.
                - Vamos subir. - a beija na nuca.
                - Só vou terminar de beber minha água.
           O casal começa a trocar beijos molhados e barulhentos. O musculoso começa a despir a mulher do deputado ali mesmo na sala. Que cena. Ela tem os seios apalpados.
                - Vamos subir. - por fim ela não resiste.
            O caminho mais uma vez está livre para o ladrão. De volta a escuridão Sidnei continua a procurar o cofre. Nada foi encontrado na sala. Ele sobe as escadas e já é possível ouvir o ruido da cama e os gemidos da mulher do deputado. Nada como uma bela transa numa bela mansão. Bem a frente um corredor e nesse corredor um quadro pendurado. Com certeza o cofre está atrás do quadro. O ladrão afasta a moldura e lá está. Muito bom.
             Sidnei anda até a porta do quarto que se encontra entreaberta e contempla uma clássica cena de sexo explícito. O clima é tão gostoso que o casal não percebe a presença de Sidnei ali.
              - Muito bonito hein? - diz o ladrão apontando seu trinta e oito.
              Muito apavorado o rapaz desengata da mulher e ela solta um gritinho.
              - O que você quer? - pergunta ela.
              - Adivinha?
              - Por favor cara, não me mate. - implora o rapaz.
              - Cale a boca, se fizerem exatamente o que eu mandar, ninguém sairá ferido ou morto.
              - Leve tudo o que precisar. - fala a mulher.
              - Quero o segredo do cofre, agora.
              - Eu, eu não sei.
             Sidnei enterra o cano da arma na nuca do rapaz e inicia uma contagem.
             - Um, dois, três.
             - Calma, por favor. - grita a mulher. - posso me vestir?
             - Não, eu quero o segredo do cofre, já.
             - Por favor. - começa a chorar.
             - Quatro, cinco…
             - Tá bom, tá bom, vamos lá.
          A esposa do político na frente. Logo atrás dela o sujeito que treme dos pés a cabeça. Os dois estão nus. Sidnei continua apontando seu trinta e oito para a cabeça do amante. Agora eles estão frente a frente com o cofre. O ladrão olha para a mulher e com um gesto rápido de cabeça ele ordena que ela comece a abri-lo. Não é tarefa fácil lembrar de combinações de um cofre, ainda mais quando se tem uma arma apontada para você. Com as mãos suando e trêmulas, a mulher do deputado vai girando e voltado até que um estalo indica sua abertura.
             - Pronto, está tudo ai, dinheiro, documentos e joias, minhas joias. - diz chorando.
             - Fique quieta sua vagabunda.
            O amante não esboça reação.
             - Vamos, coloquem tudo dentro da sacola, vamos.

3

Cinco minutos depois Sidnei está saindo da mansão carregando sua sacola. A noite já é alta e assim que ele chega na rua o ladrão corre para uma outra rua mais escura e deserta. Ali ele troca de roupa e continua a andar apressadamente até uma via de mais movimento. Assim que ele chega no acostamento um táxi vem passando e ele sinaliza.
               - Por favor?
               - Boa noite, para onde vamos meu chefe? - pergunta o taxista um homem barbudo.
               - Vamos voltar para o centro. - abre a porta traseira.
               - Você quem manda.

*

O carro da polícia faz a curva e breca. Dele descem dois apressados agentes. Paulo Alves faz sinal para que todas as ruas sejam fechadas. Na entrada da mansão a esposa do deputado chora copiosamente ao lado esposo.
               - Boa noite senhor deputado.
               - Boa noite detetive Alves, vamos entrando.
               Paulo entra na mansão admirado com a beleza do lugar.
               - Conte-me como tudo aconteceu senhora Rafaela
            É claro que Rafaela pulou a parte em que estava transando com seu amante. Paulo Alves ouviu e anotou tudo. Depois de olhar o cofre ele se reuniu com sua equipe.
             - Sidnei Lesse agiu outra vez. Roubou cerca de vinte mil em dinheiro e quase cem mil em joias, temos que enjaular esse vagabundo, vamos.
           
Sidnei está deitado em meio a várias notas de cem. Ele sorrir e as joga para alto. Naquele quarto de hotel ele esbanja felicidade. Mais um bom trabalho realizado. Até quando isso pode durar? Isso ele não sabe, ele não é do tipo de pessoa que pensa muito no futuro, tudo que Lessa quer é vivenciar o presente dissolutamente. Dentro da sacola as joias brilham aguardando o momento de serem vendidas. Sidnei Lessa, quando você imaginaria que seria um ladrão? Que jamais passaria por necessidade outra vez. O seu mundo são as joias, o seu mundo é o risco, o nível máximo do perigo.
             Ele se levanta e anda até a janela. O dia vem despontando, quebrando o manto negro da noite. Será um dia muito agradável, dia de sol. Ele volta a sorrir e se recorda de seu pai, aquele homem cuja as mãos eram cobertas de calos e unhas apodrecidas. Trabalhava todos os dias e mesmo assim não conseguiu dar uma vida digna a família. Morreu trabalhando, não aproveitou a vida. Pobre diabo. Sidnei faz questão de espalhar os pensamentos voltando para a cama. O sono começa a bater forte, mas antes ele junta todo o dinheiro e o organiza dentro da sacola junto com as joias. Tudo pronto. Ele programa o despertador para as dez horas e se joga na cama já dormindo. Bons sonhos, ladrão. Fim        
   

  

segunda-feira, 25 de junho de 2018

Nível Máximo


1

Quatro da manhã. Enquanto muitos dormem ou acordam para mais um dia de labuta, ele aguarda o momento certo de começar o que planejou a dias. Em meio a penumbra daquele corredor apertado, úmido e fedorento ele se espreme tentando manter sua respiração controlada. Sidnei Lessa, esse é o seu nome, um sujeito magro, careca e de olhos azuis penetrantes. Sidnei olha para o relógio em seu pulso e depois para a joalheria que fica do outro lado da rua. No céu somente estrelas e nuvens. A brisa fria da madrugada ainda lhe causa um certo arrepio. Sidnei sente que está perdendo tempo e tudo o que ele quer são as joias e nada mais. A dias ele vem estudando aquela maldita loja e será hoje que ele sairá de lá um pouco mais rico.
           O ladrão sai do beco. Olha para a rua e espera que um carro passe em alta velocidade não respeitando o sinal vermelho. Para não ser identificado ele coloca sua máscara e entra em outro beco estreito. Com muito cuidado ele verifica se há câmeras de segurança. Não há, caminho livre. Ele caminha até os fundos do beco onde há uma velha escada de ferro com seus degraus enferrujados. Sidnei é um homem magro, pesa no máximo 60 quilos. Sim, os degraus suportarão seu peso, por isso ele inicia a subida até seu objetivo, uma janela com sua armação de alumínio.
           Último degrau, sua testa transpira por baixo da máscara. Altura nunca foi o forte de Sidnei. Pronto, resta apenas ele se esticar até alcançar o beiral da janela e ele estará lá dentro. O esforço é monstruoso, Sidnei sente os músculos de sua lombar se estendendo ao máximo. Sua mão consegue segurar em algo firme o suficiente para sustentar seu corpo. Tremendo ele se dependura no beiral até pegar impulso para ficar de pé nele.
           - Ufa!
          Sidnei abre a janela. Olha para baixo e sente uma leve tonteira. Sem maiores dificuldades ele entra. O lugar é uma espécie de refeitório. O cheiro de assepsia faz suas narinas arderem. Tudo está em silêncio. Estranhamente Sidnei sente medo. O lugar é amplo com mesas e cadeiras organizadas. Ele anda no escuro. O ladrão não gosta de lanternas. Uma porta, entre aberta, melhor ter cuidado. Ele passa por ela e se depara com um corredor. Mais escuro ainda, melhor encarar, as joias merecem o esforço. No final do corredor mais uma porta, uma única porta. Seu coração manda um alerta. A mão com luva segura na maçaneta e a gira. Um estalido anuncia sua abertura. Sidnei olha lá dentro e tudo está vazio, hora de começar a trabalhar.
           A sala é pequena, Sidnei imagina ser o lugar onde os funcionários descansam depois do almoço, será por ali que ele ganhará a loja. Devido a escuridão ele demora um pouco a ver um tipo de portinhola que fica atrás do sofá. Vamos lá, hora de se apertar um pouco. Ele vai entrando e o cheiro de urina de rato vem ao seu encontro.
             - Droga.
         Mais um pouco e ele estará dentro da joalheria. Mais dois quilos e Sidnei não conseguiria passar por ali. Pronto, enfim a loja. Cansado, com o corpo doendo mas feliz, Sidnei contempla a joalheria. Realmente é bonita, mesmo no escuro. A três dias ele esteve ali observando cada canto, cada detalhe. Sem se importar com as câmeras ele passa pelo salão em busca da sacola. Ele passa por uma e dá o dedo do meio para ela. Jamais os policiais descobrirão sua identidade, jamais. Por fim a sacola preta no canto perto do banheiro para funcionários, mas antes vale fazer mais uma observação. Sidnei vai até a caixa de disjuntores e desliga toda a energia da loja. Ele anda até o salão e começa a retirar as peças e sem cerimônias ele as lança dentro da sacola. Lindas, cada uma mais bonita que a outra, todas agora pertencem a ele.
            Cinco minutos depois Sidnei se encontra saindo pelo mesmo buraco pelo qual entrou. Ali mesmo no beco ele troca de roupas. Calça jeans, camisa polo, boné e a sacola pendurada pelos ombros. Sim, está um pouco pesada, mas nada que um táxi não resolva. Sidnei está com sorte, assim que saiu do beco passou um e mais que rápido ele assovia.
            - Bom dia meu jovem. - diz o taxista, um sujeito já idoso. - para onde?
            - Para o centro, por favor.

2

Pela manhã a joalheria está cheia, não de clientes, mas sim de policiais e peritos. Um agente vestido com um blazer preto sem gravata observa atentamente as imagens das câmeras de segurança ao lado do proprietário. Cabelos cortados a máquina, barba grande e pele parda, Paulo Alves só aguarda o momento para confirmar o que ele já suspeitava.
            - Viu, sabia que era ele, filha da mãe. - cruza os braços.
         - O que vai ser daqui pra frente detetive? - pergunta o dono da joalheria. - o meu prejuízo já ultrapassa dois milhões.
           - Ele é escorregadio, mas um dia ele vai dar um mole, confie no trabalho da polícia senhor Lair.

*

Sidnei volta para a cidade um pouco mais rico. Na mesma sacola uma boa soma em dinheiro vivo pela venda das joias no mercado negro. Dentro do táxi ele sorrir olhando a paisagem. Até que o trabalho como ladrão profissional não é tão ruim. Um pouco mais rico, um pouco mais soberbo. Ele abre a sacola e lá está o fruto de seu esforço, notas de cinquenta e de cem, novinhas, ele rir alto causando estranheza ao motorista.
             - Não liga não meu chefe, sou estranho assim mesmo.
            O táxi passa em frente a joalheria. Foi preciso Lessa colocar a mão na boca para não soltar sua diabólica gargalhada. Lá está ela cheia de agentes se acotovelando e uma fita amarela restringindo a entrada. Que cena gloriosa. Valeu a pena todo o esforço. Sidnei Lessa, filho de Dirceu Lessa, o velho teria orgulho dele? Ele acha que sim. Vamos em frente o dia só esta começando. Fim.   

  

segunda-feira, 18 de junho de 2018

Volta Pra Mim


1


A singela festa começou a duas horas. Música ambiente, um painel com personagens da Disney e muitas crianças correndo pra cima e pra baixo. Carla está louca com tudo o que está acontecendo no microespaço de sua casa. Sua mãe tenta ajudá-la no serviço, mas festa é assim mesmo, nada fica sob controle. A anfitriã, Sofia se juntou aos coleguinhas para a brincadeira de correr pra lá e pra cá.
             - Crianças, vamos parar com essa brincadeira, vamos? - diz dona Maura.
            De nada adiantou o pedido carinhoso de dona Maura, as crianças continuam a correr e a gritar o tempo todo. Carla volta da cozinha com uma caixa contendo salgadinhos e outras guloseimas. Carla é uma mulher jovem, acabou de completar 32 anos, morena clara de cabelos negros cortados na altura dos ombros, bonita e bastante simpática com todos. Ela é no momento secretária de uma escola particular, porém não pretende fazer isso a vida toda. Carla tem estudado e se dedicado a um curso profissionalizante sobre moda. Sim, Carla quer ter seu próprio negócio, chega de trabalhar para os outros.
             Sua mãe ajuda a servir os salgadinhos junto com o refrigerante. Pela primeira vez em duas horas as crianças calaram a boca. Carla olha o relógio e depois para Sofia.
              - Mãe, ele vem?
              - Ainda é cedo filha, ele já deve estar chegando.
            O silêncio foi apenas momentâneo. Assim que terminaram de comer as crianças recomeçaram a correria deixando todos os convidados a beira da loucura. Dona Maura sugeriu cantar logo os parabéns e distribuir o bolo.
            - Mãe, Marcelo ainda não chegou, a Sofia ficaria arrasada cantar os parabéns sem o pai.
             - E você já ligou para ele? - dona Maura organiza os guardanapos.
             - Já estou fazendo isso.
             Não foi preciso discar o número de Marcelo, Sofia anunciou sua chegada gritando lá da sala.
             - Mãe, papai chegou.
             A menina pula no colo do pai já pegando a enorme caixa de presente. Carla chega da porta da cozinha e os olhares se cruzam. Marcelo segura sua filha nos braços e sorrir para Carla que devolve o gesto. Atrás da filha dona Maura resmunga algo.
             - Hum! - volta para organizar os guardanapos.
           Marcelo é um cara bonitão, no momento ele trabalha com transporte um ramo que ele pretende ampliar comprando mais um veículo. Sim, os negócios estão indo muito bem graças a Deus, seu esforço não tem sido em vão. Alto, cabelos começando a grisar, Marcelo está chegando aos 40 bem e com saúde.
             Ele coloca Sofia no chão e cumprimenta os convidados e depois vai até a cozinha.
            - Boa noite gente, estão precisando de ajuda?
            - Da sua não. - diz dona Maura baixinho.
            - Mãe. - Carla vai até a geladeira. - Marcelo, você poderia servir as gelatinas?
            - Sim, claro.
           Carla passa a bandeja para ele. Marcelo pode sentir o cheiro do perfume, o mesmo que ele a presenteou. Nossa, que sensação esmagadora. Ele sai da cozinha e agora é a vez de Carla ficar mal. Enquanto enche os copos com refrigerante ela volta no tempo. O tempo, por que ele faz isso com as pessoas, por que ele não volta? Os pensamentos são tão profundos que Carla não percebe que o copo já transborda.
             - Carla, acorda. - diz dona Maura. - o que houve?
             - Nada, mãe.

