Falcão Peçanha 2
A mão grande, rústica e úmida do sequestrador aperta
com força a pequena boca da jovem Larissa que, mesmo sabendo que seu agressor é
infinitamente maior e mais forte, tenta manter a resistência. Após horas
trancada naquele lugar sujo, fedido e o que é pior, sem circulação alguma de
ar, Larissa se viu vivendo seus últimos momentos de vida assim que um homem
usando uma máscara de borracha de zumbi entrou no que ela julga ser um quarto.
Ele trancou a porta e imediatamente a circulação de ar fresco assim como a de
desinfetante barato foi cortada o que ajudou a piorar ainda mais as coisas.
Olhando para ela e sem emitir som, ele sacou do cós de trás da calça uma faca
de cozinha e a apontou para ela.
— O que quer de mim? — o indagou gaguejando.
Sem muita cerimônia o sequestrador andou em sua
direção e a encurralou no canto da parede. Larissa Oliveira é uma menina de
apenas quinze anos, franzina, incomum para o biótipo da maioria das meninas da
mesma idade hoje em dia. Ela tentou afasta-lo, mas o frio do metal da arma
branca pressionando sua testa a fez pensar duas vezes. O único jeito foi gritar
e fazer com que sua voz infante atingisse qualquer ouvido atento ou desatento.
Larissa foi violentada e o desgraçado não se importou com seus gritos e
grunhidos e ao final de tudo ele ainda a agrediu com a faca.
O mais revoltante de tudo isso foi o fato da família
ter aceitado às exigências e já ter feito a entrega do montante. E
mesmo assim a pobre Larissa teve sua virgindade maculada pelo monstro. No
mesmo instante ele pode ver o quão frágil é o ser humano. Encolhida em posição
fetal, vestida apenas com sua blusa suja e rasgada, Larissa sente o sangue
escorrer por entre suas pernas e isso a fez chorar ainda mais alto.
— Ora, ora, minha cara menina. Foi tão ruim assim?
Lógico que foi. Foi péssimo. Meninas de quinze anos
ainda são crianças e dificilmente pensam em sexo. O desgraçado deixou o quarto
sob seu pranto infantil e isso parecia soar como música aos seus ouvidos.
*
Amo ser policial. Adoro fazer parte de casos onde meu
intelecto é acionado e obrigado a funcionar em sua potência máxima. Fragoso me
pôs a frente do caso Larissa Oliveira e aqui estou eu. Para ser sincero meus
pensamentos no momento se encontram divididos, partidos em três partes iguais.
Isso não é bom. Raquel, Marta e é claro, minha missão. Eu decidi ter uma
conversa séria com minha namorada já faz dois dias e decidimos voltar. Foi
bastante estranho. Tudo ficou acertado entre nós, porém paramos por aí. Não
houve uma comemoração habitual, tipo: sexo. Nós nos beijamos rapidamente. Eu
disse que a amava e isso foi tudo. Fui embora feliz da vida.
Marta Lima, minha magrinha preferida. A perita dos
meus sonhos e desejos. Confesso que fiquei viciado nela. Impossível deixá-la pra
lá. Sei que estou errado. Tenho ciência do risco que corro em de repente ficar
sem nenhuma das duas, mas... Será que o que sinto por Marta é amor de verdade
ou somente tesão? Não consigo descrever. Para se ter uma ideia, nessa mesma
noite a qual me reconciliei com Raquel, eu voltei para a casa de Marta e lá
fizemos um sexo selvagem que durou quase que a noite inteira. Marta é viciante.
Agora estou aqui, ao lado de Anderson e Maria
Oliveira, pais da pequena Larissa aguardando o desenrolar dos fatos. Desde
quando cheguei não desgrudei do rádio comunicador. Tudo foi preparado para
efetuarmos a prisão sem pôr em risco a vida da vítima. Olhei em direção a
cozinha e lá estavam os dois. Mãos dadas sobre a mesa. Pareciam rezar ou coisa
parecida. O tempo todo foi assim.
