PAREDES
2
O beijo começou tímido. Ambos estão nervosos sentindo o
coração bater mais rápido do que o normal. Diferente de Elisabete, Fernando
encontra-se, na medida do possível, bastante tranquilo. Não é a primeira vez em
que ele tenta selar de vez um encontro com uma pretendente com um beijo. No
caso da ex mulher de Gilberto Pedrosa, tudo isso vem sendo uma bela e
assustadora novidade. O policial foi o seu primeiro namorado e com ele se casou.
Ela jamais imaginou que um dia estaria tocando os lábios de outro homem na
vida. O beijo aconteceu. Um divisor de águas. Enquanto sente a respiração de
seu novo namorado bem de perto, Elisabete permite que seus demônios sejam exorcizados
de uma vez por todas. Toda amargura, toda a decepção e toda a raiva acumulada
se esvaíram imediatamente assim que o morno dos lábios do motorista puderam toca-la.
Foi como renascer.
— Nossa! — Bete se abanou com às mãos. — o que foi isso,
gente?
— Posso lhe garantir que esse é o primeiro de muitos que
ainda virão. — declarou Fernando lhe acariciando os ombros. — não sei porque,
mas, ainda vejo uma ponta de preocupação em seus olhos.
Bete desviou o olhar.
— É o seu ex marido, não é?
Elisabete anuiu.
— Você ainda o ama?
De repente o semblante da dona de casa passou da serenidade
para a fúria em questão de décimos.
— Imagina! Gilberto me sacaneou demais. Me trocou por uma vadia.
Trocou tudo que construímos por uma aventura. Quero distância. A única coisa
que me importa nessa vida chama-se Carla e Gerson.
— Gosto de mulheres determinadas.
Eles ficaram um tempo em silêncio.
— Acho que estamos oficialmente namorando agora, não é? —
Fernando a segurou pelas mãos.
Bete voltou a ficar vermelha.
— Vou entender essa tua reação como um sonoro “sim”.
Eles voltaram a se beijar abrigados dentro do carro de
Fernando parado enfrente ao portão da casa de Bete. É tarde da noite. Dia útil,
mas pelo visto nenhum dos dois está se importando muito com isso. A vida lhes
deu um presente e agora cabe a cada um desembrulha-lo e usá-lo da melhor forma
possível.
*
Quando o dia saudou a cidade com seus raios solares anunciando
a chegada de uma nova oportunidade a todos os seus habitantes, Antônio Carlos já
havia acordado há algum tempo. Na verdade, ele mal pregou os olhos. O dia
anterior foi um verdadeiro inferno, sua mente não o deixou se concentrar no
trabalho um minuto sequer. Graças a Deus o sábado chegou e a única coisa que
ele pede ao Criador dos céus e da terra é paz. Paz por um segundo que seja. Ao
tentar passar o café suas mãos fraquejaram deixando derramar toda a água quente
em cima da pia.
— Eu mereço!
Só após inspirar e expirar por dez vezes foi que Antônio
Carlos reiniciou todo o processo. Enquanto aguarda que a água chegue em seu estado
de ebulição, o garçom se deu ao direito de pensar em Márcia. Péssima decisão.
Não é uma boa hora para fazer com que sua ex esposa adentre aos seus pensamentos.
É justamente Márcia a causadora do seu inferno astral. Ele olhou para a chaleira
e as bolhas já começam a surgir. Outra vez ela apareceu em sua mente, segurando
aquele envelope pardo contendo o documento para a assinatura do divórcio.
— Não! — falou batendo na cabeça. — saia daqui.
Finalmente a água ferveu, mas ela não se misturou ao pó de
café. Ela, junto com a chaleira foram parar na janela da cozinha.
— Meu Deus!
Pois é. O café da manhã terá que ficar para um outro dia.
