Último
Sangue
A quinta binga
de cigarro voou para fora do carro espalhando centelhas e caindo na calçada.
Dentro do veículo, Heber se controla ao máximo para não puxar outro do maço.
— Vício é uma
merda mesmo. – balbuciou.
Já é noite e
ele resolve sair para esticar um pouco as pernas. Quem disse que matador tem
vida fácil? Para o trabalho dessa noite ele precisou chegar cedo, sondar o
lugar mais de uma vez e aguardar o melhor momento. Trabalhar para Vanil é ao
mesmo tempo lucrativo e também muito arriscado. Caso haja falha na execução, você,
será o executado. Heber Dias não é qualquer um matador de aluguel, não se
encontra alguém como ele na esquina. Heber já foi segurança de vários chefões
do crime, já executou membros importantes das grandes organizações criminosas e
isso inclui políticos. Por essa e outras razões Vanil o convocou. O serviço
saiu um pouco caro, mas também pudera, Emiliano Dourado não é um bandidinho de
beira de rua. Mesmo aos oitenta poucos anos o sujeito ainda inspira cuidados.
Quando ainda
estava na ativa, Emiliano foi considerado o dono de toda uma cidade, todos o
respeitavam e o temiam. Seu grupo mafioso assaltou bancos, financiou campanhas
da maioria dos políticos que hoje governam o país, comandou execuções de
rivais, enfim, Dourado foi praticamente um tipo de “ O poderoso chefão”. Todos
queriam sua benção. Menos Vanil é claro. Vanil tenta ser hoje o que Emiliano
foi no passado, o rei do crime, o imperador sanguinário. Sim, ele almeja esse
poderio. Porém, para que tudo isso se concretize Vanil precisa tirar Dourado de
cena. Heber foi o primeiro nome cogitado e sem objeções foi aceito.
Simplesmente o melhor profissional da morte da atualidade.
Pois é, matar um velho de oitenta anos parece
ser uma tarefa fácil. E é. Isso quando esse velho não é Emiliano Dourado.
Apesar de não ser mais o pesadelo dos grupos rivais, Dourado ainda é um lobo, carrega
com ele o instinto de caçador implacável. Assim que voltou para dentro do
carro, Heber se pós a pensar. O que se passa na cabeça de um sujeito como
Emiliano? Desejar passar o que restou de sua vida numa singela casa, num bairro
tão modesto. Coisa de idoso mesmo. Mais um cigarro.
— Lá vamos
nós outra vez. – murmurou acendendo.
Ao soltar
uma considerável quantidade de fumaça o matador se pegou pensando no futuro, ou
melhor, no seu futuro. Ser o protagonista de uma morte tão polêmica pode lhe
acarretar sérios problemas como também elevar seu status às alturas. Heber
Dias, o homem que pôs um ponto final na trajetória do inigualável Emiliano
Dourado, séria o máximo. Por outro lado, com a saída de Dourado, uma guerra
pode ter início. O trono estará
disponível e chefes de outros grupos criminosos irão se devorar para assumir o
lugar e isso inclui Vanil. Lobo contra lobo, será uma batalha fantástica.
*
Não está uma noite muito agradável. O ar é morno,
sufocante, faz com que a pele fique pegajosa. Irritante. Heber desceu do carro e
andou devagar os trezentos metros até a casa onde seu alvo se encontra. Na
cintura a Taurus 1911 só aguardando o momento de cuspir fogo. Heber tem um
grande apreço por essa arma. Ela pertenceu a seu avô que também foi assassino
de aluguel, mas isso é uma outra história. O portão da casa é de madeira, a
mais vagabunda do mercado. O murro é alto, mas possível de ser escalado. Quem
diria, o astro maior do crime morando nisso, pensou indo para trás de uma
árvore. A casa é uma escuridão só. Hora de velho estar na cama mesmo. Esse tipo
de trabalho cansa bastante mentalmente, você precisa estar atento a tudo,
suspeitar de sua própria sombra. Seu inimigo pode brotar de qualquer lugar, te
surpreender de várias maneiras. Antecipação, esse é o lema de Heber.