— Chamando, base. — chamou o rádio.
— Falcão Peçanha na escuta.
— O pacote se encontra a salvo, mas perdemos o alvo.
Eu não estava acreditando. Os pais de Larissa Oliveira
ao ouvirem a notícia se ajoelharam aos prantos.
— Tudo bem, zero dois. E ela está bem, sofreu algum
ferimento?
— A princípio não, zero um.
— Ciente! Leve-a para o hospital mais próximo, nos
encontramos lá.
— Copiado!
Fim de pesadelo, mas eu estava prestes a mergulhar em
outro. Encontrar o sequestrador.
*
Nada melhor para um agente da lei do que proporcionar
momentos saborosos para aqueles que confiaram em seu trabalho. O reencontro de
Larissa com seus pais foi um dos poucos que me deixaram com lágrimas nos olhos.
Fragoso repousou sua mão pesada em meu ombro direito já rasgando em elogios a
minha equipe e a mim.
— Bom trabalho, garoto.
— Obrigado, chefe. Estamos a disposição. — cruzei os
braços.
— Segue a missão, não é?
— Positivo.
— Já tem algo em mente?
— Com certeza. Vou só aguardar o resultado do exame e seguir
com o caso.
Rubens caminhou sentido ao estacionamento ainda
falando comigo.
— Me mantenha informado.
Fragoso é um baita capitão. Feliz de quem tem um líder
assim, que confia em sua capacidade. Diferente de outros, Rubens lhe dar
liberdade para fazer seu trabalho. Tudo o que ele quer é ficar informado a cada
passo dado por seus liderados. Disso ele não abre mão. Eu permaneci ali, diante
da alegria daquela família comum, mas cheia de um amor que não lhes cabia no
peito. Será que um dia conseguirei constituir uma assim também?
— Policial, Falcão Peçanha. — disse o pai. — Deus
abençoe você e sua equipe.
— Amém! — foi só o que veio em minha mente na hora. —
o trabalho ainda não acabou, pelo menos não para nós. Vou conversar com sua
filha depois, mas só depois.
Apertamos às mãos.
*
Eu resolvi relaxar o restante do dia. Tinha muito o
que fazer, porém, a vontade de estar com minha enfermeira predileta falava mais
alto naquele momento. Entrei no carro. Respirei fundo e dirigi de maneira
automática até o hospital onde ela trabalhava.
Na calçada saquei meu celular e fiz uma ligação
esperando não ser atendido ou ser atendido e em seguida me pedirem para
retornar mais tarde. Por incrível que pareça Raquel me atendeu ao segundo
toque.
— Oi!
— É, oi. Atrapalho?
— Não! Estou desocupada agora.
— Jura? Que milagre. — brinquei meio receoso.
— Menino, acredita que, até eu estou surpresa.
O meu coração começou a bater um pouco mais forte e
isso era um bom sinal.
— Desce aqui. — pronto, falei.
— Você está aqui, no hospital?
— Estou! — engoli seco.
— Dois minutos.
No primeiro momento dei aquela enroladinha básica de
bom xavequeiro. Senti que Raquel estava impaciente. Na verdade, a bicha queria
o mesmo que eu.
— Lauro, Lauro. Você é um policial e sabe mais do que
qualquer um que, fazer sexo em locais públicos é cadeia na certa.
— O que a senhorita me recomenda então?
Eu a essa altura já estava explodindo.
— Liga o carro. Conheço um lugar.
Como eu havia falado no início, Raquel e eu reatamos o
namoro, porém não o coroamos com uma boa noite de prazer. Ficamos separados
poucos dias, mais foi o suficiente para entendermos que, o que nos une é bem
maior que o sexo. A enfermeira é sem sombra de dúvidas uma mulher incrível. Um
ser humano digno de amor e ternura.
— Preciso voltar agora para o plantão, já devem ter
sentido minha falta no setor. — disse ajeitando o rabo de cavalo.
