quarta-feira, 25 de maio de 2022

Alta Voltagem | Conto policial com Berg Junqueira

 


Alta Voltagem

Conto 1 com Berg Junqueira

 

A paciência de Berg já havia se esgotado muito antes dele por os pés na delegacia naquela manhã de terça-feira. A investigação que apuraria o assassinato de jovem de classe média na saída de uma boate não estava indo tão bem quanto ele queria, ainda faltavam muitas peças para a montagem desse quebra-cabeças. O investigador analisa foto por foto,  desde o momento em que o garoto sai da casa noturna até ser alvejado por um motoqueiro armado com dois disparos. Tudo que se sabe até agora é que a moto usada na ação era roubada. Gutemberg suspeita de que o garoto tenha sido morto por engano, assim como Ivo Teixeira seu chefe pensa também, mas policial que é policial não trabalha só com hipóteses, é preciso provas.

- E ai, cara. – disse Wagner se acomodando na mesa. – alguma novidade?

- Nada. – Respondeu Berg passando às mãos na careca. – nada me tira da cabeça que esse moleque foi morto por engano.

- E o Ivo?

- Ele também acredita, mas você conhece o Ivo, temos que apurar até não existirem mais possibilidades.

Wagner olhou para a organização da mesa do companheiro de profissão onde havia a foto de um cidadão afrodescendente muito bem vestido num terno cinza e gravata preta.

- Ezequiel. – rosnou Wagner.

- Quando vamos acabar com a festa desse sujeito? – Berg pegou a foto da mão do amigo.

Wagão saiu de cima da mesa e ficou de pé, com às mãos na cintura.

- Traficante, ladrão, contraventor, dono de puteiro e...

- Assassino de policiais. – completou Gutemberg.

- O que falta para o juiz mandar trancafiar esse merda?  - desabafou Wagner.

Berg seguia olhando para a foto enquanto seu parceiro falava. Ezequiel Ramalho, o principal motivo de Berg está de pavio curto e isso faz algum tempo. O chefe Mor do crime organizado já  assassinou cruelmente alguns de seus companheiros e até o presente momento ninguém com os culhões maiores do que o de Berg Junqueira tomou alguma providência. Matar um agente da lei deveria ser considerado crime hediondo. Será que não há  justiça o suficiente para enjaular sujeitos poderosos como Ezequiel?

Berg abriu a gaveta e deixou a foto do bandido lá num ato simbólico de sua prisão. Há outros casos a serem esclarecidos e enquanto isso, nutrido pela sensação de impunidade Ramalho segue atuando transformando Porto da Cruz num território hostil onde ele é a autoridade maior.

- As vezes é difícil ser policial, não é? – disse Wagner cabisbaixo.

- às vezes? – se ajeitou na cadeira. – o dia de Ezequiel Ramalho vai chegar e quando isso acontecer será o marco na história dessa cidade.

- Porto da Cruz será nossa novamente. – comemorou Wagão.

 

*

 

Porto da Cruz, cidade litorânea. Num passado bem recente turistas do mundo inteiro disputavam vagas nos melhores hotéis afim de assistirem a maior queima de fogos na passagem de ano e também o mais lindo por do sol  nos verões Porto cruzeirense. Hoje em dia, toda essa beleza e glamour ainda se encontram lá, porém com os índices de violência crescendo a cada dia e principalmente com o domínio de Ezequiel Ramalho aumentando, os turistas preferem não se arriscar buscando outras regiões do país. Ezequiel é nascido e criado em Porto da Cruz, e a conhece como as palmas das mãos. Ele é fruto do submundo do crime. Antes de se tornar o maioral, Ezequiel não passava de um simples traficante de merda tentando ganhar a vida vendendo trouxinhas de maconha nos becos das comunidades. Um dia ele foi pego pelo chefe do morro e quase foi morto. Ele foi deixado a beira da morte num lixão e desde então o garoto decidiu virar a chave.

