Alta
Voltagem
Conto
1 com Berg Junqueira
A paciência de Berg já havia se esgotado muito antes
dele por os pés na delegacia naquela manhã de terça-feira. A investigação que
apuraria o assassinato de jovem de classe média na saída de uma boate não
estava indo tão bem quanto ele queria, ainda faltavam muitas peças para a
montagem desse quebra-cabeças. O investigador analisa foto por foto, desde o momento em que o garoto sai da casa
noturna até ser alvejado por um motoqueiro armado com dois disparos. Tudo que
se sabe até agora é que a moto usada na ação era roubada. Gutemberg suspeita de
que o garoto tenha sido morto por engano, assim como Ivo Teixeira seu chefe
pensa também, mas policial que é policial não trabalha só com hipóteses, é
preciso provas.
- E ai, cara. – disse Wagner se acomodando na mesa. –
alguma novidade?
- Nada. – Respondeu Berg passando às mãos na careca. –
nada me tira da cabeça que esse moleque foi morto por engano.
- E o Ivo?
- Ele também acredita, mas você conhece o Ivo, temos
que apurar até não existirem mais possibilidades.
Wagner olhou para a organização da mesa do companheiro
de profissão onde havia a foto de um cidadão afrodescendente muito bem vestido
num terno cinza e gravata preta.
- Ezequiel. – rosnou Wagner.
- Quando vamos acabar com a festa desse sujeito? –
Berg pegou a foto da mão do amigo.
Wagão saiu de cima da mesa e ficou de pé, com às mãos
na cintura.
- Traficante, ladrão, contraventor, dono de puteiro
e...
- Assassino de policiais. – completou Gutemberg.
- O que falta para o juiz mandar trancafiar esse
merda? - desabafou Wagner.
Berg seguia olhando para a foto enquanto seu parceiro falava.
Ezequiel Ramalho, o principal motivo de Berg está de pavio curto e isso faz
algum tempo. O chefe Mor do crime organizado já assassinou cruelmente alguns de seus
companheiros e até o presente momento ninguém com os culhões maiores do que o
de Berg Junqueira tomou alguma providência. Matar um agente da lei deveria ser
considerado crime hediondo. Será que não há justiça o suficiente para enjaular sujeitos
poderosos como Ezequiel?
Berg abriu a gaveta e deixou a foto do bandido lá num
ato simbólico de sua prisão. Há outros casos a serem esclarecidos e enquanto
isso, nutrido pela sensação de impunidade Ramalho segue atuando transformando
Porto da Cruz num território hostil onde ele é a autoridade maior.
- As vezes é difícil ser policial, não é? – disse
Wagner cabisbaixo.
- Só às vezes? – se ajeitou na cadeira. – o dia
de Ezequiel Ramalho vai chegar e quando isso acontecer será o marco na história
dessa cidade.
- Porto da Cruz será nossa novamente. – comemorou
Wagão.
*
Porto da Cruz, cidade litorânea. Num passado bem
recente turistas do mundo inteiro disputavam vagas nos melhores hotéis afim de
assistirem a maior queima de fogos na passagem de ano e também o mais lindo por
do sol nos verões Porto cruzeirense.
Hoje em dia, toda essa beleza e glamour ainda se encontram lá, porém com os
índices de violência crescendo a cada dia e principalmente com o domínio de
Ezequiel Ramalho aumentando, os turistas preferem não se arriscar buscando outras
regiões do país. Ezequiel é nascido e criado em Porto da Cruz, e a conhece como
as palmas das mãos. Ele é fruto do submundo do crime. Antes de se tornar o
maioral, Ezequiel não passava de um simples traficante de merda tentando ganhar
a vida vendendo trouxinhas de maconha nos becos das comunidades. Um dia ele foi
pego pelo chefe do morro e quase foi morto. Ele foi deixado a beira da morte
num lixão e desde então o garoto decidiu virar a chave.
Pouco a pouco. Dia após dia. Ezequiel Ramalho foi
tomando os maiores pontos de venda de drogas da cidade e executando seus
lideres. Houve guerra. Sangue para todos os lados. A polícia trabalhou noite e
dia, mas não conseguiu muita coisa. Todos os dias os jornais noticiavam a
aparição de corpos nas regiões mais remotas. Porto da Cruz se tornou perigosa
demais. Às coisas só melhoraram um pouco quando Ramalho conseguiu o trono e
hoje, quem ousa em destrona-lo é executado com todo o rigor.