Antônio Carlos correu para o quarto ainda apertando a mandíbula tamanho é o seu
furor. O garçom parou na porta contemplando aquele cômodo vazio e de repente
uma lembrança o fez refletir. Ele voltou no tempo, no dia em que contraiu
núpcias com Márcia. Como nos filmes de romance, ele a conduziu até o quarto em
seus braços. Ela estava pesada, mas ele segurou às pontas. Foi uma noite onde tanto
Antônio quanto Márcia puderam se provar pela primeira vez. E foi ali,
exatamente ali, naquele quarto vazio que ele acreditou ter encontrado o grande
amor de sua vida.
— Não! De novo, não. — bateu em sua cabeça mais uma vez.
A fúria. O ódio. O ressentimento. Tudo isso o acometeu de uma
só vez e ele não pensou duas vezes antes de recorrer a última gaveta do armário
e pegá-la. Lá está ela. Envolvida numa toalha de rosto vermelha. Sua arma.
— Isso precisa acabar. — disse com os olhos marejados.
*
Quem passa por aquele corredor estreito e olha para dentro de
uma das salas do departamento de polícia, acredita piamente que Gilberto
Pedrosa esteja mais concentrado do que extrato de tomate olhando atentamente
para a tela do notebook trabalhando afinco num caso. Não! O agente negro de
blazer preto tenta recolher os pedaços do que restou de seu coração ao visitar o
perfil de Elisabete no Instagram. Em uma das dezenas de fotos postadas, uma o
golpeou com força. Ela e Fernando dando um selinho feito adolescentes.
— Quem é esse merda?
Gil clicou na imagem e ela se ampliou.
— Até que o cara é bonitão.
Só havia essa foto, o suficiente para acabar com o dia que
mal havia começado para o investigador. Carolina Rodrigues entrou sem bater o
fazendo saltar.
— Eita! Pelo visto a fila andou, hein.
— Pois é e pelo visto sua mãe não te ensinou a bater antes de
entrar, não é?
— Ih! Ficou nervosinho, é? — colocou às mãos na cintura. —
quem manda sair comendo qualquer vadia por aí?
Pedrosa esfregou o rosto.
— Diz logo o que você quer, Rodrigues.
— Reunião de última hora com o chefe e vou dizendo logo, acho
que a dona Maria dormiu de calça jeans.
Gil esfregou o rosto ainda mais forte.
— Fazer o quê? — se levantou.
*
E realmente não foi uma reunião agradável. Pra falar a
verdade, reuniões em departamento de polícia passam longe de ser uma celebração
entre religiosos. Aquelas quase duas horas sentado ouvindo as lamúrias de um
chefe as portas de sua aposentadoria foram de fazer qualquer fígado sadio se
retorcer. Gil não via a hora daquele martírio terminar e ele por fim sair dali
direto para os braços de Luana. E por falar em pessoas do sexo feminino,
durante a catástrofe dentro da sala do delegado, duas mulheres orbitavam pela
mente do detetive: Bete e Luana. A primeira, foi e ainda é, de uma certa forma
o amor de sua vida. A outra, sua linda e apetitosa realidade, a pessoa que
desperta nele os desejos mais lascivo do mundo. Claro que foi para os braços
quentes de Luana que ele correu.
— Quer dizer que eu agora virei um remédio ante estresse? —
falou se vestindo.
— De onde tirou essa ideia? — se acomodou melhor na cama.
O sutiã foi preso com uma habilidade e facilidade deixando o
policial boquiaberto.
— Ah! Deixa de história. Você só me pede para vir aqui quando
o dia foi ruim. Diga que estou errada.
O pior é que ela está certa. Pensou.
— E isso é ruim pra você? — Gil se levantou buscando sua
cueca.
— Pra mim tanto faz. — vestiu a calça.
— Se você quiser podemos oficializar nossa relação e...
— Deus me livre. — correu para bater na madeira da cadeira. —
nada de namoro, união estável ou casamento. Prefiro que me ligue sempre que
estiver estressado todos os dias do que me tornar uma dona de casa.
Isso não soou legal aos ouvidos de Gilberto, porém ele
ignorou tal sentimento.
— Eu já vou indo. — o beijou. — prometo passar aqui outro dia
sem pressa. Combinado?
