domingo, 22 de março de 2020

Vingança Cor de Rosa - Por Abril Rocha


Vingança cor de rosa
Por: Abril Rocha


- Gisele, você poderia parar de falar só por um minuto? – implorou Davi tirando o pé do acelerador.
    - Só me faltava essa, não bastasse tudo o que fez, agora você vai mandar eu ficar quieta, não ferra, Davi.
    - Não ferra você, eu não fiz nada. – voltou a pisar no acelerador. – nós já conversamos sobre esse assunto.
    - E você acha que eu engoli aquele seu papo? Me poupe. – cruzou os braços e se virou para a janela.
     Pela primeira vez em horas de estrada houve silêncio dentro do Sandero branco do motorista de aplicativo. Feriado prolongado acontecendo e Davi aproveitou para ir até sua casa de praia. Talvez a água salgada do mar, ou também o ar fresco ajude a diminuir a pressão entre Gisele e ele.
     - Nós mulheres sabemos quando estamos sendo enganadas.
     Davi revirou os olhos e bufou.
     - E nem adianta bufar não, você mudou muito.
     - Como assim eu mudei, Gisele?
     - Claro que mudou. A Rê. – se virou para ele.
     - O que tem a Rê? – deu de ombros.
     - Ela vive pedindo corrida pra você, eu gostaria de saber como ela as paga.
     Davi soltou uma gargalhada irritante aos ouvidos de Gisele.
     - Você está ficando paranóica, não tem nada a ver.
     - Paranóica? Eu? Vai me dizer que ela não te enche os olhos. – Gisele voltou a cruzar os braços.
     Rê é sim uma mulher bonita. Corpo bem cuidado, pele tratada e bastante inteligente.
      - Você é melhor do que ela. – Davi avistou um posto de gasolina. – vou parar pra mijar, vai comprar alguma coisa?
      - Água com gás e Cheetos. – respondeu pegando o celular.
      Dez minutos depois Davi voltava da loja de conveniências do posto carregando um pouco a mais do que água e Cheetos.
       - Demorou hein, estava fazendo o que além de mijar, ligando para Rê?
      Davi sorriu.
      - Aproveitei e deixei um presentinho no vaso sanitário deles. – abriu a porta do motorista.
      - Que nojo. – terminou de digitar e colocou o celular em cima do painel. – meu biscoito e minha água, por favor.

*
Apesar de estar indo curtir alguns dias na praia, Davi não estava confortável, o tempo todo Gisele o alfinetava forçando uma DR e ele, é claro, se esquivava como podia. O carro segue cortando a autoestrada rumo a região praiana e dentro dele o clima só piorava a cada quilômetro rodado.
   - Você não me respondeu. – falou com a boca cheia.
   - Não respondi o que, Gisele?
   - Sobre a Rê. – colocou mais Cheetos na boca.
   - Ah, essa mulher de novo? Vira o disco.
   - Fala a verdade, senhor Davi Silva, ela paga as corridas com sexo, assuma.
    - Quanta imaginação meu Deus. – falou olhando para o alto. – a Rê só me chamou duas vezes e as corridas não foram para longe. A primeira fomos para o centro e a segunda...
    - Para o motel, garanto que foi.
    Davi meneou o cabeça.
    - Quem mais já pagou as corridas com sexo? Quem você já comeu ali atrás? – Gisele aumentou o tom de voz.
    - Além de você? Mais ninguém.
    Socos, tapas e beliscos no braço, foi o que Davi precisou aguentar para não perder o controle do veículo. Gisele seguiu falando, e falando muito até que Davi jogou o Sandero no recuo e o desligou.
     - O que vai fazer, me bater? – disse Gisele engolindo seco.
     - Se liga, eu não tenho mulher na rua, nunca lhe trai com ninguém, sou um homem de 43 anos, trabalhador, quero construir uma vida com você, eu estou realmente gostando de você Gisele, pode confiar em mim, caramba.
     Eles se olharam durante um tempo e depois Gisele o acariciou na coxa.
     - Nunca, nenhum homem falou isso para mim. – os olhos cheios de lágrimas. – vem aqui.
    O beijo foi demorado e se não fosse uma viatura da polícia passando o casal faria amor ali mesmo no acostamento da estrada.
     - Vamos curtir nosso feriadão? – perguntou Davi.
     - Bora!

*
Davi voltava com as marmitas do restaurante de beira de estrada. Gisele pediu arroz, feijão, salada e peito de frango grelhado. Já Davi preferiu lasanha. Ao entrar no carro ele já sentiu que o clima havia mudado, a cara de Gisele estampava o ódio.
    - Algum problema? Sua comida. – ergueu a quentinha.
    - Perdi a fome. – colocou o telefone no bolso do shortinho.
     - Calma aí, isso me custou trinta reais e você falou que estava morta de fome.
     - Pois é, não estou mais. – cruzou os braços.
     - Tá bom. – deixou a marmita no banco de trás. – eu vou comer minha lasanha.
     - Não vai comer porcaria nenhuma. Vamos conversar um pouco.
     Definitivamente as palavras paz e trégua não fazem parte do vocabulário de Gisele. Davi precisou deixar seu almoço de lado para dar atenção aos questionamentos repetitivos da morena. Vendo que a discussão se estenderia até a casa de praia, o motorista de Uber resolveu seguir viagem batendo boca com Gisele que continuava incisiva. Lavagem de roupa dentro de um Sandero voando no asfalto irregular da via. O que fazer para contê-la? Como parar uma metralhadora giratória que é a boca dela? Sim, a melhor coisa a se fazer e usar o recurso do bloqueio. Davi bloqueou Gisele ao ponto dele não mais ouvi-la.

*
Finalmente o destino. Casa de praia. Feriadão prolongado só começando. Davi desceu do veículo e olhou o mar, azul, calmo, muito diferente do relacionamento entre Gisele e ele ultimamente. Por falar em Gisele, a morena cor de jambo não se ofereceu para ajudar a levar as coisas para dentro. Assim que o carro parou ela desceu, sacou as chaves e correu até a varanda da residência.
     - Mulher maluca. – resmungou.
     Ele foi colocando as bolsas no sofá da sala. Gisele se trancou no quarto, deve estar chorando. Tudo terminado, hora de voltar encarar a fera.
     - Gisa, abra a porta, vamos lá, amor. – silêncio. – do que adiantou virmos pra cá então se vamos ficar sem nós falar. Abra a porta. – bateu mais forte. – caramba, Gisele, deixa de criancice, vamos lá na praia.
    A porta abriu, mas não foi Gisele quem apareceu.
     - Rê? – Davi quase infartou.
     - Oi, Davi. – Regina segurava o porta com as mãos na cintura.
     - O que faz aqui? – falou com voz trêmula.
     - Aqui é a minha casa de praia, lembra?
     De trás de Rê surgiu Lilian.
     - E minha também, lembra quando você me falou isso deitado na cama.
     Davi olhava para as duas mulheres não acreditando no que seus olhos estavam vendo. Seu estômago deu sinal de vida. A situação só piorou. De trás de Lilian apareceu Valeria com sangue nos olhos e faca nos dentes.
      - Esse cachorro também falou isso pra mim também.
     Quatro mulheres, todas olhando do mesmo jeito para Davi, todas querendo ver seu sangue sendo derramado. Gisele saiu de trás de Valeria.
     - Davi, você não vale uma titica. Todas nós caímos na sua conversa de que você queria começar uma vida conosco, que estava realmente gostando da gente. Durante a vinda para cá elas foram me passando as orientações.
     - Calma aí gente, eu...
     - Cala a boca cara. – disse Rê. – nada do que você falar vai adiantar, a casa caiu seu canalha.
     - Todas nós estamos tristes, desapontadas, mas, garanto que ninguém mais nessa casa está sofrendo do que ela. – Valeria apontou para sala.
     Davi foi girando nos calcanhares lentamente já imaginado quem estaria na sala logo atrás dele.
     - Oi, Davi?
     - Gabi. – som inaudível.
     - Em vinte anos de casamento você me chifrou quatro vezes. Você seria capaz de me dizer quem foi a segunda a se deitar naquela cama? – Davi hesitou. – vamos gostosão, mostre.
     Davi abriu a boca, mas demorou para responder que Valeria foi sua primeira amante.
      - Ótimo. – Gabi bateu palmas. – e a segunda a trepar com você naquela cama?
      - Gabriela, sério mesmo, você vai fazer isso?
      - Quem foi a segunda? – fechou a cara.
      - A Lilian e depois a Rê e em seguida a Gisele. Satisfeita? – engoliu seco.
      - Vinte anos juntos, de amor, dedicação, dois filhos, vinte anos acreditando que eu havia encontrado o homem ideal. – andou até perto dele. – você me dá asco, sabia? – ficou olhando para ele. – diferente do que a Valéria falou, eu não estou triste e nem desapontada, tão pouco deprimida. Sabe o que eu estou sentindo agora gostosão?
     Davi abaixou a cabeça.
     - Raiva, ódio, vontade de matar. Mas, eu não irei fazer isso.
     O motorista ergueu a cabeça.
      - Nós iremos fazer isso. Não é meninas?
     Sim, disseram todas.
      - Eu não vou ficar aqui e deixar que façam isso comigo e...
      Gisele saiu do quarto segurando uma arma.
       - Vai fazer justamente o que mandarmos você fazer.
       Ao ver a arma Davi empalideceu.
       - Pois é, Davi. – riu Gabi. – você não gosta de mulher, não gosto de trepar? Então. Você fará sexo com todas nós até ter um infarto e morrer.
       - O que? – arregalou os olhos.
       - Já chega de conversa. – Gabi bateu palmas. – vamos lá meninas, temos um feriadão pela frente. Valéria você será a primeira.
       - Deixa comigo chefe. – puxou-o pelo braço. FIM