Na mesa que fica ao lado da piscina estão jogando Dog,
capanga e braço direito de Ezequiel. O próprio Ezequiel e mais dois meliantes.
A mansão é vigiada vinte quatro horas por homens armados com metralhadoras
dentro e fora dos muros, além de câmeras de segurança instaladas
estrategicamente. Dog bateu.
- Aqui não tem pra ninguém. – vociferou.
- Assim não dá chefe, esse cara está roubando. –
protestou os outros dois bandidos.
Ezequiel olhou para Dog.
- Ele não faria isso. Ou faria?
O bandido engoliu seco.
- Já lhe dei motivos? – respondeu levantando-se.
- Não vai mais jogar? – o líder abriu os braços. – não
ligue para as provocações, você é bom nesse jogo.
- Vou dar uma incerta no barco. Vê se estão
trabalhando mesmo. – pegou a pistola em cima da mesa e a colocou atrás no cos
da calça.
- Faz muito bem. Preciso que essa carga esteja pronta
até o fim do dia. Quanto mais rápido melhor. A Civil está na minha cola. – Ramalho
também se levantou. – vou com você.
Dog e Ezequiel se conhecem desde os tempos em que juntos
assaltavam os alunos de uma escola pública fora da comunidade onde moravam.
Numa dessas muitas ações criminosas, José Carlos - seu nome verdadeiro - foi
pego pela polícia e levado para um instituto que abriga menores infratores. Lá,
Dog recebeu esse vulgo por ser o mais bravo de todos os meninos e também por
ter arrancado o polegar de um monitor com uma mordida. Depois desse fato Dog
passou a ser castigado todos os dias, mesmo sem motivo. Eram horas de surra. Os
monitores faziam uso de uma mangueira de fogão de cozinha. José Carlos apanhava
sem emitir um som, nem um soluço sequer. Claro que isso fazia com que seus
algozes ficassem ainda mais furiosos com ele lhe dando um longo banho de água
com sal após a seção de tortura.
Quando teve a oportunidade de escapar do instituto Dog
não a desperdiçou. Mas antes fez questão de executar cada um de seus torturadores
se utilizando de uma chave de fenda. Depois de dez anos os amigos se
reencontraram quando Ezequiel já era o chefão do crime.
- Não acredito que você ficou ofendido por causa de um
simples jogo. – disse Ezequiel colocando o blazer.
- Claro que não. Eu é que já não estava mais afim de
jogar.
- Tem certeza? – colocou a mão no ombro do amigo.
- Sim. Eu dirijo.
Ramalho parou e sinalizou para dois de seus homens que
faziam a guarda do portão da garagem.
- Precisamos de escolta. Iremos até o porto. Rápido,
vamos.
*
Berg e Wagner foram chamados às pressas ao gabinete de
Ivo Teixeira no início da tarde. Apreensivos, os agentes permaneceram de pé um
ao lado do outro com seus olhos fitados no delegado. Ivo é um bom chefe, mas
não se pode facilitar com ele. Os mais antigos naquele departamento de polícia
costumam dizer que Teixeira é um campo minado, basta pressioná-lo que ele te
fará em pedaços, principalmente quando às coisas não vão tão bem. Alto, dono de
uma elegância ímpar, cabelos ondulados, bem cortados e muito bem penteados, Ivo
Teixeira poderia ser muito bem um astro de novelas mexicanas.
- Conseguimos. – disse Ivo com voz animada.
- Sério? – Berg arregalou os olhos.
O delegado ergueu o documento assinado pelo juiz o segurando
com às pontas dos dedos.
- Dessa vez vamos acabar com a farra daquele verme do
Ezequiel. – Wagner socou a palma da mão.
Ivo entregou a documento a Gutemberg e voltou para sua
mesa lhe passando orientações.
- Essa operação precisa ser levada ao último grau de
seriedade. Ezequiel Ramalho já provou do
que é capaz. Reúna nossos melhores homens, Berg e trate de fazer um bom
trabalho.