— Promete que logo mais teremos o segundo tempo?
— O segundo, o terceiro, quarto. — me beijou.
*
Feliz. Eu estava transbordando de felicidade.
Preocupado também, afinal de contas, eu ainda tinha um assunto pendente. Marta
Lima, a perita das pernas hipnotizantes. Claro que fui ao seu encontro no I.M.L
de Natalina. Assim que encostei meu veículo numa das vagas, de forma repentina,
fui assolado por um nervosismo que me fez parar por alguns segundos antes de
abrir a porta. É, Marta tem essa capacidade de deixar qualquer um —
principalmente seres do sexo masculino — desconsertado ao pensar nela. Se eu já
me sentia assim somente em imaginar, o que dirá daqui a alguns minutos quando
estarei frente a frente com a beldade.
Antes de bater na porta eu já ouvia o som
inconfundível do solo de guitarra da banda internacional favorita de Marta. The
Scorpions sempre fez parte de sua trilha sonora enquanto trabalha e é uma das
principais em sua playlist. Penso eu que, isso é uma forma de espantar os maus
fluidos daquele lugar sinistro.
— Vamos entrando. — vociferou.
— Posso te atrapalhar só um pouco?
Ela abandonou sua prancheta azul transparente ao lado
do cadáver e abriu os longos braços.
— Você nunca atrapalha, meu anjo.
Essa fala me deixou emocionado, apesar de já esperar
por isso.
— A que devo a visita de meu namorado em meu local de
trabalho, em pleno expediente?
As declarações de Marta não estavam me ajudando em
nada, pelo contrário. Fui obrigado a mudar de ideia em cima da hora.
— Fiquei com saudades.
Nos beijamos e tudo o que eu havia previsto e temido
aconteceu. No beijo de Marta há um tipo de encantamento impossível de não ser
dominado por ele. Eu a queria mais, muito mais.
— Não estou gostando nada desse negócio. Se às coisas
continuarem dessa forma, vou acabar ficando mal acostumada.
Fui covarde. Minha intenção indo ali era de pôr um
ponto final em toda nossa história e, no entanto, lá estava eu como um menino
transbordando hormônios envolvido pelos braços da garota amada.
— E como vai o caso Larissa Oliveira?
Agradeci por ela ter mudado de assunto.
— Progredindo. Eu ainda preciso ter uma conversa com
ela. Farei isso ainda essa semana. Por enquanto estamos no encalço de um
sequestrador sem um rosto, sem suspeitos e o que é pior, não temos pista alguma
dele.
— Eu não gostaria de estar em sua pele. — ela havia
voltado ao trabalho.
— Nem eu.
Marta ficou em silêncio analisando o corpo do homem
negro por alguns segundos.
— Procure fazer as coisas devagar. Como meu chefe
costuma dizer às vezes: um problema de cada vez.
*
Um problema por vez. Resolvi tomar para mim esse velho
conselho e seguir com a investigação que estava só no começo. No dia seguinte,
antes ir ao hospital, acomodei-me em minha cadeira no departamento policial,
queria por às coisas em ordem, principalmente em minha mente. Iniciei a
organização recapitulando cada ocorrido desde quando a pequena Larissa foi
levada. Sim, eu precisava de um tempo só para mim, isso era fundamental.
Primeiro ela é levada. Vinte quatro horas depois o
sequestrador fez seu primeiro contato com a família e como não podia ser
diferente, houve exigências. A essa altura minha equipe e eu já havíamos
montado nossa central de monitoramento na sala da residência dos Oliveiras.
Toda conversa foi gravada. Vale a pena ressaltar o quanto Anderson e Maria
Oliveira confiaram em nosso trabalho, foram dias de muita tensão e além de policiais
no exercício de suas funções, não foram poucas às vezes em que tivemos que
atuar como psicólogos.
