segunda-feira, 12 de novembro de 2018

Plano B - JAIME PRATES


Um conto Policial com Jaime Prates


Estar diante de um tribunal, tendo que ouvir longos discursos, isso sim que Felipe Martins chama de uma verdadeira tortura. A seu lado o advogado que não para de mexer as pernas enquanto ouve atentamente ao que seu colega tem a dizer sobre seu cliente. Felipe olha para seus pais de rostos abatidos e depois para a juíza. Nada ali conspira a seu favor. Com certeza ele será condenado e terá que dividir uma cela com outros homens. Isso seria seu fim. Fim de seus planos.
     Por fim a fala do advogado de acusação termina. Felipe acompanha seu advogado juntando alguns papéis e depois aguardando a autorização da juíza.
- Com a palavra a defesa.
      O advogado de Felipe é um sujeito imponente, o modo como se porta ante um tribunal cheio de abutres desejando a carne de seu cliente demonstra o quanto ele tem autocontrole e sabe muito bem o que está fazendo. Antes de falar, Mendonça Filho ainda verifica nos altos sua verbalização. Ele saca do bolso de dentro do paletó seus óculos de leitura e depois se dirige a plateia.
    - Eu não tenho dúvidas que Felipe Martins é inocente e sabem porque? Ele não tinha qualquer envolvimento com a vítima. Olhem para o rosto desse jovem. Teria ele algum motivo para tirar a vida de Natália Fagundes? Já foi provado que na noite em que a vítima foi morta, ele, Felipe se encontrava fora da cidade.
      Doutor Mendonça Filho falou ainda por longos vinte e cinco minutos e logo depois disso lá estavam os país de Felipe abraçados ao filho no salão do tribunal agradecendo ao excelente trabalho do profissional. Do lado de fora do tribunal a imprensa aguarda as declarações do acusado agora inocentado. Assim que pisa na calçada o jovem é rodeado por jornalista disputando com gravadores e microfones uma fala de Felipe.
     - Como foram as horas lá dentro Felipe?
     - Terríveis, não desejo isso pra ninguém, mas graças a Deus e ao meu advogado minha inocência foi provada.
       - O que pretende fazer agora? – pergunta outro jornalista.
       - No momento só penso em entrar em minha casa e ficar junto com meus país, eles merecem um pouco de atenção depois de tudo que passaram.
       Felipe vai abrindo caminho até chegar ao carro da família. Eles entram juntos no veículo sob as lentes das câmeras e celulares. Lá dentro a mãe de Felipe chora copiosamente beijando o rosto do filho enquanto o pai sai devagar com o carro.

*

A noite é fresca. Dentro do carro não foi preciso ligar o ar condicionado, as janelas abertas foram o suficiente. Jaime Prates olha incessantemente a foto da garota morta envolvida em sacos pretos da perícia. A seu lado Rafa mexe sem parar no celular.
     - Estou começando a ficar com ciúmes.
     - O que disse? – olha para ela com a expressão fechada.
     - Você não larga esse jornal velho e não para de olhar para essa garota morta. Desencana Jaime, isso foi a cinco anos.
     - Pois é, a cinco anos. – volta a olhar para foto.
      O investigador desdobra o jornal e na parte de cima a foto de Felipe Martins. Prates nunca acreditou na inocência do rapaz e sempre que vê a foto uma ira e senso de justiça o possuí descontroladamente. Rafa volta a provocá-lo ainda mexendo no celular.
      - Nada foi provado contra o acusado, esquece isso.
      - Vamos mudar de assunto? – fecha o jornal e o joga em cima do painel.
      - Legal, vamos. – finalmente deixa o telefone de lado.
      - Pensou em minha proposta?
      - É claro que não. Imagina, eu, Rafaela, juntar os trapos com um policial.
      Jaime esfrega o rosto se mostrando irritado para a garota.
      - OK, vou lhe dar mais um tempo para pensar, tudo bem pra você?
      Nessa hora o celular de Rafa toca.
      - Viu, isso nunca daria certo, meus clientes não deixariam a gente em paz.
      - Certo, mas, pense, por favor.
      Antes de sair ela se despede do policial com um beijo. Jaime a acompanha andando falando ao telefone. Rafa é uma garota sensacional. Corpo bonito, rosto de adolescente, um mulheraço que vem tirando o sono do investigador. Prates se apaixonou por ela. Nem Mesmo o fato de ser uma garota de programa atrapalha o que ele sente por ela. Tudo o que ele quer é tirá-la dessa vida e levá-la para sua casa como esposa. Tarefa difícil pois Rafa não se imagina mulher de família ainda mais esposa de um policial. Jaime ainda observa quando ela entra em um carro e se vai para mais um programa.

*

Próximo das oito da manhã o investigador estaciona seu veículo em frente ao bar café onde é de seu costume fazer o desjejum. Jaqueta marrom, calça jeans, botas pretas, cabelos claros cortados a máquina e olhos verdes chamativos, esse é Jaime Prates um experiente agente do setor de investigação da polícia. O lugar ainda não se encontra lotado porém com boa parte das mesas ocupadas. Jaime sempre preferiu o balcão onde ele pode conversar com o velho balconista sobre a rodada da semana.
       - Bom dia Jaime. – diz pegando uma xícara e a secando com o avental.
       - Bom dia Chico, viu o jogo ontem?
       - Pior que vi, eu sabia que seria empate.
       - Os jogos tem sido muito ruins. – saca o jornal de dentro da jaqueta.
       - Futebol hoje em dia não é mais o mesmo de antigamente. – enche a xícara com café. – vai querer pão na chapa também?
       - Por favor.
       O mesmo jornal de cinco anos atrás. A foto de Natália morta. A tristeza dos pais e a cara de coitado de Felipe Martins. Anos de angústia. Na época Jaime estava a frente de um outro caso. Enquanto investigava o sumiço do filho de um dos maiores empresário do país ele acompanhava o desenrolar do caso Natália Fagundes. O acusado foi considerado inocente e desde então Prates ainda não engoliu a sentença.
      Seu olhos circulam pelas duas fotos. Os pais de Natália abraçados no dia do sepultamento e Felipe saindo do tribunal ao lado de seu advogado com um sorriso de orelha a orelha. Seria válido pedir o desarquivamento do caso? Porque ele sente que a morte brutal da garota ficou por isso mesmo? Porque não há culpado?
      Ao terminar de tomar seu café da manhã o policial se despede de Chico e sai. Ainda decidindo se vale a pena ou não mexer no caso, Jaime decide fazer uma visita aos pais de Natália. Dentro do carro seu pensamento muda. Rafa então passa a ser o principal assunto. O que ela estaria fazendo nesse momento? Dormindo, com certeza. A vontade de ir até seu apartamento é grande mas ele a supera. Há um trabalho a ser feito e disso ele não abre mão.