Não há
câmeras, isso já foi sondado pelo matador a dias. Heber usou o muro da casa
vizinha para pular. Assim que atingiu o chão seu joelho direito reclamou,
resultado de uma vida regada a fast food. Não há um verde sequer no quintal,
todo ele foi cimentado. A Taurus saiu da cintura e agora é apontada para todos
os cantos e lugares. Sem cachorro, sem seguranças, sem nada, realmente o
velhote quer paz e sossego, pensou alcançando a garagem onde há um Corolla
prata empoeirado. A porta que dá acesso ao corredor que leva até a cozinha possui
um trinco pequeno, desses vendidos em feiras livre. Foi fácil. Tudo a noite se
torna tenebroso, sombrio, principalmente um corredor. Das têmporas escorre um
suor denso que empapa o pescoço. A porta da cozinha. Trancada, óbvio senhor
Heber. Mais ao fundo o portãozinho da área de serviço. Aberto. Máquina de
lavar, cuecas, uma toalha secando no varal de chão e outras tranqueiras. Uma
janela perto do tanque. Heber a forçou para dentro e ela cedeu. Diminuiu a
pressão para que as partes não batessem na parede pelo lado de dentro. Como uma
serpente o matador entrou.
Mesmo escuro,
Heber pode reparar na organização da casa, tudo se encontra em seu devido lugar.
Ele deve pagar uma faxineira para fazer o trabalho, imaginou. A sala é pequena,
mas todos os móveis foram colocados de forma que um senhor de idade consiga
transitar sem perigo de tropeçar e cair. Tudo perfeitamente calculado. O cômodo
ainda trás no ar o cheiro da camomila recém preparada. Agora a atenção deve ser
redobrada, os quartos escondem muitas coisas. Mal Heber encostou na maçaneta a
porta se abriu revelando um cômodo vazio, exceto por um quadro com palmeiras
desenhadas ao por o sol pendurado a cima onde deveria existir uma cama. Fora
isso o quarto está totalmente vazio, cheirando a mofo inclusive. Vamos ao
próximo. Trancado. É bem provável que Emiliano durma ali. Nervoso, transpirando
bastante, o assassino da máfia começa a sentir cheiro de armadilha no ar. Heber
deu uma conferida no horário. Em seu relógio digital marca quinze para as três
da manhã de uma sexta-feira tão esperada por muitos. É preciso acabar de vez
com isso.
Heber saiu
da sala e andou com a Taurus em punho até sua outra parte. Estante com inúmeros
livros, enciclopédias, porta retratos e algumas caixas de remédios jogadas.
Emiliano Dourado deve fazer dessa parte da casa um tipo de escritório ou coisa
parecida. Bem ao lado da estante há uma porta que estranhamente se encontra
entreaberta. Heber engoliu seco antes de colocar o cano da arma para dentro do
cômodo desconhecido. Escuro, abafado e aparentemente vazio. Quando os olhos de Heber
se ajustaram a escuridão ele pode notar algo no meio do que seria um quarto.
Sim, só podia ser ele, o próprio Emiliano Dourado, sentado em sua cadeira de
rodas tomado por um sono quase mortal. As pernas do matador fraquejaram. Sua
mão alcançou o interruptor jogando luz naquele lugar sem vida.
Lá estava
ele, o ex rei do crime, o mais temido entre todos os mafiosos do país, Dom
Emiliano Dourado. Chegou sua hora desgraçado, pensou. Heber se pôs a frente do
velho com sua arma apontada para ele. Aos poucos Emiliano foi despertando do
sono tentando identificar a figura que o olhar com um sorrisinho torto.
— Ah, quem
é você, como entrou aqui? – voz típica de idoso já cansado.
— Você
vale ouro, Emiliano Dourado. – zombou. – hora de dormir para sempre. – colocou
o cano da Taurus na testa enrugada do ancião.
— Eu já
estava dormindo. Pra falar a verdade, se o médico estiver certo, daqui algumas
semanas eu estarei morto. – tossiu. – fique a vontade se quiser adiantar o
processo.
— Não
espere piedade da minha parte, você sabe muito bem porque vai morrer assassinado,
não sabe? – pressionou ainda mais o cano.
— Sim,
claro que sei. – olhou para Heber com os olhos já cobertos pela catarata. – fui
um homem que matou e mandou matar. Eu tinha os maiores e piores assassinos
trabalhando exclusivamente para mim. Mandei e desmandei nos governos e até nos
batalhões de polícia eu tinha moral. Agora estou aqui, perante você. Aqui se
faz, aqui se paga. Vamos nessa, faça o que veio fazer. Posso saber ao menos o
seu nome, filho?