Ficou decidido que a família pagaria o resgate e assim
foi feito. Tivemos que acreditar na promessa de que ele não mataria a menina
assim que recebesse o dinheiro. Em seu último contato ele deu sua palavra que a
menina estaria no local combinado e assim ocorreu. Lógico que tudo isso soou
estranho para mim, mas o que importava era ver Larissa de volta ao lar com seus
pais.
Pensamentos em ordem. Hora de entrar de vez na
investigação. Eu tinha um sequestrador circulando livremente por aí e isso não
seria o principal fator das minhas noites em claro. Recolhi meus pertences e
sai.
*
Na chegada ao hospital o clima já não era o mesmo de
antes. Anderson tinha o rosto vermelho e ele não parava de apertar a mandíbula.
— O desgraçado abusou dela.
— Mais que merda.
Estava bom demais para ser verdade. Não há boa vontade
quando se trata de um bandido. Ele não a liberaria assim tão fácil.
— Posso falar com ela?
— Vá lá. — Anderson parecia uma bomba prestes a
explodir.
A conversa foi entre mim e Larissa e mais ninguém. Sua
mãe se mostrou irredutível, mas foi convencida pelo marido a se retirar do
quarto. A menina tinha às mãos trêmulas. Isso mexeu demais comigo.
— Me ajude a por esse monstro na cadeia. Me diz o que
você lembra.
— Ele usava o tempo todo uma máscara terrível. — a
fala da garota era baixa rápida.
— Que tipo de máscara?
— De zumbi, feita de borracha.
— Você consegue lembrar de algo em específico, tipo:
tatuagem, sinal, manchas...
Larissa começou a chorar e na mesma hora seus pais
invadiram o quarto.
— Desculpe não poder te ajudar, tio.
— Não faz mal, minha linda. Por hoje chega. Peço que,
se lembrar de algo a mais, entrem em contato comigo.
— Pode deixar, detetive. — respondeu à mãe.
*
Às vinte horas Raquel e eu fazíamos amor no quarto da
casa dela. Como eu precisava daquilo. Ou melhor, como eu precisava de Raquel em
minha vida outra vez. A enfermeira dos meus sonhos foi bem apesar do meu
desempenho. Como bloquear algo que martela em sua cabeça quase que sem parar?
De um lado a investigação e do outro, Marta Lima. Chega a ser covardia, dois
contra um.
— E aí, Falcão Peçanha, vamos pro segundo tempo lá no
chuveiro?
— Nossa, tudo isso é saudade?
— Você está mais lento, o que houve, problemas no
trabalho? — Raquel se envolveu no lençol.
— Alguns.
Na verdade, eu não queria esticar o assunto, o dia já
havia sido estressante o suficiente.
— O sequestro da garota Larissa Oliveira, acertei?
Pois é, Raquel mais uma vez se mostrou imprescindível
em minha vida.
— Em cheio! Acredita que o miserável a violentou mesmo
com o dinheiro em mãos? Eu não posso deixar essa passar de jeito nenhum. Nem
que eu tenha que revirar Natalina do avesso, mas eu acho esse merda.
— O nosso trabalho na área da saúde não é muito
diferente de uma investigação policial. Quase sempre precisamos voltar no ponto
inicial e dali traçarmos um plano.
Voltar ao ponto inicial. Como não havia pensado nisso
antes? Sem perceber a minha enfermeira havia assinado o título de mulher da
minha vida.
— Vá para o banheiro e me espere lá, tenho que fazer
uma ligação urgente. — peguei meu celular.
— Uau! Gosto de vê-lo motivado.
*
Minha equipe me aguardava no local combinado. Dez
agentes escolhidos a dedo por Fragoso e por mim. O plano era: averiguar os
pontos e locais prováveis e não prováveis onde um sequestrador queira fazer de
cativeiro. Para isso, tivemos que voltar ao lugar onde Larissa foi deixada por
ele.
— Bom dia, senhores. — desci do carro. — vamos nos
dividir em duplas. Ajustem os rádio para o canal dois.