Pouco a pouco. Dia após dia. Ezequiel Ramalho foi tomando os maiores pontos de venda de drogas da cidade e executando seus lideres. Houve guerra. Sangue para todos os lados. A polícia trabalhou noite e dia, mas não conseguiu muita coisa. Todos os dias os jornais noticiavam a aparição de corpos nas regiões mais remotas. Porto da Cruz se tornou perigosa demais. Às coisas só melhoraram um pouco quando Ramalho conseguiu o trono e hoje, quem ousa em destrona-lo é executado com todo o rigor.

Na mesa que fica ao lado da piscina estão jogando Dog, capanga e braço direito de Ezequiel. O próprio Ezequiel e mais dois meliantes. A mansão é vigiada vinte quatro horas por homens armados com metralhadoras dentro e fora dos muros, além de câmeras de segurança instaladas estrategicamente. Dog bateu.

- Aqui não tem pra ninguém. – vociferou.

- Assim não dá chefe, esse cara está roubando. – protestou os outros dois bandidos.

Ezequiel olhou para Dog.

- Ele não faria isso. Ou faria?

O bandido engoliu seco.

- Já lhe dei motivos? – respondeu levantando-se.

- Não vai mais jogar? – o líder abriu os braços. – não ligue para as provocações, você é bom nesse jogo.

- Vou dar uma incerta no barco. Vê se estão trabalhando mesmo. – pegou a pistola em cima da mesa e a colocou atrás no cos da calça.

- Faz muito bem. Preciso que essa carga esteja pronta até o fim do dia. Quanto mais rápido melhor. A Civil está na minha cola. – Ramalho também se levantou. – vou com você.

Dog e Ezequiel se conhecem desde os tempos em que juntos assaltavam os alunos de uma escola pública fora da comunidade onde moravam. Numa dessas muitas ações criminosas, José Carlos - seu nome verdadeiro - foi pego pela polícia e levado para um instituto que abriga menores infratores. Lá, Dog recebeu esse vulgo por ser o mais bravo de todos os meninos e também por ter arrancado o polegar de um monitor com uma mordida. Depois desse fato Dog passou a ser castigado todos os dias, mesmo sem motivo. Eram horas de surra. Os monitores faziam uso de uma mangueira de fogão de cozinha. José Carlos apanhava sem emitir um som, nem um soluço sequer. Claro que isso fazia com que seus algozes ficassem ainda mais furiosos com ele lhe dando um longo banho de água com sal após a seção de tortura.

Quando teve a oportunidade de escapar do instituto Dog não a desperdiçou. Mas antes fez questão de executar cada um de seus torturadores se utilizando de uma chave de fenda. Depois de dez anos os amigos se reencontraram quando Ezequiel já era o chefão do crime.

- Não acredito que você ficou ofendido por causa de um simples jogo. – disse Ezequiel colocando o blazer.

- Claro que não. Eu é que já não estava mais afim de jogar.

- Tem certeza? – colocou a mão no ombro do amigo.

- Sim. Eu dirijo.

Ramalho parou e sinalizou para dois de seus homens que faziam a guarda do portão da garagem.

- Precisamos de escolta. Iremos até o porto. Rápido, vamos.

 

*

 

Berg e Wagner foram chamados às pressas ao gabinete de Ivo Teixeira no início da tarde. Apreensivos, os agentes permaneceram de pé um ao lado do outro com seus olhos fitados no delegado. Ivo é um bom chefe, mas não se pode facilitar com ele. Os mais antigos naquele departamento de polícia costumam dizer que Teixeira é um campo minado, basta pressioná-lo que ele te fará em pedaços, principalmente quando às coisas não vão tão bem. Alto, dono de uma elegância ímpar, cabelos ondulados, bem cortados e muito bem penteados, Ivo Teixeira poderia ser muito bem um astro de novelas mexicanas.

- Conseguimos. – disse Ivo com voz animada.

- Sério? – Berg arregalou os olhos.

O delegado ergueu o documento assinado pelo juiz o segurando com às pontas dos dedos.

- Dessa vez vamos acabar com a farra daquele verme do Ezequiel. – Wagner socou a palma da mão.

Ivo entregou a documento a Gutemberg e voltou para sua mesa lhe passando orientações.

- Essa operação precisa ser levada ao último grau de seriedade. Ezequiel Ramalho já provou  do que é capaz. Reúna nossos melhores homens, Berg e trate de fazer um bom trabalho.