*

A casa é de classe média. Os muros são altos e com cercas elétricas. Dois andares com pintura impecável. Jaime desce do carro mas antes ele olha ao redor. Cautela nunca é demais. Prates é um agente que não passa despercebido. Anda com pressa e aperta o interfone. Segundos depois uma voz metalizada soa.
- Quem deseja?
- Bom dia. Sou o investigador Jaime Prates, os senhores tem um minuto?
- Do que se trata?
     Jaime precisou pensar rápido em como responder a pergunta.
- Quero fazer justiça quanto a Natália.
     O que Prates temia aconteceu. Silêncio do outro lado do interfone. Sentindo que deu um passo em falso o investigador começa a se afastar do portão. Convencido de que sua ida até ali não passou de um ímpeto a voz metalizada volta o pegando de surpresa.
- Vou abrir o portão.
       O portão vai abrindo bem devagar, devagar até demais. Do lado de dentro da casa dos Fagundes é ainda melhor que a parte de fora. O jardim é bem cuidado e há uma pequena fonte onde a água não para de jorrar. Na porta da frente um senhor de mais ou menos 70 o aguarda.
        - Bom dia. – diz Prates.
        - Vamos entrando policial.
       O pai de Natália o conduz até a sala de visitas onde sua esposa se encontra. Jaime não pode deixar de observar a mobília. Tudo muito limpo e organizado e em tons claros. Ao ver o policial dona Angela se levanta.
- Não precisa se incomodar senhora.
       Fagundes puxa uma cadeira para Prates e depois uma para ele.
- Diga-nos investigador Jaime o que pretende fazer? – Angela parece aflita.
- Bom, por enquanto preciso me calçar, juntar provas, conversar com pessoas, agir dentro dos procedimentos, entendem?
- Aquele desgraçado matou nossa filha, desde então a nossa vida não foi mais a mesma. – Fagundes ruboriza de raiva. – a justiça falhou, Felipe Martins destruiu um sonho.
- Entendo a revolta, mas vamos devagar, Natália tinha algum envolvimento com Felipe?
      Os pais de Natália se olham.
- Não, acho que não. – diz Angela.
- Precisamos saber isso seria muito relevante.
- Verdade é que Natália nunca foi muito aberta conosco, nem mesmo com os namorados, ela terminava com um e arrumava outro e nem eu e nem Angela ficávamos sabendo. – diz de cabeça baixa.
- Tudo bem. Os senhores tem fotos de Natália com amigos?
- Sim, temos, vou pegar. – diz Angela deixando a sala.

*
Quem disse que é fácil a vida de uma garota de programa? Para atrair o maior número de clientes a produção começa assim que o dia amanhece. Rafa toma um café reforçado, mas não exagerado. Se arruma e parte para academia. Lá ela faz uma hora de exercícios aeróbicos e mais uma de malhação. Depois da academia ela parte para o salão onde trata dos cabelos, unhas e pele. Por mês é uma fortuna que se gasta, mas vale a pena.
        Depois do salão ela já está pronta para mais um dia de labuta. Vestido curto colorido colado ao corpo, cabelos balançando espalhando o perfume e sua minúscula bolsa pendurada no ombro. Rafa parte para mais um encontro com clientes sedentos por sexo.

*

Realmente Natália era uma garota linda. Branca, rosto redondo, cabelos negros cortados na altura dos ombros e um sorriso contagiante. Quem seria capaz de cometer tamanha brutalidade? Jaime analisa as fotos mergulhado em pensamentos. O pai da vítima olha para uma foto especifica onde Natália aparece ao lado dele no dia da festa de formatura.
- Foi uma noite onde todos se realizaram com ela. Minha filha era muito querida. – as lágrimas descem. – quem fez isso com ela merece cadeia, ou algo pior.
       Para poupar o velho Fagundes de mais sofrimento o investigador resolveu sair de cena.
- Vou mantê-los informados. Como eu falei, vou colher evidências, conversar com pessoas próximas, juntar material.
      Angela sai de trás do marido cruzando a conversa.
- Policial Jaime, encontre quem matou minha Natália, por favor. – diz com os olhos úmidos.
       Um pai sedento por justiça e uma mãe sem chão. E não é por menos. São cinco anos de pura agonia, cinco anos sem respostas, cinco anos sem ver o sorriso farto de Natália. Jaime Prates deixa a casa dos Fagundes mais disposto, mais profissional. Encontrar o assassino de Natália, essa será sua missão nem que seja a última coisa que fará na vida.

*

Dois toques na porta e Rafa aparece com aquele olhar sapeca que encantou o policial. A noite mal começou e eles já estão grudadinhos assistindo um filme dramático coisa que Jaime detesta. Rafaela ama esse tipo de filme, seus olhos ficam fixos na tela da TV enquanto a boca mastiga o chocolate trago pelo investigador.
      Jaime também olha para a TV, mas sua cabeça está longe. Natália. Ele não quer tocar no assunto com Rafa pois sabe que estragaria tudo o que planejou.
- Quando você fica mais de dez minutos sem se mover só pode está pensando em algo. A menina morta a cinco anos. Acertei?
      Não tem jeito. As mulheres possuem poderes. Elas sabem exatamente no que um homem está pensando.
- Eu não queria te encher com esse assunto.
- E porque não? – continua olhando para a tela.
- Fui a casa dos Fagundes hoje. Conversei com os pais da Natália. Acho que foi o primeiro de muitos passos a serem dados.
      Jaime contou como foi seu dia. Se Rafa escutou metade foi muito. Na realidade ambos queriam curtir o momento. É tão raro ficarem tanto tempo juntos. Eles não viram o final do filme. A noite de amor foi longa. A garota mostrou que curte ficar com ele quando desligou seu celular para que clientes não os perturbassem.