— O que estamos buscando, Falcão? — perguntou Guedes.
— Usem o faro policial de vocês. Não temos pistas e
muito menos sabemos como o cara é, então...
— Com todo o respeito, Lauro, acho perda de tempo, nem
sabemos se é aqui o lugar. — despejou Lima.
— Verdade. Estou aberto a outros planos.
Não houve manifestação.
— Algo me diz que esse bandido ainda está aqui. Lima,
você será minha dupla. Vamos.
*
Anderson e Maria observam o sono da única filha e
esperam que o mesmo seja reparador e tranquilo, diferente dos últimos dias.
Desde quando deu entrada no hospital, Larissa vem sofrendo de insônia e quando
consegue dormir tem pesadelos. Apesar da revolta que o consome, Anderson se
agarra ao que vem lhe mantendo de pé desde o terrível dia do sequestro. Sua fé.
A família Oliveira é sim, religiosa, seguidora dos princípios espirituais e
deles não abrem mão de jeito algum.
— Deus te abençoe, filha. — rogou Maria.
— Venha, vamos comer algo lá em baixo.
Assim que deram às costas para o leito o grito de
Larissa ecoou pelo quarto.
*
O desgraçado havia pensado em tudo mesmo. Com o
dinheiro que pegou do resgate daria para viajar para outro estado ou abrir um bom
negócio na cidade. Nada disso ele fez. Lima e eu fizemos um levantamento sobre
compras realizadas nos últimos dias de terrenos, veículos importados e até
imóveis. Tudo dentro da normalidade. Sujeito esperto.
— O melhor a ser feito é voltarmos para o departamento
e...
Meu celular tocou. Dei graças a Deus por isso, eu já
não aguentava mais ouvir meu parceiro reclamando.
— Falcão Peçanha na escuta.
— Detetive, Lauro, sou o Anderson Oliveira, a Larissa
lembrou de algo importante.
— Muito bom. Coloque-a na linha por gentileza.
*
A ordem foi uma só. Toda equipe foi deslocada para a
região onde supostamente Larissa foi mantida em cativeiro. De uma coisa eu não
poderia esquecer. Rubens Fragoso, nosso capitão. Assim que encerrei minha
conversa com Larissa, foi para ele que liguei.
— Você está certo disso, Lauro?
— Temos que tentar, capitão, estamos na desvantagem.
— Tudo bem. Estou com o mapa da cidade aberto e
realmente há uma pequena construção recentemente edificada.
— Segunda a menina, o cheiro de material de limpeza,
tipo desinfetante e detergente era bastante presente.
— Ótimo! Deixe-me fazer uma busca no Google.
Não demorou muito para Fragoso retornar com o
resultado de sua pesquisa.
— Bingo! A aproximadamente dois anos construíram uma
pequena fábrica de produtos de limpeza de forma irregular nessa região. Vá para
lá agora mesmo.
— Positivo!
Muito bom! Agora tínhamos uma pista. Poderia não ser
muita coisa, mas para uma investigação que até então seguia no escuro, ela
valia ouro a essa altura. Lima conduzia a viatura em silêncio, sem reclamar e
eu forçando minha mente a trabalhar em seu nível máximo. Quando chegamos ao
local verifiquei mais uma vez se a arma em meu coldre se encontrava em
condições de uso. Lima fez a mesma coisa.
— Presta atenção. Vamos lá dar uma olhada. Diga ao
restante do pessoal que se espalhem. Não sabemos com que tipo de gente estamos
lidando. Copiado?
— Copiado, zero um. — pegou o rádio.
Tivemos que seguir a pé pelo caminho de cascalho. O
mato não estava tão alto, mas mesmo assim atrapalhava bastante o caminhar, sem
falar dos insetos. Sacamos nossas armas e ao chegarmos perto da cerca de arame
farpado nos separamos. Lima pela direita e eu a esquerda muito rente ao mato.