sábado, 21 de março de 2020

Quatro Olhos


Quatro Olhos

Seria isso mais uma lenda urbana, tipo, a Loira do banheiro? Ou o bicho papão? Claro que não, essas coisas não existem. Reza a lenda de que uma criatura, de pele ressecada, esverdeada e que possui quatro olhos circula pelas ruas livremente assombrando os seres viventes. Lógico que tudo isso não passava de história, conversar de boteco pé rapado, um conto de horror para fazer borrar de medo as crianças mais arteiras. Pois é. Tudo não passava de lorota, até Olga ficar frente a frente com a tal lenda.

*
Cidade pequena, poucos recursos, saneamento básico precário e nas ruas o perigo é constante. Desafiando tudo isso a pequena Olga deixou o trabalho de doméstica um pouco mais tarde. Normalmente seu expediente na casa dos Martins Rodrigues termina as 17h, mais tardar até às 18h, depende de quando o único filho do casal de médicos a pede para ficar com ele em seu quarto. Hoje foi mais um dia em que a jovem atarracada permaneceu no quarto do filho tarado do doutor Douglas sendo lambida dos pés a cabeça. Fala sério, Olga até gosta e no final sempre leva uma grana para casa.
     Ela desceu a rua esburacada precisando urgente de um recapeamento com suas sandálias fazendo barulho. Olhou a hora no celular e ao ver que já passava das nove entrou em pânico. Será mais uma noite onde seus país irão encher seus ouvidos com sermões longos. Dobrou a esquina onde a lâmpada do poste acende e apaga a meses e não adianta ligar para a companhia de luz urbana. Ainda sentindo o gosto do membro do filho do médico na boca, Olga avistou um homem vindo. Calça, sapatos, camisa para fora, toda amassada. Olga pensou em se tratar de um mendigo ou um dos bêbados vindo da farra, por isso seguiu andando.
     Faltando três metros entre ele e ela, a baixinha sentiu um forte odor, enxofre, pensou a doméstica. Olga olhou para as mãos, elas eram magras, quase secas, típicas de um defunto enterrado a dias. Ela também reparou na tonalidade da pele. Esverdeada, veias irregulares e o rosto murcho, mas o que a fez mijar na calcinha foi o fato dele ter quatro olhos. Quatro olhos, um ao lado do outro, cheios de um tipo de muco. A boca da criatura é minúscula, uma cicatriz praticamente.
    - O que tenho eu contigo? – gaguejou Olga.
    - Outra vida. – a voz do bicho é baixa como se fosse um doente terminal falando.
    Olga lhe deu as costas, mas antes clamou o sangue do Cordeiro, imagine essa coisa a seguir até em casa. Curiosa a moça se virou e ele já dobrava a esquina.
     - Eu hein! – sentiu um forte arrepio na espinha.
   
*
Se Olga ouviu sermão dos país? Claro que sim, mas nada comparado ao que viu na rua. Quatro olhos, o mensageiro de satanás, a lenda urbana mais macabra que já viu e ouviu. Perto da meia noite ela ainda mexia no telefone quando sentiu vontade de fazer xixi. Saiu do quarto, passou pela sala, entrou na cozinha e por fim o banheiro. Esvaziou a bexiga olhando o Facebook. Ao dar a descarga uma mão de cadáver tocou duas vezes no vidro da pequena janela do banheiro. Olga soltou um curto grito e orou. A mão de Quatro olhos ainda estava lá fazendo um V com os dedos. A doméstica intensificou a prece e quando abriu os olhos ele já havia ido embora. Ela não dormiu, ficou apavorada imaginando aquela figura dentro do quarto.
    Na casa dos Martins Rodrigues o dia foi arrastado, chato, demorado e sonolento. Olga preparou o almoço, passou roupa, limpou os quartos e quando Ricardinho chegou ele a chamou para uma festinha a dois.
     - Meu pai vai fazer vinte quatro horas e minha mãe está com as amigas dela no shopping. Vamos?
      Bocejando Olga negou, estava hipercansada.
      - Poxa, eu queria chegar em casa cedo hoje e...
      - Tudo bem. – tirou do bolso da calça um bolinho de notas de cinquenta reais. – já são cinco da tarde, você já pode ir.
      - Ok, mas vou logo dizendo, vou ficar por baixo hoje. – o puxou para o quarto.

*
Cabelos empapados colando no pescoço. Na testa o suor escorre entrando nos olhos. A respiração é pesada e forte. Olga acordou do pesadelo as três da manhã. Olhou ao redor e sentiu o cheiro do enxofre.
     - Me deixe em paz, por favor. – chorou encolhida entre os lençóis.
     A porta do quarto se abriu e ele entrou. Sim, Quatro olhos estava dentro de sua casa. Olga pensou em chamar seu pai ou sua mãe, mas eles não acreditariam, afinal tudo não passa de uma lenda, Quatro olhos não existe. Ele subiu na cama com os sapatos sujos de uma lama negra, fétida e fumegante, o calor do inferno, pensou ela.
      - Você não é real, você não está aqui, sai, sai, sai. – fechou os olhos e tapou os ouvidos, mas a voz doentia do bicho fez vibrar seus corpos sonoros.
     - Outra vida.
     Olga abriu os olhos e quatro olhos havia sumido. Seu quarto estranhamente estava numa completa paz, ela quase pode ver anjos voando. Ela repousou sua cabeça no travesseiro e dormiu feito um recém nascido.
*
Um mês de paz. Um mês sem pesadelos e o que é melhor, um mês sem ver aquilo. Olga sentiu sua boca encher de água. Ela correu, mas não conseguiu conter o vômito. De uns tempos pra cá ela vem sentindo enjôos fortíssimos e sua menstruação está atrasada.
     - Só me faltava essa. – falou colocando a mão na barriga.
      Foi complicado. Ricardinho, mimado, é claro que não iria mesmo assumir a criança. Os país de Olga quase morreram de desgosto e os patrões não perderam a oportunidade de humilha-la.
      - Vadia, aproveitadora, abusou do nosso filho. – esbravejou doutora Gilmara Martins Rodrigues. – saia da minha casa, agora.
     - Vou lhe pagar o mês e por favor, nos esqueça. – ordenou doutor Douglas.

