Já
Pode Beijar a Noiva
1
Desde
quando foi pedida em noivado até o dia de hoje se passaram dois
longos anos. Hoje, nada, nem ninguém vai atrapalhar o tão esperado
dia em que Débora entrará pelas portas da catedral para se
encontrar com Antônio, seu grande amor, o homem com quem dividirá
sua vida. Sim, a vendedora de roupas e universitária colocará um
anel no dedo de seu amado selando o que ao longo de cinco anos foi
dito por eles. Amor eterno.
O
dia da noiva começou cedo, mais ou menos as seis da manhã com
Débora descendo os cinco andares de escadas de seu prédio na zona
Oeste para sua habitual corrida de vinte voltas na praça. Loira,
alta, olhos verdes, Débora não passa despercebida por ninguém,
principalmente pelos homens. Sempre quando corre usando sua roupa de
malhação seus ouvidos são poluídos de galanteios que vão desde
os mais carinhosos até o mais chulos. Algo normal na vida de uma
mulher bonita de corpo e de rosto.
A
primeira missão do dia foi completa, Vinte voltas entorno da praça.
Ela volta para o seu apartamento quando recebe uma ligação.
-
Oi? - coloca a toalha e a garrafinha de água em cima da mesa de
centro.
-
Oi, bom dia! Estou ligando para agendar a última prova do
vestido, pode ser as duas da tarde?
-
Sim, pode. - retira a blusa suada.
-
Certo, está agendado então. Obrigado e tenha um bom dia.
Ela
corre para o banheiro onde mentalmente repassa todo o roteiro desse
dia apertado. Manicure, cabeleireiro, última prova do vestido,
enfim, uma gama de coisas e pouco tempo para tudo isso. Só de pensar
ela já está cansada. Mas e Antônio? O que ele está fazendo nesse
exato momento? Dormindo? Provavelmente que não. Com certeza ele já
deve está no salão providenciando tudo o que falta. Débora sai do
chuveiro enrolada numa toalha minúscula, pega o celular e disca o
número de seu futuro marido. Dois toques e Antônio atende ofegante.
-
Oi querida?
-
Oi, bom dia, como passou a noite?
-
Bem, quer dizer, ansioso, pra falar a verdade eu só dormi
algumas horas, e você?
-
Eu dormi feito uma pedra, eu quase perco a hora da corrida, acredita?
-
Que bom que descansou, eu já estou aqui no salão
resolvendo as coisas, não quero que nada saia errado no nosso grande
dia.
-
Eu te amo!
-
Também te amo.
Hora
de passar na manicure. Enquanto se arruma, Débora se recorda de
quando sua tia se casou. Foi um dia agitado, estranho, a noiva não
parava de falar um instante. Sofia ficava entre dar ordens e gritar
ao telefone com seu noivo que sempre deixava as coisas para última
hora, tio Mauro sempre foi um homem lerdo, porém um encanto de
pessoa. Cinco anos mais tarde uma doença terrível o tirou do
convívio de sua família. Foi um baque que quase levou Sofia a
loucura. Hoje graças a Deus ela superou a perda e construiu outra
família com Otávio, o galã. Ela sai em disparada com o carro sem
dá seta, coisa que irrita Antônio que evita deixar que ela conduza
o carro.
-
Você ainda vai matar alguém. - ela repete as palavras de seu noivo.
2
Igreja
lotada. O estacionamento e a calçada estão abarrotados de veículos.
O padre e o noivo já se encontram no altar. Débora está dez
minutos atrasada. Ruborizado, Antônio olha para os convidados e já
é possível ouvir burburinhos entre os bancos. Cadê
essa mulher? Tia Sofia e seu marido galã conversam baixo.
-
Tinha que ser a Débora mesmo, muito lerda, se fosse eu, a cerimônia
já tinha terminado.
-
Calma, Sofia, imprevistos acontecem, ela pode ter pegado um trânsito.
-
Que trânsito que nada, isso se chama lerdeza mesmo.
-
Você fica maravilhosa irritada. - coloca a mão no rosto da esposa.
-
Hum, quer ir ao banheiro comigo?
-
Sofia, quer transar no banheiro de uma igreja?
-
Adoraria, imagina?
-
Contenha-se mulher, quando chegarmos em casa a noite será toda
nossa.
Finalmente
Débora aparece na porta da catedral. Luz própria, beleza, magia,
tudo isso Débora traz com ela. Uma superprodução. A noiva arranca
suspiros de todos ali dentro. Ao som do violino Débora encantadora
desfila lentamente até seu amado. Antônio engole seco várias
vezes. Seria areia demais para seu caminhãozinho de brinquedo? Logo
ele que na época de escola foi considerado o mais sem sal da turma?
Agora
eles estão ali diante do sacerdote que empurra palavras e frases
clichês cansando os ouvidos dos presentes. Pra falar a verdade,
tanto Antônio como Débora não ouviram nada do que o velho padre
disse. Toda aquela atmosfera
os envolve deixando o novel casal cego, mudo e surdo. A catedral
ficou pequena para tamanha paixão entre os dois. No banco da frente
tia Sofia não consegue controlar a emoção. Como ela gostaria que
sua irmã estivesse ali para ver a filha se casando, realizando seu
sonho.
-
Quer que eu vá buscar água meu anjo?
-
Obrigado.
