quarta-feira, 15 de julho de 2020

O Espírito do Passado




Mais uma vez Helena não deu sorte. É a segunda vez nessa semana em que ela precisou ir ao mercado e o estabelecimento se encontrava entupido de pessoas enlouquecidas devido a grande promoção dos produtos de limpeza. Mal havia vaga no estacionamento, foi preciso aguardar dentro do veículo o surgimento de uma vaga. Já bastante cansada e estressada Helena viu um Pálio modelo 1999 saindo. Dando graças ao céus ela rapidamente ocupou o lugar. Antes de descer ela ainda conferiu se o cartão de crédito estava na bolsa, para não acontecer o que aconteceu da última vez. Foram momentos de extrema raiva e constrangimento. Helena lotou o carrinho e correu até o caixa. Passou as compras e na hora de efetuar o pagamento o bendito do cartão de crédito não estava lá, havia ficado em cima do painel do carro.
    - Moça. – disse Helena ruborizada. – teria como esperar, esqueci o cartão dentro do carro.
    Desconfiada e com muita má vontade a funcionária solicitou a presença do gerente que olhou para Helena com aquele olhar como quem diz “golpe a vista”. Enquanto isso a fila só crescia assim como as reclamações. Foi preciso o fechamento do caixa até a chegada do cartão. Ao abrir o carro Helena deu de frente com Jorge Coutinho, seu ex marido rindo para ela sacudindo o cartão.
     - Não estou achando graça nenhuma, me dá o cartão. – falou Helena.
     - Enrolada como sempre, quando você vai aprender? – disse Jorge lhe entregando o objeto.
     - Eu já aprendi, Jorge, aprendi desde quando eu te tirei da minha vida.
     Bateu a porta com força ainda ouvindo as gargalhadas.
     O problema foi resolvido, tudo e todos ficaram bem, menos Helena que teve que voltar para casa ouvindo gracinhas do ex sentado no banco do carona.
     - Heleninha, Heleninha, desde quando você se maquia para ir ao supermercado? Na nossa época você mal penteava os cabelos.
     - Você é mesmo muito baixo seu cretino. Pare de se meter na minha vida. Se manca cara. – reduziu a marcha.
     - Ih, acho que coloquei o dedo na ferida. Para uma mulher ficar nervosinha dessa forma só pode haver outro na jogada.
     Helena deu seta e jogou o carro para o acostamento. Ela se permitiu perder as estribeiras e jogar tudo de uma vez na cara de Jorge.
      - Veja bem, Jorge, a gente já não tem mais nada um com o outro, por tanto se eu estou em outra ou não isso não lhe diz respeito, agora saia do carro.
      - Calma, Heleninha. – abriu a porta.
      - Heleninha é a vaca da sua mãe. Desce! – vociferou.
      Assim que Jorge desceu Helena arrancou com o carro.
      Aquele dia sim ela pode chamar de um dia de fúria. Hoje foi estressante, mas não a esse ponto. A bancária chegou em casa deixando sobre a mesa da cozinha as dez sacolas de compras para passar a semana. Feito isso ela foi se esvaziar, estava apertada desde quando ainda se encontrava na fila. Helena não gosta de usar outros banheiros. Sentada no sanitário ela aproveitou para conferir suas redes sociais. No Instagram ela viu as fotos ousadas de sua desafeto. No fundo no fundo ela bem que gostaria de postar algumas fotos em poses provocantes ou usando roupas chamativas, mas isso seria baixar o nível demais. Sua bexiga já estava vazia quando Jorge saiu do box nu e molhado.
     - Tem espaço para mais um aqui.
     - Vai procurar sua turma. – segue passando as fotos.
     - Hum, nada mal, ela é solteira? – fechou o chuveiro.
     - Sim, mais tem alguns “passa fome” que correm atrás dela, você só será mais um.
     - É, mas bem que você gostaria de ser como ela, cheia de pretendentes a seus pés, fala a verdade.
     - Pelo menos eu saberia com quem estaria lidando. – se enxugou. – passei parte da minha vida sem saber com quem estava vivendo. – se vestiu.
     - Tem certeza de que não quer tomar banho? A água está uma delícia.
     - Não! Bom proveito.
     Foi como Helena falou. Ela viveu ao lado de Jorge por muitos anos sem conhecê-lo de fato. Tiago e Tatiane, os frutos desse relacionamento conturbado, segundo Helena as únicas duas coisas boas que o traste fez dentro do casamento. Quando se divorciaram houve um clima de rivalidade entre os filhos. Jorge pode ser o que for, mas foi um bom pai, as crianças o adoravam. Tiago até juntou suas coisas para ir morar com Jorge. Tatiane ficou em cima do muro, foram dias onde Helena precisou manter a cabeça no lugar e agir com a razão. A separação de um casal, ainda mais depois de longos anos dividindo o mesmo teto é uma ruptura grave, machuca bastante. Por mais que Helena já não suportasse o convívio com Jorge, ela sofreu muito.
    Helena tem 46 anos, branca, mediana, cabelos negros cortados recentemente na altura dos ombros. Financeiramente ela está muito bem - muito obrigado. Trabalha num dos melhores e maiores bancos privados do país. Os filhos seguiram seus caminhos. Tiago terminou a faculdade de odontologia e já trabalha no ramo. Tatiane é sócia de uma franquia de fast food e atualmente mora no exterior. Helena gosta de viver sozinha, ainda mais depois do divórcio, o silêncio, a calmaria e a TV só para ela tem feito muito bem a gerente.
     Helena organizou os produtos dentro da geladeira e sentiu vontade de tomar um vinho. Correu até o armário e pegou a garrafa a qual se encontrava ali desde a época de Jorge. Olhando o rótulo ela conseguiu sorrir ao lembrar do dia em que seu ex chegou em casa com a garrafa em baixo do braço. Era para ser uma noite especial, mas como era de praxe, ele estragou tudo. Pra falar a verdade o miserável já chegou meio alto. Foi uma pena. Helena só queria vinte minutos de sexo, nada mais.
     - Nesse dia eu confesso que vacilei. – Jorge deixou o banheiro enrolado na toalha. – bebi um pouco e...
     - Acabou dormindo no sofá. – abriu a garrafa.
     - Você ainda quer fazer amor? – deixou a toalha cair.
     Jorge Coutinho, um homem robusto, muitos pêlos pelo corpo, sempre gostou de esportes. O seu preferido era o tênis. Chefiou por anos grandes construções e hoje em dia Helena não sabe o que ele estaria fazendo da vida. Vê-lo nu, ali, parado no meio da cozinha mexeu com os sentimentos e outras coisas mais. Helena olhou para a garrafa em suas mãos e a devolveu ao armário.
    - Ridículo! – disse fechando a porta.