     Nove meses depois Olga deu a luz a uma linda menininha. Vitória nasceu numa tarde ensolarada, chorona e gordinha. O médico fez todos os procedimentos e depois colocou a criança para ter o primeiro contato com a jovem mamãe.
    - Obrigado por tudo, doutor. – disse Olga sorrindo para a filha.
    O médico tirou a máscara cirúrgica e a touca e falou perto do ouvido de Olga.
     - Outra vida. FIM
   

terça-feira, 3 de março de 2020

GÊMEOS IDÊNTICOS - Conto Policial com Heloísa Mattos


Gêmeos Idênticos
Conto policial com Heloísa Mattos


Ela nasceu morena. Passou sua infância, adolescência e parte de sua juventude com os cabelos negros. Mesmo depois de ingressar na polícia, Heloísa sempre manteve suas madeixas na cor natural. Hoje em dia ela vem adotando o ruivo. As pessoas de seu convívio já até se acostumaram com a imagem dela com os cabelos vermelhos vivos. A outra motivação para a mudança foi, com certeza, Vinícius, seu parceiro. O negro de corpo atlético e perfumado que as vezes faz a detetive perder a concentração. O problema é que Vinícius Bastos é profissional, bastante ético. Por mais que Heloísa seja uma mulher extraordinariamente bonita, ele jamais ousaria dar em cima dela ou quem sabe jogar uma cantada, coisa que Heloísa aceitaria sem qualquer problema.
      O visual foi mudado. O rosto ficou ainda mais perfeito, porém Vinícius não passou de um magro “ ficou bem ruivinha”. Água na fogueira. O jeito foi engolir o gosto amargo e tocar a vida de mulher apaixonada por colega de trabalho. Para não dar muita bandeira Helô resolveu deixar o vermelho como sendo a cor de seus cabelos e passar muito bem.

*

Vinícius entrou na sala a qual ele compartilha com Heloísa desde quando se tornaram parceiros. Na mão direita o celular com o aplicativo de mensagens aberto. Alguém fala com ele pelo áudio. Voz feminina, bastante insinuante.
     - Você ainda não me disse se iremos nos ver no final da semana.
     - Sim. Vai depender muito da minha escala. – puxou sua cadeira e se sentou. – acho melhor esperarmos até quinta no, máximo, só então terei certeza.
     - Seria legal, adorei ter conhecer.
     - Poxa, eu também, naquele dia tudo foi tão rápido e confuso. Quem sabe num lugar mais tranquilo possamos nos conhecer melhor?
      - Louca para que quinta-feira chegue logo.
      Vinícius vibrou ao ouvir tal declaração.
      - Valeu, Érica, aguarde meu contato quinta.
      - Ansiosa.
      Bastos deixou o aparelho de lado e bateu palminhas. Começou a revirar alguns papéis quando ouviu um barulho vindo dos arquivos. Sempre com o faro de polícia ativado, Vinícius se levantou colocando a mão no coldre. De repente, de trás dos armários, Heloísa o surpreendeu.
       - Assim você me mata do coração. Que diabos estava fazendo aí?
       Muito sem graça a investigadora forçou uma risadinha erguendo um envelope.
       - Cheguei cedo para procurar esse documento e como você chegou falando no ZAP fiquei sem graça de aparecer.
       - Então você ficou aí ouvindo tudo? – voltou para sua mesa.
      - Pois é. – encolheu os ombros.
      - Você é demais, dona Mattos.

*

Cristiane Silva, a famosa Cris. A jovem mais linda e atraente da faculdade. Dona de um corpo magro com curvas e longos cabelos negros que cobrem suas costas. Cris não tem namorado, não que ela não queira. Os rapazes não se aproximam dela por que a consideram muita areia para o caminhãozinho deles. Mal sabem eles que Cris está Louca para se envolver com qualquer um que se aproximar, principalmente pelos irmãos André e Andrei Gomes, gêmeos Idênticos.
     As diferenças são mínimas. Quando entraram para a universidade, André e Andrei causaram a maior confusão entre os colegas e professores. Ninguém sabia quem era quem. Hoje isso já não é mais problema. Depois de dois anos os irmãos Gomes são rapidamente identificados.
      Como sempre faz assim que coloca os pés na sala de aula, Cris procurou pelos irmãos. Eles se encontravam nos fundos já acenavam para ela. Um beijo em cada um fazendo acender os sentimentos mais eróticos nos rapazes. Hoje ela está sensacional dentro de uma calça justa branca e blusa vermelha. A explicação prosseguiu e André não conseguia tirar os olhos dos cabelos e nem das costas a mostra de Cris. Seu irmão precisou cutuca-lo para fazê-lo voltar para realidade.
     - Se liga, cara.

*


   Ir para casa depois de um plantão de vinte quatro horas é bom. Sair da sala de um chefe mal humorado é bem melhor. Heloísa e Vinícius, assim como todos os outros agentes deixaram a sala do capitão Medeiros zonzos e também com sua voz rouca, imponente e repetitiva, “ os frutos de um bom policial nunca foram os números de prisões, mas sim o respeito dos criminosos pela instituição” se Jorge Medeiros está certo ou não Heloísa não sabe, tudo que ela quer no momento é um café forte e conversar com seu parceiro.
      - Érica? – ela disse adoçando o café.
      - Caramba, que memória. – Vinícius abriu a pasta que estava em cima da mesa. – sim, Érica Batista, eu a conheci no aniversário do meu primo semana passada.
      - Já estão juntos? – se virou para ele.
      - Digamos que estamos conversando bastante. – segue vendo o conteúdo da pasta.
      - Posso vê-la? – assoprou e deu um curto gole.
      - Sério? – fechou a pasta.
      - Desculpa, acho que assim já é demais. – ruborizou.
      - Tudo bem. – pegou o celular no bolso da calça. Abriu a galeria e encontrou a foto. – lhe apresento Érica Batista.
      O que mais irritou a policial não foi o fato de Érica ser uma mulher exuberante e de sorriso farto, mas sim por ser ruiva. Tudo o que ela mais queria no momento era pegar aquele smartphone das mãos de Vinícius e atira-lo pela janela. Nunca, em tempo algum ela imaginou que outra ruiva ocuparia o coração de seu pretendente. Tudo o que restou para Heloísa foi respirar fundo, engolir o gosto amargo do ciúmes e dizer.
     - Linda ela, pelo menos tem bom gosto para tingir os cabelos.
     - Cara, você vai curtir conhecê-la, esse sorrisão de perto é iluminador.
     Se o dia já estava estranho, agora então se tornou indigesto. Heloísa estava louca para sair daquele lugar e ir para casa tomar um longo banho quente e depois se encharcar de vinho. Com os ombros arriados ela voltou para sua mesa e se jogou na cadeira.
      - Preciso que reveja o caso do carro roubado na sexta passada, acredito eu que estamos diante de um golpe.
      - Sim, Senhora.

*

Hambúrgueres, batatas fritas e refrigerante. Na hora do intervalo os amigos matam a fome enquanto conversam empolgados sobre os planos pós faculdade. Cris é a mais falante, a que mais articula.
     - Não vejo a hora de terminar isso tudo e poder enfim trabalhar na área.
     - Gosto de ver sua animação, Cris. – disse Andrei pegando uma batata.
     - Chega desse negócio de viver de bico, terei uma profissão finalmente.
     - É isso aí. – André bateu na mesa.
     - Vou ao banheiro. – limpou o canto da boca com a língua.
     André e Andrei observaram o balançar dos cabelos como uma cascata negra que deságua nas nádegas por cima daquela calça branca. Os dois se entreolharam feito dois lobos na disputa de uma presa.
      - Será que ela toparia trepar em grupo? – falou André.
      - Será? Não custa nada perguntar. – riu Andrei.
      - Que tal convidá-la para um filminho lá no apartamento, quem sabe depois de umas e outras ela não se anima?
      - Esse é o meu irmãozinho querido. – André apertou o rosto de Andrei.
      - Pare com isso cara.

Fim de mais um dia de aula. Foi puxado, porém produtivo. Vida de universitário é uma batalha constante. Na saída para o estacionamento os irmãos Gomes abordaram Cris antes dela sair com sua moto.
     - André e eu gostaríamos muito que você fosse em nosso apartamento assistir um filme na Netflix.
     - Hoje?
     - Sim. – Andrei.
     - Pô, legal, vou sim.
     - Ótimo. As 16h então? – André esfregou as mãos.
     André e Andrei são frutos de um relacionamento conturbado. O pai não aceitava a gravidez da mãe e quando soube que era de gêmeos o rapaz fez de tudo para que a jovem interrompesse a gestação. Vendo que sua mulher estava decidida a parir os bebês, o jovem mecânico abandonou o lar deixando a pobre mãe se amparo, sem saúde e sem dinheiro. Na hora do parto houve algumas complicações e a mulher veio a falecer. Aos dois meses de vida André e Andrei foram para um orfanato e lá ficaram até a idade do ensino médio. Depois de formados eles saíram da entidade. Juntos começaram a trabalhar em uma loja de sapatos e juntos montaram um negócio, uma pequena gráfica que funciona no apertado apartamento no quinto andar.
     - Então tá. – colocou o capacete.
     Assim que Cris os deixou os irmãos voltaram a se olhar e depois se cumprimentaram com gestos.
     - Vamos jantar carne de primeira. – brincou Andrei.