*

Cinco anos depois de ser acusado de torturar, estuprar e matar a jovem Natália, Felipe Martins conseguiu espantar de vez o fantasma que o acompanhava. Mesmo sendo provado de que ele não era o assassino, as pessoas que outrora andavam juntas com ele se afastaram, parecia que o rapaz tinha contraído uma doença contagiosa. Felipe perdeu amigos e também parcerias. Sua família é dona de uma das maiores empresas no ramo da construção. Suas lojas estão espalhadas em todo o território nacional. A vida seguiu em frente. Depois do tribunal, Felipe ainda fez faculdade, se formou em administração e hoje ajuda a tocar o negócio.
       Se antes ele não passava despercebido por ser um sujeito bonito, agora com sua “fama” Felipe atrai olhares e conversas ao pé do ouvido. Para ele o caso Natália Fagundes é página virada, mas para a maioria das pessoas ele é ainda aquele garoto que foi massacrado no tribunal.
       Felipe desce de seu carro em frente ao prédio onde fica o escritório da empresa. Alto, bem vestido, cabelos penteados com gel e camisa sem amassado. Um exímio homem de negócios ele se tornou. Antes de entrar ele ainda confere algo na pasta. Passa pela portaria e como sempre faz dá bom dia ao funcionário. Do outro lado da rua Jaime observa o rapaz. Tira algumas fotos no celular. Anota o endereço. Toma mais do café que a essa altura já está morno. Até agora nenhuma anormalidade. Hora de sair de cena. Prates paga a conta e se manda.

*

Hora do almoço. Os restaurantes, pensões e bares estão lotados. Até para entrar em certos locais fica mais difícil. Jaime se certificou onde Felipe costuma fazer suas refeições. Um restaurante muito modesto que fica alguns metros fora do centro. Logo na entrada uma mocinha de traços orientais o recepciona com uma sorriso sincero. Jaime se identifica como policial e passa por ela.
       Lá dentro o ambiente é altamente familiar. O cheiro da comida pelo menos lembra e muito o de sua vó materna. No salão as mesas forradas com toalhas brancas com a logo do estabelecimento nas pontas. Nada mal. Hora de ver os valores. O menu é trazido pelo garçom. Jaime observa ítem por ítem. Um pouco puxado, mas já que está na chuva...
- O prato do chefe, por favor.
      Jaime é muito observador. Claro, por isso ele entrou para a polícia. Enquanto aguarda a chegada de Felipe e de seu pedido ele não pode deixar de notar os quadros nas paredes. Dezenas de personalidades do meio musical que vai desde Nelson Gonçalves a Renato Russo. Legal.
      Felipe adentra junto com outros dois homens possivelmente sócios ou fornecedores. Eles ocupam a mesa que fica mais próximo do bar. Felipe é o mais falante. Fala, gesticula e ri. Jaime saca seu celular e disfarçadamente ele bate algumas fotos. Nesse meio tempo o pedido chega. O prato agradou os olhos, vamos ver no sabor.
- Vai beber alguma coisa senhor? – pergunta o garçom educadamente.
- Cerveja.
     Enquanto isso na outra mesa o bate papo continua animado. Felipe comanda a conversa sem dar chance aos outros. Ele esconde algo disso Prates tem certeza. Seria ele um namorado inconformado com o término do namoro? Ou um cara que tomou um NÃO e não suportou a ideia de ser ignorado? Ele esconde algo.

*

Dentro do DP Jaime observa as imagens do caso Natália Fagundes na tela do computador. Sua sala é pequena, mas tudo está bem organizado. Não há uma caneta sequer fora do lugar. No melhor jornal do país o caso foi tratado como algo de outro mundo. A foto de Natália na primeira capa já demonstra como sua morte repercutiu na época. O investigador vai descendo as imagens quando um outro agente entra sem bater.
-Grande Jaime. – fala mastigando um pedaço de sanduíche.
- Sua mãe não lhe deu educação?
- Qual a boa? – morde um pedaço generoso.
- Natália Fagundes. – aponta para a foto na tela.
      Marcão olha para o computador e depois puxa uma cadeira. Marcos é grande do tipo armário. Seu aspecto espanta quem o conhece pela primeira vez, mas depois passa a se acostumar com aquela figura enorme circulando para cima e para baixo no DP.
- Esse caso foi a cinco anos amigão. – termina com o sanduíche.
- Sim. – se vira para o colega de profissão. – ele foi arquivado por falta de provas, mas eu acho que o acusado tem culpa no cartório.
- E o que pensa em fazer, desarquiva-lo?
      Jaime meneia a cabeça.
- Você tá louco. O rapaz passou por um julgamento e foi provado sua inocência. Você acha que vão deixar você remexer na bosta? Ela pode voltar a feder. 
- Sim, é exatamente isso que eu quero, fazer a merda feder. Alguém matou Natália Fagundes e eu vou colocá-lo na cadeia.
     O gigante negro de dois metros de altura por dois de largura se levanta.
- Boa sorte.

*

Faltam apenas cinco minutos para o programa terminar e o cliente ainda não conseguiu chegar ao prazer. Rafa olha mais uma vez para o relógio e depois para o homem magro coberto de pelos pelo corpo esquelético.
- Acha que vai conseguir? – diz Rafa sem paciência ao homem em cima dela.
- Quero fazer valer a grana que gastei. – responde ofegante.
- Mas só faltam um minuto para acabar seu tempo, querido.
- Eu paguei por uma hora e ficarei uma hora, querida.
       Faltando trinta segundos o magrelo intensifica as penetrações e ejacula. Rafa sai debaixo dele que cai para o lado.
- Vai pagar no cartão ou no dinheiro? – se enrola na toalha.
- No dinheiro, é claro, imagina se vou dar mole para minha mulher descobrir.