*

Como gerente de um banco Helena tem inúmeras responsabilidades e também diversas coisas para fazer quase que ao mesmo tempo. Assim que põe os pés na agência funcionários solicitam sua presença afim de descascar os maiores abacaxis, tudo isso na parte da manhã. Helena agradece a Deus pela sua experiência, por seu conhecimento de causa. Em pouco tempo ela resolveu os assuntos pendentes e foi atender clientes e correntistas com seu sorriso encantador de sempre.
    Sua sala é típica de menininha, uma organização invejável. Apesar de ser o que é dentro da agência Helena não se sente superior a ninguém, ela se porta como uma mera funcionária que assim como os demais é dispensável. Mas por ser educada, amável e flexível, a gerente caiu na graça de todos, por isso todos cuidam dela e de suas coisas. Assim que começa a analisar os documentos Jorge se acomodou numa das cadeiras. Bem vestido, barbeado, cheiroso, o ex de Helena sorriu para ela dizendo.
     - Não adianta negar, Heleninha, você sente saudade da época em que estávamos cansados, principalmente dos dois primeiros anos. Admita.
     - Sim, admito, foi bastante intenso. Eu era uma menina ingênua, não sabia aonde estava me metendo, cai na sua lábia e agora estou aqui, pagando o preço. – assinou um dos papéis.
     - Lembra aquela vez quando transamos a madrugada inteira e no dia seguinte você achou que estava grávida? Foi hilário. – riu alto.
     Mais uma vez algo mexeu dentro de Helena, talvez seja o fato de não fazer sexo a algum tempo. Ela se controlou seguindo lendo os documentos em sua mesa. Jorge se foi. O segurança tocou na porta e entrou informando a chegada do primeiro cliente agendado.
     - Por favor, mande-o entrar.
     O cliente entrou, um negro bonito, cinquenta anos de pura simpatia e educação. O terno azul claro lhe caiu muito bem diga-se de passagem. Sua mão enorme encobriu a da gerente que sentiu uma descarga elétrica sair dele e circular por todo o seu corpo.
     - Sente-se, senhor Silas Nóbrega, acertei?
     - Nossa, que boa memória, obrigado. – se acomodou.
     - Aceita um café, chá, água...
     - O que você gostaria de tomar se estivesse em meu lugar? – cruzou as pernas.
     - Café!
     - Então vamos de café.
     Silas Nóbrega é professor universitário e diretor de uma das mais importantes redes de colégio particulares. Sua unidade é a mais procurada devido ao carisma e também porque Silas é um baita administrador. Por onde passou ele sempre foi a pessoa que resolvia os problemas, mesmo quando ainda era um simples professor. Diretores faziam questão que Silas se posicionasse nas reuniões, suas opiniões eram acatadas e isso chegou ao conhecimento do dono da rede que o tirou de sala de aula e o colocou numa sala cujo a porta tem parafusada o título “ Diretor”. Viúvo, pai de uma filha já adulta, o professor de matemática agora quer alguém competente para auxiliar na administração de seu dinheiro.
     - Fez uma ótima escolha senhor Silas, vamos preencher os papéis?
     Homem é homem, o que mais chamou atenção de Silas, além é claro da transparência em esclarecer os procedimentos, foi a beleza e a sútil sensualidade de Helena. Muita areia para o meu caminhãozinho, foi o que pensou ao entrar na sala, mas com o passar do tempo ele viu que valeria a pena arriscar. Helena lhe passou os formulários, Silas os leu com precisão cirúrgica e depois de preenchê-los disparou.
    - Bom. Já que agora terei uma gerente, é fundamental que as partes tenham seus contatos. Acertei?
    - Em cheio. – empurrou para ele um cartão. – meu contato, qualquer dúvida ou queira saber como andam as movimentações é só me ligar ou passar um WhatsApp.
     - Ótimo. – se levantou. – já terminamos?
     - Já, mais uma vez, obrigado pela escolha.
     - Vou te ligar, em breve. – saiu.
     Helena ainda atendeu outros cinco clientes, nenhum como Silas. Educado, delicado, observador, um verdadeiro cavalheiro, do tipo de homem que trata as mulheres com dignidade. A bancária não sabe direito o que está sentindo, para isso ela precisaria ter mais uma experiência com ele. Nada melhor que o tempo para sabermos de maneira exata o que se passa. Helena trabalhou toda parte da manhã sendo observada por Jorge sentado no sofá encostado perto da janela. Com um ar de riso debochado ele conseguiu algumas vezes tirar a concentração da ex mulher que precisou se esforçar ao máximo para não explodir.
    Hora do almoço, o melhor período do dia para Helena colocar a mente em ordem. Não é costume, mas hoje ela sentiu uma tremenda vontade de ligar para os filhos, ouvir a voz, saber o que se passa. Tatiane foi a primeira, a menina ficou feliz em receber a ligação inesperada da mãe.
    - E aí, filhota, novidades? – perguntou conferindo o menu.
    - Ah, sim, estou conhecendo um cara.
    - Quando você diz, conhecendo, você diz, conhecendo a fundo ou conversinhas por whatsapp?
    - O nosso conhecer de hoje em dia e muito diferente do conhecer da sua época, mãe, a senhora sabe disso. Ele é um sujeito inteligente, gato e tem ótimas intenções.
     - Hum, que bom, mas, cuidado com esses caras que só aparentam ter boas intenções, o seu pai também tinha boas intenções e veja no que deu.
     Silêncio. É bem provável que Tatiane esteja fazendo caretas do outro lado da linha.
      - Tati, sei que falo demais, me desculpa se joguei água no seu chopp é que eu não quero que você passe pelo que passei, só isso.
      - Entendo sua preocupação, mãe.
      - Chega desse assunto. Agora me fale, quero saber como ele é, me manda uma foto.
       O papo foi legal, Helena e a filha sempre foram amigas. Depois de meia hora e degustando um almoço saudável a conversa com Tatiane terminou. Helena pediu a conta e Jorge se sentou.
       - Não vai pedir um café?
       - Não, isso ficou no passado o qual não sinto falta. – o garçom veio segurando a máquina de cartão.
       - Você diz que não sente falta, mas na realidade,  lá no fundo do seu íntimo você bem que gostaria de reviver certos momentos.
       Helena digitou a senha e a transação foi aprovada. Depois que o garçom se foi ela o desafiou.
       - Então me diga você, quais foram esses momentos? – deu ênfase nós momentos.
       Jorge tamborilou os dedos na mesa. Sua expressão se fechou.
       - Você sabe muito bem que a culpa não foi só minha, você contribuiu e muito para o fracasso do nosso casamento dona Helena Castro. Sempre muito chata, deprimida, sem ânimo, nunca gostava dos meus programas para o fim de semana, sem falar do sexo que era horroroso. Como viver com uma mulher dessa? Como, me diz?
     Helena olhou para o ex com sangue nos olhos.
      - Já terminou, senhor Jorge Coutinho?
      Jorge deu de ombros.
      - Eu era chata porque não havia como não ser. Eu era deprimida porque não havia como não ser também. Eu era sem ânimo porque não havia como não ser. Os seu programas para os fins de semana eram, futebol com amigos bêbados, pescaria, bebedeira em boteco imundo. Agora quanto ao sexo eu vou confessar, eu fingia sim. – pegou a bolsa. – com licença, tenho mais o que fazer.