Havia uma vala negra onde era possível ver nuvens e nuvens de mosquitos. Senti
minha nuca se arrepiar. Lima havia desaparecido de vista quando avistei um
homem vindo pelo mesmo caminho de cascalho. Ele carregava uma bolsa grande,
dessas de viagem na cor preta. Acenei-lhe.
— O senhor trabalha aqui?
Ele olhou para minha arma e em seguida ergueu os
braços.
— Eu não fiz nada, sou apenas o vigia, tenho família
para sustentar.
— Calma! – eu não conseguia falar, o homem parecia uma
matraca.
— Esse lugar já não está mais funcionando. O dono me
paga para cuidar das coisas aqui.
— Qual o seu nome?
— Charles, Charles Porto.
Dava pena. O homem tremia o corpo inteiro,
principalmente as pernas, bem provável que fosse um pobre coitado explorado por
gente suja.
— Muito bem! Seu Charles, o senhor consegue abrir
o galpão para mim?
— Consigo, sim.
Ele abriu a bolsa com uma certa dificuldade devido à
tremedeira nas mãos. Charles era um sujeito magro, branco com a pele queimada
pelas horas de sol escaldante. Voltei a olhar para a frente da fábrica quando
minha visão escureceu. A partir desse ponto eu não me lembro de mais nada.
*
A primeira coisa que senti ao acordar foi o gosto do
sangue que escorria do ferimento em minha testa. A segunda coisa, e essa sim,
me deixou apavorado. Charles havia levado minha pistola e possivelmente matado
Lima com ela. Atordoado, me levantei e andei com cuidado até a parte de trás do
galpão. Sentia a adrenalina circulando a todo vapor dificultando até a minha
respiração. O que fazer se Lima estivesse morto ou sob a mira de uma arma?
Faltou pouco para que o golpe dado pelo cabo da arma
não causasse um aprofundamento de crânio sério em Lima. Seu rosto encontra-se
desfigurado e banhado por sangue.
— Cabeça dura a sua. — sorriu se afastando.
— É crime hediondo matar um policial. — gemeu ao tentar
ficar de pé.
— Não me diga, é mesmo? — desdenhou. — então faremos o
seguinte; eu não te mato e você me deixa ir. Temos um acordo?
Lima não conseguia raciocinar direito. Todo seu corpo
e principalmente a cabeça latejava desesperadamente.
— Não vai conseguir ir tão longe, seu imbecil, você
está sendo procurado.
— Cuidado com o que fala meu camarada, lembrando que
eu tenho duas armas. Agora vire-se de costas, uma paralisia vai sair barato
para você.
— Não ficará impune seu monte de merda, estuprador,
safado.
Charles Porto mirou, bem no centro das costas, um
pouco a baixo dos pulmões. Atirou, mas não acertou, isso porque ele foi
atingido na nuca por uma pedra lançada pelas mãos de Falcão Peçanha. Assim como
diz o velho ditado: quem não tem cão, caça como gato. Ou seja, sozinho. Um
policial precisa contar com a sorte de vez em quando ou pelo menos tentar criar
oportunidades para que ela aconteça. Foi o que Lauro fez. A pedrada sacolejou o
cérebro do bandido o deixando sem norte por preciosos segundos. Falcão Peçanha
não estava pleno de sua forma física, mas avançou contra o sujeito mesmo assim.
Dois bons cruzados e em seguida uma rasteira tirando os dois pés de Charles
Porto do chão.
— Boa, Lauro. — gritou Lima.
Uma das armas foi chutada em direção ao parceiro e a
outra presa embaixo dos sapatos do detetive.
— Você está preso, Charles, não tente resistir.
Lima aproximou-se com sua arma em punho. Seu estado
era preocupante.
— Você está bem?
— Vou ficar. — respondeu aplicando um forte chute nas
costelas do sujeito já rendido.
— Já chega! — vociferou Lauro. — vamos levar esse
bosta embora. Levanta, vamos.