*

Jaime dirige por uma via movimentada onde o trânsito é bastante pesado aquela hora da tarde. Sua mente não para de trabalhar um segundo sequer. Duas coisas ocupam seus pensamentos. Rafa é claro vem forte. Como ele gostaria de constituir uma família ao lado dela. Logo em seguida a menina morta e injustiçada. Natália. Como fazer justiça num país injusto? Se alguém não se levantar contra esse sistema que não pune, toda sociedade pagará muito caro.
      Um bom investigador sempre está disposto a revirar trincheiras, mexer nos entulhos, ir até as últimas se necessário for. Esse é Jaime Prates. Para fugir de outro congestionamento ele entra numa rua secundária cortando os bairros mais nobres. Seu próximo passo não será nada fácil. Será preciso muita cautela e também sangue frio. As duas coisas ele tem de sobra.

*

Antes de descer do carro o coração do policial já o alarmava. Uma construção inacabada. Um lugar remoto. Favorável a um assassino frio e calculista. Prates imagina aquele lugar a noite. Se durante o dia seria impossível alguém gritar e ser atendido ali, imagine altas horas da noite. O que seria um galpão para uma empresa armazenar suas máquinas se transformou num amontoado de ferro, folhas de zinco e pedaços grandes de madeira. Distante da rodovia o lugar realmente serve para desova. Pobre Natália.
      Jaime Prates caminha entre máquinas enferrujadas olhando cada ponto. O piso encardido, a cobertura que estala a cada vento que sopra. Tudo ali conspira a favor de um criminoso contra uma garota indefesa. No fundo há o que seria um banheiro. Pia, vaso sanitário, um espelho pela metade e um chuveiro. É bem possível que o assassino tenha se lavado ali.
       Não existe crime perfeito e Prates sabe disso, o criminoso sempre deixa algo para trás, é dever de um policial encontrá-lo. Ele deixa o banheiro e se dirige para onde o corpo de Natália foi encontrado. O assassino a levou para trás da pilha de madeira. Ela foi deixada ali, talvez ainda com vida, porém totalmente fragilizada e ferida. Foi estuprada, o desgraçado teve o cuidado de usar preservativo pois não encontraram sêmen. Jaime para exatamente no local e passa a observar minuciosamente todos os cantos. Uma prova, apenas uma maldita prova.

*

Frustração, essa palavra define bem o que Jaime sente no momento. Logo ele que tem no currículo casos desvendados onde a princípio não havia provas contundentes. Ele retira o celular do bolso da jaqueta e começa a bater fotos. Antes de registrar cada imagem ele ainda analisa o lugar. O investigador se inclina para obter melhor foco onde possivelmente Natália sofreu as torturas. Uma tábua de construção. Uma perfuração rasa. Jaime praticamente cola o rosto na tábua para poder enxergar direito. Sim, há uma perfuração, não de uma faca ou punhal, o que seria?
      Nada pode ser descartado, porém aquilo pode ser fruto de um péssimo armazenamento. Alguém pode ter feito ou encostado a tábua num objeto pontiagudo. Nada se descarta numa investigação. Prates volta a registrar imagens. Ele pega uma caneta e evidencia o ponto fazendo um círculo. Pronto. Agora é trabalhar pesado em cima da prova que tem.
*

A noite, Jaime um pouco mais a vontade em sua casa que fica na zona oeste volta a ler o jornal de cinco anos atrás. Mais uma vez a foto de Natália estampada. Como era bonita. Ele volta a ler a reportagem e em voz alta.
- “Mulher é encontrada morta em um galpão abandonado próximo da rodovia que liga a cidade a outro estado. Natália Fagundes foi torturada e possivelmente estuprada, o principal suspeito é filho do empresário Mário Martins, Felipe Martins”.
     Prates fecha o jornal. Reflete em tudo que leu. Repassa a ida até galpão. De bermuda e camisa regata preta o policial anda até a cozinha. Sua mente trabalha bastante e quando percebe ele já havia aberto a geladeira, pego um pedaço de lasanha e a colocado no microondas. Abre a geladeira mais uma vez.
- Preciso ir ao mercado.

*

Fazer compras nunca foi o forte de Jaime. Desde quando deixou a casa dos pais, ele sempre se virou sozinho comendo produtos alimentícios ou as vezes não comendo também. Morar sozinho tem lá suas desvantagens. Fazia tempo que ele não entrava num supermercado e é claro que ele não faria isso sozinho. Rafa foi solicitada para auxiliá-lo.
- Você precisa largar as comidas industrializadas e passar a cozinhar. – diz ela pegando verduras.
- E quando não se sabe cozinhar? – pega mais legumes.
- Ai você precisaria contratar uma cozinheira.
- Ou me casar.
       Mais uma vez o mesmo assunto. Isso incomoda e muito a garota. Ela realmente não entende como um cara como Jaime foi se apaixonar por uma prostituta a ponto de querer construir uma família com ela.
- Pensou um pouco? – Jaime empurra o carrinho.
- Tudo bem. Farei um jantar delicioso, depois podemos conversar, certo?
- Eu topo.
       O jantar foi excepcional. Rafa quando era uma adolescente sua vó a ensinou fazer um macarrão no alho e óleo digno dos deuses. Aliás, essa é a única receita que domina bem na cozinha. Eles jantaram com direito a um vinho ao som de canções antigas. Jaime é um saudosista de primeira.
- Você é um cara velho. – diz brincando com a taça.
- Por causa das músicas? – coloca mais vinho na taça dela.
- Também. – sorrir.
- Então, dona Rafaela, quer se tornar a senhora Prates?
       Rafa molha o dedo indicador no vinho e o oferece ao policial. Jaime permite que Rafa coloque o dedo em sua boca.
- Quer transar? – ela pergunta.
- Você ainda pergunta.

*

Jaime desperta depois de uma noite inteira de amor com a mulher que pediu a Deus. Ele olha para o lado e como sempre Rafa não está lá. Surpresa seria se estivesse. Hora de levantar para mais um dia cheio, só de pensar Prates já está cansado. Quem sabe começar com algumas visitinhas.