*

Helena acreditou que Silas entraria em contato com ela, porém não sabia que seria tão rápido. É costume dela depois do jantar ficar largada no sofá vestida com roupas de dormir. Na TV ela colocou num canal de música instrumental para relaxar e ficou a conferir sua rede social. A mensagem do professor fez seu coração acelerar.
     Como vai a minha gerente nessa noite?
      Helena não soube o que responder de imediato, ficou nervosa, com os dedos trêmulos.
      Descansando um pouco.
      Espero que eu não esteja atrapalhando.
       De maneira alguma. E o senhor? O que está fazendo?
       Estou digitando o meu trabalho para o mestrado.
      Helena não pode deixar de admirar a força de vontade de Silas. Mesmo ele com uma vida tranquila estabilizada, ainda assim ele almeja coisas grandes, ser mestre nas exatas. Um homem admirável.
        Nossa! Além de bom diretor de uma das melhores escolas, ser professor universitário, o senhor ainda quer mais?
        Sim! Eu sou de origem humilde, Helena. Sempre fui um ótimo aluno em matemática, tomei gosto por essa ciência. Quando criança prometi pra mim mesmo que me tornaria mestre, e aqui estou eu.
        Uau! – enviou vários coraçõezinhos. – imagino que queira saber como andam as movimentações?
        Não! Entrei em contato para lhe convidar para sair.
       A forma direta de Silas a assustou. Nem os outros namorados que teve no passado foram tão rápidos desse jeito. Não que ela não tenha gostado, mas a deixou sem palavras.
        Sair? Como assim?
       Sim, sair, se distrair, comer, beber alguma coisa. O que acha? Conheço um lugar fantástico, comida de primeira qualidade.
        Helena estava digitando quando Silas lhe enviou uma mensagem dizendo o dia e a hora.
        Mais...
       Helena, se acalme, prometo que será um encontro entre cliente e gerente. Tudo certo?
        Certo. Sexta-feira às vinte. Marcado.
        Não se preocupe, eu me encarrego em apanha-la em sua casa.
        Helena sorriu comemorando.
     Como é a vida. Há cinco anos ela estava assinando os papéis que a liberaria de um casamento infeliz e dizendo a ela mesmo, intimamente, que jamais permitiria que alguém do sexo oposto entrasse em sua vida. Pois é, ela mentiu. Viver sozinha não faz o tipo de Helena. Suas amigas sempre falam que ela ainda é jovem, bonita, atraente, o que aconteceu com Jorge foi somente um acidente no percurso. A bancária colocou o celular no carregador e depois ficou a rir sozinha. Foi até a cozinha. Seu estômago a lembrou que era hora da ceia antes de dormir. Jorge estava sentado na mesa da copa batendo palmas para ela.
      - Muito bem, Heleninha, conseguiu um encontro. Estou admirado.
      - As coisas mudam, pessoas mudam.
      - É, no seu caso a mudança foi radical. Até que o cara é bonitão, inteligente e o que é melhor, tem dinheiro.
      - Se queria me irritar não conseguiu, dinheiro eu também tenho, então...
      - Posso te contar um segredo?
      - A vontade. – abriu a geladeira.
     Jorge se levantou e andou até ficar perto da ex. Ao pé do ouvido e com voz sedutora ele declarou.
     - Ouvi dizer que os negros tendem a ser bem dotados. – passou de leve a língua na orelha da mulher.
      Mais uma vez algo mexeu com o corpo de Helena, ela precisou de alguns segundos para se recompor. Jorge já havia saído da cozinha e ela seguia segurando a caixa de leite se apoiando na porta da geladeira. Foi um golpe forte, por essa ela não esperava. Para se ter uma ideia do quanto foi duro, Helena se encaminhou para cama aquela noite sem tomar seu mingau de aveia. O sono não foi reparador, Helena teve vários pesadelos. Houve momentos em que ela recorreu as preces, nessas horas toda ajuda vinda do céu é bem vinda. Perto das quatro da manhã ela desabou num sono pesado, sobrenatural.