2

O parabéns é cantado. Sofia não desgrudado do pai um segundo. Carla e Marcelo trocam olhares desconfiados. O fotografo chama-os para a tradicional foto em família. Carla na esquerda, Sofia no centro e Marcelo na direita. Sorrisos largos e o flash iluminando-os. Hora de partir o bolo. Enquanto Carla reparte guloseima de chocolate, Marcelo se afasta com o celular na orelha. O coração da secretária se parte em pedaços. Vida que segue.
             Aos poucos a casa vai ficando vazia. Marcelo ajuda varrendo a varanda e recolhendo o lixo. Dona Maura limpa a cozinha e Carla se despede do pessoal no portão. O celular de Marcelo volta a tocar.
           - Alô, oi, sim, claro que vou.
           Carla passa por ele na tentativa escutar a conversa.
           - Já estou chegando, tudo bem?
           Dona Maura organizou a cozinha em tempo recorde.
           - Filha, eu já arrumei tudo e já vou indo.
           - Obrigado, mãe. - a abraça.
           A mãe de Carla passa por Marcelo.
           - Boa noite, Marcelo.
           - Boa noite dona Maura. - coloca o celular no bolso.
          Sofia pegou no sono brincando com a boneca gigante dada pelo pai. Carla abre um refrigerante e se serve. Anda até a varanda onde Marcelo termina de recolher o lixo.
           - Marcelo, pode deixar que amanhã eu levo o lixo pra rua, obrigado.
           - Ufa, terminei, fazer festa em casa é assim mesmo.
           - Como vão as coisas? - toma mais um gole.
         - Sabe como é, muito trabalho, acabei de comprar mais um carro e o cara que me vendeu não para de me ligar oferecendo outro.
            Carla respirou aliviada.
           - Bom, eu já vou indo. - encosta a vassoura.
           - Quer levar bolo, salgado?
           - Estou de boa.
         Carla o acompanha até o carro. Ambos em silêncio. A noite é fresca. Ele entra no veículo e abre o porta luvas e de lá retira um envelope.
           - Leia antes de assinar, por favor.
           A mulher engole seco ao segurar o envelope.
           - Mais já saiu, achei que fosse demorar mais.
         - Pois é. - puxa a carteira do bolso e conta o dinheiro. - eu sei que eu deveria depositar, mas é que tive contratempos. - entrega a importância.
          - Sem problemas. - diz desanimada.
          - Como eu falei, leia antes de assinar, de preferência consulte o seu advogado.
         Marcelo vai embora. Carla continua no portão segurando o envelope e o dinheiro. Um nó na garganta se forma, “leia antes de assinar”. Ela fecha o portão e anda arrastando a sandália até a varanda. Limpa uma lágrima teimosa e depois olha para o envelope. Permanece ali por alguns segundos, “leia antes de assinar”. Carla fecha a porta e lá dentro ela engole o orgulho e faz do envelope confetes. FIM                     

sábado, 16 de junho de 2018

HEMORRAGIA


Hemorragia


1


Meia noite, que hora agradável, que sensação única e saborosa. O quarto de Dom Cavalcante cheira a charuto e sangue. Na cama gigantesca e redonda, duas adoráveis donzelas, seminuas, seios amostras e pernas entrelaçadas. Elas se beijam e trocam grunhidos. Dom olha da janela a chuva forte que faz daquela noite algo ainda mais extraordinário. Carmelito Cavalcante, um ser que ultrapassa a fronteira da formosura, alto, esbelto, no peito apenas alguns pelos negros e longos cabelos castanhos. Os olhos azuis o deixam ainda mais com um aspecto selvagem, diabólico. Ele fecha devagar as cortinas e se volta para a cama. Bate uma ligeira palma chamando atenção das meninas.
           - Hora de ir, garotas.
           Uma delas, uma negra linda de cabelos escorrido protesta.
           - Mas já, achei que o senhor queria mais diversão, veja.
        As duas começam a se abraçar, a se beijarem e para deixar o senhor ainda mais acesso, elas gemem. Carmelito sente seu membro ficar ereto, mais uma vez. Ele não quer mais fazer sexo, mas é mais forte que ele.
           - Tudo bem, vocês venceram, mas será a última, certo?
           - O senhor não irá se arrepender. - diz a loira de seios fartos.
        Enquanto faz sexo com as duas, Cavalcante exibe seu lado tenebroso, seu rosto fica desfigurado, ele se transforma num ser horripilante com seus dentes pontiagudos, até seu tom de pele muda. A mulher negra enquanto pratica equitação no colo de seu mestre exige que o mesmo a queime por dentro com seu sêmen. Carmelito sabe que isso não acontecerá tão cedo. Ele já ejaculou três vezes e se acontecer será em menor quantidade. Ele se esforça, sua respiração se torna pesada. As mulheres não param de esbanjar sensualidade até que o mestre da noite solta seu grunhido. A mulher sente o líquido denso e quente além do normal consumindo-a.
           - Argh!
            A negra cai de lado segurando sua parte íntima, quase chorando. A outra tenta ajudá-la.
           - Amiga, venha, vou lhe preparar um banho.
           - Fora, as duas, já. - exige Cavalcante se levantando.

*

Mais uma vez ele está sozinho naquele quarto enorme. Carmelito vai até a janela vestido com seu roupão. A chuva não diminuiu. Como ela lhe traz recordações, boas recordações. O ano era 1788. Ano em que ele conheceu a jovem Carmem, uma linda menina branca de olhos negros. Eles se apaixonaram logo de cara e fugiram da festa de aniversário de seu pai, Dom Nilo. Cavalcante se lembra que Carmem era uma mulher fogosa e dominante. Em todos os encontros o sexo era de direito. Em 1790 Carmem foi morta por um caçador numa emboscada. Ele não pode fazer nada. Foi doloroso vê-la se desfazer em um monte de cinzas. Carmelito acreditava piamente que Carmem seria sua esposa, mas quis o destino que ele a perdesse daquela forma.

2

Depois de um pesadelo Carmelito abre os olhos. Que barulho foi esse? Ele se levanta, coloca seu sobretudo preto e corre até a porta do quarto e aperta o ouvido contra a madeira. Gritos e muito barulho. De repente uma rajada de metralhadora e mais gritos. Dom Cavalcante abre a porta sem fazer barulho e dá de cara com uma de suas garotas.
          - Fuja meu senhor, eles estão aqui.
          - Sonja, o que houve?
         Tarde demais, a mulher se desfaz em cinzas. Carmelito anda apressado corredor a dentro. Uma flecha passa a centímetros de sua cabeça. Atrás uma voz conhecida ordena que ele se entregue.
          - Toda a casa está cercada, não adiante fugir Carmelito. - diz Heitor segurando seu arco.
       Claro que não. Dom Cavalcante acelera e passa a correr. Outra flecha. Carmelito ganha a cozinha ali ele tenta se armar com alguma coisa. Uma faca de carne, ele a encontra sobre a pia. Heitor aparece na porta esticando seu arco contra o peito do Dom.
           - Vai morrer seu diabo.
         É incrível a falta de pontaria de Heitor, ele erra mais uma vez e isso lhe custa um corte no braço. O sangue escorre e isso faz com que o vampiro salive. Mais uma tentativa de acertar o monstro.
           - Eu preciso de ajuda aqui. - grita para os companheiros.
           Nervoso, Dom Cavalcante se transforma num espécie de morcego tamanho gigante. As pernas de Heitor ficam bambas e o pavor toma conta de seu corpo por inteiro.
            - Cristo!
         Um rapaz com uma metralhadora aparece para dar auxílio ao amigo ferido. Ele dispara na direção do demônio que abre voo batendo com suas asas negras no teto.
            - Ele está cercado, atire pelo amor de Deus. - implora Heitor.
          Mais uma forte rajada é disparada. Cavalcante tem o corpo perfurado e mesmo assim ele ataca. Seus dentes encontram a carne estressada do jovem da metralhadora. O pescoço é lacerado jorrando sangue nas paredes e até no rosto de Heitor que se urina.
           - Me deixe em paz. - grita Dom.
              Tremendo e sentido que será morto, Heitor se prepara para lançar mais uma flecha. Essa ele precisa acertar, precisa. Ele estica o máximo que pode. Faz uma curta reza. Fecha os olhos e solta. Quando abre lá está o monstro segurando a flecha.
           - Não! - se apavora.
          Carmelito volta ao seu estado normal. Ele já não é mais aquele bicho horrível de asas enormes.            Ele olha para Heitor que cai ajoelhado chorando clamando por sua vida.
          - Não sou como vocês que matam suas pressas sem darem a elas uma chance.
          - O que disse? - levanta a cabeça.
         - O que ouviu. - joga a faca no chão. - Você invadiu minha residência e executou a todos mesmo sob os pedidos de clemência. O que você acha que merece?
            Heitor abaixa a cabeça e olha a faca.
           - Eu não o matarei, lhe darei uma chance de viver eternamente, assim como eu, o que acha?
           - Eu jamais me tornarei um de vocês, jamais, eu prefiro a morte. - rosna.
            Os olhos de Dom Cavalcante ficam vermelhos iguais a brasa viva.
           - Diante disso não vejo alternativa.
        Cavalcante avança pra cima de Heitor que faz um rolamento alcançando a faca. Eles se chocam. Heitor tem o pescoço cravado pelas unhas do vampiro. A faca entra até o cabo no peito de Carmelito. Heitor sente a queimação do ferimento cresce assim como o vampiro. Ambos permanecem naquela posição, olhos nos olhos. As bocas estão abertas, mas não emitem som. Sim, a força humana começa é menor, por isso Heitor aos poucos vai caindo. Seu sangue insiste em molhar a mão do bicho que sente que o seu final também está próximo. Por fim o caçador cai segurando o pescoço. A cada tossida o sangue esguicha. Os olhos esbugalhados indicam o pavor da morte.
             Heitor já está morto quando Dom Cavalcante consegue se colocar de pé e arrancar a faca de seu peito. Da ferida uma pequena poeira de cinza começa a brotar. Cambaleante ele anda até os cômodos onde há corpos e montes de cinzas espalhados.
        - Sonja. - grita. - Eduarda. - grita mais forte.
      Com uma mão no ferimento da faca ele caminha até a sala. Um dos homens de Heitor ainda agoniza no chão com um buraco no peito. Ao ver o vampiro ele entra em desespero.
         - Por favor, por favor. - se encolhe.
         - Qual o seu nome?
         - Vla, Vladimir?
         A dor aumenta na medida em que as cinzas vão surgindo.
         - Vladimir, você quer viver? - pergunta gemendo.
         - Sim!
            Mais uma onda de dor que obriga Cavalcante a se curvar.
         - Beba do meu sangue, rápido.
       Dom morde seu próprio punho e deixa escorrer o sangue que cai direto na boca do jovem. Mesmo contra sua vontade o líquido vai até sua garganta quase que o sufocando. Vladimir tosse bastante olhando para Carmelito que vai se desfazendo diante dele. A escuridão da morte vem de encontro ao jovem. Seus olhos ficam turvos e a respiração  cessa. Morto finalmente.