*
Tudo o que uma pessoa de má índole precisa é de
oportunidade. Charles Porto realmente havia sido contratado para tomar conta do
galpão. O dono da fábrica de produtos de limpeza também responde na justiça por
fabricação ilegal de detergentes, desinfetantes entre outros produtos. Charles
fazia do seu local de trabalho seu lar, ou melhor, seu esconderijo onde ele
praticava seus crimes. Além de sequestrador ele também era pedófilo. Guardados
dentro daquela bolsa havia celulares contendo fotos e vídeos de crianças, além
do dinheiro do resgate. Larissa Oliveira infelizmente foi a única a sofrer nas
mãos daquele monstro. Charles Porto jamais havia sequestrado ou estuprado
alguém. Mente vazia oficina do diabo.
Graças a Deus os resultados dos exames deram negativos
para qualquer tipo de doença sexualmente transmissível, mas o que realmente me
preocupava era a saúde mental da menina. Espero que os pais saibam como lidar
com as possíveis crises que ela terá — espero do fundo do coração que não
tenha. Deixamos o hospital mais aliviados, os pais da garota não paravam de
elogiar minha equipe e a mim.
— Detetive Lauro, obrigado por tirar aquele cidadão
das ruas. — falou Anderson.
— Sua menina teve um papel fundamental nessa
investigação. — olhei para ela abraçada a mãe.
— Espero que ele apodreça na cadeia. — rosnou Maria.
Nos despedimos ali. Antes de voltar para o DPN fui até
o outro hospital visitar meu parceiro. Eu ainda sentia os efeitos da pancada em
minha testa, mas nada que me preocupasse. Lima, sim, me deixava preocupado.
Sempre liderei equipes formadas por excelentes profissionais e nunca precisei
visitar nenhum deles numa unidade hospitalar. Como dizem os mais velhos: sempre
tem a primeira vez, então vamos nessa.
— Fala, aí, meu parceiro. — eu disse abrindo a porta
do quarto.
— Chefia.
Meu nervosismo triplicou ao ver sua esposa sentada no
pé do leito. Quanta responsabilidade a nossa. Somos agentes da lei. Possuímos
autoridade e portamos armas. Combatemos criminosos, porém, atrás de um policial
uniformizado há uma família que espera por ele diariamente. Minhas pernas
tremeram.
— Como vai, Rose?
— Ah! O pior já passou.
— Cuide desse sujeito, Natalina precisa de heróis como
ele. — apertamos às mãos.
— Ah! Para com isso. Você salvou a minha vida e
eu sou grato por isso. Valeu cara.
— Já, já você terá alta. Aproveita os dias que o
capitão deu de folga para curtir com a família.
— Fragoso é o cara mesmo.
Lima tinha razão. Rubens Fragoso era realmente o cara.
Ele liberou todos que trabalharam comigo no caso Larissa Oliveira por pelo
menos uma semana. Vibramos, é claro, precisávamos desse tempo. Eu
principalmente. No caminho de volta para o DPN liguei para Marta Lima. Mais uma
vez tentei encerrar o nosso lance e fracassei. O que há de errado em mim? A
conversa terminou comigo marcando mais um encontro em sua casa depois do
expediente dela.
Assim que saí do departamento policial fui direto para
casa contar as novidades para dona Jurema Falcão Peçanha, deixá-la atualizada
quanto Raquel e eu.
— Que bom para vocês.
Minha mãe mal tirava os olhos da TV.
— Vou pedi-la em casamento.
Mamãe girou o pescoço lentamente em minha direção
boquiaberta.
— Jura?
— Juro! — eu estava ruborizado.
— Vem aqui, conte tudo para mamãe. — desligou a TV.
Foi legal vê-la sorrir. Desde a morte do meu pai,
minha coroa, por mais que seja uma mulher incrível, ela se sente sozinha.
Realmente havia passado da hora de fazê-la feliz outra vez. FIM.