*

Recomeçar, essa é a palavra que não para de martelar na cabeça de Helena. As dez da manhã, maquiada, humorada, bem vestida, ela chegou a sua agência disposta a resolver todo e qualquer problema. Recomeçar. Há cinco anos ela vem carregando um sobrepeso que ela mesmo colocou sobre si. Dar uma chance para o próprio espírito, vale a pena tentar. Sentada em sua mesa ela solicitou a entrada do primeiro cliente do dia e com um sorriso que só os anjos possuem, Helena esbanjou simpatia para o futuro correntista. Num intervalo entre um cliente e outro ela respondia as mensagens enviadas de seus filhos. Uma delas a fez retornar aos quinze anos de idade. Silas Nóbrega lhe enviou um curto vídeo com a música de Freddie Mercury, “Love of my life” de fundo. Dessa vez ele acertou no alvo. Agora não tem jeito. Helena está se apaixonando outra vez. Recomeçar.
     Alguém sem bater na porta entrou e ocupou a cadeira confortável dos clientes. Jorge apoiou os cotovelos na mesa e depois a cabeça nas mãos. Permaneceu assim até conseguir chamar atenção de sua ex.
      - Diga logo o que quer e vá embora.
      - Paixão é uma coisa que dá e passa. Cuidado.
      - Você não acha que eu já sou bastante grandinha para essas coisas? – juntou os formulários.
      - O negão...
      - Esse negão tem nome, seu preconceituoso de merda.
      - Não diga isso, foi apenas força de expressão. – se encostou. – então? Vai mesmo tentar acertar as coisas com... – apertou os olhos e estalou as falanges.
      - Silas, Silas Nóbrega.
      - Isso, Silas, vai se acertar com ele? – cruzou as pernas.
      - Quer mesmo saber a verdade? – fechou a pasta. – vou, e daí?
      Jorge se levantou. Seu olhar para Helena ficou encoberto por nuvens negras.
      - Sujeira o que está fazendo. Você prometeu passar o resto de seus dias sozinha. Você não precisa desse cara, Helena, você tem tudo, uma casa grande, bonita, tem um carro do último modelo lançado, sua conta bancária está no azul, nada te falta.
      Helena bateu na mesa antes de se levantar também.
      - Algo me faltou durante o tempo em que fiquei casada com você. Quer saber o que me faltou? – perguntou com os olhos marejados.
      Jorge colocou as mãos na cintura.
      - Faltou alegria, satisfação, afeto, ternura. Faltou um homem de verdade. Faltou o provedor, o protetor. Eu não tinha segurança alguma a seu lado, Jorge. Nojo, era o que eu sentia por você. Saia da minha sala. Vamos.
      Com o rosto ruborizado e desfigurado, Jorge cuspiu na mesa e disparou.
      - Sua vagabunda.
      Quando se viu sozinha, Helena se jogou na cadeira e chorou. Finalmente o lixo foi jogado fora. Um choro de alívio. Isso ela nunca havia sentido antes. Não se importando se a maquiagem ficará borrada, a mãe de Tiago e Tatiane deixou as lágrimas seguirem seu fluxo. Quanto a maquiagem, bom, isso ela pode resolver depois.

*

Helena já havia se esquecido da deliciosa sensação de se arrumar para sair com um homem. A escolha da roupa foi difícil, principalmente quando a questão foi qual peça íntima usar. Vestido ou calça? Ela optou pelo vestido preto batendo nos joelhos. Finalmente as jóias que ganhou no aniversário de quarenta anos serão usadas. Claro que ela não pretende transformar esse primeiro encontro numa noite de sexo num motel cinco estrelas, mas o que vestir por baixo do vestido faz toda diferença. Tudo pronto, resta ver como será a maquiagem. Assim como todo o ser humano, certo dia ela assistiu um tutorial no Youtube sobre automaquiagem e descobriu que existem produções para o dia e para a noite. Hora de colocar em prática.
     Assim que terminou de se aprontar ainda faltavam dez minutos para as vinte horas. Helena aproveitou para ligar para Tiago. O rapaz atendeu no primeiro toque.
     - Mãe, tudo bem?
     - Oi, filho, tudo bem sim, como vão as coisas por aí?
     - Muito trabalho, graças a Deus. Como vai a senhora?
     - Estou bem. – fez uma pausa. – filho, irei me encontrar com uma pessoa agora.
     Silêncio do outro lado. Helena aguardou, talvez Tiago não tenha entendido muito bem.
     - Sério isso?
     - Muito sério e não pense você que estou ligando para lhe dar uma satisfação. Certo, Tiago?
     - Mãe, a senhora é uma mulher independente. Seja feliz.
     Helena respirou aliviada.
     - O que a Tati acha isso?
     - Não sei.
     - Só me diz uma coisa.
     Lá vem bomba, foi o que pensou.
     - A senhora está feliz?
     Boa pergunta.
      - Sim, meu filho, claro que estou. – respondeu com um nó se formando na garganta.
      - Então aproveite a noite dona Helena Castro. – declarou com empolgação.