*

Ciúmes, o que fazer para se livrar desse sentimento altamente destrutivo? Vinícius tinha que se apaixonar justamente por uma ruiva de farmácia igual a ela? Homens são criaturas de outro mundo mesmo. Heloísa chegou em casa e foi correndo para o quarto, não para chorar, mas sim para se olhar no espelho e tentar encontrar algo de errado, por que diabos Vini não se interessa por ela. Apesar dos 35 anos, Helô está muito bem fisicamente, é bonita, muito bonita, possui um olhar sedutor e cheira muito bem. Ela sabe que gosto não se discute. Talvez essa tal de Érica Batista faça o que todo homem gosta demais, ela pode ser uma boa cozinheira, ou seja bem humorada, sei lá, alguma coisa Vinícius viu naquela megera sorridente.
    Karen apareceu de repente no quarto enquanto Heloísa ainda se admirava no espelho do armário.
     - Quem diária a imponente policial Heloísa Mattos fazendo poses sensuais diante do espelho. – brincou.
     - Será que a grande preguiçosa Karen Mattos terminou o trabalho de casa?
     - Eita, pelo visto toda a carga do DP te acompanhou até aqui. – cruzou os braços. – lavei a louça e limpei o quarto senhora.
      - Ótimo. Hoje não irei cozinhar. Veja no Ifood se tem algo bom para o jantar. – Karen comemorou com um gritinho.

*

A geladeira foi abastecida com cervejas e vinhos. Na mesa de centro muitos frios e até alguns salgadinhos. Tudo pronto para receber a deusa dos longos cabelos de cachoeira. André terminou o banho e Andrei escolheu o filme. O celular no bolso vibrou e tocou um sucesso do rock dos anos 1980. Andrei atendeu.
     - Cris!
     - Cheguei, estou subindo.
     Ela chegou. O apartamento foi limpo e climatizado. André saiu do quarto devidamente arrumado e se acomodou no sofá. Andrei aguardou a campainha tocar perto da porta. Cris nem precisou anunciar sua chegada tocando a campainha, o cheiro do hidratante já havia feito isso. Ela é recebida pelo rapaz com um abraço delicado onde ele pode sentir a firmeza dos seios e a temperatura do corpo da beldade. Andrei precisou dar um tempo para que o sangue parasse de lhe provocar ereção.
      Cris caminhou até a sala onde também abraçou o outro gêmeo loiro.
      - Uau, que apartamento gostoso.
      - Que bom que gostou.
      Se Cris fez de propósito ou não isso não importa. Bermudinha jeans rasgada curta e camisa regata deixando a mostra o sutiã preto. André salivou só de olhar.
      - Vamos ao filme? – disse Andrei pegando um salgado.
      - Vamos. – se sentou no sofá cruzando as pernas.

*

Vinícius e Érica se beijaram por mais ou menos cinco minutos ininterruptamente dentro do carro dele. O ato foi tão bom e recheado de desejos que o policial não se importou de ter o rosto borrado pelo batom. Para buscar mais fôlego os dois desgrudaram os lábios e se recostaram nos bancos. Ao ver o rosto do novo namorado sujo Érica não conseguiu prender o riso.
     - O que foi?
     - Dê uma olhada.
     Pelo espelho interno Vinícius se olhou e soltou sua famosa gargalhada.
      - Estou parecendo o Coringa negro.
      - Ainda bem que eu sempre ando com meus lencinhos. – abriu a caixa e tirou dois.
      Érica Batista é do tipo mulherão. Pernas grossas torneadas e cintura fina. A pele morena clara - no momento bronzeada - trás a tona o que há de mais sensual, Heloísa tem todos os motivos para sentir ciúmes dela. Depois de limpar o rosto do policial eles voltaram a se beijar. Por mais que Vinícius não transe a algum tempo, ele se segurou mesmo sabendo que o seu par estaria aberto a uma longa noite de sexo. Vini preferiu se conter.
      - Vamos comer alguma coisa?
      - Hum, pizza, talvez? – voltou a limpar a boca do namorado.
      - Boa pedida. – ligou o carro.

*

O filme até que estava interessante, porém o cheiro e as curvas de Cris eram bem melhores. Os irmãos Gomes se olharam pela última vez antes de Andrei repousar a mão na coxa dela. Cris, ainda sem perceber a maldade no toque do colega de faculdade permitiu que ele continuasse. Não obtendo resposta, Andrei passou a acaricia-la. Nada. Cris realmente mergulhou fundo na trama. Nervoso o rapaz resolveu ir direto ao ponto – literalmente – Cris retirou a mão de Andrei de sua parte íntima e o encarou.
      - Não estou entendendo? – olhou para ele.
      - Pois é, nem eu. – coçou a nuca e depois pegou o controle remoto e desligou a TV.
      - Qual foi, cara, eu estava assistindo.
      - Disse bem, você estava assistindo, mas agora você irá nos servir.
      Cris esboçou uma reação, mas parou diante de André que já se encontrava de pé segurado sua genitália.
      - Quem são vocês, estupradores, o que querem? – voz embargada.
      - Fique calma. – orientou André. – vai dizer que nunca sentiu vontade de trepar com dois ao mesmo tempo?
      - Socorro. Vou chamar a polícia. – pegou o celular.
      Furioso Andrei bateu na mão dela jogando o aparelho no chão. André terminou de quebra-lo pisando forte. Desesperada a universitária tentou se levantar e correr, mas as mãos de Andrei não permitiram.
       - Aonde pensa que vai, sua vagabunda.
       - Maninho, hora do show. – vibrou André.

*

Durante o dia aquele lugar é pouco frequentando, somente os mendigos gostam de ficar ali sentindo o forte odor daquilo que um dia foi um rio. Devido a falta de educação e conscientização das pessoas, o rio agora é um esgoto e céu aberto. Ali são deixados móveis, sacolas de lixo e até animais mortos. Perto das duas da manhã o carro dos irmãos Gomes parou as margens do valão. Andrei mais uma vez repreendeu o irmão por reclamar demais.
     - André, agora já foi feito. Quem mandou ela não colaborar.
     - Mas, cara, mata-la?
     - Qual outra saída? Se eu a deixasse viva, com certeza ela iria na polícia. Você gostaria de ir preso?
      André abaixou a cabeça.
      - Viu? Claro que não, nem eu. Agora desça e me ajude a se livrar do corpo.
      - Coitada da Cris, sofreu muito antes de morrer. – engoliu seco.
      Andrei foi o primeiro a descer. Ele se certificou se não havia ninguém por perto. André abriu o porta malas e olhou mais uma vez o rosto retorcido de Cris. Um nó se formou na mesma hora em sua garganta.
      - Irmão, por favor, vamos fazer isso logo. – Andrei tocou em seu ombro.
      - Tudo bem. – fungou o nariz.
      O corpo de Cris é deixado naquela água podre, esverdeada e fétida. A lua mais uma vez foi testemunha de um crime, da interrupção de sonhos, da juventude cancelada, de uma morte brutal por não atender os desejos e fantasias de dois loucos. O carro fez a manobra e desapareceu em meio a madrugada.

*

O silêncio da companheira de trabalho nunca incomodou tanto Vinícius que está acostumado a tagarelice de Helô cada vez que eles voltam da folga. Pela primeira vez em anos a investigadora entrou naquela sala, se serviu do café e foi direto para sua mesa. Vinícius apenas a acompanhou com o olhar. Pela sua experiência, mulheres quando estão de TPM preferem não falar muito e também não suportam tantas perguntas. Sabendo disso o detetive evitou os comentários e também os olhares de desconfiança.
    O celular tocou. Para não piorar ainda mais o clima Vinícius correu para atendê-lo fora da sala. Era Érica, ligando para dar bom dia ao novo amor de sua vida. Em sua mesa Heloísa tentava disfarçar e controlar seu ciúmes fingindo analisar alguns papéis. Mesmo com a visão limitada devido as persianas foi possível ver Vinícius com aquele sorrisinho sem vergonha de canto de boca. Ele encerrou a ligação e entrou.
     - Helô, tá a fim de almoçar comigo e com a Érica?
     A vontade era de pular no pescoço dele e esgana-lo dizendo que o ama, mas o que saiu da boca de Heloísa foi um estranho e alto “sim”.
     - Ótimo. Tá marcado então.