- Pode deixar, chefe.
*
Gutemberg Junqueira nunca deixou duvidas sobre sua
capacidade de liderança, nem mesmo quando ainda era um novato na polícia civil
de Porto da Cruz. Desde sempre Ivo viu nele um alto percentual de raciocínio
lógico e rápidez, por isso fez questão de investir pesado nele. Hoje, Berg é um
dos melhores investigadores que há na cidade, com um currículo recheado de
casos complicados resolvidos. Sem falar nas operações que chefiou. Ezequiel
Ramalho é sim uma questão que vem lhe tirando o sono e Berg não pretende deixar
que o marginal seja uma mancha em sua carreira. Wagner Santos, Wagão, parceiro
de longa data de Berg. Eles ingressaram praticamente juntos na profissão. Assim
que foram apresentados, ambos sentiram que a parceria daria certo. Tanto um
como o outro possuem polícia correndo nas veias e a paixão que sentem pela
profissão sempre falou mais alto.
- Esse é o nosso alvo principal, senhores.
Berg fixou a foto de Ezequiel no centro do quadro sob
os olhares de seus companheiros de equipe.
- Ezequiel Ramalho. Indivíduo de altíssima
periculosidade. Já assassinou a sangue frio alguns dos nossos. O juiz expediu o
seu mandado de prisão hoje, então, teremos a chance de fazer com que a morte de
nossos colegas não tenha sido em vão. Alguém tem algo a dizer?
O agente sentado na última fila de cadeiras ergueu o
braço.
- Sabemos que Ezequiel possui um verdadeiro arsenal e
ele chefia um exército praticamente. Assim, eu não quero ser o pessimista da
história, mas, se caso houver falhas? Não teremos como evitar um confronto no
meio da cidade.
Berg sorriu.
- Entendo sua preocupação, Gomes e a acho pertinente.
Por isso quero que ouçam com atenção todo o plano.
*
Duas quadras da mansão de Ezequiel, Gutemberg dá novas
orientações a Wagner Santos que termina de se vestir com o uniforme da
companhia de limpeza urbana dentro do carro.
- Se algo sair errado lembre-se, estaremos por perto.
Ok?
- Pode deixar. – colocou a pistola dentro da bolsa.
- Vá lá irmão. – se abraçaram.
Minutos depois um carro preto parou na frente da
mansão. O desembarque não aconteceu de imediato. Lá dentro Dog checa às
mensagens sobre o último carregamento de cocaína enviado para fora do país. Nesse
exato momento a conta bancária do maior chefão do crime na atualidade acabou de
ganhar alguns muitos quilos a mais.
- Fala meu querido. Os caras cumpriram com o acordo. –
falou usando a mensagem de voz.
- Você está aonde?- perguntou Ezequiel.
- Estou aqui, em frente ao portão. Por que?
Enquanto aguarda o patrão enviar o áudio Dog batuca um
sambinha no volante.
- Quero ir ao armazém e depois tomar alguma coisa
no bar da praia. O que acha?
Nessa hora um funcionário da limpeza urbana passou
puxando seu carrinho ao lado do carro. Dog seguia enviando áudio.
- Acho melhor mandar alguém na frente.
O gari tirou a vassoura e a pá de dentro do carrinho e
começou a varrer. Dog parou com o batuque e passou a observar o sujeito. Ezequiel
enviou outro áudio.
- Não posso deixar nossos novos clientes na mão.
Precisamos acompanhar a produção todo o tempo, entendeu?
- Saquei. – Respondeu olhando para o gari. – mesmo
assim faço questão que alguém vá na frente. Você mesmo disse que a policia
civil está na nossa cola, não foi? – aguardou a resposta ainda olhando para o
gari que caminhou para mais próximo do portão.
- Quando você cisma com alguma coisa não tem Cristo
certo que lhe faça mudar de ideia. – Ezequiel falou rindo. – tudo bem
então. Envie alguém na frente.