*

Impressionante. Assim que o relógio marcou 20h ouviu-se uma bozina. Helena não quis acreditar que se tratava de Silas e o mesmo a chamou pelo whatsapp avisando-a sobre sua chegada. Silas é o cavalheirismo em pessoa. Esse tipo de coisa Helena só havia visto nos filmes. Ela jamais imaginou que um dia um homem a esperaria em pé fora do carro - e que carro!
     - Nossa, que pontualidade é essa? – disse fechando o portão.
     - Digamos que essa é a minha marca e também um pouco de ansiedade.
     - Ansiedade? – arqueou as sobrancelhas.
     - Sim! Eu não estou saindo com qualquer pessoa. Bancária, inteligente, forte e por que não dizer. – a olhou de alto a baixo. – linda.
     É, Silas já mostrou a que veio. O encontro mal começou e ele já a deixou sem jeito.
    - Obrigada, você também está muito bem. – mexeu nos cabelos.
    - Vamos?
    - Sim, vamos.
    Helena ocupou o banco do carona. Tudo dentro daquele veículo transmite paz. O cheiro, os enfeites e principalmente a música baixinha. Jazz, um dos seus gêneros musicais preferidos. A saída com o carro foi tão suave que Helena só percebeu isso alguns segundos depois. Claro, algo tinha que estragar esse momento. Pelo retrovisor ela viu Jorge rindo dando tchauzinho para ela. O desgraçado ainda ronda a minha vida tentando me tirar a paz, não permitirei, pensou.

*
Anos antes

O lugar não era feio, mas passava longe de ser a oitava maravilha do mundo. O casal Helena e Jorge Coutinho jantando em seu primeiro encontro. Ela medindo palavras e pisando em ovos e ele excitado. A comida também não era lá essas coisas, a massa precisava de mais alguns minutos no cozimento. Mas isso não importava tanto, eles estavam apaixonados e naquela noite Jorge conseguiu dar uns amassos bem apertados na garota dentro do seu Tempra preto. Nesse tempo Jorge já mostrara quem ele era, mas a aspirante bancária achou que ele mudaria. Pois é, o tempo só fez piorar as coisas, pelo menos para Jorge. Uma coisa Helena precisa admitir, Jorge sempre foi um sujeito trabalhador, sempre alcançou suas metas. Por outro lado ele era péssimo como marido, um cavalo na hora do sexo, nunca se importou com ela nesse sentido. Grosso, egoísta e quase sempre anti-social. Viver ao lado dele, sentindo seu cheiro, engolindo seu veneno, digerindo suas palavras pontiagudas, foram dias onde todos os dias eram negros.