- Pode deixar, chefe.

 

*

 

Gutemberg Junqueira nunca deixou duvidas sobre sua capacidade de liderança, nem mesmo quando ainda era um novato na polícia civil de Porto da Cruz. Desde sempre Ivo viu nele um alto percentual de raciocínio lógico e rápidez, por isso fez questão de investir pesado nele. Hoje, Berg é um dos melhores investigadores que há na cidade, com um currículo recheado de casos complicados resolvidos. Sem falar nas operações que chefiou. Ezequiel Ramalho é sim uma questão que vem lhe tirando o sono e Berg não pretende deixar que o marginal seja uma mancha em sua carreira. Wagner Santos, Wagão, parceiro de longa data de Berg. Eles ingressaram praticamente juntos na profissão. Assim que foram apresentados, ambos sentiram que a parceria daria certo. Tanto um como o outro possuem polícia correndo nas veias e a paixão que sentem pela profissão sempre falou mais alto.

- Esse é o nosso alvo principal, senhores.

Berg fixou a foto de Ezequiel no centro do quadro sob os olhares de seus companheiros de equipe.

- Ezequiel Ramalho. Indivíduo de altíssima periculosidade. Já assassinou a sangue frio alguns dos nossos. O juiz expediu o seu mandado de prisão hoje, então, teremos a chance de fazer com que a morte de nossos colegas não tenha sido em vão. Alguém tem algo a dizer?

O agente sentado na última fila de cadeiras ergueu o braço.

- Sabemos que Ezequiel possui um verdadeiro arsenal e ele chefia um exército praticamente. Assim, eu não quero ser o pessimista da história, mas, se caso houver falhas? Não teremos como evitar um confronto no meio da cidade.

Berg sorriu.

- Entendo sua preocupação, Gomes e a acho pertinente. Por isso quero que ouçam com atenção todo o plano.

 

*

 

Duas quadras da mansão de Ezequiel, Gutemberg dá novas orientações a Wagner Santos que termina de se vestir com o uniforme da companhia de limpeza urbana dentro do carro.

- Se algo sair errado lembre-se, estaremos por perto. Ok?

- Pode deixar. – colocou a pistola dentro da bolsa.

- Vá lá irmão. – se abraçaram.

 

Minutos depois um carro preto parou na frente da mansão. O desembarque não aconteceu de imediato. Lá dentro Dog checa às mensagens sobre o último carregamento de cocaína enviado para fora do país. Nesse exato momento a conta bancária do maior chefão do crime na atualidade acabou de ganhar alguns muitos quilos a mais.

- Fala meu querido. Os caras cumpriram com o acordo. – falou usando a mensagem de voz.

- Você está aonde?- perguntou Ezequiel.

- Estou aqui, em frente ao portão. Por que?

Enquanto aguarda o patrão enviar o áudio Dog batuca um sambinha no volante.

- Quero ir ao armazém e depois tomar alguma coisa no bar da praia. O que acha?

Nessa hora um funcionário da limpeza urbana passou puxando seu carrinho ao lado do carro. Dog seguia enviando áudio.

- Acho melhor mandar alguém na frente.

O gari tirou a vassoura e a pá de dentro do carrinho e começou a varrer. Dog parou com o batuque e passou a observar o sujeito. Ezequiel enviou outro áudio.

- Não posso deixar nossos novos clientes na mão. Precisamos acompanhar a produção todo o tempo, entendeu?

- Saquei. – Respondeu olhando para o gari. – mesmo assim faço questão que alguém vá na frente. Você mesmo disse que a policia civil está na nossa cola, não foi? – aguardou a resposta ainda olhando para o gari que caminhou para mais próximo do portão.

- Quando você cisma com alguma coisa não tem Cristo certo que lhe faça mudar de ideia. – Ezequiel falou rindo. – tudo bem então. Envie alguém na frente.