*

Na boca um gosto de ferrugem. Os olhos ardem feito pimenta. A dor não existe mais. A ferida está no peito, mas não dói. Vladimir se levanta e vê um sobretudo preto com cinzas dentro. Ele gostou da peça de roupa, por isso ele a coloca. Melhor do que o trapo que usa. Ele olha ao redor e tudo que vê são corpos e sangue. Por falar em sangue, ele não sabe por que quer tanto provar desse líquido. Vladimir caminha até a porta da frente e olha o relógio pendurado na parede.
          - Duas da manhã.
           Novo ser. O garoto sai da casa em busca de comida. Seu estômago reclama. Os olhos pararam de arder. A ferida cicatrizou e a pele que já era branca passou a ser pálida feito cera de vela. Vladimir se transformou naquilo que caçou com veemência, um vampiro. Agora ele perambula pela noite chuvosa sem medo, sem receio. Na estrada escura ele vislumbra a cidade iluminada de longe. Que imagem. FIM                         

quinta-feira, 7 de junho de 2018

Depois da Noite



1


O clima já estava ruim antes mesmo do jantar. Samuel se atrasou e assim que entrou em casa foi direto para seu escritório, coisa que deixou Bárbara ainda mais estressada. Samuel Alencar é investigador da polícia, sua paixão pela profissão o faz ser obcecado e até um pouco fanático. Tudo isso tem irritado e muito sua esposa nos últimos dias. O casamento vem ficando em segundo plano com a rotina acelerada do chefe da casa. Hoje foi mais um desses dias onde Samuel ignorou o delicioso jantar para dar sequência as suas investigações.
- Posso ser sincera? - diz Bárbara se arrumando para se deitar.
- Deve. - Samuel mal olha para ela e continua a teclar no notebook.
- Já estou farta de tudo isso. - se deita.
           Samuel para de digitar e se volta para sua esposa.
- O que disse?
- Isso mesmo, estou cheia desse negócio de você trazer trabalho para casa. - puxa o lençol. - eu fiz o jantar todo especial e você nem deu atenção.
          O investigador retira os óculos e aperta os olhos com os dedos.
- Me desculpe, você sabe como eu fico quando estou no meio de uma investigação.
- Samuel, toda vez é isso, você já não liga mais pra mim e nem para Amanda.
- Você quer que eu pare de trabalhar, é isso?
- Não é isso, eu só quero que a nossa família volte a ser como era antes, só isso. Boa noite.
            Samuel tem deixado falhas e isso ele reconhece. Ele reflete em tudo que foi dito por Bárbara e olha para a tela do computador onde a foto de um homem pisca incessantemente. Ele mira com a mão em forma de arma na testa do indivíduo e simula um tiro.
- Vou te pegar seu vagabundo. - Fala sussurrando.

*

Foi mais uma noite sem emoção, sem carinho, sem sexo. Bárbara acorda para mais uma enfadonha rotina em sua vida. Sempre que abre os olhos ela confere se Samuel ainda está dormindo. Não. Com certeza ele já se encontra na cozinha preparando seu café da manhã com os olhos grudados na TV. A professora de inglês se espreguiça ainda sentada na cama. Bárbara é uma morena bonita de longos cabelos negros e um corpo maravilhoso mesmo aos 40 anos. Ela desce a escada e já sente o cheiro do café sendo passado.
- Bom dia. - diz bocejando.
- Bom dia querida. - Samuel termina de passar margarina na torrada.
- Amanda já foi? - procura pela filha.
- Sim, ela disse que teria que passar na casa de uma amiga para terminarem um trabalho.
           Samuel sente que o clima ainda é bastante incomodo, ele conhece a mulher que tem. Ele pega seu café da manhã e o come sentado na mesa em silêncio. Na TV as primeiras notícias do dia não são nada agradáveis, violência, corrupção, destruição e muito mais, tudo isso antes das nove. Bárbara coloca café em sua xícara e o toma olhando para seu marido. Como ele anda distante. Em outra época ele a abraçaria e a levaria outra vez para cama para fazer amor antes de ir para o departamento. O que está acontecendo? Será que ele perdeu o interesse por mim? Não sou mais o parque de diversão dele como ele falava antes?
          De repente os olhares se cruzam e Samuel questiona.
- O que foi?
- Nada. - volta a tomar do café. - vai almoçar em casa?
- Não sei, estou no meio de uma investigação, acho que dessa vez eu prendo aquele desgraçado.
- Você disse isso no início da semana. - usa de desdém.
- Mas desse vez o Suíno não me escapa.
           Carlos, ou melhor, o Suíno, matador de crianças. Samuel e sua equipe vem se empenhando em prender esse canalha a meses. Ele já esteve na mira da polícia por três vezes e conseguiu fugir em todas elas. Seu modus operandi é sempre o mesmo, ele costura a boca da vítima, são cenas duras de se ver. É uma questão de honra para Samuel colocar um assassino como Carlos fora de circulação. O problema é que Suíno vem causando transtorno no casamento do investigador e isso ele precisa resolver, e rápido.
- Tudo bem. - Bárbara coloca a xícara em cima da pia. - vou dar aula a tarde e só volto as nove.
- Certo. - diz secamente.

*

O corpo da menina é explorado pelas mãos peludas do rapaz enquanto eles trocam calorosos beijos. Amanda sofre os mais deliciosos amassos encostada na parede sentindo cada toque, cada aperto. Amanda, apesar de seus 17 anos possui um corpo de mulher já feita e foi isso que encantou Rodrigo um DJ que ela conheceu numa festa na casa de sua amiga. Aos poucos os encontros foram ficando mais íntimos, mais quentes. Claro, o DJ é mais velho, tem 25 anos e antes de Amanda ele já morou junto com outras meninas e todos os outros relacionamentos acabaram de maneira não tão legal. Rodrigo está apaixonado, louco de amores por Amanda.
          Sentindo que seu namorado quer algo além de beijos e amassos, Amanda se afasta com sua respiração irregular.
- O que houve? - Rodrigo se espanta.
- Preciso ir para escola, menti para o meu pai dizendo que iria para a casa da Carol fazer trabalho.
- E dai?
- E dai? E se ele resolve passar na casa dela para tirar a história a limpo, meu pai é detetive, esqueceu?
            Ao ouvir as palavras “meu pai é detetive” foi como se tivessem jogado água na fogueira. Rodrigo aceitou a ideia de não transar naquela manhã de sol. Alto, magro, pálido e dono de um bigodinho sem vergonha, o DJ respira fundo e depois coça a cabeça por cima do boné.
- Tudo bem, mas, quando podemos ficar mais à vontade?
- Hoje, depois da escola, lá na quadra.
- Tudo bem, vou está lá te esperando.

*

Como trabalhar com a vida toda se virando contra você? Como se concentrar passando por momentos delicados? Esse é o estado da professora Bárbara Alencar em sua sala aguardando a chegada dos alunos. Sua cabeça é um turbilhão de coisas girando a mil. Toda essa situação é algo novo para ela e Bárbara não sabe por onde começar a tentar resolver esse confronto. O que fazer? Como fazer? Para onde correr? Seu mundo colorido de repente se tornou um amontoado de cinza, sem vida.
          Pouco a pouco os barulhentos alunos vão chegando e ocupando seus lugares. Cada cadeira arrastada, cada pasta sendo jogada na mesa é motivo para que sua irritação chegue a um nível incontrolável. Vinte alunos, somente vinte alunos, mas parece que são cem, todos eles com a idade de sua filha, verdadeiros terroristas. Se Bárbara estivesse bem, com certeza ela levaria a conversa fora de hora numa boa, mas hoje não.
- Gente, por favor, vamos nos comportar como seres humanos?
            Sim, ela não deveria ter falado assim. Com certeza a menina mais centrada da turma levará esse comentário ao coordenador do curso. O silêncio entre eles mostra o quanto ela foi infeliz ao dizer tal coisa.
- Boa tarde, podemos começar?
              Bárbara é uma ótima profissional, bastante requisitada. Assim que ela começa sua aula os problemas continuam a assombrá-la, mas, pelo menos por alguns instantes eles são deixados de lado e tudo o que os vinte alunos tem é uma excelente instrutora. Comentário por comentário, dúvida por dúvida, Bárbara vai fazendo com que a aula se transforme num verdadeiro espetáculo, diferente da catástrofe do início. Muito boa profissional.
              Até que não foi tão ruim assim. As duas horas passaram voando. A senhora Alencar se despede dos alunos com o mesmo sorriso sincero e colorido pelo batom vermelho. Aos poucos a sala vai ficando vazia e silenciosa, ela ocupa seu lugar e quando vê, novamente  ela se encontra mergulhada em pensamentos. Seu casamento está caminhando para um caminho sem volta, ela sente isso. Daqui a alguns minutos outra turma entrará por aquelas portas e Bárbara precisa estar bem. Inspirando e expirando fundo ela se levanta para ir até a máquina de café, quem sabe o sabor desse líquido deixe sua vida mais leve?
           Bárbara termina de se servir quando o coordenador do curso toca em seu ombro.
- Professora Bárbara, a senhora tem um minutinho?
- Oi, sim, senhor Dante.

*

Dante Lopes, o novo coordenador, veio transferido de outra unidade. Bom profissional e ótimo administrador. Assim que chegou ao curso o rapaz mediano, loiro, olhos azuis como uma piscina e de barba bem feita cheirando a loção de barbear deixou as mulheres sem chão, inclusive Bárbara. A mesma adentra a sala do chefe e se espanta com a organização. Livros, pastas, envelopes, tudo em seu devido lugar, diferente da outra coordenadora que fazia do lugar um chiqueiro.
- Sente-se dona Bárbara. - juntos se acomodam. - serei rápido, visto que a senhora tem outra turma para atender, porém preciso saber o que houve antes da aula começar.
           Tudo foi esclarecido, Dante é um bom ouvinte. Ele ficou ali, com seus olhos fixos em Bárbara o tempo todo a deixando à vontade. Que homem. Ele mais parece um lord. Bárbara se sente bem estando ali com ele. Dante está na unidade a alguns meses e eles ainda não tinham tido uma conversa. Ele subiu no conceito dela.
- Certo Dona Bárbara, já pode ir dar sua aula e saiba de uma coisa, estou aqui para ajudar, certo?
- Certo, obrigado.

2

A foto do assassino de crianças não sai de cima da mesa de Samuel e ela também está fixada no quadro atrás de sua mesa. Um sujeito acima de qualquer suspeita com seu olhar sereno, mas que esconde um demônio. Dúvidas circundam a mente brilhante de Alencar, afinal, o que as crianças são para Carlos? O que elas fizeram para serem punidas de forma tão brutal? A parte mais chata da investigação é ter que olhar fotos de crianças mortas com suas bocas costuradas, isso sim mexe com o detetive. Raiva e tristeza. Raiva por que ele ainda não conseguiu enjaulá-lo e tristeza por que crianças tiveram suas vidas ceifadas ainda no seu início. Seus pais não terão a alegria que ele teve ao dançar valsa no aniversário de 15 anos da filha, ou curtir um cinema em família. Samuel não pode fazer com que as crianças voltem a vida, mas, fazer justiça as famílias enlutadas isso ele pode fazer, isso ele fará.
           A passos apertados Samuel desce até o estacionamento e abre a porta de uma viatura descaracterizada. Dá a partida e sai sem fazer barulho. Sua mente também está em sua família, Bárbara e Amanda, as mulheres de sua vida. Quando sua esposa anunciou a gravidez, o detetive lembra que aquela tarde foi mágica, foram ligações e mais ligações para parentes e familiares. Desde sempre Samuel achava que teria uma princesa para cuidar. Amanda veio para completar a felicidade do casal.
           Bárbara entrou na vida do policial como algo providencial. Nada foi planejado, Samuel já era detetive quando uma mulher maravilhosa o conquistou instantaneamente. Não precisou mais que dois encontros para que os corações passassem a bater juntos. Aquela noite ficou marcada para sempre. Samuel a ama de verdade e sente que a está perdendo.

*

Voltar a cena de um crime bárbaro nunca foi uma experiência legal, ainda mais sendo essa a cena onde um menino de cinco anos foi estuprado, morto e teve sua boca costurada. Samuel está de volta com seu andar cansado e olhar preocupado. Um barraco feito de telhas de zinco e em volta muito mato. Aquele lugar outrora servia de um tipo de casa para guardar ferramentas. A porta está trancada com corrente e cadeado, ambos enferrujados. Alencar faz a volta e descobre que a janela teve os vidros quebrados. Tudo ali cheira a ferro e a tinta. O detetive quer entrar e olhar outra vez, de repente encontrar algo que o leve a Suíno.
           Voltando ao carro, retirando seu paletó, Samuel está decidido a buscar algo que ele deixou para trás desde a última vez em que esteve ali. Com muita calma e cuidado ele consegue pular pela janela e chegar ao interior do barraco. O policial olha onde o corpo do menino estava da outra vez e a marca do sangue ainda está lá. Foi horrível. Samuel caminha até onde há ancinhos, vassouras e outras parafernálias e não consegue encontrar nada. Faz calor ali dentro, na testa brotam gotículas de suor que escorrem. O silêncio é sepulcral. O que estou procurando na verdade?
            Cinco crianças mortas e até agora nenhuma resposta. Isso o deixa fora de si as vezes. A vontade é de seguir seus próprios instintos. Agora Alencar se encontra olhando para o chão manchado pela ferrugem procurando algo desesperadamente. Uma pista, apenas uma maldita pista que o leve até Suíno, até seu esconderijo. Ele precisa encontrá-lo antes que ele volte a matar. Nada até agora. Com certeza Carlos limpou tudo antes de abandonar o corpo da criança. Desgraçado.

*

Amanda está nas nuvens, seus olhos se reviram a cada onda de prazer. Rodrigo usa toda experiência que possui para deixar sua nova garota louca. O sexo acontece ali mesmo no local combinado, longe de tudo e de todos. A filha de Bárbara e de Samuel tem o corpo invadido delicadamente enquanto que suas unhas penetram nas costas do namorado que não se importa, ele apenas continua a proporcionar prazer intenso a garota.
- Rodrigo, eu te amo. - voz trêmula.
           Os corpos estão unidos, amanda se sente mulher sentindo cada gota de suor de seu homem. Sim, ela chegou ao clímax, sensação igual ela jamais teve em sua vida. Rodrigo também chega ao seu momento de explosão e ambos estão ofegantes. Eles se beijam abraçados sem medo e sem culpa.
- O que achou? - pergunta Rodrigo se levantando.
- Demais.
- Quem bom que gostou, agora preciso ir, marquei de ajudar a coroa em casa. - coloca a calça.
- Quando podemos nos ver? - Amanda coloca o sutiã.
- É só me ligar que eu venho correndo. - a beija outra vez.