*

Silas, a personalização de tudo há de agradável. O jantar foi apenas um detalhe. Embasbacada com o jeito de se portar, falar e como Silas conduz uma conversa, Helena não precisou de várias doses de vinho para ficar embriagada. De onde saiu esse sujeito? De onde ele veio há mais exemplares? O professor contou toda a sua trajetória e não excluiu as fases ruins. Quanto ao falecimento de Carmem, Silas foi direto e aguentou o trampo.
    - Eu esperava tudo, menos ficar viúvo aos 35 anos. Tive que me apegar a Deus para não enlouquecer. – girou o vinho na taça. – Carmem foi uma mulher fabulosa, capaz de preparar uma comida deliciosa em quinze minutos. Cuidava de tudo sem fazer esforço, minha filha e eu estávamos em boas mãos.
     - Um brinde a memória de Carmem Nóbrega? – ergueu a taça.
     - Sim, claro. – brindaram. – mas depois quero lhe propor um outro brinde.
     - Sério? Ao o que?
     - Hum, curiosa. – riu.
     Silas e Helena esqueceram da vida, esqueceram do horário. As vinte e três e quarenta eles deixaram o restaurante ainda exalando alegria. Ela ria de tudo e ele não perdia sua postura de cavalheiro real. Dentro do carro o papo seguia agradável, Silas finalmente revelou seu lado humorista.
     - Você sabe o que é um pontinho vermelho numa porta?
     Helena coçou a cabeça.
     - Não!
     - Um olho mágico. – fez a curva.
     - Mas olho mágico não é vermelho. – franziu o cenho.
     - Sim, mas nesse caso o olho mágico se encontra com conjuntivite.
Helena explodiu em gargalhada. Lógico que foi por polidez, a piada foi de uma ruindade fora do comum, mas valeu a tentativa. Na chegada a casa de Helena mais surpresas a aguardava. Silas lançou um olhar tão puro, tão transparente que Helena soube identificar na hora o que ele queria.
     - Abra o porta luvas. – disse ainda olhando para ela.
     Sem hesitar ela abriu. Haviam duas taças e uma garrafa de vinho de boa qualidade.
     - Agradeço muito pelo brinde à memória de Carmem, Helena, mas agora quero propor um outro brinde. – serviu e se serviu. – quero propor um brinde a nós dois.
      Agora de fato Helena sabe o que é flutuar como uma nuvem. Deus sabe o que faz, ele determina as coisas certas e nos proporciona no tempo certo, por isso tudo com Ele é perfeito. Helena nesses 46 anos de vida jamais imaginou vivenciar e sentir essa emoção. Brindar o recomeço com um homem maravilhoso. Sem peso algum na consciência, sem culpa e o mais importante, sem ninguém para apontar o dedo. Sua casa se transformou num santuário de felicidade onde só ela pode desfrutar. Vale colocar uma música? Sim, lógico que vale. Jazz, sempre jazz.
     Às duas da manhã o sono ainda não tinha dado as caras, por isso Helena procurou distração no Instagram. Mais uma vez ela conferiu os stories de sua desafeto. O ser humano é incrível. Fazer o bem é algo trabalhoso, por Isso optamos sempre por fazer o mal. Vendo as fotos de sua rival, Helena se vê rogando praga pelo simples fato dela ser uma mulher bonita, desprendida e sensual. No fundo ela gostaria de ser como ela. Os olhos começaram a pesar. O sono chegou. O telefone foi deixado no canto. Helena puxava o edredom quando sentiu a mão de Silas tocando sua coxa. Lá estava ele, sem camisa, usado um short pra lá de excitante, lançado sobre ela seu hálito puro.
     - Quer que eu a faça dormir, querida?
     - Sim, quero. – falou de olhos fechados.
     A mão de Silas seguia apalpando a coxa. Pegando fogo, Helena a pôs entre às pernas. Se contorcendo, a bancária passou a emitir gemidos, declarando seus sentimentos para o professor.
      - As coisas estão ficando molhadas por aqui.
      Mas que porcaria é essa, pensou Helena ainda de olhos fechados.
      - Merda, eu não acredito. – tirou a mão de Jorge de sua parte íntima. – saia da minha cama agora.
      - Eu estava com saudades desse seu cheiro. – colocou a mão no rosto.
      - Por que está fazendo isso comigo? – embargou a voz.
      O semblante do ex marido caiu, Jorge parecia estar num velório. Isso causou estranheza em Helena.
      - Me diga você, por que está fazendo isso! Queria tanto se livrar de mim. Quer tanto uma vida nova. Não queria se envolver com mais ninguém, se redimiu. Conheceu um cara legal, está apaixonada por ela e no entanto não consegue me tirar de sua vida. – se levantou. – eu sou o passado, Heleninha, Silas Nóbrega é o futuro. – bateu forte na gaveta do armário. – entendeu?
     Helena assentiu entre soluços. A separação foi traumática. Jorge deixou o quarto. O coração da morena clara estava em pedaços, ela mal conseguia respirar, seu rosto bonito lubrificado pelas lágrimas era iluminando pela luz da lua que penetrava pelas fendas das cortinas. Que situação difícil.
     Helena só queria entender o porquê de tudo isso estar acontecendo. Por que dar lugar ao passado? Ela passou aquela noite em branco, buscando respostas. Evidente que não as encontrou. O mais incrível é que elas são bastante claras e estão diante de seus olhos. Helena sabe muito bem que a culpa foi toda dela, ela causou tudo Isso. Na sala, em meio a penumbra, largada no sofá, Helena se viu tentada a ligar para Silas, mas ao conferir o horário, 04:50 ela desistiu, melhor esperar o dia clarear. Ali, entre um chá e outro, finalmente o sono a nocauteou.

*
Meses depois

Foi um almoço animado, todos estavam bem a vontade no encontro. Helena pode espanar a poeira do seu caderno de receitas e preparar seu cozido inconfundível. Para a sobremesa não poderia faltar o brigadeirão de Tatiane. O combinado foi o seguinte, as mulheres se encarregariam do preparo da comida e a louça ficaria por conta dos meninos. Silas e Tiago protestaram um pouco, mas aceitaram a difícil façanha. Helena e Tati conversavam no quarto enquanto que na cozinha os dois aproveitaram o tempo a sós para colocarem as cartas na mesa.
      - Gostei te conhecer, professor, o senhor me parece uma boa pessoa. – disse secando os pratos.
      - Também gostei de você, Tiago, aliás, adorei vocês dois. – Silas lhe passou uma panela.
      - Então minha mãe e o senhor estão juntos a um mês.
      - Sim. Helena é uma mulher sensacional. Eu sinceramente já havia perdido as esperanças em encontrar alguém como ela. Deus a colocou em meu caminho e estou feliz por isso.
      - Devo lhe confessar que eu sempre fui contra todas as vezes que minha mãe tentou ou tocou no assunto relacionamento. Eu era o chato da história. De uns tempos pra cá desencanei de vez. Minha mãe é uma mulher adulta, eu não tenho o direito de me meter na vida dela. Eu só desejo que ela seja feliz, só isso.
      - Pode deixar, Tiagão, no que depender de mim, sua mãe será a mulher mais feliz desse planeta.
      - Valeu, professor. – apertaram as mãos.
      No quarto mãe e filha batem papo como adolescentes no pátio de uma escola. Tatiane quer saber tudo e com riqueza de detalhes. Assuntos amorosos sempre deixam Helena envergonhada, isso é claramente visto na saliência das bochechas. Perguntas tão íntimas partindo da filha a deixam ainda mais sem saber o que fazer e o que responder.
     - Então, mãe, um mês com o professor, e aí? – perguntou esfregando as mãos.
     - E aí o que? Silas é um homem super bacana.
     - Mãe? Não estou falando sobre isso e a senhora sabe muito bem.
     - Ah, Tati, um mês ainda, não rolou nada se é isso que você quer saber.
     Tatiane se juntou a mãe se sentado na ponta da cama.
     - Tudo bem se não quiser falar. Mas vamos combinar, o professor é um coroa e tanto hein dona Helena. – deu uma cotovelada de leve no braço da mãe.
     - Se é. – abaixou a cabeça e começou a mexer nas unhas. – demorei muito para me dar essa chance. Não há nada de errado em você se relacionar de novo e de novo. Eu também vivia em função do que os outros iriam pensar ou achar. Chega. – gesticulou. – nova vida.
     - É assim que se fala, Helena. – se abraçaram.
     O último a ir embora foi Tiago, Tatiane tinha horário marcado para o vôo de volta aos Estados Unidos. Antes de entrar no carro ele deu um forte e longo abraço na mãe. O gesto foi significativo e comoveu o coração já mole de Silas. Para deixá-los um pouco mais a vontade ele se afastou se encostando no portão.
      - Filho, quando chegar em casa me liga. E mais uma vez obrigado por ter vindo.
      - Eu jamais me negaria em conhecer o novo namorado da minha mãe. O cozido estava ótimo. – olhou Silas fazendo sinal de Ok. – cuide dela.
      - Pode deixar comigo, Tiagão. – enfiou as mãos nos bolsos da calça.
      A tarde se findava quando o casal resolveu trocar calorosos beijos sentados no sofá. Silas é um sujeito que respeita demais, ele nunca avançaria o sinal se Helena não permitisse. Já a bancária estava afim de tirar o atraso. Ficar beijando na boca é coisa de pré adolescentes, adultos querem partir logo para a intimidade. Até então ela o estava beijando lado a lado e de mãos dadas, porém deixando a timidez no passado, Helena se pôs a sentar no colo do professor tomando a iniciativa de longas horas de sexo. Silas é claro só agradeceu.