Menos estressado e muito mais solitário. É o preço que se
paga por não saber controlar suas fantasias. Luana deixou o apartamento levando
com ela toda graça e alegria de se viver a dois.
*
Márcia não é tão bonita quanto desejaria ser, mas isso nunca
a impediu de ser disputada quase que a tapas por rapazes em sua época
estudantil. Ela é o que podemos chamar de mulher que desperta a curiosidade de
homens sedentos por uma morena clara de pernas grossas e cabelos negros bem
cuidados.
— E como vão seus avós? — segue andando sem pressa pela
calçada.
— Teimosos. Principalmente o vovô. Ele cisma em querer
fazer atividades pesadas sozinho. — respondeu Ingrid rindo.
— Seu avô sempre foi assim. Nunca deu o braço a torcer. Fique
de olho nele, ele já tem oitenta anos.
— Pode deixar. — ficou em silêncio criando coragem
para perguntar sobre o pai. — tem visto o papai?
Isso fez com que
Márcia desacelerasse ainda mais a caminhada.
— Não! — olhou para o outro lado da rua já bem perto da
creche onde trabalha. — ele tem te ligado?
— Poucas vezes. Quanto tempo tem?
Agora ela parou de
vez. Talvez para fazer as contas.
— Seis meses.
— Nossa, tudo isso já? — mais silêncio. — mãezinha
preciso terminar minha tarefa senão dona Conceição vai passar o resto do dia
falando na minha cabeça.
— É! Conheço bem dona Conceição. — parou na faixa de
pedestre. — beijinhos filha.
O celular voltou para dentro da bolsa tira colo. Márcia
aguarda o fechamento do semáforo junto com outros transeuntes que reclamam
bastante do fato do aparelho demorar muito para fechar. Um deles parou a seu
lado fazendo coro aos demais. Sua voz soou familiar aos ouvidos da auxiliar de
creche.
— Antônio? — Márcia quase gritou.
— Marcinha! — lhe mostrou a arma na cintura. — venha comigo e
sem gracinhas, tá certo?
*
Bete provou o cozido e achou que faltava um pouquinho mais de
sal. Enquanto digita seu trabalho da escola sentada na copa, Carla observa a
mãe fazendo do almoço um verdadeiro mar morto.
— Nossa! Dona Elisabete, está apaixonada mesmo, hein.
— Não entendi? — parou de mexer na panela.
— A senhora já pôs mais sal no cozido do que qualquer outra
coisa. — riu. — Isso chama-se Fernando.
Ruborizada Bete não teve outra alternativa a não ser
concordar com a filha. Ela pediu para que Carla corrigisse o tempero e enquanto
isso as duas conversaram sobre o assunto. Fazia algum tempo que a adolescente
não sentia tanta alegria transbordar de sua mãe. Claro que ela gostaria que seus
pais reatassem o casamento, aí sim sua felicidade seria maior, porém Carla
entende que eles decidiram que assim seria melhor para ambos e se ambos estão bem,
então ela também está.
*
Luana cumpriu o que prometera a Gilberto. Ela voltou ao apartamento
do policial sem pressa. Tudo aconteceu dentro do esperado e como normalmente acontece.
Eles foram para a cama e em seguida iniciaram a segunda etapa no chuveiro. Como
sempre, Gil mandou bem, mas algo nos olhos dele a deixou intrigada a obrigando a
perguntar.
— Eu deveria deixar isso pra lá, mas eu acho que não consigo.
— se envolveu na toalha.
— Sobre? — fechou o registro do chuveiro.
— O que está rolando? Você me parece triste.
Não era para ela ter notado isso.
— Não é nada. Problemas no departamento. — deixou o box.
— Se não quiser compartilhar, por mim tudo bem. — saiu do
banheiro em direção ao quarto.
Devo mesmo deixá-la por dentro de tudo o que está
acontecendo?
— Vamos pedir alguma coisa, uma pizza? — começou a se vestir.
— Pizza está ótimo. — sentou-se na cama. — eu estou assim por
causa da Bete...
