terça-feira, 12 de outubro de 2021

Último Sangue

 


Último Sangue

 

 A quinta binga de cigarro voou para fora do carro espalhando centelhas e caindo na calçada. Dentro do veículo, Heber se controla ao máximo para não puxar outro do maço.

   — Vício é uma merda mesmo. – balbuciou.

   Já é noite e ele resolve sair para esticar um pouco as pernas. Quem disse que matador tem vida fácil? Para o trabalho dessa noite ele precisou chegar cedo, sondar o lugar mais de uma vez e aguardar o melhor momento. Trabalhar para Vanil é ao mesmo tempo lucrativo e também muito arriscado. Caso haja falha na execução, você, será o executado. Heber Dias não é qualquer um matador de aluguel, não se encontra alguém como ele na esquina. Heber já foi segurança de vários chefões do crime, já executou membros importantes das grandes organizações criminosas e isso inclui políticos. Por essa e outras razões Vanil o convocou. O serviço saiu um pouco caro, mas também pudera, Emiliano Dourado não é um bandidinho de beira de rua. Mesmo aos oitenta poucos anos o sujeito ainda inspira cuidados.

    Quando ainda estava na ativa, Emiliano foi considerado o dono de toda uma cidade, todos o respeitavam e o temiam. Seu grupo mafioso assaltou bancos, financiou campanhas da maioria dos políticos que hoje governam o país, comandou execuções de rivais, enfim, Dourado foi praticamente um tipo de “ O poderoso chefão”. Todos queriam sua benção. Menos Vanil é claro. Vanil tenta ser hoje o que Emiliano foi no passado, o rei do crime, o imperador sanguinário. Sim, ele almeja esse poderio. Porém, para que tudo isso se concretize Vanil precisa tirar Dourado de cena. Heber foi o primeiro nome cogitado e sem objeções foi aceito. Simplesmente o melhor profissional da morte da atualidade.

     Pois é, matar um velho de oitenta anos parece ser uma tarefa fácil. E é. Isso quando esse velho não é Emiliano Dourado. Apesar de não ser mais o pesadelo dos grupos rivais, Dourado ainda é um lobo, carrega com ele o instinto de caçador implacável. Assim que voltou para dentro do carro, Heber se pós a pensar. O que se passa na cabeça de um sujeito como Emiliano? Desejar passar o que restou de sua vida numa singela casa, num bairro tão modesto. Coisa de idoso mesmo. Mais um cigarro.

    — Lá vamos nós outra vez. – murmurou acendendo.

    Ao soltar uma considerável quantidade de fumaça o matador se pegou pensando no futuro, ou melhor, no seu futuro. Ser o protagonista de uma morte tão polêmica pode lhe acarretar sérios problemas como também elevar seu status às alturas. Heber Dias, o homem que pôs um ponto final na trajetória do inigualável Emiliano Dourado, séria o máximo. Por outro lado, com a saída de Dourado, uma guerra pode ter início.  O trono estará disponível e chefes de outros grupos criminosos irão se devorar para assumir o lugar e isso inclui Vanil. Lobo contra lobo, será uma batalha fantástica.

 

*

 

Não está uma noite muito agradável. O ar é morno, sufocante, faz com que a pele fique pegajosa. Irritante. Heber desceu do carro e andou devagar os trezentos metros até a casa onde seu alvo se encontra. Na cintura a Taurus 1911 só aguardando o momento de cuspir fogo. Heber tem um grande apreço por essa arma. Ela pertenceu a seu avô que também foi assassino de aluguel, mas isso é uma outra história. O portão da casa é de madeira, a mais vagabunda do mercado. O murro é alto, mas possível de ser escalado. Quem diria, o astro maior do crime morando nisso, pensou indo para trás de uma árvore. A casa é uma escuridão só. Hora de velho estar na cama mesmo. Esse tipo de trabalho cansa bastante mentalmente, você precisa estar atento a tudo, suspeitar de sua própria sombra. Seu inimigo pode brotar de qualquer lugar, te surpreender de várias maneiras. Antecipação, esse é o lema de Heber.