*

Helena abriu os olhos certa manhã e viu Jorge em pé, parado na frente do armário. Puxando os lençóis, pois estava nua, a ex de Jorge olhava fixo nos olhos dele. Um olhar soturno que dizia muitas coisas.
     - Ainda presa a mim. – encostou a mão na gaveta. – você acha certo o que vem fazendo com o professor?
     - Saia da minha vida, Jorge. – vociferou.
     - Eu tento, eu juro, mas você sempre faz questão de me trazer de volta, Helena, até na hora do rala e rola eu estou lá. – andou até a beirada da cama e se sentou. Segurou o queixo da ex mulher e disse.
     - A sua vez é agora. – apontou para a gaveta.
     O dia amanheceu com um sol fraco e com o passar do tempo o céu foi sendo encoberto por nuvens densas. O cemitério as cinco da tarde se encontrava com os portões fechados, o expediente já havia terminado. Dentro do carro Silas lamentou.
     - Poxa, eu ainda avisei.
     - Vou descer e falar com o funcionário, quem sabe uma graninha extra não o convença. – pegou a bolsa no banco de trás.
     - Isso é mesmo necessário? – Silas segurou o volante.
     - Muito, você nem imagina. – desceu.
     Helena não sabia o que sentiria voltando aquele lugar. O choro foi mais forte. O jazigo, a foto amarronzada de Jorge a fez ficar semelhante ao céu naquela tarde. Do bolso da jaqueta ela retirou aquilo que ainda a prendia ao passado, aquilo que a segurava a uma época negra. Jorge não foi um bom marido, não foi nada daquilo que ela sonhou, mas foi seu primeiro amor. O primeiro homem a toca-la, a fazê-la se sentir mulher. Lamentavelmente o casamento não deu certo e dois anos depois do divórcio, Jorge se envolveu num terrível acidente onde perdeu a vida ainda no local. Quando recebeu a notícia ela estava atendendo no banco, a vontade foi de largar tudo e sair correndo. Jorge era um crápula, mas morrer de jeito que morreu, ninguém merece.
    Antes de deposita-la junto aos restos mortais do ex, Helena olhou pela última vez para a aliança. Simples, mas de um efeito sentimental destrutivo – pelo menos para ela. Na parte de dentro há o nome dos nubentes cravados. Helena se lembra da cerimônia, quando o reverendo leu os nomes para as duzentas pessoas ali celebrando o matrimônio. A emoção não pode ser contida mais uma vez. Essas coisas estão no passado e devem ficar lá. Por uma fenda no jazigo Helena deixou cair o espírito que a atormentava e ela pode até sentir o seu peso sendo retirado. Jorge Coutinho, uma página virada na vida de Helena Castro. FIM.

      







sexta-feira, 10 de julho de 2020

Veneno Negro - Capítulo 4




Em torno dos corpos dos agentes se transformou num verdadeiro salve-se quem puder. As pessoas ainda estão confusas, se esbarram, acotovelam-se e esperam por uma providência. Em questão de minutos um isolamento foi feito. Dois agentes no exercício de sua profissão foram barbaramente assassinados e o autor pode ser qualquer um. Sampaio Mello foi notificado e deixou sob escolta o DPNE. Ainda ajustando o colete, o capitão deu uma rápida olhada no cenário a sua frente e ordenou que seus homens estabelecessem um perímetro e o fechasse. Feito isso ele também conferiu os prédios ao redor.
    - Preciso que uma equipe ocupe os prédios vizinhos, não estamos lidando com um amador, o atirador é dos bons.
    Ronaldo acertou em cheio. Realmente a polícia de Nova Emaús não está lidando com um bandidinho revoltado que resolveu chamar atenção. O atirador é um profissional, sabe o que está fazendo e porque está fazendo. Assim que os agentes foram abatidos, em questão de minutos ele desmontou todo o seu aparato e abandonou o prédio, mas antes deixou seu cartão de apresentação. No chão, mesmo que a grosso modo ele desenhou ou tentou desenhar o seu símbolo, a marca que o acompanha desde os tempos de serviço militar.
    Vinte minutos depois de sua saída do prédio os policiais invadiram o lugar surpreendendo a todos. Em pouco tempo o edifício foi ocupado por homens tensos e armados até os dentes. Um grupo subiu os vinte andares pelas escadas o outro usou os elevadores social e também os de carga. Cada canto daquele prédio foi averiguado. Um dos agentes entrou numa das salas e aparentemente tudo se encontrava na mais perfeita ordem até que seus olhos pararam numa figura de um galo desenhado no chão. Desenhado a giz.
    - Mas que merda é essa? – acocorou-se.
   Outro policial o viu agachado e entrou.
    - Viu alguma coisa?
    - Quem desenharia um galo no chão de um prédio tão importante como esse?
    - Bata uma foto. – entrou e foi direto para a janela de onde é possível ver o tumulto enfrente ao DPNE. – o desgraçado atirou daqui. Vamos procurar o capitão.