*

As coisas estão mais tranquilas na parte da tarde, somente a cabeça de Bárbara que ainda gira. No almoço ela fez questão apenas de um prato com salada, frango grelhado e suco de laranja sem gelo. Ela come devagar observando o movimento do pequeno restaurante. É a primeira vez que ela coloca os pés ali. A comida é boa e o ambiente melhor ainda. A música é baixa e a TV está desligada, tudo favorável.
          Samuel saiu de seus pensamentos ao mesmo tempo em que Dante entrou no restaurante. Nossa, como ele é bonito, tudo nele chama atenção. Ele olha para Bárbara e acena perguntando se pode ocupar a mesma mesa. Bárbara diz que sim com um sorriso simpático. Depois de fazer seu pedido no balcão, o coordenador do curso de inglês se dirige a mesa.
- Oi. - ele diz.
- Olá.
- Estou abarrotado de serviço, pedi um hambúrguer.
- Vida de chefe não é nada fácil. - sorrir.
- Pois é, sinto falta do tempo em que eu era somente um professor.
            Com a cabeça menos quente Bárbara pode então relaxar e desfrutar de uma conversa informal. Dante além de ser um homem atraente ele é também inteligente. A professora sente sinceridade vinda dele, seus olhos azuis transmitem isso. Como está valendo a pena esses minutinhos ali com ele.
- Você me parece preocupada senhora Bárbara.
- Posso lhe pedir um favor?
- Sim, claro.
- Bárbara fica melhor. - sorriso nervoso.
          O pedido do Dante chega.
- Então, Bárbara, você parece preocupada.
            Todo ser humano precisa de alguém para conversar, para ser seu confidente. Seria Dante a pessoa certa? Bárbara sente que precisa descarregar, aliviar seu fardo, então ela começa. Dante vai ouvindo a tudo sem dizer nada, ele apenas empresta seus ouvidos aquela mulher fantástica sentada junto com ele. É apenas uma conversa. De repente tudo o que Dante não conseguia enxergar em Bárbara veio a luz. Ele viu uma mulher bonita, mas sem carinho, uma mulher gostosa, mas sem o afeto necessário. Já estava perto da volta do almoço quando finalmente Dante falou.
- Ligue pra mim, qualquer hora, certo.
- Obrigado.
            Com cuidado ela guarda o cartão de seu coordenador no bolso da calça. Bárbara está mais aliviada, como se tivessem tirado uma tonelada de suas costas. Ela volta para sala de aula mais disposta. Desabafo é sim uma terapia eficaz. Para Dante, poder ouvi-la foi bom. Ouvir as experiências de sua subordinada serviu de lição para ele, toda mulher precisa de atenção e carinho e no que depender dele isso ela terá.

3

O silêncio durante o jantar na família Alencar demonstra que a crise permanece. Samuel mastiga a comida e ainda não conseguiu olhar nos olhos de sua esposa. Bárbara por sua vez continua remoendo solitariamente seus sentimentos e Amanda, como toda adolescente apaixonada não vê a hora de se encontrar com Rodrigo e transar com ele. Antes de falar o policial pigarreia.
- Filha, como foi o trabalho na casa da Carol?
           A pergunta pegou a garota de surpresa e ela quase engasga com a carne.
- Foi tranquilo, acredita que o professor de física passou mais um trabalho? Vou ter que ficar depois da hora amanhã também. - engole seco.
- Por que a Carol nunca vem aqui? - indaga Bárbara.
           Amanda é rápida nas respostas.
- Pois é, eu também não sei, e olha que não é por falta de convite.
           Foi por pouco. Amanda conseguiu se sair bem dessa vez. Ela não consegue imaginar a reação de seu pai se um dia ele souber que ela está se relacionando com um homem mais velho. Ela age naturalmente ao continuar jantando. Samuel olha para Bárbara que mexe em seu celular.
- Você havia proibido a todos de mexer no celular durante as refeições, lembra?
            Samuel acaba de colocar mais peso numa situação que já estava insustentável. A professora engoliu o comentário e deixou o aparelho de lado. Sentindo o clima, Amanda se levantou pedindo licença rapidamente. Furiosa a mulher olha para o esposo.
- Precisava mesmo fazer isso?
- Calma, eu apenas te alertei quanto uma ordem que a senhora mesmo deu. - usa o garfo para ser mais enfático.
- Samuel, acho melhor pararmos por aqui, tudo bem pra você?
             Ele dá de ombros.
            A hora de dormir é sempre complicado. Samuel já se encontra deitado olhando para o teto enquanto que Bárbara penteia as madeixas negras debruçada diante do espelho. Naquela posição o policial não consegue pensar em outra coisa a não ser em pegá-la por trás e fazer amor ali mesmo. Depois de pentear os cabelos a mulher começa a passar seus cremes. Ela se senta, abre o roupão e exibe suas pernas grossas deixando o detetive louco. Ele passa a observá-la sem hesitação e os questionamentos voltam a bater em sua mente. Quando foi que erramos? Quando?
           O cheiro doce do creme deixa o quarto do casal uma verdadeira perfumaria. A luz é desligada e Bárbara se deita tranquilamente ao lado do esposo. Ambos se desejam, os dois querem sexo, mas se evitam. Que situação. Ela percebe a inquietação de Samuel e as vezes escuta seu coração bater. Ele por sua vez quer sentir a textura da pele, tocá-la, mas é um longo caminho a ser seguido, com certeza ela não toparia fazer amor. Será mais uma torturante noite em que ele dormirá exitado.
            Vendo que nada acontecerá Bárbara deixa que o sono faça o trabalho dele. Samuel também se deixa levar pelo esfriamento e adormece ao lado daquela mulher fantástica. Separados pelo casamento. Triste realidade do casal Alencar. Quando foi que tudo começou a dar errado? A culpa é de quem?

*

Pela manhã uma surpresa. No celular de Bárbara havia uma mensagem de Dante. Ela ficou feliz e ao mesmo tempo temerosa. Ao ler o conteúdo da mensagem um sorriso tímido brotou em seu rosto. “Oi, Bárbara, bom dia, preciso falar com você sobre as aulas, que tal almoçarmos juntos? No aguardo da resposta. Beijos!” 
            Ela nunca digitou tão rápido, tão frenética. O “sim” digitado foi sonoro. Ela se levanta e abre a cortina deixando o sol entrar aquecendo aquele quarto frio. Uma estranha onda de alegria se apossou da professora de inglês e ela não vê a hora de ir para o trabalho. Bárbara desce a escada chegando até a cozinha onde Samuel está assistindo o telejornal matutino.
- Bom dia. - ela diz indo direto para o banheiro.
- Bom dia. - responde ainda olhando para a TV.
              Um banho caprichado, um banho digno das musas e deusas. Demorado, perfumado e principalmente repleto de pensamentos gostosos. A água morna leva embora todo o peso, toda amargura, tudo que passou numa noite difícil. Sim, uma ducha tem esse poder. Dante aparece nitidamente em seu box. O que uma mente fértil é capaz de fazer? De repente Samuel, sua realidade, atravessa seu devaneio invadindo o banheiro para escovar os dentes. Ao vê-lo um sentimento de culpa a acerta como uma flecha.
- Vai ficar dar aula até a noite? - passa o creme dental na escova.
- Sim.
             Depois de colocar o paletó o detetive deixa sua casa. Bárbara se arruma bem devagar. Sua melhor roupa, seu melhor perfume, uma maquiagem não muito extravagante e pronto, ela está demais, uma outra Bárbara, nova mulher. Antes de sair ela passa pela sala e pela primeira vez a professora repara na foto no porta-retratos. Uma imagem bonita onde Samuel segura Amanda ainda bebê de braço dado com ela. Foi num domingo onde o sol estava forte e a brisa da tarde começava a refrescar seus corpos. Boa lembrança, uma recordação linda. Ela sorrir e não sabe do que está rindo. Como as pessoas podem mudar assim? Como as coisas podem tomar outro rumo? Aquele mundo ficou para trás, aquele domingo ensolarado passou e não volta nunca mais.

*

Antes de ir para o departamento Samuel resolve passar pela última vez no local onde a última vítima de Suíno foi encontrada. Algo diz que ele está deixando alguma coisa para trás, uma coisa muito importante. Ele sai da via principal que por sinal está um caos aquela hora da manhã. Samuel pega uma rua secundária até chegar ao seu destino. Voltar aquele lugar lhe causa sensações estranhas. O detetive consegue sentir a agonia das crianças, ele consegue ver o olhar assassino de Suíno. Aquele lugar está carregado pelas dores e sofrimento das pobres crianças, anjinhos. Samuel com um tremendo sentimento de fazer justiça pula a janela com bastante cuidado para não se cortar e mais uma vez ele está lá dentro. Seus olhos estão atentos, o sangue corre a mil por suas veias. Desgraçado, maldito, monstro. Nem mesmo o calor que faz ali dentro é capaz de fazê-lo parar de procurar. Ele precisa dar uma resposta aos familiares, a sociedade e principalmente, uma resposta a sua família também.
- Vamos lá, Samuel. - balbucia.
              A casa de ferramentas abandonada no meio do matagal é vasculhada em todos os cantos. Não importa a poeira e nem o cheiro insuportável de material de limpeza e tinta, ele procura com determinação. O policial retira o paletó e o pendura onde os machados, foices e enxadas estão. As mangas da camisa azul são dobradas, afrouxada a gravata e ele volta a procurar. Suas mãos acostumadas a burocracia de um departamento policial, agora sofre ao entrar em contato com a madeira e o ferro enferrujado das máquinas e outras ferramentas. Nada, nem sequer uma ponta de cigarro, nada.
             Samuel já está a meia hora procurando quando o cansaço o derrota de vez. Suado, frustrado, decepcionado e sujo ele se senta na ponta de uma mesa coberta por uma lona imunda. Ainda olhando os cantos da casa ele resolve se concentrar e pensar como Carlos. Se ele fosse o assassino, onde ele esconderia algo comprometedor? Alencar olha para as ferramentas apoiadas e percebe que os cabos não são de madeira, mas sim de tubos galvanizados. Sem muita expectativa o detetive caminha até elas e devagar, uma por uma ele começa a procurar algo dentro dos tubos. Primeiro a pá, sem sucesso. Depois o ancinho, também sem sucesso e por último uma pá de jardinagem. Com cuidado ele coloca o dedo indicador e sente algo dentro. Ele vira a ferramenta e uma embalagem de bala cai. Era tudo o que ele precisava para respirar aliviado.

*

Sexo de verdade é o que o DJ Rodrigo está vivendo no momento. Conhecer a adolescente cheia de disposição foi a melhor coisa que já aconteceu na vida de um homem como ele. Mesmo sedo as primeiras horas da manhã, Amanda se mostra uma fêmea no cio pulando sem cessar no colo de Rodrigo. Seus longos cabelos negros iguais aos da mãe grudam na pele pegajosa devido ao suor. Ela faz com que seu homem chegue ao prazer, por isso ela tem os seios apalpados com violência.
- Ai!
- Me desculpe, não consigo segurar.
- Que bom que gostou, agora preciso ir, de verdade. - sei do colo do namorado.
- Algum problema? - fecha o ziper.
- Não, nenhum, tenho mesmo que ir correndo para o colégio.

*

Nunca foi tão bom chegar ao local de trabalho. Fazia tempo que Bárbara não sentia tamanha felicidade em passar pelos portões do curso e esbarrar com as mesmas pessoas de seu dia a dia. Quem a olha consegue perceber a diferença, até o seu “bom dia” soa como música aos ouvidos de quem o recebe. A senhora Alencar entra em sua sala e volta a sorrir, ela não sabe do que, mas está sorrindo. Sim, sua alegria tem nome e olhos azuis como piscina. Dante.
            A primeira turma chega e encontra uma professora disposta, falante e interessada em extrair o melhor do aluno. Bárbara consegue passar por cima da bagunça e as conversas fora de hora, coisa que normalmente ela não suportaria. Fim de aula e ela quer mais. Com a segunda turma nada mudou. Seus olhos conferem o horário e acada minuto que passa seu coração dá sinais de que está vivo e muito bem vivo.
             Depois de dispensar a turma a esposa de Samuel se distrai fazendo relatório quando Dante toca na porta.
- Tem alguém com fome?
- Oi, sim.
- Conheci um restaurante maravilhoso, que tal? - o coordenador adentra a sala deixando no ar seu perfume cítrico.
- Legal.
              Foi como Dante falou, o restaurante é simplesmente maravilhoso. As mesas são redondas coberta por toalhas de renda. No teto os lustres fazem toda diferença com a iluminação e o som ambiente faz com que o cliente se sinta na sala de sua casa. O cardápio é sucinto, Dante preferiu a massa enquanto que Bárbara a carne. Tudo favorável.
- Então Bárbara, está gostando?
- Amando.
              A professora está sem jeito, imagina, ser convidada pelo coordenador para um almoço e naquele lugar luxuoso. Vez por outra os olhares se cruzam e quando isso acontece a imaginação de ambos viaja para longe. Dante está diante de uma mulher fantástica, pra lá de interessante e simplesmente ele não entende como um homem pode maltratá-la, deixá-la em segundo plano. O silêncio entre eles deixa claro qual a verdadeira intenção.
- Meu Deus. - começa Dante.
- O que foi?
- Você é uma mulher maravilhosa.
                Ela até tenta se fazer de difícil, mas as palavras vão e vem a fazendo ceder.
- Obrigada.
- Estou adorando esse nosso encontro.
              A mão quente de Dante repousa na fria de Bárbara. Uma corrente elétrica é passada e ela não consegue ter reação, apenas o olha. Ele realmente sabe como seduzir uma mulher. De repente aquele lugar se transforma num mundo habitado somente por eles e não importa o quanto isso dure, eles estão ali, de mãos dadas.
- Eu vi que no quadro de horários que você só daria aula na parte da manhã, procede?
           Bárbara engole seco.
- Procede.
- E eu deveria dá uma passada em outra unidade, mas isso pode esperar. - ele sorrir. - vem comigo.