O velho e bom bar café que fica de esquina para a avenida principal da cidade. Um lugar frequentado por pessoas de classe média pra cima, ou talvez pessoas que somente querem provar do prato principal do chefe da cozinha. Na mesa do centro do estabelecimento estão Érica, a seu lado Vinícius e na outra ponta uma Heloísa Mattos revestida de falsidade. Uma coisa ela precisa admitir, Érica é ainda mais bonita e gostosa ao vivo. Sua voz de radialista chama muito atenção. Vinícius está muito bem servido.
     - O que fez uma mulher extraordinariamente linda ingressar na carreira policial? – Érica abriu um sorriso de arrasar.
      - Ah. – ruborizou. – sei lá, sempre gostei de viver perigosamente.
      - Quando eu era mais nova, digo, na minha adolescência, eu era louca para ser uma policial. O tempo passou junto com a vontade.
      - E o que faz hoje? – mexeu no suco com o canudo.
      - Sou fisioterapeuta. Amo cuidar de gente. – olhou para Vinícius.
      Outra onda e dessa vez veio mais forte o ciúmes. O almoço não demorou muito, foi tempo bastante para entender que Vinícius não tem olhos para outra mulher a não ser Érica Batista. O iPhone de Heloísa tocou.
      - Agente Mattos.
      - Vá agora mesmo para a Beira Rio, um corpo de uma moça foi encontrado por um morador de rua. – rosnou Medeiros.
      - Deixa comigo. – sinalizou para Vinícius que acariciava o rosto da namorada. – precisamos ir, homicídio.
      - Meu Deus? – Érica levou as mãos a boca.

*

É difícil acreditar que alguém tenha tirado a vida de uma jovem tão bonita e atraente. A água suja daquele valão fazia com que os longos cabelos negros do cadáver se movessem num só sentido. Vinícius e Heloísa olhavam sem parar para a cena do crime aguardando o trabalho de retirada do corpo. Um policial fardado se aproximou dos dois.
     - Querem falar com o morador de rua?
     - Eu vou. – disse Helô. – você fica e tenta achar alguma coisa.
     - Sim, senhora, chefe. – usou de sarcasmo.
    O cheiro vindo do mendigo era uma terrível mistura de urina, suor e mal hálito. Heloísa se arrependeu de não ter ficado com Vinícius.
     - Oi, qual o seu nome?
     - Anselmo, mas pode me chamar de o guardião do espaço.
     - Ah. Sim, sei. Anselmo, você viu quando jogaram o corpo aqui?
     - Olha, só vou revelar para a senhora, por que a senhora é bonita. – fez uma pausa. – chega mais perto.
     Cabelos e barba crescida, rosto flácido coberto por marcas de expressão e pouquíssimos dentes. Se de longe o cheiro já era forte, de perto torna-se mortal. Heloísa prendeu a respiração e se aproximou.
      - Figurinha repetida. – disse o mendigo.
      - O que? – Heloísa arqueou a sobrancelha.
      - Iguaizinhos.
      - Como assim, as pessoas que jogaram o corpo aqui? – Helô estava ficando vermelha.
      - Eu não os vi jogando, mas vi quando passaram de carro, eram iguais.
      - Gêmeos, um casal ou dois homens?
      - Homens, loiros, bonitões.
      As informações foram tão importantes que a detetive esqueceu do cheiro vindo do mendigo. Ela o agradeceu e correu até seu companheiro que a essa altura já havia conversado com o perito que lhe deu um parecer preliminar.
     - Ela foi estrangulada.
     - Vamos para o DP e rápido.

*

Era para ser uma tarde memorável regada a cerveja e a sexo da melhor qualidade, mas no fim tudo terminou em uma morte horrorosa com direito e pedido de misericórdia. A imagem de Cris implorando pela vida dificilmente sairá da cabeça de André. Ele jamais imaginou que seu irmão seria capaz de tirar uma vida. Como são as coisas. André e Andrei, concebidos no mesmo útero, na mesma bolsa, são pessoas diferentes. Andrei é mais frio, não deixa que laços o prendam ou impeçam que ele faça algo. André é emoção pura. Ele acreditava piamente que poderia rolar algo entre Cris e eles, um verdadeira história de amor a três. Isso não aconteceu. Andrei voltou do quarto e percebeu o abatimento do irmão.
     - André, por favor, melhora essa cara.
     - Ela sofreu muito, Andrei. – prendeu o choro.
     - Sim, eu vi.
     - Não era pra isso ter acontecido. Não era. – passou as mãos nos cabelos. – será que você não consegue sentir um pingo de remorso? – fechou o punhos.
      - André, pense, se eu a deixasse ir, com certeza Cris iria nos denunciar na polícia, nossa vida, tudo que construímos juntos iria por água a baixo. Cristiane está morta, ponto final. – andou até a janela.
       - Você a matou, Andrei, a matou olhando nos olhos dela, quem é você afinal? – falou trancando os dentes.
       - Eu sou o cara que te protegeu a vida toda. Lembra das brigas no orfanato? Das confusões no colégio? Eu sempre estava lá para tomar suas dores, comprar o seu barulho, sabe por que? Porque você é fraco, André, sempre foi.
       A visão de André ficou turva e um filme se passou em sua mente. Ele foi dominado pela raiva e quando deu por si ele já estava partindo pra cima do irmão com socos. Andrei se esquivou de boa parte dos golpes, porém teve um que o acertou em cheio o nariz.
     - Mas que droga.
     Agora foi a vez de Andrei jogar toda sua fúria sobre seu irmão. Dois cruzados certeiros fizeram André trançar as pernas e cair sentado no sofá.
      - Mas que droga, André, você causou tudo isso. Nunca brigamos antes. – falou limpando o sangue que escorria do nariz. – você se apaixonou por ela, não foi?
      André apenas abaixou a cabeça e chorou. O sofrimento do irmão amoleceu o coração de pedra de Andrei que se sentou a seu lado e passou o braço por trás das costas e o puxou para junto de si e confortou.
      - Supere meu mano, supere. Vamos beber alguma coisa?
      - Vinho, talvez. – soltou a respiração.
      - Ótima pedida.

*

Por mais que Heloísa esteja envolvida até o pescoço num caso tão brutal ela ainda consegue encontrar espaço para processar tudo o que aconteceu naquele almoço com Érica e Vinícius. De acordo com que presenciou, ambos estão se curtindo. A fase do namoro tem lá suas vantagens e ela se recorda quando viveu isso com seu ex marido Ricardo. Foi uma época onde somente o que valia era os encontros e as horas de sexo. Ricardo podia ser o que fosse, mas foi o único a fazê-la chegar ao lendário ponto G.
     Vinícius chegou com novas informações. Heloísa estava tão mergulhada em seus pensamentos que mal viu a entrada do parceiro sacudindo o documento no ar.
       - Cristiane Silva, universitária, 20 anos.
       - Oi, o que? – balançou a cabeça.
       - Acorda mulher, vamos ao trabalho. – colocou o papel em cima da mesa.
       - Linda garota. – disse olhando para a foto 3x4 de Cris. – o velho morador de rua disse que viu um carro saindo de perto onde jogaram o corpo.
       - Gêmeos, foi isso? – Vinícius passou a mão no cavanhaque.
       - Bom, ele disse que eram iguais, temos que apurar. Não é comum um carro passar aquela hora por aquele lugar. Temos que fazer umas visitas aos lugares onde Cristiane frequentava.
       - Universidade, casas de show, casa de amigos. – continua a acariciar a barba.
       - Vamos a universidade. – levantou.

*

Agora foi a vez de Vinícius dirigir a viatura. Sentado de forma correta ao volante, Bastos lembra muito um chofer de famílias nobres, mesmo porquê a sua forma de condução é perfeita. Nem mesmo o trânsito caótico o faz perder a compostura. Heloísa não quer tocar no assunto Érica, isso poderia levantar suspeitas sobre o seu amor quase platônico. Não adianta, as perguntas espirram de sua boca e ela acaba o interrogando.
     - Ela é mais bonita ao vivo, se deu bem, detetive Bastos.
      - Pelo menos nisso eu dei sorte. – sorriu olhando o semáforo.
      - Como assim, as outras garotas não eram gatinhas?
      - Eu sempre achei esse lance de beleza uma grande besteira, beleza para mim é ponto de vista, o que importa é o que você realmente sente pela outra pessoa, entendeu?
      - Hum, belo discurso.
      O sinal abriu.
      - E você pretende conhecer a família?
      - Ainda é muito cedo. Érica é uma mulher determinada, ela não quer que nada atrapalhe seus estudos e eu dou a maior força.
      - Pelo visto quem deu sorte foi ela.