     Não há câmeras, isso já foi sondado pelo matador a dias. Heber usou o muro da casa vizinha para pular. Assim que atingiu o chão seu joelho direito reclamou, resultado de uma vida regada a fast food. Não há um verde sequer no quintal, todo ele foi cimentado. A Taurus saiu da cintura e agora é apontada para todos os cantos e lugares. Sem cachorro, sem seguranças, sem nada, realmente o velhote quer paz e sossego, pensou alcançando a garagem onde há um Corolla prata empoeirado. A porta que dá acesso ao corredor que leva até a cozinha possui um trinco pequeno, desses vendidos em feiras livre. Foi fácil. Tudo a noite se torna tenebroso, sombrio, principalmente um corredor. Das têmporas escorre um suor denso que empapa o pescoço. A porta da cozinha. Trancada, óbvio senhor Heber. Mais ao fundo o portãozinho da área de serviço. Aberto. Máquina de lavar, cuecas, uma toalha secando no varal de chão e outras tranqueiras. Uma janela perto do tanque. Heber a forçou para dentro e ela cedeu. Diminuiu a pressão para que as partes não batessem na parede pelo lado de dentro. Como uma serpente o matador entrou.

    Mesmo escuro, Heber pode reparar na organização da casa, tudo se encontra em seu devido lugar. Ele deve pagar uma faxineira para fazer o trabalho, imaginou. A sala é pequena, mas todos os móveis foram colocados de forma que um senhor de idade consiga transitar sem perigo de tropeçar e cair. Tudo perfeitamente calculado. O cômodo ainda trás no ar o cheiro da camomila recém preparada. Agora a atenção deve ser redobrada, os quartos escondem muitas coisas. Mal Heber encostou na maçaneta a porta se abriu revelando um cômodo vazio, exceto por um quadro com palmeiras desenhadas ao por o sol pendurado a cima onde deveria existir uma cama. Fora isso o quarto está totalmente vazio, cheirando a mofo inclusive. Vamos ao próximo. Trancado. É bem provável que Emiliano durma ali. Nervoso, transpirando bastante, o assassino da máfia começa a sentir cheiro de armadilha no ar. Heber deu uma conferida no horário. Em seu relógio digital marca quinze para as três da manhã de uma sexta-feira tão esperada por muitos. É preciso acabar de vez com isso.

     Heber saiu da sala e andou com a Taurus em punho até sua outra parte. Estante com inúmeros livros, enciclopédias, porta retratos e algumas caixas de remédios jogadas. Emiliano Dourado deve fazer dessa parte da casa um tipo de escritório ou coisa parecida. Bem ao lado da estante há uma porta que estranhamente se encontra entreaberta. Heber engoliu seco antes de colocar o cano da arma para dentro do cômodo desconhecido. Escuro, abafado e aparentemente vazio. Quando os olhos de Heber se ajustaram a escuridão ele pode notar algo no meio do que seria um quarto. Sim, só podia ser ele, o próprio Emiliano Dourado, sentado em sua cadeira de rodas tomado por um sono quase mortal. As pernas do matador fraquejaram. Sua mão alcançou o interruptor jogando luz naquele lugar sem vida.

     Lá estava ele, o ex rei do crime, o mais temido entre todos os mafiosos do país, Dom Emiliano Dourado. Chegou sua hora desgraçado, pensou. Heber se pôs a frente do velho com sua arma apontada para ele. Aos poucos Emiliano foi despertando do sono tentando identificar a figura que o olhar com um sorrisinho torto.

      — Ah, quem é você, como entrou aqui? – voz típica de idoso já cansado.

      — Você vale ouro, Emiliano Dourado. – zombou. – hora de dormir para sempre. – colocou o cano da Taurus na testa enrugada do ancião.

      — Eu já estava dormindo. Pra falar a verdade, se o médico estiver certo, daqui algumas semanas eu estarei morto. – tossiu. – fique a vontade se quiser adiantar o processo.

      — Não espere piedade da minha parte, você sabe muito bem porque vai morrer assassinado, não sabe? – pressionou ainda mais o cano.

      — Sim, claro que sei. – olhou para Heber com os olhos já cobertos pela catarata. – fui um homem que matou e mandou matar. Eu tinha os maiores e piores assassinos trabalhando exclusivamente para mim. Mandei e desmandei nos governos e até nos batalhões de polícia eu tinha moral. Agora estou aqui, perante você. Aqui se faz, aqui se paga. Vamos nessa, faça o que veio fazer. Posso saber ao menos o seu nome, filho?