4

Ainda na subida das escadas Bárbara é beijada e perde o folego. Dante abaixa as alças da blusa deixando os ombros da mulher nus, ele os beija fazendo com que a respiração dela fique ainda mais pesada.
- Tem certeza de que ninguém passa por aqui? - pergunta com voz trêmula.
- Eu moro aqui, nesse horário isso aqui vira um deserto. - continua a beijar o busto de Bárbara.
          É como uma dança, o homem conduz sua dama conforme o ritmo da música. Dante vira Bárbara de costas e a deixa de frente para a parede. Sua costa é beijada e mordida. Ela não quer, mas seu gemido sai alto provocando seu amante.
- Gostosa.
          Já no corredor o casal continua com os abraços e beijos quentes. Dante faz questão de deixar a professora aquecida o maior tempo possível. Aos poucos ele vai abrindo o ziper de sua calça, ela ainda tenta impedi-lo, mas o tesão é mais forte e quando ela percebe a mão poderosa de seu parceiro já a invadiu. Resta a Bárbara se deixar levar por ele, já não há mais medo e nem receio, tudo que existe é a mão de Dante em seu sexo. Ela fecha os olhos, abre a boca e sente as pernas ficarem fracas.
              No quarto a entrega é total. Bárbara pode sentir cada parte de seu corpo sendo tocado, acariciado e beijado. Dante é o maestro regendo aquele corpo delicioso despido naquela cama enorme. Sim, ela consegue chega ao prazer fácil, sem fingir, sem pressão e sem pressa. Chega o momento em que ela precisa retribuir ao seu parceiro tudo o que ele fez de bom, hora de fazer Dante tremer de prazer.

*

Foi intenso, lindo, gostoso, Bárbara fez com Dante tudo o que não consegue fazer com Samuel. Samuel, aonde ele deve está nesse momento? Com certeza sentado em sua mesa tentando encontrar uma solução para seu caso. Eu estou aqui, nua, deitada numa cama com um desconhecido feito uma meretriz. A multidão de pensamentos deixa a professora sufocada e ela é obrigada a se erguer. Ela joga os cabelos para trás e olha ao redor, tudo naquele quarto é estranho e cheira a sexo. Bárbara olha para o outro lado e Dante não se encontra. O que estou fazendo aqui? O que eu fiz? No que me transformei?
            Dante volta da cozinha segurando duas taças e uma garrafa de vinho. Ele sorrir para ela que não consegue retribuir o gesto.
- O que foi?
- Eu não posso. - se levanta envolvida pelo lençol.
- Não pode o que Bárbara? Venha tomar um vinho.
- Me desculpe, Dante, preciso ir.

*

Algo insignificante, pode até ser, mas para um investigador experiente, uma embalagem de bala pode ser a ponta de uma linha que resolverá o caso. Usando luvas de látex, Samuel desamassa a embalagem com cuidado.
- Super Sabor. - Sussurra.
          Ele gira a cadeira ficando de frente para o computador. Samuel faz uma busca no Google. Clica no link e na tela abre uma bonita imagem bastante colorida da logo da empresa responsável. As balas Super Sabor pertence ao um grupo que fornece outros tipos de doce. Sua mercadoria é famosa e cara, por isso é difícil de ser encontrada. Samuel digita mais uma vez para tentar encontrar uma loja ou bar que vende a tal Super Sabor. Depois de alguns minutos de busca, finalmente o policial encontra a loja.
- Galeria zona sul. - abre a gaveta já pegando seu bloco de notas.
             De volta ao trânsito estressante, enquanto aguarda o congestionamento diminuir, Samuel tem os pensamentos da investigação interrompidos por Bárbara. Sim, ela é ainda a mulher que escolheu para existir lado a lado. A rotina, com certeza, minou seu casamento, disso ele tem plena convicção. Algo precisa ser feito e rápido, ou ele a perderá. Bárbara, quando foi que tudo começou a dar errado? O trânsito parece andar mais do que seu casamento. No meio dessa tempestade está Amanda, assistindo o esfriamento de seus pais, logo ela que presenciou troca de carinhos e juras de amor dos dois. Onde isso tudo foi parar? Para tentar espalhar um pouco os pensamentos e voltar ao foco da investigação, o detetive olha para o banco do carona da viatura e lá está a embalagem da bala, guardada dentro do saco transparente de evidências. Prender Suíno e voltar para sua família, essa é a sua ambição.
              Tudo naquela região da cidade parece funcionar. O transporte, a saúde, saneamento básico e segurança, tudo funciona melhor do que em outros bairros. Isso se deve a falta de assistência do poder público. Samuel dirige pelas ruas e tudo o que se vê são pessoas com alto grau de instrução e conta bancárias satisfatórias. Zona Sul, o berço da burguesia, gente poderosa. O detetive confere mais uma vez o endereço e descobre que não está muito longe, apenas mais algumas curvas e ele estará lá.
           A galeria zona sul é uma das mais famosas da cidade. Sua fachada imponente já deixa claro qual o tipo de público frequentador. Lá dentro diversas lojas famosas compõe o conglomerado que vai desde de doceria até as mais requintadas joalherias. É a primeira vez que Samuel coloca seus pés ali e simplesmente ele fica boquiaberto com tamanho luxo. A doceria não fica tão distante, ela se localiza no fundo, perto da escada rolante. Uma loja colorida onde o cheiro de doce já pode ser sentido de longe. Um dos vendedores o recebe com uma educação fora do normal. Felizmente ou infelizmente o mundo trata melhor quem se veste bem. Samuel é chamado de doutor, até o momento em que se identifica como investigador de polícia.
- Em que posso ser útil?
- Essa bala é vendida aqui, não é?
           Bastante cuidadoso o vendedor olha para a embalagem ainda dentro do saco de evidências e assente com um gesto de cabeça.
- Sim?
- E quanto custa a unidade?
- Depende, essa é a mais cara, está em torno de cinco reais.
- Elas devem ser deliciosas para custar tanto, não é? - Samuel guarda o saco no bolso do paletó.
- Incrível, eu mesmo já experimentei e é sensacional, diferente de tudo que já vi.
- O sonho de toda criança. - o detetive olha ao redor. - me diz uma coisa, que tipo de gente compra uma bala dessa?
- Só galera da alta, as vezes chegam a levar pacote fechado.
- E quanto a outro tipo de público, digo, os mais pobres? - enterra as mãos nos bolsos da calça.
- Raros, digo até que raríssimos.
            Enquanto o funcionário falava, Samuel observa uma câmera posicionada na parte de cima de um armário, direcionada para quem se aproxima do balcão de retirada de mercadoria.
- As câmeras de segurança gravam?
- Sim, temos todos as imagens.
- Ótimo, podemos começar por aqui.

*

Amanda e Rodrigo voltam a se encontrar depois do horário da escola. O rapaz a leva para um lugar que fica distante do bairro onde ela mora. Encantada pelo carro, Amanda se vê no direito de perguntar sobre o trabalho do namorado.
- Ser DJ dá dinheiro?
- Veja bem, é o tipo de trabalho que lhe obriga ser muito bom. Se você for bom no que faz, você tem trabalho, se não, melhor procurar outra coisa para fazer, entende?
- E pelo visto você é bom. - o beija.
- Você ainda não viu nada garotinha.
            No lugar, uma casa singela com os cômodos vazios, os dois trocam beijos e pouco a pouco o DJ vai despindo a filha única de Samuel e Bárbara. Deitados num colchão que já estava lá eles transam sem segurança algum, sem preocupação. A entrega da adolescente é total. Ela está apaixonada por ele, morreria por ele, por isso Amanda permite que seu namorado a conheça profundamente.
            Depois da transa eles continuam deitados, abraçados e por enquanto o silêncio entre eles é o bastante. Rodrigo mexe em seu bigodinho e Amanda acaricia seu peito de alguns pelos.
- O que você pensa em fazer daqui alguns anos? - ela inicia a conversa.
- Sei lá, são tantos os planos.
- Então me diga um desses planos.
- Queria muito me formar em direito, mas não sei se vai rolar.
             Amanda se ergue.
- Como assim, não sabe se vai rolar, basta você correr atrás.
- As coisas não são tão simples assim, eu não ganho o suficiente para bancar uma mensalidade de advocacia.
- E o carro? - cruza os braços.
           Rodrigo abaixa a cabeça.
- Não é meu. - balbucia.
           Amanda sente uma onda de raiva possuí-la.
- Você teve coragem de mentir pra mim, Rodrigo?
- Me desculpe, só queria te impressionar.
- E você conseguiu, jamais imaginei que você mentiria pra mim. - se levanta recolhendo seu uniforme. - quero ir embora, agora.
- Calma, Amanda, fique mais um pouco…
- Eu preciso ir embora, está ficando tarde.

*

O banho é demorado, misturado com lágrimas e soluços. Enquanto a água do chuveiro escorre por suas costas, Bárbara sente a culpa chegando e apontando seus dedos. Ser uma adultera, isso não estava nos seus planos, jamais. Como olhar para Samuel? O que vou dizer a Amanda? Que sua mãe é uma fracassada? Que por um momento de fraqueza se jogou nos braços de outro homem? Meu Deus, que situação que criei. Ela fecha o registro, se envolve na toalha e abandona o banheiro depois de meia hora ali dentro.
        Pior que errar é não saber reparar o erro. Bárbara se sente sufocada, pressionada, sedenta pelo perdão de seu marido, porém lhe resta uma dúvida. A menos que ela conte, Samuel nunca ficará sabendo desse deslize, nem mesmo Amanda. Meu Deus, o que fazer? Se ela contar para seu esposo que o traiu, Bárbara corre o risco de jamais ter o perdão dele, ou coisa pior, Samuel é capaz de destruir com a vida de Dante e Amanda com certeza perderá a confiança na mãe. O que fazer então? Guardar esse segredo e levá-lo para o túmulo? Essas coisas ficarão martelando em sua mente e para espalhá-los ela corre até a cozinha e começa a preparar o jantar.