Berg e outros agentes acompanham tudo utilizando o
aparelho de escuta acoplado no uniforme de Wagão. Mesmo com todo o aparato policial
a seu comando, Berg teme pela vida de seu amigo e colega de profissão. As
desvantagens de se estar a frente de uma operação de risco como essa não
compensa as vezes. Se tudo sair conforme o esperado e finalmente Ezequiel
Ramalho for preso, sem sombra de dúvidas o nome Gutemberg Junqueira estará
estampado nas primeiras paginas de todos os jornais de Porto da Cruz. Por outro
lado, se a operação fracassar ou algum agente terminar ferido ou morto, toda a
instituição sofrerá ataque de todos os lado. Berg tem razão em estar
extremamente preocupado.
- Tudo sob controle, Santos? – falou usando um
comunicador. A voz baixa e metálica de Wagner soou.
- Positivo zero um. Há um veículo parado bem em
frente ao portão e até agora sem sinal de movimentação.
- Fique atento. – finalizou a conversa. – vamos,
vamos, vamos. – sussurrou.
*
Se tem uma coisa que José Carlos não é, é burro.
Depois de observar bem o funcionário da limpeza urbana de alto a baixo, algo
lhe chamou a atenção. Os sapatos. Dog abriu o porta-luvas e pegou a 45 Taurus
cromada. Verificou a munição. Gari usando sapatos ao invés de botas e ainda
por cima engraxados. Dog solicitou reforços e alertou os que estavam de
guarda.
- Atividade pessoal, os vermes estão na área.
Wagão percebeu a movimentação porém não teve tempo de
pegar sua pistola dentro da bolsa no carrinho. Dog desceu do veículo atirando.
Wagner Santos foi atingido no abdômen. Mesmo ferido ele conseguiu buscar abrigo
atrás de uma árvore.
- Policial ferido, solicito reforços, agora. – tentava
conter o sangramento pressionando o ferimento com às mãos.
Dog atirou mais uma vez.
- Vamos matar esse Zé Ruela. – gritou.
Berg deu a ordem e na mesma hora as patrulhas
invadiram a rua. Houve uma intensa troca de tiros. Dentro da mansão, Ezequiel
era escoltado pelos fundos por dez marginais armados com fuzis.
- Conhecem a rota?
- Sim senhor.
Ramalho saiu da casa sem ser incomodado ou visto por
uma saída secreta. Na frente da mansão o clima esquenta a cada minuto. Wagner
ainda aguarda ser resgatado enquanto Berg tenta furar o bloqueio dos bandidos.
- Aguenta firme, Wagão. – disse pelo comunicador.
Uma outra viatura chegou para dar cobertura com
armamento pesado. Dog foi notificado que seu chefe já havia saído.
- Bater em retirada.
Mesmo em meio a chuva de balas, Dog engatou a ré e
fugiu.
- Era o Dog, vão atrás dele. – gritou Berg descendo da
viatura. O chefe da operação atravessou a rua correndo ao perceber que seu
parceiro havia desmaiado atrás da árvore. Não, por favor.
- Wagão, Wagão, fica firme cara.
Felizmente ele ainda respirava, mas o seu caso
inspirava cuidados.
- Uma ambulância, rápido. – berrou.
Pouco a pouco a mansão do chefão do crime foi sendo
dominada por homens uniformizados com seus fuzis apontados, mirando em tudo que
pareça uma ameaça. A pergunta que se faz é: a operação foi bem sucedida? A
resposta certa é: não. Lógico que não. O alvo fugiu e um policial foi gravemente
ferido. Assim que Ivo Teixeira ficou sabendo do fracasso ele entrou em contato
com Berg pedindo maiores informações.
- No momento estamos recolhendo tudo que é possível,
senhor.
- Merda! E o Wagner? – esbravejou.
- A ambulância o levou. Foi alvejado no estômago. –
coçou a nuca.
O delegado circundou sua mesa algumas vezes enquanto
ouvia seu agente. Ivo não estava acreditando no que estava acontecendo.
- Certo. Faça o seguinte. Recolham tudo. Celulares,
computadores, documentos, tudo. Quero que você acompanhe o Santos no hospital.
Tenho que resolver umas coisas aqui no DP e assim que puder me encontro com
você lá.
- Certo, chefe.
Ivo jogou o telefone em cima dos papéis que estavam
espalhados na mesa e não conseguiu evitar sua explosão chamando a atenção de
todos.
- Eu ainda te pego, Ezequiel. – rosnou.
FIM.