*

O clima na universidade vai dá revolta a tristeza. Todos querem resposta, todos querem a prisão do miserável que interrompeu a gloriosa vida de Cris Silva. A dupla de policiais entrou na sala do diretor e se acomodaram um ao lado do outro.
     - Jamais imaginei que isso poderia acontecer numa instituição sob meu comando.
     - Gostaríamos de conversar com alguns de seus alunos. – disse Helô.
     - Cris era uma das minhas alunas mais aplicadas e responsável também. Ela era focada, gostava de conversar...
      - Com quem? – perguntou Vinícius.
      - Com todos, inclusive com os irmãos Gomes.
      - Irmãos Gomes? – Heloísa sentiu cada músculo enrijecer.
      - André e Andrei Gomes, estudam aqui, eles devem estar consternados.
      - E no momento eles se encontram na faculdade? – Bastos se ajeitou na cadeira.
      - Não. Estão ausentes a dois dias.
      - Preciso do endereço desses rapazes. – Heloísa olhou para Vinícius e depois para o diretor. – por um acaso André e Andrei Gomes são gêmeos?
      - Idênticos. – disse enquanto pegava a ficha na gaveta.
*

Numa família que se preze sempre há um que é mais racional, o que pensa mais. Esse sempre foi o papel de Andrei. Mesmo quando ainda estavam no orfanato ele era o articulador, o sujeito que organizava as coisas. Já André é um pouco mais devagar, precisa que alguém lhe dê ordens, no caso ele é o operário. Diante de uma situação onde a qualquer momento eles podem ser pegos, mais do que nunca Andrei precisa manter tudo sob controle, e isso inclui seu irmão.
     - Você está bem? – Andrei o perguntou da porta do quarto.
     - Melhor. – segue lendo.
     - Você precisa colocar sua cabeça no lugar, esse seu descontrole emocional pode nos levar para a cadeia.
     - Eu juro que estou tentando, irmãozinho, está vendo o título do livro? Controle emocional, você deveria lê-lo.
     - Outra hora. – nesse momento a campainha tocou. – você está esperando alguém? – André deu de ombros.
      Ao olhar pelo olho mágico e conseguir visualizar um casal devidamente arrumado Andrei pensou em se tratar de religiosos em busca de novos adeptos.
      - Pois não? – disse ao abrir a porta.
      - Polícia. – Vinícius lhe mostrou o distintivo.
      Não eram religiosos, mas sim, algo pior. Andrei sentiu o coração vir até a garganta. Ele controlou a respiração e agiu naturalmente diante da dupla de agentes.
      - Sim?
      - Onde está seu irmão? – Heloísa olhou para o rapaz ainda segurando a porta.
      - Meu irmão?
      - Sim, seu irmão, vocês são gêmeos, não são? – Vinícius disse olhando para dentro do apartamento.
      - Eu não estou entendendo. Vamos entrando.
      - Você é o André ou... – Heloísa.
      - Andrei Gomes. Posso saber o que aconteceu?
      O trio continuou a conversa no meio da sala. No quarto André tentou de todas as maneiras se manter frio, pensar antes de agir. Ele escuta a conversa e a adrenalina faz com que seu corpo entre em colapso. O livro que a minutos atrás lhe proporcionava momentos de pura paz e tranquilidade, agora se encontra jogado perto do armário. As coisas pioraram quando a voz de Vinícius soou o nome de Cris.
     - Sim, Cristiane Silva, ela era a nossa colega de faculdade. – abaixou a cabeça se fingindo de triste.
     - E aonde está o André? – Heloísa Mattos perguntou.
     Descontrole. Um ser humano descontrolado fica cego, sem noção do tempo, perde a razão. André viu em cima da mesa do computador uma tesoura, uma arma perfeita. Será com ela que ele vai agir. Enquanto seu irmão atua na frente dos policiais, sorrateiramente o outro gêmeo saiu do quarto e avançou contra o agente negro o atingindo no ombro.
      - Não, André. – gritou Andrei.
      - Solte a arma. – ordenou Heloísa sacando sua pistola.

*

Vinícius é socorrido por um enfermeiro enquanto Heloísa guarda o corpo de André estirado no chão da sala com um furo no peito. Não havia outra saída. Era ele ou Vinícius. Mesmo com os gritos de ordem ele cravou a tesoura na clavícula de seu parceiro. Foi preciso agir rápido. Legítima defesa. Helô sabe disso, mas, toda morte é traumática. Ela olha para aquele jovem de boa aparência com os olhos semi abertos e lamentou em silêncio.
     - Você não tinha outra alternativa, Helô. – Vinícius tentou conforta-la.
     - Pois é... – se afastou.
     - Temos que localizar Andrei, não deu tempo dele sair da cidade.
     - Deixa comigo, você segue para o hospital, te encontro mais tarde.
     - Eu estou bem, foi superficial. – olha para o ferimento.
     - Nada disso. Vou acionar outros agentes.
     Heloísa deixou o prédio junto com Vinícius e o enfermeiro. Ela estava se sentindo sufocada e também já não aguentava mais olhar para o tórax bem definido de seu companheiro de trabalho. Ela ainda precisa conviver com esse ciúme que a corrói. Antes de entrar na viatura ela parou para ver Vinícius deitando na maca dentro da ambulância. Em seguida o corpo de André também é retirado do local e levado na viatura da defesa civil. Nada saiu como o planejado, mas quem disse que seria fácil. O plano agora é localizar Andrei a qualquer custo. Heloísa entrou no veículo e saiu cinco minutos depois da ambulância.

*

Mais que droga André, você tinha que piorar o que já estava ruim? Por que você cravou aquela tesoura no ombro daquele policial? Por que não deixou que eu resolvesse as coisas com eles? Eu ainda lhe falei, o seu descontrole ainda nos levaria a ruína. Foi o que aconteceu. Agora você está morto, irmãozinho, morto, e eu foragido, me escondendo em buracos feito um rato. Sinto sua falta. Apesar de tudo, sinto sua falta. Você poderia não ser tão forte e corajoso, mas era meu irmão, minha família. Sua morte não passará em branco. Aquela investigadora maldita pagará pelo que fez a você. Fique em paz onde sua alma estiver, querido irmão. Deixe que mais uma vez seu irmão aqui assuma o controle da situação.
     Andrei Gomes saiu de dentro do banheiro de um bar olhando o movimento do estabelecimento. Ele olhou para a TV sintonizada num telejornal local que informava sobre o desenrolar do caso Cristiane Silva. O apresentador dava as últimas atualizações, “ A polícia confirma que André Gomes resistiu a prisão e atacou o detetive Vinícius Bastos com golpes de tesoura. Ele foi morto por um disparo feito pela investigadora Heloísa Mattos que acertou o peito do universitário”
     A imagem de Heloísa congelada na tela causou um ódio mortal a ponto de Andrei precisar voltar ao banheiro e socar as paredes fazendo suas mãos sangrarem. Xingamentos e palavras de maldição sussurradas.
      - Controle-se Andrei, você não é assim, assuma o controle. – bateu levemente a testa no espelho.
       Refeito, ele saiu do bar e ganhou a rua. Olhou para ambos os lados da avenida antes de atravessa-la. Na mente só o rosto daquela ruiva maldita atirando contra seu irmão. Ela vai se arrepender de ter feito aquilo com André. Ele entrou numa rua bastante movimentada se misturou a multidão da hora do rush.

*

Heloísa acionou outros agentes como havia falado. Enquanto Vinícius estiver sob cuidados médicos ela contará com o apoio de uma força tarefa especializada na busca de Andrei. Na sala de reuniões a investigadora parece controlada por fora, porém por dentro ela é um verdadeiro barril de pólvora. Projetado logo atrás dela o mapa da cidade onde a mesma circula em vermelho os pontos dos possíveis esconderijos do universitário.
     - Ele saiu sem dinheiro, sem cartão de crédito, sem nada, somente com a roupa que usava. – ela clicou algumas vezes no notebook e logo a imagem de Andrei Gomes foi projetada na mídia. – esse é o nosso homem. Eu tenho certeza de que ele ainda está na cidade. Conto com a experiência dos senhores.
      Nesse momento Jorge Medeiros apareceu na sala e se acomodou no canto com os braços cruzados. Ao vê-lo, Heloísa deu por encerrada a reunião. Aos poucos o recinto foi ficando vazio. O chefe do DP caminhou lentamente até onde a policial ruiva que terminava de guardar seu material estava.
      - Me atualize.
      - Iniciamos uma busca. Se tudo correr como o combinado, a prisão de Andrei ocorrerá dentro de 48 horas, ou menos.
      - Hum! E como você está? – apoiou sua mão enorme no ombro dela.
      - Matar nunca é bom. – abaixou a cabeça.
      - Você fez o que era certo. Protegeu a vida do Bastos, é isso que importa. Estou com você nessa. Entendeu?
      Pela primeira vez Heloísa viu em Medeiros uma atitude e um sentimento paterno. Foi legal. Ela se sentiu envolvida pelo próprio pai.
      - Obrigado, chefe. – engoliu o nó formado na garganta.
      - Vá prender seu fugitivo.