       Próximo das nove o investigador já está estacionando o carro no IML. Na portaria ele mostra seu distintivo. Jaime passa pelos corredores frios até chegar a sala do legista que trabalhou no caso Natália. A porta está entreaberta e Jaime apenas colocou a cabeça para dentro. Adilson Ferreira retira seus óculos de leitura e se levanta.
- Policial Prates?
- Adilson, como tem passado? – finalmente entra na sala.
      Adilson Ferreira é um negro magro beirando seu 60 anos mais que ainda é apaixonado pela profissão.
- Vamos chegando, a que devo a visita?
       Jaime abre a jaqueta e puxa o jornal e o joga sobre a mesa do perito. Adilson volta a por os óculos e se acomoda em sua cadeira.
- O caso Natália Fagundes. – diz Adilson ainda olhando para a foto no jornal. – um crime sem culpado, segundo a justiça.
- Disse bem. Segundo a justiça Natália Fagundes foi espancada, estuprada, morta e ninguém fez isso com ela.
- O caso foi arquivado e já faz cinco anos, não me diga que está investigando? – o perito volta a olhar para o policial a sua frente.
- Sim, por minha conta.
- Não sei se concordo com isso.
- Adilson. – puxa a cadeira e se senta. – você trabalhou no caso, você viu o estado do corpo, preciso que me diga os detalhes, por favor.
- Nossa. Foi terrível. O corpo da jovem foi moído, quem praticou o crime estava com ódio.
- Posso ver as fotos?
      Adilson se levanta e anda vacilante até os arquivos. Demora um pouco, mas encontra as pastas com as fotos.
- Trabalhei dia e noite para descobrir qual o instrumento usado para perfurar o corpo e não encontrei.
- Não foi um tipo de punhal?
- Não. – o perito organiza as imagens na mesa. – veja, cada ponto que evidenciei é um ferimento. Se fosse uma faca ou algo do tipo os ferimentos não teriam esse formato.
- Então?
- Os golpes foram dados por um instrumento pontiagudo, mais ou menos quarenta centímetros e da espessura de um dedo mínimo de um homem adulto.
      Nesse momento Jaime pega seu celular. Clica no aplicativo galeria e depois nas fotos que bateu onde Natália foi encontrada.
- Lembra que a policia não encontrou nada e alegaram que Natália foi deixada lá?
      Adilson afirma com um gesto de cabeça.
- Pois bem, eu aposto que ela foi morta no local. Vai passando as fotos, quero que você pense junto comigo.
       Pacientemente o velho perito vai subindo as imagens.
- Está vendo isso? Foi onde Natália foi morta. O assassino a levou para aquele lugar. Tenho certeza, houve resistência por parte da vítima.
- Sim. Conforme os exames, a garota teve diversas lesões no rosto, inclusive alguns dentes quebrados. – afirma Adilson.
- Natália lutou, sofreu até morrer, porém eu quero que se prenda a última imagem.
     Adilson ajeita os óculos de leitura, olha para a foto segurando o celular de Prates e depois olha para o mesmo.
- Consegue ver? – Jaime arqueia as sobrancelhas.
- Uma tábua?
- Sim, mas veja no canto do lado esquerdo.
- Uma perfuração. Isso pode ser qualquer coisa.
- Claro, mas foi qualquer coisa que deixaram prá lá. O instrumento que foi usado para matar Natália. Alguma coisa aconteceu e o objeto foi cravado na tábua, talvez um forte golpe tenha atravessado o corpo e o objeto tenha atingido a tábua.
- Negativo. Não havia evidências disso.
      Jaime para por alguns instantes e fica com o olhar perdido.
- Jaime, fizemos uma varredura lá e não achamos nada. Você é um bom policial, um dos melhores que já vi atuar, vá por mim, esse caso já passou...
- Adilson, algo me diz que Felipe Martins matou Natália e eu vou provar, vou juntar provas e pedir a reabertura do caso. Se existe um culpado, esse culpado vai para a cadeia. – se levanta.
- Desculpa se não pude te ajudar.
- Pelo contrário, você me ajudou muito. – estende a mão.
- Sucesso na investigação.

*

Em todos esses anos na polícia Jaime jamais esteve tão convicto. Ele sente que está no caminho certo. Voltando para o DP ele reorganiza seus planos. Quem sabe o advogado que defendeu Felipe possa dizer algo. Doutor Mendonça Filho, chegou a vez de lhe fazer uma visita. Com o trânsito mais leve ele pode pegar o retorno voltando para o centro.

O prédio onde fica o escritório de Mendonça Filho é simples, porém fica num dos melhores endereços da cidade. Sua fachada passou por uma reforma recentemente e isso ajudou bastante a valorizar o imóvel. Jaime dispensou o elevador, preferiu encarar os cinco andares de escada. Lá está ela, a porta de vidro onde há escrito com letras grandes “Advogado”. O policial toca duas vezes com os nós dos dedos chamando atenção da mocinha da recepção. Ela faz sinal para que ele empurre e entre.
- Olá, doutor Mendonça Filho se encontra?
- Quem deseja? – a voz da funcionária é ainda mais aguda que Jaime imaginou.
- Detetive Jaime Prates.
- Sim, mas, o senhor marcou com ele?
- Não.
- Vou ligar para ele. – ela aperta um único botão. - Doutor Mendonça, tem um policial aqui, posso mandá-lo entrar? Certo. – ela olha para Jaime. – pode ir.
- Grato.
      Assim que Jaime entra Mendonça Filho se levanta. Sem o paletó e usando uma gravata azul claro o advogado o recebe bem e sorridente.
- Sente-se, senhor?
- Jaime, Jaime Prates. – puxa a cadeira.
- Em que posso ser útil?
- O senhor acreditou mesmo que seu ex cliente, Felipe Martins era inocente?