— Já sei. — pôs a blusa sem sutiã. — você está enciumado
porque sua ex mulher arrumou um outro cara...
— Nossa! Calma... — Pedrosa arregalou os olhos.
— Sabe o que eu acho engraçado? Vocês homens podem aprontar a
vontade. Quando chega a vez da mulher ela é taxada de vagabunda, piranha, sem
vergonha e etc. Se manca, cara. A fila andou. Aceita ou surta.
De cabeça baixa o detetive estava e de cabeça baixa
permaneceu até a saída de Luana do quarto já ligando para a pizzaria.
*
Márcia assiste Antônio Carlos trancando a porta da sala e
depois verificando se o cadeado encontra-se bem travado. Em seguida ele
conferiu os das janelas e o da porta dos fundos. Praticamente imóvel sentada no
sofá, a morena já começa a sentir os efeitos da falta de circulação de ar no
ambiente.
— Por Deus, homem, está abafado aqui.
Antônio deixou o quarto segurando a arma e se juntou a sua ex
mulher no sofá.
— Agora sim podemos conversar.
— Conversar sobre o que? Você me trouxe aqui e trancou tudo.
Isso é um sequestro por um acaso?
— É mais do que isso, digamos. — olhou para as paredes. — eu
tenho vivido um verdadeiro inferno entre essas paredes, Márcia. Há seis meses o
demônio tem me feito companhia.
— Cruz credo, Antônio. — fez o sinal da cruz várias vezes.
— É isso mesmo. E Neste momento o demônio me orienta a fazer
o que a partir de agora estarei realizando.
Márcia engoliu seco sentindo o suor escorrer por suas costas.
Ele enlouqueceu.
— Me deixe ir embora, Antônio. Eu preciso trabalhar...
— Fique quieta! O que você pense que isso aqui é, o nosso
casamento onde você fazia o que bem entendia? Esse tempo acabou, minha querida.
Quem manda nessa merda toda agora sou eu. — Antônio estava de pé e com a arma
no rosto da mulher.
— Você precisa de ajuda, Toninho...
Assim que alcançou a idade adulta, Antônio Carlos começou a
notar sérias quedas de cabelo e hoje, no auge de seus quarenta e seis anos, sua
calvície o faz ter aparência de um sexagenário mal humorado pela vida que leva.
Todo o seu rosto e até mesmo a careca ficaram vermelho tamanho o seu ódio
naquele instante.
— Ah, então só agora a senhora se deu conta disso? — voltou a
ocupar o sofá ao lado de Márcia. — o meu papel dentro do nosso relacionamento
era de provedor e só. Ninguém se quer perguntava se eu estava bem, se eu
precisava de ajuda.
— Você não pode estar falando sério. — abaixou a cabeça esfregando
às mãos.
— Nem quando perdi meu emprego eu tive apoio. Pelo contrário.
Ainda disseram que a culpa tinha sido minha. — Antônio Carlos falava tão alto
que sua voz ecoava se chocando contra as paredes.
— Não foi bem assim, Toninho...
Antônio voltou a ficar de pé. Colocou a arma na cintura e a
puxou pelo braço a levando aos empurrões até a cozinha.
— Está vendo isso, o estado dessa cozinha?
Em choque, Márcia contemplou o que deveria ser o lugar onde
às refeições são preparadas, mas o que viu, assemelha-se a um chiqueiro.
— Quero isso brilhando. Não importa quanto tempo dure, mas
não quero ver uma partícula de poeira sequer no chão ou na mesa.
O olhar de Antônio Carlos para ela é de uma pessoa com suas
faculdades mentais alteradas e com isso não se brinca. Márcia achou melhor não
irrita-lo ainda mais. Ela assumiu a vassoura, o esfregão e o balde. Antônio
arrastou uma cadeira até a porta da cozinha e ali se acomodou apontando sua
arma.