     — Não sou seu filho e meu nome não interessa.

     — É um direito teu, mas saiba de uma coisa, na minha época, todos os matadores de aluguel revelavam seus nomes antes de finalizar o trabalho, era como se fosse um tipo de assinatura. Entende? Eu gostaria de saber o nome do homem que vai me tirar dessa vida bandida.

    — Heber. – falou de forma rápida.

    — Heber Dias? – apertou os olhos.

    — Exatamente.

    — Ouvi falar de você. – sorriu. – você é dos bons. Para quem está trabalhando?

    Heber já estava ficando irritado com tantas perguntas, mas essa ele fez questão de responder.

     — Vanil.

     Emiliano tirou os olhos do matador e de repente seu olhar perambulou pelo cômodo. Heber pode ver o quão frágil Dourado se tornou. Cabelos brancos e ralos. Rosto sulgado com manchas avermelhadas espalhadas. Até na forma de se vestir ele mudou. Para pior. Uma jaqueta verde que serviria para cobrir dois Emilianos o cobre ocultando suas mãos. E por falar em agasalho, o velho mafioso não para de tremer. Esse Emiliano em nada mais lembra o Emiliano do passado. Um pobre idoso abandonado, jogado no canto para morrer.

     — Vanil. Tivemos nossas divergências. – voltou a tossir. – mandei matar vários de seus capangas, arruinei diversos de seus planos e é claro, roubei dele milhões. Ele tem lá seus motivos. – voltou a olhar para Heber ainda com a Taurus em sua testa. – quanto cobrou?

      Agora ele foi longe demais. Por que eles se tornam tão intransigentes?

     — Quero saber quanto estou valendo a essa altura da vida. – sua expressão se petrificou.

     — E isso importa? – trancou os dentes.

     — Pra mim muito. – fez uma pausa. - jovem, eu fui o maioral, temido, respeitado até pelo presidente da república, se alguém lhe pagou para estar aqui agora, é justo que eu saiba quanto.

     Eles ficaram se encarando por alguns segundos. Nesse curto tempo muitas coisas se passaram na mente de Heber, inclusive lembranças de seu avô. O cano da arma parou de pressionar a testa do velho deixando uma marca profunda. Ele tem esse direito?

 

*

 

O assassino profissional voltou a assumir o controle e novamente a Taurus se encontra fazendo uma nova marca na testa de Emiliano. Era para ser um serviço rápido e não uma entrevista. Heber sentia o frio do gatilho quando o velhote lhe pediu algo.

    — Me coloque de pé. Quero morrer de pé, com honra.

   Dias arqueou uma das sobrancelhas. Tudo certo. Vamos nessa então. Não custa nada atender o último pedido de um idoso pé na cova. Heber o segurou com a mão livre e sentiu seu tremor. Por estar muito emagrecido, a jaqueta parece cobrir somente ossos, sem contar que ela é realmente alguns números maior que o manequim de Emiliano. Sim, agora o ex mafioso está de pé. Tremendo, mas de pé. Morrer com honra. O que adianta ter uma morte digna? Morte será sempre morte, pensou dando uma certa distância do alvo. O velho bandido olhou para a arma e depois para Heber.

     — Posso dizer uma última coisa? – ergueu o braço direito coberto pela enorme manga da jaqueta. Da saída da mão um disparo que acertou em cheio a cabeça de Heber que desabou para trás. Emiliano arregaçou a manga da jaqueta revelando um revólver Taurus 817 ultralite de sete tiros. – eu ia dizer que eu também tenho uma Taurus, só que em tamanho reduzido. – atirou acertando o peito do assassino já morto. – Lino, já pode aparecer. – vociferou.

     Lino, segurança particular do velho, um negro alto, corpulento, entrou em cena segurando uma calibre doze indo de encontro ao patrão que mesmo com dificuldade em se locomover pisou no peito do cadáver e cuspiu.

     — Viu, Lino, eu falei que eles viriam me pegar, mas agora chega, estou cansado demais para guerras. – colocou a mão no ombro largo do guarda costas. – esse foi meu último ato como assassino, meu último sangue derramado. Chega. Todas as noites sou assombrado por eles. – apontou a pequena arma para o corpo. – providencie um voo para fora do país. FIM