*

Frango assado, batatas e arroz com legumes, um delicioso jantar preparado com todo o carinho e isso refletiu no sabor dos alimentos. Samuel devora seu primeiro prato e sobram elogios a sua esposa que ruboriza. Amanda também adorou o jantar.
- O que aconteceu mãe?
- Nada, eu apenas quis fazer algo diferente hoje, sair um pouco do básico. - Bárbara responde escolhendo as palavras.
- Muito bom. - Samuel limpa a boca. - acho até que vou querer mais um pouco.
             Realmente está sendo difícil olhar para Samuel, logo hoje que ele voltou do trabalho com um sorriso mudado. Ela o serve e depois termina de recolher o restante da louça. Na pia ela confere seu celular e ele está cheio de mensagens não lidas. Dante, o fantasma ainda a assombra. Ela digita rapidamente, amanhã conversaremos. Bárbara enterra o aparelho no bolso e começa a lavar os pratos, enquanto isso sua cabeça vai girando. Ela volta a sentir o toque, o olhar o cheiro de Dante. De repente ela está deitada naquela cama ardente com aquele homem em cima dela a cobrindo de prazer. Cada minuto vivido ali valeu a pena? A água fria em suas mãos a faz voltar de seus devaneios.
- Se liga Bárbara.
             Amanda escreve algo no computador. Como toda adolescente ela tem todas as redes sociais possíveis. Seu quarto, diferente de outras adolescentes não é um caos, pelo contrário, é até organizado demais. Samuel a surpreende invadindo o cômodo, o coração da garota quase sai pela boca.
- Oi, pai?
- Oi, balas super sabor, conhece? - mostra a filha.
- Sim, claro, são deliciosas, é pra mim? - sorrir.
- Sim. - se senta na ponta da cama. - estou no rastro daquele assassino que matou as crianças e eu tenho certeza que ele as atraiu com elas.
- Que horror, o senhor precisa prender logo esse monstro. - fala com a boca cheia.
- Estou tentando, hoje tive um avanço. - olha ao redor do quarto. - como vão as coisas na escola?
            Amanda quase engasga com a bala.
- Bem, acho que dá pra passar.
- Legal, se esforce então, não deixe que nada lhe tire o foco. - cruza os braços. - e quanto a carreira na medicina, continua de pé?
- Sim, bom, é um pouco cara, não é? - diz desanimada.
- Filha, eu só tenho você, meu salário como investigador não é lá essas coisas, mas eu acho que vale a pena apertar um pouco, vai dar tudo certo.
            Amanda se levanta e beija o pai no rosto.
- Esse é o grande detetive Alencar.
- Tudo bem. - se levanta. - não fique até tarde no computador, amanhã cedo tem colégio, faça suas orações e durma.
- Certo, paizão.
            Assim que Samuel sai do quarto um peso enorme cai sobre Amanda e ela não consegue controlar o choro. Ela não tem sido uma boa filha, ela sabe disso, mas ele não, isso a faz mal, muito mal. Enganar um pai exemplar como o dela é algo cruel e machuca. Samuel acredita piamente na pureza de sua filha, acredita na educação e nas longas orientações a beira da cama. Amanda trocou tudo isso pelos abraços e beijos de um DJ, pelas aventuras as escondidas. Não será uma noite fácil, conviver com essa culpa não está sendo tarefa fácil.
            Enquanto isso, no quarto dos pais de Amanda a situação não é muito diferente. Enquanto escova os dentes Bárbara é assombrada pelo espírito da culpa. Dante vai e vem em seus pensamentos a impedindo de ouvir os comentários de seu esposo deitado na cama.
- Ouviu? - diz Samuel com o rosto encoberto pelo livro.
- Me desculpe, estava distraída. - aparece na porta do banheiro com a escova na boca.
- Dei um passo importante na investigação hoje.
- Não me diga?
- Sinto que em breve vou algemar aquele canalha. - retira os óculos. - amanhã vou acionar uma equipe, faremos buscas, vamos cercar esse vagabundo, não podemos deixá-lo respirar.
- Lhe desejo sucesso.
              Mais uma noite em que Samuel vai apenas acompanhar sua maravilhosa mulher se deitar e pegar no sono logo em seguida. Mais uma noite sem sexo, sem carinho. É como estar deitado ao lado de uma amiga ou sei lá o que. O quarto está escuro, a noite está agradável, porém os ocupantes da cama atravessam fases quase que irreversíveis. Alguém precisa ceder, alguém precisa dar o primeiro passo. Estranhamente Bárbara não pega no sono assim que se deita. Samuel continua lá, a desejando, faz tempo que ele não experimenta de seu beijo. O que está acontecendo? O que se passa na cabeça dela, no que está pensando?
           Bárbara por duas vezes pensou em se virar e confessar sua traição, mas algo mais forte que ela a segurou, talvez seria a ruína de sua família contar tudo o que aconteceu. Quem pode prever a reação de um homem ao saber que foi traído, ainda mais sendo esse homem um policial? Claro, Samuel é um barril de pólvora, por muito menos ele quase causou uma tragédia.
           Foi uma noite agradável com pessoas mais agradáveis ainda. O restaurante estava relativamente cheio. A conversa estava ótima, o casal de amigos eram pessoas conhecidas dos dois da época da faculdade. Samuel percebeu olhares de seu velho amigo para as pernas de Bárbara e o policial não conseguiu se conter de ciúmes. O papo que estava bom agora deu lugar a troca de ofensas.
- Cara, eu não olhei para ela, por que você está agindo assim? - Se defendeu Maurício.
- Você continua sendo o mesmo, não consegue evitar os olhares para uma mulher. - rosnou Samuel.
            Foi uma situação pra lá de constrangedora. As duas esposas não sabiam onde enfiar a cara. Bárbara pedia insistentemente para que Samuel parasse com a discussão antes que eles fossem expulsos do restaurante, mas seu esposo estava irredutível. A outra parte também tentava as duras penas terminar com o bate boca, mas quando um homem entra numa briga ele quer ir até o fim. O jeito foi deixar que eles por si só se acalmassem.
           Do lado de fora ainda aconteceu um início de discussão, mas Bárbara e a outras foram incisivas.
- Entre no carro, Samuel, agora. - vociferou Bárbara.
- Você também, Maurício.
             Contar ou não que o traiu? Qual será sua reação? Com certeza ele investigaria, e mataria Dante, ele bom no que faz. E agora? Se Bárbara ficar de boca fechada, ele nunca vai descobrir, nem mesmo Amanda. Será que a professora está disposta a conviver com esse segredo que a consome dia após dia? Tudo isso passa a mil por hora em sua cabeça até que  por fim ela pega no sono deixando seu marido mais uma vez sem sequer um “boa noite”

5

O trabalho de um investigador deve ser minucioso, cada detalhe é importante, nada pode ser descartado, nada. Os olhos de Samuel não se cansam de olhar para o monitor. O vai e vem  de pessoas naquele balcão, o entra e sai de funcionários da loja, tudo deve ser captado. Em algum momento Suíno entrará em cena e é ai que de fato toda investigação tomará seu rumo. Bárbara começa a rondar seus pensamentos e ele faz questão de espantá-los se ajeitando na cadeira e pigarreando. Todo o ambiente onde Samuel se encontra está as escuras. Cinco crianças mortas, esse porco maldito precisa pagar pelo que fez antes que ele volte a matar. Ao lado do monitor a foto do desgraçado está fixada, como se fosse um quadro, Samuel faz questão de olhar bem nos olhos dele.
            De repente a porta da sala dos monitores é aberta e um fio de iluminação entra. Samuel faz uma careta.
- Acho que deixei bem claro que não gostaria de ser interrompido. - diz sem tirar os olhos da tela.
- Me desculpe. - se defende um policial segurando uma caneca. - achei que queria um café fresco.
- Pode deixar em cima da mesa, obrigado. - ajeita os óculos.
- Então, como estamos?
- Não estamos, Suíno é escorregadio, mas, uma hora ele vai dar um mole.
           Enquanto fala com seu colega de profissão, Samuel permanece com os olhos na tela do monitor. De repente lá está ele, com seu sorriso simpático, maquiavélico, Carlos, o Suíno, retirando sua mercadoria no balcão da loja. Uma estranha sensação é sentida pelo investigador, ele sente que pode atravessar a tela e matá-lo ali mesmo.
- É ele? - pergunta o outro policial.
- Isso mesmo. - responde entre os dentes. - desgraçado.
- O problema é que não sabemos onde ele mora ou se esconde, tudo que temos agora é essa imagem. - lamenta o policial.
- Pode até ser. - gira a cadeira e pega a caneca com café. - mas eu sinto que estou perto de pegá-lo, vou voltar ao local do primeiro crime, começarei do zero.

*

Começar do zero, voltar a cena do primeiro crime. Samuel volta a dirigir pela via movimentada cortando os veículos mais lentos. Aos poucos sua memória vai voltando naquela manhã de segunda feira quando seu celular tocou e seu capitão o notificou sobre a descoberta do corpo do pequeno Tiago desaparecido a alguns dias. A chegada ao local foi triste, as pernas de Samuel tremiam feito vara verde. Lá estava o menino, morto, olhos semiabertos e com a boca costurada, sangue por toda parte, lamentável. O sentimento era unânime entre os agentes presentes, dor e frustração. A policial que veio ao seu encontro deixou claro sua emoção.
- Lamento muito detetive Alencar.
               Foi duro, um golpe muito forte. Todos ali tinham filhos, todos ali eram humanos. Samuel se aproximou do corpo segurando as lágrimas. O rostinho de Tiago estava torcido deixando evidências de seu sofrimento. O maldito costurou a boca com o garoto ainda estava vivo. Jesus. Desde então a rotina do investigador mudou drasticamente, ele passou a conviver com a sombra de Carlos Suíno dia após dia. Todos o cobravam, departamento, imprensa e familiares, todos. Depois de Tiago vieram mais quatro, quatro anjos. Como conviver com esse peso?
             Agora ele está de volta. Nada mudou muito. O mato cresceu e a poeira se misturou ao sangue seco. No lugar funcionava um pequeno estoque de madeira. O corpo de Tiago foi encontrado em cima de uma das madeiras apodrecidas. Samuel olha ao redor e tudo o que vê são resto de máquinas, montes de madeiras queimadas, tudo isso a céu aberto. Alencar faz a volta olhando para o chão de mato rasteiro. Ele olha para frente e vê sulcos no meio do mato.
- Com certeza ele passou por ali.
             Samuel faz o mesmo caminho imaginando Suíno arrastando o garoto mato adentro. Alguma coisa ele deixou para trás. Ele vai caminhando e olhando ao redor. O caminho vai dar numa árvore onde o detetive imagina que Suíno tenha violentado o menino antes de executá-lo. As raízes da árvore estão expostas, nessa parte do terreno o mato já é bastante alto, luga ideal para um louco como Carlos. O solo é úmido e nele há algumas marcas de sapatos ou coisa parecida, seriam dele? Essa tarefa não está sendo nada fácil.
             Samuel Alencar coloca as mãos na cintura e percebe que está andando em círculos. Tudo volta para o mesmo lugar. Teria sido uma boa ideia começar do zero? Ele se senta em uma das raízes expostas, fecha os olhos e tanta se colocar no lugar de Carlos Suíno. Se ele fosse um assassino em série onde ele procuraria abrigo? Samuel abre os olhos e como era de se esperar tudo está lá no mesmo lugar, nada mudou. Algo vem a sua mente, algo que ele não havia pensando antes. Primeiro crime, esse lugar, esse bairro, com certeza Suíno reside por aqui. Ele se levanta e pega a foto do miserável no bolso do paletó. Ele olha para o rosto de Carlos. Hora de agir como antes.

*

Como será encarar seu coordenador depois de tudo que aconteceu? O que ele está pensando sobre ela? Bárbara chega ao curso de Inglês andando devagar e olhando para todos com seu olhar desconfiado. Dante, essa é a sua preocupação maior, ela não conseguirá encará-lo. Ela passa pela secretária que sorrir para ela.
- Bom dia professora Bárbara.
- Bom dia dona Rose.
            Bárbara pega seu material na sala dos professores o mais rápido possível. Se dependesse dela, com certeza, aquele seria o último lugar onde ela desejaria estar. Que situação. Ela dobra para ganhar o corredor que a levará até sua sala quando ela se choca com um sujeito baixo, gordo e de bigode.
- Me desculpe. - ela diz nervosa.
- Nada, a senhora deve ser a professora Bárbara Alencar, acertei?
- Sim, sim.
- Prazer, sou Bruno Castro, coordenador interino. - estende a mão.
            Confusa, Bárbara aperta a mão mole do gordinho bigodudo.
- Coordenador interino?
- Isso mesmo, Dante foi transferido para uma das unidades fora do estado.
           Bárbara não sabe se chora ou se sorrir aliviada.
- Sei. - gagueja.
- Foi um prazer conhecê-la, boa aula. - passa por ela.
           Anestesiada, esse é o estado em que se encontra a esposa de Samuel. Ela adentra a sua sala carregando seu material com sua cabeça a mil. Como assim, Dante transferido? Um misto de sentimentos se forma dentro dela e para ser sincera ela não sabe o que pensar. Aqueles momentos vividos com ele naquela cama jamais sairão de sua memória, Dante marcou sua vida. Em contra partida ela precisa esquecê-lo, foi um momento interessante mas ele precisa ser deixado para trás.
             Pouco a pouco os alunos vão chegando e ocupando seus lugares diante de uma professora de olhar perdido. Nem mesmo as conversas a fazem voltar de seu devaneio. A tortura mental é ainda pior que a física, ela te neutraliza, não lhe deixar agir de forma natural. Bárbara inicia sua aula sem muita vontade e assim será até o findar do dia.

*

O encontro foi marcado no mesmo lugar. Rodrigo não vê a hora de poder arrancar o uniforme de Amanda e transar. Porém, suas expectativas são frustradas assim que ele chega ao local. Sua namoradinha está chorosa, encolhida no canto.
- O que foi?
             Entre choros e soluços ela não consegue responder.
- Amanda, algum problema?
- Rodrigo, acho que eu estou grávida.
             O peso da palavra gravidez atinge o DJ com toda a força. Ele perde o chão e lhe faltam palavras. Rodrigo, pai, quando ele imaginaria uma coisa dessas, ele mal se sustenta. Tudo o que terá que enfrentar daqui pra frente vem em sua mente e ele quase surta.
- Você tem certeza? - treme a voz.
- Quero dizer, eu não sei, venho sentindo algumas coisas esquisitas.
- Esquisitas como? - o desespero é nítido no olhar do rapaz. - vou comprar um teste de farmácia, quero tirar essa história a limpo já.
              A menina volta a chorar e a se encolher.
- Como vou falar isso para os meus pais?
            Eis a questão. Tanto Bárbara quanto Samuel não fazem ideia do envolvimento de Amanda com Rodrigo. Isso seria um golpe inesperado no seio da família Alencar. De repente aquela menina quieta, estudiosa aparece grávida de um homem mais velho, o que vão dizer.
- Calma, Amanda, por enquanto é só uma suspeita, vou sair e comprar logo o teste.
              Amanda se sente sozinha, mergulhada em dúvidas e arrependimentos. O que seus pais vão pensar? Qual será a reação de Samuel ao saber que será avô? Sou apenas uma menina que ainda não iniciou a vida, por que fui me entregar a um rapaz que mesmo aos vinte cinco anos ainda não se encontrou na vida, por que? O que farei se eu realmente estiver grávida?