 

Berg e outros agentes acompanham tudo utilizando o aparelho de escuta acoplado no uniforme de Wagão. Mesmo com todo o aparato policial a seu comando, Berg teme pela vida de seu amigo e colega de profissão. As desvantagens de se estar a frente de uma operação de risco como essa não compensa as vezes. Se tudo sair conforme o esperado e finalmente Ezequiel Ramalho for preso, sem sombra de dúvidas o nome Gutemberg Junqueira estará estampado nas primeiras paginas de todos os jornais de Porto da Cruz. Por outro lado, se a operação fracassar ou algum agente terminar ferido ou morto, toda a instituição sofrerá ataque de todos os lado. Berg tem razão em estar extremamente preocupado.

- Tudo sob controle, Santos? – falou usando um comunicador. A voz baixa e metálica de Wagner soou.

- Positivo zero um. Há um veículo parado bem em frente ao portão e até agora sem sinal de movimentação.

- Fique atento. – finalizou a conversa. – vamos, vamos, vamos. – sussurrou.

 

*

 

Se tem uma coisa que José Carlos não é, é burro. Depois de observar bem o funcionário da limpeza urbana de alto a baixo, algo lhe chamou a atenção. Os sapatos. Dog abriu o porta-luvas e pegou a 45 Taurus cromada. Verificou a munição. Gari usando sapatos ao invés de botas e ainda por cima engraxados. Dog solicitou reforços e alertou os que estavam de guarda.

- Atividade pessoal, os vermes estão na área.

Wagão percebeu a movimentação porém não teve tempo de pegar sua pistola dentro da bolsa no carrinho. Dog desceu do veículo atirando. Wagner Santos foi atingido no abdômen. Mesmo ferido ele conseguiu buscar abrigo atrás de uma árvore.

- Policial ferido, solicito reforços, agora. – tentava conter o sangramento pressionando o ferimento com às mãos.

Dog atirou mais uma vez.

- Vamos matar esse Zé Ruela. – gritou.

Berg deu a ordem e na mesma hora as patrulhas invadiram a rua. Houve uma intensa troca de tiros. Dentro da mansão, Ezequiel era escoltado pelos fundos por dez marginais armados com fuzis.

- Conhecem a rota?

- Sim senhor.

Ramalho saiu da casa sem ser incomodado ou visto por uma saída secreta. Na frente da mansão o clima esquenta a cada minuto. Wagner ainda aguarda ser resgatado enquanto Berg tenta furar o bloqueio dos bandidos.

- Aguenta firme, Wagão. – disse pelo comunicador.

Uma outra viatura chegou para dar cobertura com armamento pesado. Dog foi notificado que seu chefe já havia saído.

- Bater em retirada.

Mesmo em meio a chuva de balas, Dog engatou a ré e fugiu.

- Era o Dog, vão atrás dele. – gritou Berg descendo da viatura. O chefe da operação atravessou a rua correndo ao perceber que seu parceiro havia desmaiado atrás da árvore. Não, por favor.

- Wagão, Wagão, fica firme cara.

Felizmente ele ainda respirava, mas o seu caso inspirava cuidados.

- Uma ambulância, rápido. – berrou.

Pouco a pouco a mansão do chefão do crime foi sendo dominada por homens uniformizados com seus fuzis apontados, mirando em tudo que pareça uma ameaça. A pergunta que se faz é: a operação foi bem sucedida? A resposta certa é: não. Lógico que não. O alvo fugiu e um policial foi gravemente ferido. Assim que Ivo Teixeira ficou sabendo do fracasso ele entrou em contato com Berg pedindo maiores informações.

- No momento estamos recolhendo tudo que é possível, senhor.

- Merda! E o Wagner? – esbravejou.

- A ambulância o levou. Foi alvejado no estômago. – coçou a nuca.

O delegado circundou sua mesa algumas vezes enquanto ouvia seu agente. Ivo não estava acreditando no que estava acontecendo.

- Certo. Faça o seguinte. Recolham tudo. Celulares, computadores, documentos, tudo. Quero que você acompanhe o Santos no hospital. Tenho que resolver umas coisas aqui no DP e assim que puder me encontro com você lá.

- Certo, chefe.

Ivo jogou o telefone em cima dos papéis que estavam espalhados na mesa e não conseguiu evitar sua explosão chamando a atenção de todos.

- Eu ainda te pego, Ezequiel. – rosnou.

FIM.