*

Karen e sua melhor amiga estavam voltando do colégio distraídas conversando com bastante empolgação sobre a nova temporada da série para adolescentes. Quem mais fala é justamente a filha da investigadora que não abre espaço para sua colega de classe exponha sua opinião.
      - Na verdade só faltam dois episódios para terminar essa temporada que simplesmente achei ridícula.
       - Eu achei legal. – conseguiu finalmente falar.
       - Ah, você sempre foi do contra, aff.
       - Karen, cada um com sua opinião, certo?
       - Tá bom, vamos apertar o passo.
        - Vi a foto da sua mãe na TV, ela acertou um bandido.
        - Pois é, a dona Heloísa Mattos é a xerife dessa cidade, não dá mole pra vagabundo. – faz gestos simulando uma arma.
        Elas passaram por um sujeito sentado de cabeça baixa num dos bancos da praça. Assim que as meninas uniformizadas se distanciaram, Andrei as olhou feito um predador para a presa. Se vingar é preciso. Ele sabe que é um caminho sem volta, conhece os riscos, mas também sabe que algo precisa ser feito ou o sangue de seu querido irmão foi derramado atoa. Com cuidado para não ser reconhecido pelos frequentadores da praça, Andrei se levantou e as seguiu.

*

Finalmente uma notícia boa. Vinícius teve alta. Ao saber disso Heloísa correu até o hospital, ela queria ser a primeira a ajudá-lo a sair daquele lugar. Para isso ela deu um tapa no visual. Batom vermelho, cabelos soltos umedecidos e um perfume doce leve. A empolgação era tanta que a policial subiu cinco andares a pé. Passou por duas enfermeiras que conversavam alegremente uma mostrando algo no celular para a outra. Ela as cumprimentou com um gesto de cabeça e empurrou a porta do quarto. A cena que presenciou quase a fez chorar. Érica e Vinícius, se beijando feito dois loucos. Helô se sentiu tonta e se segurou na porta. Eles estavam tão envolvidos que demoraram a notar a presença dela no quarto. Vinícius abriu os olhos.
     - Ah, oi, Helô, nem te vi aí. – falou com a boca borrada de batom.
     - Oi, Heloísa, tudo bem? – Érica se afastou para pegar sua bolsa.
     - Pelo visto já está pronto para outra.
     O clima ficou esquisito e Helô não fez questão alguma de reverte-lo. Deixou sobre a mesa a pequena lembrança que havia comprado, um chaveiro com o “Bem vindo” em letras gigantes. Olhou para o casal e saiu.
      No corredor ela mais uma vez passou pelas enfermeiras que continuavam a conversar descontraídas perto da escada. Dessa vez a agente chamou o elevador. Vinícius Bastos não vale o esforço da descer cinco andares a pé. O jeito é esquecê-lo.

*

Naquela noite tudo foi ruim. Heloísa não conseguiu pegar no sono por mais que ela se esforçasse. Seria uma maldição o que ela estaria vivendo? Uma praga jogada pelo seu ex? Desde quando se separou de Ricardo Heloísa não conseguiu se relacionar com ninguém de maneira satisfatória. Ela é jovem, tem seus desejos, gosta de curtir, namorar, transar. Por falar em sexo, faz tempo que ela não sente um homem dentro dela numa cama. Deus sabe o quanto ela necessita disso urgente. Só que não é qualquer homem, precisa ser o homem. Vinícius Bastos pra ser sincera.
      Mais uma vez a imagem de Érica Batista se deliciando na boca de seu parceiro veio forte a sufocando. Só de calcinha e camiseta ela saiu do quarto e foi até a cozinha. No armário uma garrafa lacrada de vodka. Heloísa não é de beber, mas o dia foi tão difícil que ela não pensou duas vezes antes de abri-la. Dois goles sem fazer cara feia. Chega. Se embriagar não vai mudar nada. Vinícius vai continuar apaixonado por Érica e na certa amanhã ela terá que conviver com um caso difícil além é claro de uma tremenda dor de cabeça devido a ressaca.
     Sem fazer barulho ela passou no quarto de Karen. Sua filha dorme feito um recém nascido sem preocupação, sem boletos, sem amores, sem dor de cotovelo, ela apenas dorme. Ela cresceu rápido, já é uma mulher praticamente, uma linda mulher diga-se de passagem. Mesmo da porta Helô a beijou e saiu.

*

A melhor hora para um estudante é com certeza o momento onde soa o sinal anunciando o fim das aulas. Todos correm ganhando a rua ao mesmo tempo deixando o inspetor louco. Exceto Karen Mattos que caminha tranquilamente com sua mochila nas costas e um fichário no braço. Hoje ela preferiu seguir sozinha, sem as chatices da Carol. Assim que a filha da policial dobrou a esquina da rua da escola ela deu de frente com um rapaz loiro de largo sorriso.
      - Oi, me desculpa, eu estava distraída.
      - Que nada, eu que deveria ter prestado mais atenção.
      - Ok, então tchau. – Karen Mattos passou por Andrei que lhe agarrou o braço.
      - Aonde a senhorita pensa que vai?
      - Ei, cara, ficou louco, me solta ou eu vou gritar.
      - Você não faria isso. – lhe mostrou a faca de cozinha na cintura. – você vem comigo.