Tio
Otávio sai de seu lugar e passa por uma pilha de convidados. Bonito,
de cabelos começando a ficar grisalhos, Otávio parece ter saído
das novelas mexicanas. Ele passa por uma convidada que desde o começo
vem o encarando mesmo com o marido ao lado. Ele passa jogando todo
seu charme forçando a mulher sorrir para ele. Por mais que Otávio
saiba que poderia ter todas as mulheres que quisesse, ele permanece
fiel a Sofia, um sujeito honrado.
No
altar a ladainha continua até que por fim o grande momento.
-
Débora Resende, deseja receber Antônio Lima como seu marido?
-
Sim!
-
Antônio Lima, deseja receber
Débora Resende como sua legítima esposa?
-
NÃO!
Como
assim? Não! Foi isso mesmo que ele disse? Não? Mas como pode? Eu
ouvi mesmo isso, ele disse não? Rapidamente uma confusão se formou
e Antônio disparou porta afora deixando uma mulher destruída por
fora e por dentro. Até o padre ficou arrasado.
-
Minha filha, tenha calma, ele pode ter surtado, tudo ficará
resolvido.
A
vontade era de pedir ao padre que calasse a boca. Débora continua
vendo seu noivo indo embora correndo acompanhado por olhares dos
convidados. A dúvida é generalizada, ninguém entendeu
absolutamente nada do que aconteceu. O buquê é solto, o véu é
suspenso e as lágrimas borram a maquiagem que ficou incrível. Tia
Sofia corre para ficar ao lado da sobrinha que criou como se fosse
filha.
-
Meu anjo, fique firme, a titia está aqui.
3
A
caneca com o restinho de café é colocada ao lado do cinzeiro que
acumula pontas de cigarro. Com as mãos trêmulas ela acende mais um.
Olhando para a janela naquela tarde de quarta feira, Débora sequer
sabe como está o dia lá fora. Sem ânimo, com preguiça e com
vontade de morrer, a ex universitária fumou praticamente o dia
inteiro. Um mês, exatamente hoje faz um mês que o apocalipse
particular aconteceu e desde então a vida de Débora se transformou
num amontoado. Ela se transformou em outra pessoa. Engordou alguns
quilos. Perdeu um pouco da beleza e adquiriu um rancor do inferno.
Sem falar do mal humor. Pois
é, um mês. Antônio nunca mais foi visto desde quando saiu correndo
da catedral. Aquele desgraçado destruiu a minha vida. Débora lembra
que naquela noite o choque foi tão grande que ela não conseguia
enxergar nada a sua frente. Tudo o que ela queria era uma resposta.
Resposta, ela jamais veio, ela se foi com aquele miserável.
Usando
apenas uma camiseta alguns números a menos e uma calcinha frouxa,
Débora se levanta para buscar mais café. Até isso tem sido uma
tarefa quase impossível. Ela para diante do espelho e se olha.
-
Horrorosa!
Tenta
fazer um rabo de cavalo, mas não consegue. Xinga e desiste da
façanha. A cozinha está um nojo. Há louça de uma semana com resto
de comida apodrecendo. Ela
enche a caneca de café e mais uma vez passa e para diante do
espelho.
-
Bem feito, quem mandou dar para ele antes do casamento? Ele comeu,
gostou e se mandou, você é uma tonta mesmo, depois de ouvir tantos
conselhos da titia Sofia você caiu na lábia daquele sujeito, bem
feito, sua bruxa.
De
repente ela para de conversar com o seu reflexo no espelho. Silêncio.
Em seguida o choro vem. Estou ficando louca mesmo. Abandonou tudo,
emprego,
faculdade, amigas, baladas. De homem ela não quer saber nunca mais,
melhor viver sozinha. Ela volta para o sofá, acende mais um cigarro,
procura pelo controle da TV e o encontra embaixo dos travesseiros. A
TV é ligada justamente numa parte da novela onde os atores estão se
beijando. Meu Deus, até quando ficarei sem beijar? Sem fazer amor?
Débora continua assistindo a cena, mas
sem prestar atenção. Sua cabeça está em outro lugar. Antônio.
Aonde estará aquela bicha enrustida? A TV é desligada. Ela procura
pelo controle do som e o encontra no chão, embaixo do sofá. A
música dançante a envolve e quando dá por si, Débora, que é uma
desengonçada se encontra dançando, sozinha em cima do tapete,
transpirando aponto dos cabelos colarem na pele pegajosa.
A
playlist acaba. Ela desmorona sorrindo.
-
Sua louca.
O
coração acelerado, as pupilas dilatadas e uma incrível vontade de
chorar, sair correndo, se vingar ou, pelo menos, tirar satisfação.
Antônio. Minha vontade é de te matar pelo que fez com a minha vida.
Em certos momentos ela sente seu apartamento girando. As paredes
falam com ela. O mundo de
repente se volta contra ela. Débora grita com vontade, um grito
gutural. Depois disso, o silêncio. Débora olha para o teto e
paredes, tudo está em seu lugar. O silêncio sepulcral é quebrado
pelo som de chamada do celular. Mesmo acima do peso ela se levanta
rápido. Finalmente a ex vendedora de roupas consegue achar o
aparelho que ficou no banheiro. Ao pegar no telefone o visor mostra
um número bastante conhecido por ela.
-
ANTÔNIO?