*

O almoço não tem nada a ver com sua dieta, aliás, macarrão instantâneo não faz bem a ninguém, mas fazer o que quando só se tem isso para comer. André Cruz precisa frequentar um pouco mais o supermercado. Para combater o crime e se tornar o herói que ele tanto almeja, ele precisa ter uma alimentação digna, balanceada rica em proteína, carboidratos necessários para se manter. Diante da TV ele come o produto alimentício e acompanha o noticiário sobre a morte brutal dos policiais. Seria a hora de Veneno Negro entrar em ação e auxiliar a polícia? Claro que não. Tá na cara que esse novo capitão quer sua cabeça. Aparecer agora seria burrice de sua parte. Sampaio Mello preenche a tela da TV com sua presença e imponência durante uma entrevista.
    - Não sabemos nada até agora. Tudo que podemos informar é que se trata de um atirador que com certeza quer chamar atenção para si e conseguiu. A polícia não irá descansar enquanto não colocá-lo na cadeia.
    O jornalista aproveitou o ensejo e emendou outra pergunta.
    - Capitão, e quanto ao Veneno Negro, o que o senhor e sua equipe estão planejando?
    André se ergueu.
    - Já devo lhes adiantar que eu, enquanto for o líder da lei e da ordem de Nova Emaús, não permitirei e não irei tolerar justiceiros. Pessoas que se escondem atrás de uma máscara para fazer justiça com as próprias mãos serão consideradas fora da lei e serão presas. Para Nova Emaús basta a polícia.
    A entrevista terminou. Sampaio Mello foi bastante categórico em dizer que é contra esse tipo de ação. Mas nada do que que foi declarado pelo Capitão parece ter causado algum desânimo em André, pelo contrário, segundo ele, Ronaldo não conseguirá limpar as ruas dessa cidade se não houver um vigilante, alguém que não tem nada a perder. Esse alguém chama-se Veneno Negro. Basta saber a hora de entrar e sair de uma ação, essa é a malandragem.

*

O Galo, foi assim que ele ficou conhecido no exército. No início seus companheiros o chamavam de galo cego, devido a uma deficiência na vista esquerda. Quando criança uma travessura o cegou. Foram anos até ele se acostumar com a ideia de que agora ele teria que se virar com apenas um olho. Não foi nada fácil. Quando chegou na idade adulta precisou redobrar os cuidados para não se ferir e nem ferir os outros. Ele precisou se superar mesmo quando foi para as forças armadas. Todos zombaram dele quando declarou que gostaria de ser atirador. Foi na base de muito treinamento, muita superação, muita zombaria até que o galo cego deu lugar ao Galo, o melhor atirador de sua turma. A longa ou a curta distância, o alvo é eliminado.
    Limpando seu instrumento de crime ele acompanha os fatos. Nova Emaús se transformou num barril de pólvora e ele gosta disso. Se ele se deu por satisfeito? Lógico que não. Seu alvo chama-se Ronaldo Sampaio Mello, um tiro perfeito no meio da cabeça não há como escapar com vida. A limpeza de rifle é feita devagar, sem pressa, tudo precisa estar em ordem para o próximo trabalho. O que se passa na cabeça de alguém que poderia usar seu dom para fazer o bem, mas prefere fazer o mal? O que pretende de fato executando uma personalidade como o capitão Sampaio Mello? Quer que todos saibam quem ele é, do que é capaz? Sim, nada além disso. O Galo quer visibilidade, fama, ser o inimigo público número um. Ele irá em busca disso e com ajuda de seu rifle.

*

No interior do departamento de polícia o caos foi instaurado, todos querem uma posição do novo líder e no momento ele se encontra reunido com seu grupo traçando metas, estratégias para a captura do atirador. Enquanto analisa às imagens no aparelho celular do agente, Sampaio Mello descobre algo que o deixou ainda mais furioso.
    - O alvo era eu.
    Tal declaração deixou a sala num silêncio sepulcral.
    - O desgraçado matou meus homens para chamar atenção, mas na verdade ele me queria, foi um cartão de apresentação. Está na hora de ligarmos o detetive que há dentro de cada um de nós e descobrirmos quem é esse Galo.
    Um dos quinze agentes pediu a palavra erguendo o dedo.
    - Senhor, recomendo que fique no DP e se me permite, eu mesmo farei sua segurança.
    - Lhe agradeço muito agente Macedo, mas eu não
 consigo ficar escondido sabendo que há um rato lá fora. Irei para linha de frente junto com vocês. Iremos fechar a cidade se preciso for. Vamos pegar esse Galo.
    Imediatamente as equipes de busca deixaram o pátio do DPNE. Se todos queriam uma resposta da polícia essa foi a melhor forma de mostrar quem manda a partir de agora. E para deixar isso bastante claro, Sampaio Mello ordenou que as sirenes das viaturas estivessem ligadas e é claro, ele na condução de uma delas. Prato cheio para a imprensa.