*

De repente a tranquilidade daquele pacato bairro deu lugar ao ruido das sirenes. Cinco viaturas cortam o asfalto e param abruptamente perto do carro de Alencar. Os agentes descem vestidos com seus uniformes e portando seus armamentos. Samuel os reúne e no capô de seu carro ele abre um mapa do bairro.
- Vamos lá, nosso alvo é esse sujeito. - coloca a foto de Suíno sobre o mapa. - Carlos, mais conhecido como Suíno, matou cinco crianças com requinte de crueldade, infelizmente não sabemos muita coisa, por isso chamei os senhores. Vamos caçá-lo.
              Um agente mais experiente ajeita seu bigode.
- Como sabe que ele ainda mora aqui, ele pode ter fugido?
- Sargento Freitas, o senhor conhece aquele ditado, galinha de casa não se corre atrás? Eu tenho certeza que Suíno ainda está aqui.
- Tudo bem, eu só acho…
- Freitas, eu confio no seu trabalho, no trabalho de seus homens, só prenderemos esse maldito se nos unirmos.
             Freitas coça a cabeça por cima do boné.
- Qual o plano?
             As marcações são feitas no mapa. Todo o bairro será cercado. Se tudo der certo, a prisão de Suíno será questão de tempo. Sargento Freitas e sua equipe agora chefiada pelo investigador parte para um ponto do bairro. Esse ponto trata-se do lugar mais humilde onde as casas e ruas foram praticamente deixadas de lado. Samuel quer vasculhar cada canto, cada beco, cada viela, nada será deixado para trás. Nada mesmo. Pelo rádio eles se comunicam.
- Freitas, não se esqueça, se houver resistência evite o abate do meliante.
- Deixa comigo investigador. - usa de desdém.
            A chegada das viaturas naquela localidade causou espanto em todos os moradores. As seis entraram de uma só vez ruidosamente com agentes apontando seus fuzis. Tudo o que se viu foram mulheres recolhendo seus filhos e jovens procurando algum canto para se esconderem. Freitas suspeita de algo e pede para parar a viatura.
- Opa, todo mundo com as mãos para cima.
             Samuel ao ver seu colega de profissão abordando os cinco jovens tenta manter a calma. Nada disso estava em seus planos. Alencar também desce do carro, saca sua pistola e se encontra com Freitas.
- Posso saber por que vocês correram ao verem a viatura? - começa o sargento.
- Nos somos estudantes, senhor. - gagueja um deles.
- Que horas são? Acho que os estudantes aqui perderam a hora do colégio, não é mesmo?
          Os rapazes são revistados e apenas uma trouxinha de maconha foi encontrada.
- Isso é para seu consumo ou você trafica? - Freitas mexe no bigode.
- É para o meu consumo, senhor.
- Sério? - Olha para Samuel. - não adianta mentir.
             O rapaz maltrapilho abaixa a cabeça e depois para seus companheiros.
- Eu vendo. - sua fala é inaudível.
- Como é que é, não ouvi nada. - Freitas se inclina.
- Eu trafico, também.
           Samuel olha para o relógio e depois sussurra para o sargento.
- Temos que ir, essa não é nossa missão.
- Tudo bem. - Freitas olha para os garotos. - escutem bem, essa cidade é minha, ninguém trafica em minha cidade, todos ouviram? Eu voltarei assim que puder e vou prender a todos, não adianta fugir, o Sargento Freitas sempre pega.
           Samuel assume mostrando a foto de Suíno.
- Conhecem?
           Silêncio.
- Carlos, conhecido Pelo vulgo Suíno. - completa Freitas.
         Um dos meliantes levanta o braço.
- Acho que já o vi antes.
          Samuel o chama para mais perto.
- Me conte isso direito.
- Ele é esquisito, as pessoas têm medo dele, sei lá.
- Você sabia que ele já matou cinco crianças? - Alencar olha fixo para o garoto. - você sabe onde ele mora?
- A casa exatamente não, mas a rua onde ele sempre fica sim.
- Nos leve lá, já.
           Freitas puxa Samuel.
- Detetive, e se esse merdinha estiver mentindo? E se ele estiver nos levando para uma armadilha?
- E o que fazer então? - dá de ombros.
- Deixa comigo.
              Dentro do carro Samuel não consegue conter a excitação. Em todo esse tempo correndo atrás desse assassino, é a primeira vez que ele tem algo de concreto. Quem diria que uma informação tão importante partiria de um marginalzinho pé de chinelo. As viaturas vão indo cada vez mais longe dentro da comunidade. Entra em beco e sai de beco. Muito lixo, esgoto a céu aberto, ruas esburacadas e outros problemas. A viatura de Freitas para. Samuel chama pelo rádio.
- O que houve sargento?
- Relaxa detetive, chegamos, o garoto se comportou direitinho.
- Sargento, eu falei sem torturas.
             Durante o percurso Freitas veio torturando psicologicamente o rapaz ameaçando meter uma bala em sua cabeça. Com certeza foram momentos de horror vividos ali dentro. Geraldo Freitas, sargento da PM, sempre foi um exemplo dentro da corporação, porém seus métodos de conseguir resolver casos vão de encontro aos procedimentos. Em todos esses anos na polícia, Freitas ajudou e muito, mesmo não sendo o melhor, mas sim o que a cidade precisa, um xerife.
             Freitas desce da viatura segurando o menino que se encontra algemado e resmungando.
- Eu já falei, não é uma armadilha.
- Fique frio. - o puxa para a calçada.
               Samuel se aproxima dos dois.
- Então meu jovem, essa é a rua?
- Sim, senhor, eu o via sempre por aqui.
                A rua é a mais precária de todas daquela comunidade. Carlos realmente é um sujeito esperto, quando Samuel imaginaria que ele buscaria se esconder ali. Claro, uma favela é um bom lugar para se esconder. Samuel ordena que todas as entradas e saídas sejam monitoradas. Enquanto isso, Freitas e ele procuram por casas suspeitas. Arma na mão e adrenalina correndo solta nas veias, esse é o estado em que se encontra o investigador, diferente de seu companheiro que parece passear no parque.
- Vejo que o senhor não está acostumado a incursões em comunidades não é? - sorrir.
- Tem toda razão.
              Eles andam bastante até chegarem num largo onde uma casa sem muro parece fechada a anos. Eles se olham. Freitas faz sinal para que ele dê a volta.
- Vamos cutucar o buraco do rato pela frente.
                Freitas passa por onde existia um portão. As portas e janelas estão trancadas. Antes de colocar o rosto pela janela o sargento aponta seu fuzil. Não há ruído ou movimento. Tudo parece muito calmo. Já conhecendo o terreno, Freitas decide arrombar a frágil porta. Não foi preciso muito esforço, a porta abriu com apenas um chute. Não chega a ser uma casa, mais parece uma cabana por dentro. A casa toda é um cômodo com uma cama de solteiro, um pequeno armário, fogão e uma TV pifada, nada mais.
- Detetive.
               Correndo, Alencar chega ao interior da casa.
- Já pode começar suas buscas. - abre o forno do fogão.

6

Cansada não só fisicamente, mas principalmente mentalmente, esse é o estado de Bárbara ao chegar em sua casa que se encontra num silêncio estranho. Não foi preciso se sentar para tirar os sapatos, com os pés ela os arremessou para debaixo do sofá. A tortura mental é ainda sua companheira. Como se libertar disso? Essa resposta ela sabe muito bem. Contar a verdade. Será o único jeito de se livrar desse castigo. Se ela sabe disso, por que então insiste em continuar com esse martírio? Medo, esse é o motivo, Bárbara tem medo. Qual será a reação de Samuel? O que sua filha pensará dela? O que seus familiares vão pensar? São perguntas que rondam sua cabeça a deixando a beira de um colapso.
           A casa continua em silêncio, mas não totalmente. Bárbara tem percebido alguns ruídos desde quando chegou. Mesmo sem vontade ela se levanta do sofá e caminha até perto da escada.
- Amanda, você está ai?
              Sem resposta. Reclamando a professora sobe as escadas até chegar na porta do quarto da filha. A porta está entreaberta. Devagar ela vai abrindo até poder ver sua filha encolhida na cama chorando horrores.
- Amanda, o que houve?
               A menina se assusta ao mesmo tempo em que tenta inutilmente limpar as lágrimas.
- Oi, mãe?
- O que houve?
              Bárbara se senta na ponta da cama. Vendo que sua filha não consegue falar ela inicia um carinho nos pés da menina, coisa que ela sempre fazia quando Amanda era bebê.
- Vamos filha, pode falar.
                Tomando forças e respirando fundo a menina se ergue na cama e com os olhos úmidos ela olha para mãe.
- Eu enganei vocês esse tempo todo. - prende o choro.
- Nos enganou, como assim? - continua a cariciar os pés da filha.
- Mãe, eu tenho um namorado.
- Como assim, por que não nos contou, seu pai, você sabe como ele é.
- Me desculpe, mãe, por ter enganado vocês esse tempo todo. - volta a chorar. - e não é só isso.
- Sim!
- Ele é mais velho.
               Bárbara tenta transparecer forte, mas por dentro seu coração sofre ataques a cada revelação. Ela permanece com a mão nos pés da filha, porém sem fazer movimento. Ela olha para Amanda e aguarda mais novidades.
- O nome dele é Rodrigo e ele tem 25 anos.
              Outra bomba e seu coração aguenta firme.
- Amanda, mas, mas você tem apenas 17 anos, como o conheceu?
- Mãe, isso não importante. Rodrigo e eu temos nos encontrado com frequência e a senhora sabe, né?
- Sei o que, Amanda? - Bárbara quase sofre um infarto.
- A senhora sabe, o que rola no encontro entre um homem e uma mulher, intimidades.
             Bárbara de repente se vê diante de um novo dilema ainda maior do que o dela. Sua única filha, aquele bebezinho frágil, inocente e dependente voando alto, com vida sexual mais ativa do que a própria mãe. O carinho no pé cessa e o que resta são olhares de desconfiança.
- Vocês transam, é isso? Você já não é aquela menina virgem que seu pai e eu acreditávamos que era? - o tom de voz mudou.
             Amanda abaixa a cabeça. Bárbara se levanta.
- Você está grávida, não é, Amanda?
             A menina continua de cabeça baixa.
- Responda. - voz embargada.
- Mãe, me perdoa. - segura as mãos da mãe e chora salivando como uma recém-nascida.
             Não foi preciso resposta, estava tudo revelado. Aquela menina que todos acreditavam ser inocente, pura, estudiosa e ingênua, enganou a todos. Uma bomba atrás da outra, será que a família Alencar suportará tal pressão? E Samuel, como vai reagir ao saber disso? Bárbara sente o estômago revirar cada vez que é assolada por tais pensamentos. Sua filha continua a segurar sua mão e a exigir seu perdão. Respirando fundo ela olha para Amanda e a conforta.
- Se acalme, daremos um jeito nisso.
              Bárbara disso isso a filha, mas na realidade ela quis dizer a ela mesma. Seria isso verdade? Realmente tudo se resolverá? Ela oferece seu ombro quando na realidade ela precisa de um. Forte, ela precisa se manter forte.
- Amanda, fique tranquila, não podemos esconder isso de ninguém, principalmente de seu pai, uma gravidez é algo notório, cedo ou tarde vão descobrir, eu falarei com Samuel, agora. - levanta a cabeça da filha. - preciso conhecer esse rapaz.

*

Tudo foi revirado naquele lugar. Samuel e Freitas saem de lá com apenas algumas embalagens de bala. O sargente se apoia na viatura e olha para o detetive.
- Qual o próximo passo, investigador?
- Estamos no meio de uma caçada sargento, precisamos continuar, eu só saio daqui com Carlos algemado.
            E assim foi feito. As equipes foram separadas, cada uma em pontos suspeitos da comunidade. Os agentes entraram em becos e vielas enfrentando o perigo. Samuel vai a frente junto com Freitas. Eles chegam ao ponto mais alto da favela e até agora nada. Avista da cidade é ago extraordinário. Ofegante o sargento se apoia nos joelhos.
- É detetive, seu Suíno sumiu mesmo.
             Samuel teve que dar o braço a torcer, Carlos desapareceu. Teria ele perdido essa guerra? Foi tudo em vão? Toda investigação foi trabalho perdido, perda de tempo? E a resposta aos familiares das crianças mortas?
- Tem razão sargento, cancele a operação, vamos voltar.
- Tem certeza? - pergunta segurando o rádio.
- Sim. - respira. - vou voltar para o departamento e rever toda a investigação até aqui.
- Certo!

*

Chegar em casa deveria ser algo prazeroso, agradável, depois de um dia louco como de um policial, certo? Não, não para Samuel Alencar. Os problemas martelam em sua cabeça a ponto de lhe prejudicar sua visão. Ele entra já tirando seu paletó e se joga no sofá. Esfrega os olhos sem retirar os óculos e depois permanece apenas fitando o teto. Onde ele poderia ter errado? Desde quando Suíno surgiu sua vida profissional entrou em colapso. Não só sua vida profissional como também a familiar se transformaram num aglomerado gigantesco. Por que? No que estou errando?
           Percebendo a chegado do esposo, Bárbara vai até a sala sem ter muito o que falar. Samuel não toma conhecimento de sua presença e permanece jogado no sofá.
- Oi? - diz Bárbara.
- Oi. - responde sem olhar para ela.
- Dia ruim?
- Péssimo.
             Bárbara se senta ao lado dele.
- Quer conversar sobre isso?
            Por essa ele não esperava. Essa é mesmo Bárbara?
- Rodamos o dia inteiro por dentro de favelas e não o encontramos, parece até que Carlos sumiu do planeta.
             Ela continua prestando atenção nele, tenta se manter focada, porém outros pensamentos desvirtuam-na. Bárbara pisca várias vezes até seu foco ser outra vez seu marido.
- Então foi isso. Eu já não sei o que fazer.
- Você é um bom policial, eu sei disso e você também sabe. - se levanta. - vá tomar um banho, estou quase terminando o jantar.
              Ela não precisou falar muito, Bárbara apenas disse a verdade. Esse gás veio na hora certa. Ainda em choque, o detetive processa tudo o que foi falado pela esposa e depois sobe para o banho. Ela por sua vez continua a cozinhar organizando suas ideias. Uma mulher sábia edifica sua casa. Ela sabe que errou. Contar toda a verdade agora seria o golpe de minerva em seu lar já debilitado. Não, isso ela não fará. Ela já está sofrendo bastante, por que outra pessoa sofrer também?
            Enquanto retira o assado do forno outra questão vem a tona. Amanda está grávida, isso sim deve ser levado a Samuel. Imagine a cabeça de um homem ao saber que sua única filha está grávida de um homem mais velho sem expectativa alguma de vida? Samuel vai pirar. Ela corta o assado devagar para não estragar a decoração do prato. A tarefa de uma dona de casa é realmente difícil. Ela precisa ser a apaziguadora, conselheira, companheira entre outras coisas. O jantar está pronto.