*
Gil Pedrosa foi uma criança que cresceu ouvindo que ele
jamais seria um bom chefe de família e que mulher alguma constituiria um lar a
seu lado. De uma certa forma essas pessoas estavam certas. Ainda na infância
Gilberto já dava indícios do adulto que se tornaria. Houve ocasiões em que ele
precisou ter jogo de cintura para dar conta das garotas com as quais se
envolvia. Sim! Eram mais de uma. E isso era combustível para que vizinhos e
conhecidos falassem mal dele.
Gil se tornou homem. Casou-se com Elisabete a qual prometeu
ser fiel e protetor até o último dia de sua vida. Tal promessa se sustentou por
dois anos de matrimônio. Assim que teve a oportunidade, lá estava o bom e velho
Gilberto nos braços de outra mulher. Como tudo na vida paga-se um preço, o
policial teve que pagar um valor altíssimo. E Pedrosa paga até hoje. Pode se dizer que, Carla e Gerson foram as
únicas coisas que lhe restara de bom e vê-los comendo, sorrindo e brincando
gera nele o que chamamos de esperança.
— Nossa, pai, que comida gostosa. Foi o senhor quem fez? —
perguntou Gerson de boca cheia.
— Lógico que não. O papai é péssimo na cozinha. — se adiantou
Carla.
— Opa, opa! Não é pra tanto. A mãe de vocês é boa na cozinha,
mais eu não fico atrás. Pega leve, mocinha. — riu.
— Realmente o senhor não fica atrás. — Carla deu outra
garfada. — você nem aparece no ranking, na verdade.
Gil não gostou, mas foi obrigado a concordar com a sua
primogênita. Assim que as gargalhadas cessaram Gilberto tocou em outro assunto.
— E o novo namorado da mãe de vocês, o que acham dele?
— Pai, você precisa ver as mágicas que ele faz. São maneiras.
— disse Gerson com empolgação.
— Ah, sei lá! Ele me parece ser um cara legal. A mamãe está
muito feliz.
O clima mudou da água para o vinho. Ou seria ao contrário? Carla
continuou.
— E o senhor, como recebeu isso? — perguntou medindo cada
palavra.
Gil sorriu pra não chorar.
— Bete é uma mulher fantástica. O errado nessa história fui eu.
Ela merece ter ao lado dela um homem de verdade e não um...
Os filhos se entreolharam.
— Vamos comer aquele pudim? Confesso que não fui eu quem o preparou.
— tamborilou na mesa.
— Show! — comemorou Gerson.
*
Depois de deixar a cozinha do jeito que seu sequestrador
queria, Márcia foi para o banheiro sentindo em sua nuca o frio do metal do
revólver. Mesmo cansada e com os dois joelhos doloridos ela iniciou a faxina.
— Lembra de como esse banheiro ficava por semanas? Um lixo.
— E por que você não tomava a iniciativa de lava-lo? —
abriu a tampa do vaso sanitário.
Antônio Carlos a segurou firme pelos cabelos e a ergueu.
— Com quem pensa que está faltando?
Arrependida, Márcia calou-se.
— Quem está aqui não é mais aquele sujeitinho idiota que
fazia tudo o que você queria não, será que você ainda não entendeu isso?
Ela não respondeu.
— Vamos que você ainda tem a sala para limpar.
Márcia Castelar é uma auxiliar de creche acostumada a subir e
descer escadas durante o dia inteiro e todos os dias da semana. Andar de um
lado para outro e muitas vezes carregando peso é algo bastante comum em seu dia
a dia. No final do expediente sua exaustão a quase faz desfalecer quando chega
em casa. Já é noite e finalmente ela finalizou os serviços domésticos. Não só
às pernas como a região lombar a castigam sem piedade. Tudo o que Márcia mais
queria se estivesse em casa nesse momento era tomar um banho demorado, fazer
algo rápido para comer e apagar. Antônio Carlos olha para ela com aquele ar de
satisfação segurando o revólver.
— Posso tomar um banho, pelo menos? — secou o suor da testa
com as costas da mão.
— Não sei se posso permitir isso. — cruzou às pernas.
— Por favor, eu estou imunda e fedendo.