— Não sou
seu filho e meu nome não interessa.
— É um
direito teu, mas saiba de uma coisa, na minha época, todos os matadores de
aluguel revelavam seus nomes antes de finalizar o trabalho, era como se fosse
um tipo de assinatura. Entende? Eu gostaria de saber o nome do homem que vai me
tirar dessa vida bandida.
— Heber. –
falou de forma rápida.
— Heber
Dias? – apertou os olhos.
—
Exatamente.
— Ouvi falar
de você. – sorriu. – você é dos bons. Para quem está trabalhando?
Heber já
estava ficando irritado com tantas perguntas, mas essa ele fez questão de
responder.
— Vanil.
Emiliano
tirou os olhos do matador e de repente seu olhar perambulou pelo cômodo. Heber
pode ver o quão frágil Dourado se tornou. Cabelos brancos e ralos. Rosto sulgado
com manchas avermelhadas espalhadas. Até na forma de se vestir ele mudou. Para
pior. Uma jaqueta verde que serviria para cobrir dois Emilianos o cobre ocultando
suas mãos. E por falar em agasalho, o velho mafioso não para de tremer. Esse
Emiliano em nada mais lembra o Emiliano do passado. Um pobre idoso abandonado,
jogado no canto para morrer.
— Vanil.
Tivemos nossas divergências. – voltou a tossir. – mandei matar vários de seus
capangas, arruinei diversos de seus planos e é claro, roubei dele milhões. Ele
tem lá seus motivos. – voltou a olhar para Heber ainda com a Taurus em sua
testa. – quanto cobrou?
Agora ele
foi longe demais. Por que eles se tornam tão intransigentes?
— Quero
saber quanto estou valendo a essa altura da vida. – sua expressão se
petrificou.
— E isso
importa? – trancou os dentes.
— Pra mim muito.
– fez uma pausa. - jovem, eu fui o maioral, temido, respeitado até pelo
presidente da república, se alguém lhe pagou para estar aqui agora, é justo que
eu saiba quanto.
Eles
ficaram se encarando por alguns segundos. Nesse curto tempo muitas coisas se
passaram na mente de Heber, inclusive lembranças de seu avô. O cano da arma
parou de pressionar a testa do velho deixando uma marca profunda. Ele tem esse
direito?
*
O assassino profissional voltou a assumir o controle e
novamente a Taurus se encontra fazendo uma nova marca na testa de Emiliano. Era
para ser um serviço rápido e não uma entrevista. Heber sentia o frio do gatilho
quando o velhote lhe pediu algo.
— Me coloque
de pé. Quero morrer de pé, com honra.
Dias arqueou
uma das sobrancelhas. Tudo certo. Vamos nessa então. Não custa nada atender o
último pedido de um idoso pé na cova. Heber o segurou com a mão livre e sentiu
seu tremor. Por estar muito emagrecido, a jaqueta parece cobrir somente ossos, sem
contar que ela é realmente alguns números maior que o manequim de Emiliano.
Sim, agora o ex mafioso está de pé. Tremendo, mas de pé. Morrer com honra. O
que adianta ter uma morte digna? Morte será sempre morte, pensou dando uma
certa distância do alvo. O velho bandido olhou para a arma e depois para Heber.
— Posso
dizer uma última coisa? – ergueu o braço direito coberto pela enorme manga da
jaqueta. Da saída da mão um disparo que acertou em cheio a cabeça de Heber que
desabou para trás. Emiliano arregaçou a manga da jaqueta revelando um revólver
Taurus 817 ultralite de sete tiros. – eu ia dizer que eu também tenho uma
Taurus, só que em tamanho reduzido. – atirou acertando o peito do assassino já
morto. – Lino, já pode aparecer. – vociferou.
Lino,
segurança particular do velho, um negro alto, corpulento, entrou em cena
segurando uma calibre doze indo de encontro ao patrão que mesmo com dificuldade
em se locomover pisou no peito do cadáver e cuspiu.
— Viu, Lino,
eu falei que eles viriam me pegar, mas agora chega, estou cansado demais para
guerras. – colocou a mão no ombro largo do guarda costas. – esse foi meu último
ato como assassino, meu último sangue derramado. Chega. Todas as noites sou
assombrado por eles. – apontou a pequena arma para o corpo. – providencie um
voo para fora do país. FIM