*

Enquanto aguardam a chegada de Samuel, mãe e filha discutem em tom baixo.
- Não vamos falar disso agora, seu pai não está em condições de receber essa notícia agora.
- Mas, mãe, quando será então?
- Deixe comigo.
            Samuel aparece com um aspecto bem melhor do que antes.
- Qual o assunto? - puxa a cadeira.
            Amanda quase engasga.
- Nenhum, Amanda estava ansiosa para comer o assado. - diz Bárbara já pegando os pratos.
- Está com muita fome, filha? E a escola?
- Legal.
- Sabe o que eu estava pensando, que tal uma viagem de férias em família?
           As duas comemoram juntas.
- Vocês escolhem o lugar, campo, litoral ou internacional?
- Eu prefiro o campo. - enfatiza Bárbara.
- E eu internacional. - retruca Amanda.
- Nossa.- sorrir Alencar.

Samuel mergulha fundo na leitura quando um cheiro doce invade o quarto. Bárbara está no banho. Agora a leitura ficou complicada, ele imagina sua esposa deslizando o sabonete em seu corpo nu. Muito triste essa realidade da perda da intimidade com sua própria mulher, ele já perdeu as contas dos dias sem sexo. Muito complicado se deitar ao lado dela e não ter coragem de tocá-la. O jeito e voltar a leitura.
          Ainda envolvido na trama do livro, Samuel sente uma presença o obrigando a afastar os olhos da página. Seus olhos contemplam Bárbara enrolada na toalha. Cabelos molhados e um sorriso insinuante. De repente ela permite que a toalha caia e seu corpo seja exposto. O homem come primeiro com os olhos. Samuel fica boquiaberto. Ele não havia tomado conhecimento o quanto sua mulher era gostosa.
- Nossa! - diz quase infartando. - vem.

7

Amanda anda apressada com sua mochila nas costas e uma pasta entre o busto e os braços. Ela corta por uma rua paralela que também dará em sua casa. Rodrigo vem logo atrás a chamando desesperadamente.
- Amanda, me espere, por favor.
            Ela finge que não está ouvindo e segue quase correndo dele. Enfurecido o DJ começa a correr até poder segurá-la pelo braço.
- Me solta, vou contar pro meu pai que você está me seguindo.
- Amanda, calma, sou eu. - ofegante.
- Vai embora Rodrigo, por favor.
- Por que está fazendo isso comigo? - a segura pelo braço.
            Amanda não consegue controlar as lágrimas. Com certeza ela ainda o ama e o sentimento dele por ela também é verdadeiro. Rodrigo a abraça e o gesto é retribuído.
- Eu, eu ainda não contei para o meu pai. - chora.
- Você quer que eu faça isso?
- Não, ele não entenderia, minha mãe fará isso.
- Amanda, eu quero assumir o nosso filho, acredite, eu, eu vou arrumar um emprego justo, vou cuidar de vocês dois, vamos nos casar.
- Casar? - sorrir
- Sim, vamos nos casar, você aceita? - a beija na testa.
- Claro que aceito, vamos esperar minha mãe falar com meu pai, certo?
- Certo. - acaricia o rosto da menina. - eu te amo.
- Eu também.

*

As coisas são praticamente socadas dentro da mochila. Enquanto guarda suas poucas coisas, Carlos, transpira a ponto de molhar sua camisa. A polícia está em seu encalço e ele precisa sair da cidade imediatamente. Ele termina seu trabalho e olha ao redor. O lugar é o mesmo onde Samuel e Freitas estiveram. A polícia esteve aqui e revirou suas coisas, desgraçados, estiveram aqui. Carlos ainda confere se as balas caras estão no bolso da mochila antes de sair. Tudo certo, hora de sumir do mapa.
           Carlos é um sujeito que passa despercebido por todos, principalmente numa comunidade como aquela. Ele ganha as ruas estreitas e sem asfalto a passos largos sem olhar para trás. Suíno é uma pessoa atormentada, todas as noites ele recebe visitas de fantasmas e isso tem afetado sua mente. Vez por outra ele se pega falando sozinho ou resmungando. Não é a polícia que o assombra, mas sim as crianças mortas por ele. Tudo isso é muito estranho, quanto mais é assombrado, mais ele deseja matá-las, muito estranho.
                Falta pouco para ele sair da favela e chegar ao ponto de ônibus e nunca mais voltar. Seu coração já bate aliviado quando Carlos escuta o som urbano, do vai e vem de pessoas e carros. No ponto de ônibus ele volta a conferir sua mochila, camisa, calça, cuecas, uma soma em dinheiro e também uma arma. Tudo em ordem. Enquanto espera ele observa a chegada de uma mulher com seu pequeno. Que criança linda, perfeita. Logo o seu desejo de matar é despertado e ele precisa controlá-lo. Carlos respira fundo, fecha os olhos e se afasta. Que mal essa criança fez, por que ela merece a morte? Mil coisas passam por sua cabeça ao mesmo tempo. Matar a mãe e raptar o garoto, levá-lo para o esconderijo e sacrificá-lo pela última vez. Suíno retira a mochila das costas e abre a parte onde estão as balas. Mais uma vez ele respira fundo. Desiste. Seu ônibus já vem vindo e ele sinaliza. O coletivo não está tão cheio e ele agradece aos céus por isso. O ônibus começa a andar e uma viatura  descaracterizada vem logo atrás.

*

A sensação que Bárbara tem é que em breve as coisas voltarão a sua normalidade. Depois de uma noite repleta de amor com Samuel ela acorda mais dispostas, mais leve. Seu casamento está a salvo finalmente e ela não vê a hora dele voltar para continuar com aqueles momentos deliciosos. Ela sorrir atoa, tudo nessa manhã tem mais cor, mais vida. Ela cometeria o maior erro de sua vida se ela contasse sobre a traição. Dante agora faz parte de um passado que ela faz questão de enterrar. Claro, a cicatriz ainda está lá, uma traição corta profundamente. Bárbara fará de tudo para deixar tudo isso para trás, ela quer começar uma nova vida, um novo casamento.
            Ela já está pronta para sair quando Amanda vem forte em seu pensamento. Será algo bem difícil, mas também não é o fim do mundo. Samuel terá que aceitar de uma forma ou de outra a ideia de ser avó. Esse pensamento a faz rir. Imagina, ele e ela, avós, que loucura. De repente Bárbara se vê imaginando aquele bebezinho chorando em seu colo, menino ou menina? Tanto faz, o que importa é que ele fará parte de uma família restaurada. Tudo estará em seu lugar.

*

A paisagem vai passando fazendo com que a mente do assassino gira a todo vapor, tudo o que ele vê são borrões. Carlos Suíno nasceu numa família pobre em todos os sentidos. Talvez tenha vindo disso a sua motivação para suas atrocidades. Quando criança ele odiava ser o que era, o pirralho da família, aquele que sofria as consequências pelos outros. Seu pai o espancava e sua mãe não podia fazer nada. Ele odiava ser criança. Para ele, ser criança era  sinônimo de sofrimento. Matá-las talvez seria o único jeito de aliviar suas dores, de poupá-las do castigo.
              O coletivo faz sua última parada antes do ponto final, seu destino também. Carlos espera que nunca mais ele pise nessa cidade, nunca mais os demônios que se acumulam em sua mente o façam voltar a matar, esse é o seu desejo. Ponto final. Os poucos passageiros que restaram descem. Carlos é o último. Ele entra no terminal rodoviário olhando para as placas. O local está relativamente cheio. No alto-falante a voz da anunciante informa a próxima partida. Ele aperta o passo até as cabines.
- Por favor, uma passagem.
             Esperar não é muito o seu forte. Enquanto aguarda a impressão de sua passagem ele olha ao redor. O movimento de pessoas com suas devidas bagagens, funcionários buscando a quem possa auxiliar. Nas cantinas o barulho das máquinas de café e motores que roncam. Tudo isso chama sua atenção. E a polícia? Sim, isso o preocupa, por isso ele está dando o fora, ele não se imagina trancado numa sela de penitenciária com outros homens furiosos, não, isso ele não quer. Finalmente a funcionário lhe entrega o bilhete e ele dispara rumo as garagens.
             Mais alguns lances de escada e Carlos estará dentro de um coletivo executivo deixando essa cidade onde ele fez questão de deixar sua marca, marcas de sangue. Foi prazeroso e ao mesmo tempo diferente. Enquanto tirava a vida daquelas cinco crianças nada passava pela sua cabeça. Ele tinha plena convicção de que estava lhes poupando de um sofrimento vindouro. Crueldade? Talvez. Agora não importa, tudo isso ficou para trás. Ele confere no bilhete o número de seu ônibus e local de embarque. Será preciso andar um pouco mais. Suíno nota uma movimentação estranha, por isso ele diminui o passo. Ele olha em direção as lanchonetes e também para as caixas vinte quatro horas. Dois sujeitos ocupam os caixas. Uma mulher ajeita sua bolsa nos ombros e em sua direção um homem de óculos anda preguiçosamente. Tudo muito normal.
              Finalmente o ponto de embarque. Seu coração dá sinal de vida. Ele aguarda na curta fila até que o motorista peça seu bilhete e confira se tudo está correto.
- Boa viagem, senhor.
- Obrigado.
                Poltrona 34. Carlos deixa sua bagagem de lado e se joga respirando aliviado. Ele fecha os olhos por alguns instantes tentando afastar maus pensamentos. Quando abre os olhos um sujeito de óculos com pinta de intelectual está de pé a seu lado.
- Carlos Suíno, você está preso. - diz Samuel.
- Como assim?
- Por assassinato de cinco crianças, me acompanhe por favor.
               Do lado de fora do ônibus, Freitas e outros agentes aguardam a saída de Samuel quando escutam o barulho de um disparo. Em seguida Suíno aparece na porta do coletivo apontando sua arma alarmando a todos. Mas antes que ele pudesse efetuar mais um disparo, Freitas o acerta e ele cai ali mesmo.
- Vou ver o detetive, algemem esse desgraçado.
               Dentro do ônibus Freitas vê o corpo de Samuel caído sobre a poltrona 34 já sem vida com um tiro no peito.
- Mais que merda. - resmunga.

8

Aquele lugar nunca esteve tão repleto de homens fardados com seus olhares duros e aparência rude. Quase todo o departamento está presente no cemitério, vieram dar o último adeus ao investigador Alencar. Dentro da capela há uma fila gigantesca para prestar condolências a viúva e a órfã. Bárbara não para de chorar e foi até preciso a presença de um enfermeiro. Freitas também está bastante emocionado, seus olhos vermelhos deixam isso muito claro. Foi a primeira e última vez em que trabalhou com Samuel e pra ser sincero ele prendeu muito.
             Um sacerdote começa a falar palavras de conforto chamando atenção de todos os presentes. Amanda segura firme a mão de Rodrigo que acaricia os cabelos soltos da menina.
- Quer água?
- Não, estou bem.
- E o nosso bebê? - coloca a mão na barriga ainda invisível aos olhos.
- Está bem guardado.
                O momento de sepultar um ente querido será sempre doloroso, cruel e marcante. Samuel Alencar agora faz parte do passado. Seu corpo é deixado na sepultura para apodrecer. Um guerreiro, herói, provedor, jamais sairá da memória de sua família. A morte é o caminho de todo o ser vivente. Fim da linha. Bárbara volta acompanhada de sua filha e genro. Freitas faz questão de cumprimentá-la na saída do cemitério.
- Senhora Bárbara, devo informá-la que aquele maldito ficará preso pelo que fez.
              Ela assente com um gesto de cabeça.
- E mais uma vez meus sinceros sentimentos.

*

De repente o choro forte de um recém-nascido alerta a todos quanto a sua chegada a esse mundo. O pai sente suas pernas ficarem fracas enquanto avó sorrir descontroladamente. Quanta felicidade trouxe a chegada do pequeno Samuel. Rodrigo não sabe se chora ou se sorrir segurando em seu colo.
- Seja bem-vindo, filho.
- Ah, deixa a vovó pegar um pouco.
- Sim, claro.
            Amanda não consegue controlar a emoção ao ver seu filho ser recebido com o mais puro amor. Samuel Alencar Neto, esse será o seu nome, o que o destino reserva para ele?
            A família Alencar superou a frieza, o engano, a perda. Soube encarar as dificuldades  e hoje desfruta de dias felizes. Todos nós um dia passaremos por noites mal dormidas, tempestades devastadoras e lágrimas que teimam em molhar o rosto. A noite pode ser turbulenta, mas saiba você, depois da noite, o sol voltará a iluminar a sua vida.

Fim