*

A decepção no rosto do garoto é tão grande que Rafa se levantou da cama para confortá-lo. O cliente de 19 anos não conseguiu completar o serviço pois o nervosismo foi mais forte. Aborrecido, sentado no beirada da cama do motel o rapaz tem os cabelos acariciados pela prostituta.
- Fica calmo, isso acontece com todos os homens.
- Não com homens de 19 anos. Melhor eu ir embora. – se levanta para pegar a carteira. – quanto lhe devo?
- Coitadinho, aposto que juntou todas mesadas para fazer um programa legal comigo. Vem aqui, nenhum homem sai do programa com Rafa sem gozar, farei uma brincadeira e será por conta da casa.
*
- Aonde o senhor quer chegar com essa história detetive? – Mendonça relaxa na cadeira.
- Quero esclarecer esse caso. Eu não acredito na inocência de Felipe Martins.
- Detetive, isso foi a cinco anos, o rapaz foi inocentado no tribunal o que mais o senhor quer? – fala sem aumentar o tom de voz.
- Vou reabrir o caso e colocar o culpado na cadeia.
       Mendonça Filho abaixa a cabeça escondendo o sorriso.
- Policial Prates, modesta a parte sou um dos melhores advogados dessa cidade, jamais perdi uma causa, já defendi as figuras mais importantes desse mundo e agora o senhor vem ao meu escritório dizer que vai reabrir um caso meu arquivado a cinco anos? Isso é ridículo.
      A raiva faz o coração de Jaime acelerar e ele sentiu vontade de agredir aquele velho arrogante, mas se conteve.
- Ridículo é o senhor defender um assassino frio como Felipe Martins e torça para que eu não encontre nenhuma falcatrua, caso contrário mando o senhor e o seu cliente para o xadrez.
      Mendonça fuzila Jaime com os olhos.
- Se já terminou. – o advogado aponta para a porta. 

*

Felipe Martins é rico, sempre foi. O mal do século é o dinheiro, o poder. Ele sim é capaz de comprar quase tudo, até mesmo a inocência diante de um tribunal. Jaime agora precisa ser mais ousado, agredir para progredir nas investigações. Se realmente Felipe a matou ele fez tudo de caso pensado, eliminou as provas. O negócio é tirar essa história a limpo, ir direto na fonte.

- Por favor o senhor Felipe se encontra? – pergunta ao porteiro.
- Está com sorte, ele acabou de chegar. Quem é o senhor?
- Investigador de polícia Jaime Prates.
      O porteiro lança um olhar desconfiado para Jaime que saca seu distintivo do bolso da jaqueta.
- Vou interfonar.
      Jaime diz que sim com um gesto de cabeça. Enquanto interfona para o escritório de Felipe, o porteiro permanece olhando para Jaime e meneando a cabeça. O funcionário aciona o botão destravando a porta. Jaime passa pelo porteiro.
- Sala 501 quinto andar, ele está te esperando.
- Obrigado.
      No elevador o policial aproveita para se olhar no espelho e pela primeira vez ele percebe algumas rugas se formando na testa e embaixo dos olhos. A velhice chegando bem devagar.
       Finalmente o quinto andar. A sala 501 se encontra fechada com um olho mágico olhando para ele. Ao lado da porta na parede perto da fechadura a campainha é pressionada. Jaime aguarda um pouco. Felipe aparece com um sorriso enviesado.
- Pois não?
- Investigador Jaime, você tem um minuto? – mostra o distintivo.
- Se for mesmo um minuto.
        Tudo que há de mais moderno está naquela sala. Ampla, refrigerada, bem iluminada. A sala de Felipe cheira a doce. Em sua mesa um computador, porta caneta com dezenas delas, uma caneca vazia e pendurado logo atrás da mesa um belo quadro de uma cidade talvez fictícia.
      Felipe faz um gesto para que o policial ocupe a cadeira. Jaime sente a maciez e o conforto.
- O senhor deseja beber algo?
- Café.
      Martins se dirige a pequena máquina de café por cápsula.
- O que lhe trás aqui?
- Natália Fagundes.
      Ao ouvir o nome Natália Felipe deixa cair uma das cápsulas. Jaime percebe um ligeiro desconforto.
- Sim. – diz Felipe.
- Você a conhecia, não é mesmo?
      A pequena xícara quase transborda. Felipe pega dois sachês de açúcar e uma colher.
- Claro que não. Eu quase foi para a cadeia por um crime que não cometi. Nunca vi Natália na minha vida.
- Mas as investigações levaram até você.
- O senhor sabe que até hoje eu não sei porque eu apareci na linha das investigações.
- Também acho estranho. – toma do café. – então estamos diante de um crime sem culpado, um crime perfeito.
- Digamos que estamos diante de um crime que aconteceu a cinco anos e que o suspeito foi inocentado num tribunal. – ocupa sua cadeira.
      Mais uma vez aquela onda de raiva voltou a tomar conta do agente e ele precisou respirar fundo para não partir pra cima do filhinho de papai.
- A menina foi morta a golpes de um instrumento que ainda não conseguimos identificar. – diz olhando para o quadro atrás de Felipe. – uma moça jovem, bonita, dona de um corpo magnífico, qualquer um se apaixonaria por ela de primeira, você não acha?
      A resposta não vem logo. As palavras do policial ainda pairam no ar daquele escritório super moderno. Jaime volta a olhar para Felipe que se encontra de cabeça baixa.
- Eu fico imaginando o sofrimento dos pais dela. Meu Deus. – o empresário mexe nas canetas.
       Outra onda de raiva. Jaime sente a frieza que emana dele. Porém outro sentimento o incomoda. E se ele for mesmo inocente? Não. Isso não está certo, alguém precisa pagar pelo feito.
- O café estava bom, do jeito que eu gosto, senhor Felipe. E como vão os negócios?
- Uma loucura, mil coisas para fazer em pouco tempo, esse negócio é lucrativo porém tem seus contratempos.
- Bom. – se levanta deixando a xícara sobre a mesa. – vou pedir para reabrir o caso. Quero encontrar o culpado e algemá-lo, quero que ele passe seus dias no fundo do xadrez.
     Felipe se levanta para acompanhá-lo até a porta.
- Estou a disposição investigador Jaime e por favor me mantenha informado.
- Há, isso com certeza farei.
      Jaime deixa o escritório de Felipe um pouco mais convicto. Se realmente ele for o assassino ele é uma pessoa fria, um ser humano capaz de qualquer coisa. Felipe se mostrou um sujeito educado, disposto e não tirou os olhos do policial hora alguma.
     Ele entra no carro e antes de dar a partida Prates olha para a janela do escritório. Felipe não está lá mas ele sabe que está sendo observado. Tudo o que estava a seu alcance ele fez, resta apenas juntar as peças do quebra cabeça. Isso não será nada fácil.