Antônio Carlos se levantou com o seu semblante fechado
olhando diretamente para a ex mulher. Márcia sentiu seu couro cabeludo se
arrepiar.
— Você é uma dona de casa, Márcia. — lhe mostrou o relógio no
pulso. — o que donas de casa costumam fazer nesse horário?
A respiração se tornou algo difícil de se controlar assim
como os pensamentos. Antônio seguia olhando para ela aguardando a resposta.
— Eu estou com fome. — foi categórico.
Meu Senhor!
— Eu te odeio, Toninho. Como eu gostaria que você caísse duro
agora, bem aqui, na minha frente. — declarou chorando.
A gargalhada foi tão alta, tão marcante, tão irritante aos
ouvidos dela, que Márcia precisou de alguns segundos para se recompor. Ataca-lo
seria burrice, ele puxaria o gatilho muito antes que ela conseguisse levantar
seus braços. O jeito foi engolir a seco todo o deboche.
— Nada de banho por enquanto. Vá para a cozinha e prepare o
nosso jantar.
*
Fernando é um cara respeitador. Mesmo ele sabendo que sua
atual namorado anda louca de vontade que ele a arraste para um lugar mais
reservado e ali a proporcione longos momentos de prazer, ele faz questão de se
segurar. Bete aproveitou que seus rebentos ligaram informando que passariam a
noite no apartamento do pai, para curtir com seu novo amor. Após um delicioso
jantar regado a massas e vinho, o casal foi para a sala assistir os últimos
episódios da última temporada de uma série apreciada por ambos.
Na sala só a luz da TV os ilumina. Na mente de cada um apenas
um pensamento. Amor. Elisabete mal presta atenção no que se passa na trama e
com o motorista não é diferente. Perto do fim do episódio Bete tomou a
iniciativa. Seus hormônios já gritavam alucinados dentro dela. Ela o beijou
rapidamente, mas ele a segurou pelo rosto a puxando para mais perto. Foi dada a
largada para o que seria o renascimento de uma vida sexual ativa de uma mulher divorciada.
*
Cozinhar é uma das coisas que Márcia sempre gostou de fazer.
Para ela, o ato de preparar um almoço ou jantar é uma dádiva. Quando ainda era
casada com Antônio Carlos na fase inicial do relacionamento, estar a mesa
podendo saciar a fome com uma bela refeição abençoada por Deus, era sem dúvida
um dos melhores momentos do dia. Márcia terminou o preparo do jantar com uma
baita dor de cabeça, tudo isso sob a mira de uma arma.
— Ótimo! Agora sim você pode tomar seu banho.
— Obrigada!
Minutos depois os dois comiam sentados a mesa e em silêncio. A
comida por incrível que pareça estava gostosa dada as circunstâncias.
— Você continua mandando bem na cozinha, hein.
Márcia não se manifestou.
— Você e a Ingrid tem se falado?
Disse que sim com a cabeça, mas não olhou para ele.
— Meu Deus! Ela preferiu morar com os avós do que com você ou
comigo. Que belos pais somos, não acha?
Márcia olhou
rapidamente para a arma ao lado do prato.
— Posso fazer uma ligação? — perguntou ainda de cabeça baixa.
— eu não apareci na creche hoje, então...
— Espera um pouco. Não está achando que será liberada amanhã
pela manhã, não é?
Ela chorou.
— Nada de contatos com o mundo lá fora. Sem ligações. Iremos
passar um bom tempo trancados aqui dentro.
Outra forte onda de choro.
— Tudo isso foi planejado, Márcia. O pior ainda estar por vir,
será que você ainda não entendeu?
— Toninho. Não tem como isso terminar bem. Ou eu ou você
terminaremos mortos. Não vai dar certo...
— Exatamente! Mas eu não estou preocupado com isso. Minha
vida acabou há seis meses. Aliás, acabou quando me casei com você. — pegou a
arma e mirou no meio da testa da mulher. — vou explodir sua cabeça e em seguida
explodir a minha. Adeus, Marcinha.
Márcia abriu a boca o máximo que pode sem emitir som.