*

Bolsa pendurada no ombro direito. Uma pasta de capa preta em baixo do braço esquerdo e na mão desse mesmo braço um copo de 250ml de café fresquinho. Heloísa entrou em sua sala sem vontade alguma de começar a trabalhar. Vinícius Bastos já se encontrava em sua mesa fazendo algumas anotações. O bom dia dado por ela chegou aos ouvidos dele com gosto amargo.
     - Tudo bem?
     Ela também não estava afim de responder. Pra falar a verdade, Heloísa não queria sair de casa, do quarto. Sumir seria a palavra ideal. Por polidez ela o respondeu entre os dentes.
      - Posso saber o que foi aquilo, lá no hospital?
      - Aquilo o que, Vini? – disse esfregando os olhos.
      - Sei lá, você entrou de um jeito e depois agiu de forma hostil, a Érica se sentiu culpada.
      - Mas, por que ela se sentiria assim?
      Bastos puxou uma cadeira e se acomodou. Era tudo o que Heloísa não queria que ele fizesse. Ele ficou ali, diante dela, com aquela boca carnuda enfeitada por um cavanhaque muito bem desenhado.
      - Eu te conheço, ruiva, tá rolando alguma coisa. Pode falar?
      A declaração veio na boca e ela se conteve. Tudo o que Helô mais queria era poder tirar o peso de um amor não correspondido, não revelado. Depois de engolir seco várias vezes a policial tomou uma decisão.
       - O que está rolando é o seguinte, eu...
      O celular em cima da mesa tocou alto e ambos se sobressaltaram.
       - Agente Mattos, bom dia?
       - Bom dia, agente Mattos.
       - Quem deseja? – franziu a testa.
       - Andrei Gomes, irmão de André Gomes, morto pela senhora, está com tempo?
       Heloísa se levantou.
       - Sim. Tenho todo o tempo do mundo. Diga onde está, se entregue, será melhor pra você.
       Heloísa tapou a entrada de áudio e falou com Vinícius.
       - É o Andrei Gomes, está falando de um telefone público.
       - Coloque em viva voz. – sussurrou.
       - Pelo visto estou sendo ouvido por mais alguém. Acertei?
       - Chega de conversa e diga logo onde está?
       - Digamos que eu não liguei para me entregar, farei isso só depois de matar sua filha.
       Helô tentou manter o controle da respiração e não transparecer para Andrei o seu nervosismo. Vinícius seguia fazendo anotações.
        - Está blefando?
        - Eu não blefo, agente, eu costumo cumprir todas as minhas promessas, quando eu digo que vou matar sua filha, eu falo sério, não é Karen? – a voz trêmula de Karen é ouvida por sua mãe que vê sua sala girar.
        - Mãe, mãe, ele está falando sério, mãe, ele está agora com uma faca no meu pescoço. Socorro, mãe.
        Vini olhou para Heloísa não acreditando no que estava acontecendo. A investigadora passou a tremer quase não conseguindo segurar o aparelho. Bastos lhe ofereceu ajuda, mas a própria Mattos o deteve.
        - Filha, fique calma, tudo vai terminar bem.
        - Eu não teria tanta certeza, agente Mattos, assim que eu desligar o telefone matarei sua filha, mas não se preocupe, ligarei do celular dela informando onde a senhora poderá achar o corpo. Estamos quites?
         - Quanto você quer? – uma lágrima desceu do olho esquerdo.
         - A senhora está me insultando por um acaso? Não se trata de um sequestro, mas sim de uma vingança. A senhora matou meu irmão, minha família, o único que restou de uma família desgraçada. Vou desligar, mas, diferente da senhora, vou permitir que vocês se despeçam. Karen, fale com sua mãe.
        Helô estava se sentindo mal. Sua cabeça zunia. Seu corpo tremia e o suor escorria frio nas costas. Ela não teve outra saída a não ser chorar.
       - Filha, escute a mamãe, tudo vai ficar bem, está ouvindo?
       - Eu, eu não quero morrer, mãe, socorro.
       - Você não vai morrer, filha.
       - Vai sim, infelizmente ela vai. Como falei, aguarde meu contato. – desligou.
       Heloísa soltou o telefone que caiu sobre a pilha de papel. Vinícius se juntou a ela a segurando para que não desmaiasse.
        - Helô, fique firme, vamos buscar Karen.
        - Vinícius, aquele lunático está com a minha filha, ele está com ódio de mim, ele vai matar Karen, meu Deus. – colocou a mão na boca abafando o choro.
        - Vou verificar o número do telefone público e tentar descobrir o local exato de onde foi feita a ligação.
        - Faça isso rápido, por favor.
       Com o estômago se revirando Heloísa não conseguiu controlar as fortes náuseas e foi preciso pegar logo a lata de lixo perto da mesa e liberar o café da manhã. Vinícius Bastos a deixou por alguns minutos sozinha onde ela pode chorar em silêncio. Ela jamais imaginou perder sua única filha dessa forma, seu único bem maior, a melhor coisa que aconteceu entre Ricardo e ela. Não. Isso não pode estar acontecendo. Seu parceiro voltou com a localização.
      - Foi a cinco quadras daqui, vamos lá.

*

Aos empurrões a filha de Heloísa é conduzida até um local onde pessoas mal educadas e também desenformadas acumularam sacos e mais sacos de lixo. Esse lugar fica próximo de um antigo armazém que a anos foi colocado a venda. Andrei visivelmente transtornado continua jogando o corpo da jovem para frente e a ameaçando o tempo todo com a faca.
      - Vamos lá, eu não tenho o dia inteiro.
      - Me deixe ir, por favor. – Karen grunhiu.
      - Olha aqui garota. – a segurou pelos cabelos com truculência. – se voltar a falar assim outra vez, eu corto sua garganta aqui mesmo. Agora trate de andar.
       Os dois andaram mais duzentos metros e chegaram ao um ponto onde não há risco de pessoas passarem. Andrei pediu para Karen se ajoelhar de costas para ele. Mesmo relutante a menina obedeceu.
       - Será indolor, um único golpe na nuca e pronto, tudo acabado.
       Antes de fechar os olhos e de fazer sua última prece a estudante localizou um caco de espelho no canto, próximo de um monte de caixas ao alcance de sua mão. Ela precisou pensar rápido. Ninguém irá morrer hoje, muito menos Karen Mattos, pensou ela.
     - Será que você poderia rezar encomendando minha alma?
     - Não sou religioso a esse ponto. – vociferou.
     - Por favor, encomende minha alma, por favor? – falou ainda ajoelhada e de costas.
     - Droga. Tá bom. Vamos lá. Como se faz isso?
     - Apenas peça a Deus que receba meu espírito e me dê um bom lugar.
      Mesmo com a faca na mão Andrei Gomes fez a prece. Karen olhou para o caco de espelho do tamanho de um punhal e pontiagudo. Pela sombra do homem projetada no chão ela pode medir mais ou menos onde sua barriga estaria. Terá que ser um gesto rápido e preciso. Não poderá haver erro. Andrei seguia dizendo ladainhas quando Karen esticou braço e mesmo cortando a mão ela pegou o caco de espelho. Girou o corpo e o enterrou em seu abdômen. A força foi tamanha que metade da arma improvisada entrou fazendo o universitário urrar.
     Cambaleante Andrei ainda tentou esfaqueá-la, mas ficou somente na tentativa. Aos poucos ele foi perdendo as forças das pernas e o sangue começou a escorrer. Apavorada vendo aquela quantidade de sangue a menina chorou.
      - Vou pedir ajuda. – disse ela. – joga o celular, anda.
      Andrei colocou as mãos no ferimento e se ajoelhou. Arfou e depois cuspiu saliva misturada com sangue. Karen percebeu que ele já não era mais uma ameaça, então ela mesma pegou o seu celular no bolso da calça jeans dele. Karen discou o número da mãe e aguardou a ligação ser completada. Andrei caiu pra frente golfando sangue vivo.
      - Ai, meu Deus, ele vai morrer. – disse com o telefone pressionando o ouvido direito.

*


     Vinícius convocou outros dez agentes na busca por Karen Mattos. Dentro da viatura sua parceira está num estado de nervos preocupante. Mesmo não havendo mais unhas, Heloísa segue roendo o que restou delas.
      - Acredite, sua filha está bem.
      - Eu não vou me perdoar se alguma coisa acontecer a Karen, eu vou ficar louca. – chora.
      No colo o celular vibrou. O número de Karen brilhando no visor. Heloísa prendeu a respiração. Ela queria pular daquele carro mesmo em movimento e gritar por sua filha. Aquele desgraçado a matou, ele disse que a mataria e depois ligaria, foi o que ele fez. Vendo que sua parceira não tinha as mínimas condições de atender, Vinícius pegou o celular e sem hesitação o atendeu.
     - Alô?
     - Mãe?
     - Karen? – gritou Vinícius alarmado Heloísa.
     - Quero falar com a minha mãe, por favor.
     - Calma, vou passar para ela. – passou para Heloísa e voltou a por as duas mãos no volante.
     - Filha, filha, você está bem, cadê o Andrei.
     - Mãe, que coisa horrível, eu, eu, o matei.
     - Você o que? Me diga aonde você está.
       Karen passou o endereço e em menos de vinte minutos, cinco viaturas da polícia estavam no local. Mãe e filha se encontraram na saída do antigo armazém. Vinícius assistiu aquela cena comovente e sentiu que seus olhos ficaram úmidos.
       - Onde o deixou? – perguntou Heloísa.
       - Lá, perto das caixas.
       - Vamos lá. – olhou para Vini.
       Chegando ao local informado a dupla de policiais não encontrou o corpo de Andrei, mas sim um rastro de sangue que seguia para o terreno vizinho. Ambos sacaram as armas. Não muito distante dali Andrei se encontrava se arrastejando no meio do mato baixo. Heloísa lhe deu voz de prisão. Ele parou e se virou. Balbuciou algumas palavras, uma ela entendeu bem. André.
      - Precisamos de uma ambulância aqui e rápido. – gritou Vinícius.

*


Heloísa está sentada revendo o caso dos gêmeos. Claro que ela tem os pensamentos divididos entre a morte de André, o estado grave em que se encontra Andrei no hospital penitenciário e Vinícius e sua namorada. Mas o que na verdade a está preocupando é Karen, ela ainda não superou o trauma. Por mais que ela saiba que sua filha é uma menina forte, mãe é mãe. Vinícius entrou na sala em silêncio e ocupou sua mesa. Aborrecido ele revirou alguns papéis.
     - O que houve, posso saber?
     - Acho que estou mais uma vez solteiro.
     - Sério. – prendeu o riso.
     - Érica achou melhor darmos um tempo, segundo ela o namoro estava atrapalhando seus planos. Bom. O negócio é o seguinte, Vini sozinho de novo na pista.
      - E que pista. FIM.