*

A noite é agradável. No céu há poucas nuvens e isso ajuda o vento fresco a circular. Dentro do bar o cheiro de fritura e outras bebidas deixam o ambiente ainda mais propício aos casais apaixonados. Sentado tomado sua cerveja Jaime espera por Rafa que termina um programa num prédio em frente. O lugar não está cheio, ainda há mesas vazias. Aos poucos os frequentadores vão chegando e ocupando seus lugares.
      Vinte minutos depois Rafa chega esbanjando sensualidade e beleza dentro de um vestido branco decotado. Os olhares masculinos se voltam para ela deixando o policial enciumado.
- Vestida pra matar, hein. – Jaime comenta.
- Gostou, comprei hoje no shopping.
- Vai beber o que?
- Sei lá, que tal um chope?
- Ótima pedida. – ergue o braço chamando o garçom.
      Rafa se acomoda e cruza as pernas. Jaime fica hipnotizado com o par de coxas da garota, ela desperta nele o homem viril que é. O pedido não demora. Eles conversam, bebem, trocam olhares e até selinhos. Do lado de fora um sujeito careca de casaco marrom fuma brincando com a fumaça. Ele olha para o casal sentado perto do balcão jogando conversa fora. Verifica a hora e depois entra no carro. Antes de sair ele joga fora o cigarro ainda aceso.

Meia hora depois Rafa e Jaime deixam o bar. Abraçados e risonhos. A noite tem tudo para terminar com os corpos embaixo dos lençóis. Rafaela ocupa o banco do carona ainda rindo da última piada. Ele liga o carro e o manobra até sair na rua principal.
- Tem certeza, você achou mesmo a piada boa? – pisa no acelerador.
- Claro, quase fiz xixi nas calças.
     As risadas continuam. Rafa coloca sua mão entre as pernas do agente que precisa se concentrar para não perder o controle da direção.
- Já transamos dentro desse carro? – ela pergunta.
- Acho que não.
- Quer experimentar?
- Seria interessante.
     O carro para no semáforo. O casal segue com as propostas lá dentro quando outro veículo para ao lado. Jaime volta sua atenção para o carro vizinho e não consegue ver nada. Bem devagar o vidro vai descendo e Jaime já coloca a mão em sua arma. Ele pede para que Rafa se abaixe. Dois disparos e o carro avança o sinal. Prates levanta a cabeça.
- Você está bem? – pergunta a Rafa.
- Meu Deus, ele atirou mesmo.
- Desça, pegue um táxi, vou pegar esse desgraçado.
      A garota sai do carro e Jaime arranca com o carro. Um atentado contra sua vida, Prates jamais passou por isso antes. Metros a frente ele localiza o carro. Com a mão direita ele segura volante, com a outra sua arma. Tudo cuidado é preciso. Assim que percebe a aproximação do carro de Jaime o carro do terroristas acelera.
- Merda.
       Uma verdadeira corrida por ruas de baixo movimento naquele horário. O que preocupa são os transeuntes desavisados. O veículo bandido muda de faixa diversas vezes, se nada for feito um acidente pode acontecer. Quem é esse cara?
      Finalmente Jaime consegue alcançá-lo, mas evita a troca de tiros. O bandido força um capotamento jogando seu veículo contra o de Prates. Vendo que nada acontece o terrorista apela atirando. O vidro da janela do carona explode. Jaime perde o controle e bate contra a mureta que divide a via.
       O sujeito careca para o carro lentamente. Verifica a munição. Desce do carro e caminha em direção ao acidente. É possível ver Jaime debruçado sobre o volante desacordado. Faz a volta observando cada detalhe. Abre a jaqueta e pega um maço de cigarro já pela metade. Olha outra vez para o policial desmaiado dentro do carro. Vai até a porta do motorista e joga a fumaça contra o rosto de Jaime.
- Durma com os anjos.
      Coloca a arma na cabeça de Prates e quase no mesmo instante recebe uma forte cotovelada e é desarmado. Jaime sai do carro já desferindo outro golpe no rosto do careca.
- Quem é você, quem te mandou?
       Jaime se prepara para chutá-lo nas partes baixas, mas o mesmo bloqueia. O careca é um pouco mais alto e também mais forte. Ao bloquear o chute ele acerta um potente golpe com as costas da mão. Jaime sentiu bastante por isso ele sente uma sensação de desmaio. Não, ele não pode apagar, não agora. Outro soco e Jaime perde o equilíbrio e cai. Rolando para evitar novos ataques, Prates vai se mantendo vivo na briga.
      Depois de várias tentativas finalmente o careca consegue acertar um chute nas costelas do policial. Jaime perde o fôlego e vai rolando até sair do acostamento. Se apoiando ele se levanta. As trocas de socos é violenta e ruidosa. O cara é forte. Força faz toda diferença. Os golpes seguem até que o punho de Jaime acerta em cheio a têmpora do careca que vê seu adversário se duplicar.
     Vendo a vulnerabilidade do inimigo Prates lhe aplica um chute no peito. O homem cai com as costas no chão emitindo um som surdo. Ao cair ele abre sua jaqueta e saca um objeto comprido e pontiagudo com uma madeira como cabo. Sangrando, furioso ele se levanta tentando furar o policial.
- Coloque isso no chão. – ordena Prates.
      O careca investe contra Jaime sem hesitação. Outra tentativa de perfuração que passa em branco. Prates vai se afastando e conseguindo ângulo até que ele bloqueia outro golpe com um chute e com a outra perna ele arrebenta o rosto do careca que cai gemendo segurando o nariz. A arma branca é deixada de lado. Jaime pisa no peito do terrorista e depois pega o furador.
- Um estoque. – olha para a arma. – quem te mandou. – pisa mais forte.
- Me deixe em paz.
      Jaime Prates nunca excedeu os meios de arrancar uma confissão, porém depois de tudo que passou, hoje ele resolveu experimentar usar do artifício. Ele saca sua arma e a enterra no meio da testa do careca.
- Quero o seu nome e o nome de quem lhe enviou se não explodo sua cabeça. – vociferou.

*

Na sala de reunião onde Felipe escuta atentamente ao que seu futuro sócio fala sobre o mais novo investimento, no bolso o celular vibrar. Ainda olhando para o homem falado ele retira o aparelho do bolso. No visor um nome. Felipe fica agitado e pede a palavra.
- Com licença, eu preciso atender uma ligação, me desculpe. – diz se levantando e indo em direção a porta.
       No corredor vazio ele atende.
- Fala Simão, péssima hora para ligar eu estou no meio de uma reunião.
- Poxa, me desculpe Felipe, o Simão está um pouco ocupado no momento.
- Mas quem está falando?
- Aqui é o policial que você mandou matar, na próxima vê se envia alguém profissional.
      O estômago de Felipe se revira e ele sente fortes náuseas. Sua cabeça gira e é preciso se apoiar na parede.
- Agora por favor, desça, nem pense em fugir, seu prédio está cercado.
   Na calçada do prédio aguardando a saída do empresário, Jaime, Marcão e mais alguns agentes olham atônitos para a portaria. Marcão sai de dentro da viatura para fazer companhia ao investigador.
- Será que o desgraçado vai descer ou tentar suicídio?
- A essa hora ele deve estar ligando para Mendonça Filho.
       Momentos depois Felipe aparece na portaria segurando uma pasta executiva e falando ao telefone. Ele olha para o policial negro gigante ao lado de Jaime e depois diz.
- O senhor não pode me prender, não há provas contra mim e só falarei na presença do meu advogado.
- Sempre o mesmo discurso, agora entre na viatura.

*

Jaime teve o pedido de reabertura do caso Natália Fagundes aceito. Felipe Martins é conduzido a sala de interrogatório onde permanece calado diante do investigador. Alguém bate na porta e sua entrada é autorizada. Mendonça Filho se acomoda ao lado do cliente.
- Fique calmo, ainda hoje estará em casa. – fala ao pé do ouvido de Felipe.
- Eu não estaria tão certo disso doutor, seu cliente enviou um matador para a execução de um agente de polícia, isso é muito grave.
- Devo informá-lo investigador que o meu cliente...
- O seu cliente também é acusado da morte de Natália Fagundes.
- O senhor insiste com esse assunto, Felipe foi inocentado perante um tribunal. Caso encerrado.
      Jaime se levanta.
- Mandei reabrir o caso, tenho provas mais que o suficiente para colocar esse seu cliente na cadeia, ele mandou matar Natália.
     Mendonça Filho olha para Felipe que abaixa a cabeça.
- Como tem tanta certeza, investigador? – o tom de voz agora é mais calmo e pausado.
       Jaime retira do bolso da jaqueta seu celular. Abre o aplicativo de gravador de voz e busca nos arquivos a confissão de Simão. Mendonça e Felipe escutam calados as delações do matador contratado.
      “ Ele me contratou para te executar” “ele quem? Fale logo” “Felipe, Felipe Martins, ele ficou com medo que você fosse longe demais com o caso da garota, por isso me chamou, outra vez” “como assim, te chamou outra vez?” “fiz um serviço para ele faz cinco anos, ele mandou dar um sumiço numa tal de Natália” Jaime interrompe o áudio e olha para Felipe.
- Você mandou matar Natália Fagundes, esse áudio vai parar nas mãos do juiz que vai dar a sentença, tanto Simão quanto você vão apodrecer na cadeia. – faz uma pausa para que suas palavras causem efeito. – agora me diga, porque mandou matá-la?
      Mendonça Filho se prepara para sair em defesa do cliente quando o mesmo o impede. Nos olhos as lágrimas transbordam e na voz o embargo.
- Ciúmes. Mandei matá-la por puro ciúme. Eu estive uma vez com ela. Eu me apaixonei logo de cara. Quando descobri que ela estava se interessada em outro cara. Eu nem me declarei para ela, fiquei com aquele sentimento dentro de mim por dias.
- Até que pensou, se não for minha não será de mais ninguém, não é mesmo?
      Felipe abaixa a cabeça na tentativa de esconder as lágrimas. Mendonça Filho apenas mexe na caneta.
- Você não queria sujar suas mãos, por isso contratou um “profissional” para fazer o serviço. – Jaime se aproxima da mesa onde estão os dois. – o que você não esperava era o crime brutal que foi, Natália foi estuprada, Simão a levou a exaustão, você sabia?
      Felipe coloca uma das mãos na boca.
- Na tentativa inútil de sobreviver ela lutou por isso foi espancada e finalmente morta a golpes de estoque.
- Já chega, detetive. – Mendonça se levanta. – meu cliente já fez a parte dele.
- Vale lembrar, doutor, que ele mandou matar um agente da polícia que está investigando o caso, ou seja, Felipe Martins não terá êxito dessa vez.
       Mendonça Filho olha para o seu cliente que continua a chorar e depois para Jaime.
- Terminei por aqui, agora é com o juiz.

*

Mais uma vez Felipe Martins está diante de um tribunal e dessa vez a história é outra. Seus pais assistem ao juiz lhe dando a sentença com olhares soturnos enquanto que os de Natália vibram mesmo que em silêncio. O caso com certeza repercutirá em todas as mídias e finalmente se fará justiça.
     Felipe saiu do tribunal direto para penitenciária assim como Simão. Do lado de fora os pais da jovem morta agradecem ao investigador.
- Minha filha agora pode descansar em paz. – diz Fagundes abraçado a esposa.
- Nossa vida não faria sentido se só o mal vencesse, não é mesmo?
- Tem razão, Jaime. Diz a mãe de Natália.
      Eles se despedem. Jaime entra em seu carro onde Rafa está sentada mexendo no celular.
- Nossa você já virou noticia, veja.
      “Finalmente o caso Natália Fagundes tem desfecho feliz graças a eficiência do detetive Jaime Prates “ Jaime dá de ombros e sorrir.
- Talvez agora você queira se casar com um homem famoso. – sai com o carro.
- É um caso a se pensar, mas no momento eu quero ir para cama com um homem famoso. 
FIM