— Vai pro inferno. — Antônio Carlos disse sem alterar o tom
da voz.
Márcia apertou os olhos e aguardou sua entrada num mundo
desconhecido, porém tudo o que ouviu foi mais uma vez uma gargalhada diabólica.
— Tinha que ter visto sua cara, Márcia.
Dessa vez não deu para segurar. A crise de choro a fez cair
da cadeira aos prantos e em posição fetal. Enquanto isso seu algoz terminava
seu jantar tranquilamente com ar de satisfação no rosto.
*
Antônio Carlos e Márcia. O romance iniciado num encontro de
jovens da paróquia tinha mesmo que ter acontecido? Tudo isso já era previsto? Algo
que parecia ser tão promissor e duradouro, pelo menos aos olhos de quem os via sempre
grudados, hoje simplesmente inimigos declarados. A que ponto chegou tanto ódio
e ressentimento. Antônio a levou para o seu refúgio sob a mira de uma arma —
carregada, diga-se de passagem — a fim de descarregar sobre ela tudo do que seu
coração estava cheio.
Esgotada. Sem noção do tempo. Com o psicológico absurdamente afetado
e louca de vontade que seu ex puxe de vez aquele gatilho. Márcia foi
praticamente arrastada até o quarto.
— Quantas histórias esse lugar tem guardado entre essas
paredes. Não é, Marcinha.
Silêncio por parte dela.
— Aqui dentro fui humilhado várias e várias vezes por
simplesmente desejar uma noite de amor com a minha mulher e você se negava sem
hesitar.
— Você nunca foi carinhoso comigo e não exagera. Claro que às
coisas não eram desse jeito que você está falando.
— É verdade! Eram bem piores.
Márcia vislumbrou a cama.
— Então! Pensando nisso. O que acha de relembrarmos os velhos
tempos?
Prefiro levar um tiro a me deitar com você. Pensou
olhando para ele.
— Você só tem duas opções. — sacou a arma da cintura.
Ela engoliu o nó formado na garganta e depois caminhou
lentamente até o armário.
— Foi tão ruim assim, tudo o que aconteceu entre a gente?
Você me deu a chance de ser mãe. A Ingrid, lembra? Ela adorava brincar dentro
desse armário. Era tão bom vê-la se divertindo.
De repente o olhar de Antônio se perdeu no espaço.
— Penso eu que, às coisas boas que vivemos juntos, superam as
más. Você não acha?
— Sim, sim.
— Viu? Não foi tão difícil assim. — Márcia reparou que os
olhos de Antônio estavam vermelhos.
Antônio Carlos olhou para Márcia e depois para a arma já com
o rosto transtornado.
— Deite-se e tire sua roupa.
*
Foi sem dúvida uma das piores experiências de sua vida. Fazer
sexo forçado com seu ex ficará marcado para sempre na história de sua vida. Porém
aonde há dor, sofrimento, lágrimas, também pode se haver uma saída. Nos
primeiros vinte minutos houve uma certa resistência, Antônio por vezes precisou
fazer uso da força para alcançar seu objetivo. Muito cansada e desejando que
aquela tortura terminasse logo, a auxiliar de creche resolveu fazer de seu
martírio um aliado. Ela cedeu, entrou no jogo, deixou seu carrasco se esbaldar em
seu corpo. Márcia proporcionou a Antônio Carlos uma noite de sexo como nunca
houve no tempo em que estiveram casados. Toninho lhe pediu uma segunda etapa e
ela sem hesitação alguma aceitou.
— Vem! — abriu às pernas.
Ao voltar do curto sono e olhar para o seu lado esquerdo,
Márcia viu o que tanto almejava. Antônio mergulhado num sono profundo. Hora de
agir. Ainda nua ela buscou pela arma, aonde esse desgraçado enfiou o
revólver? É bem provável que ela esteja de baixo do travesseiro. Droga!
Márcia se vestiu e deixou o quarto. Vou acabar com esse miserável agora.
Uma faca. Somente uma facada no pescoço dele e pronto. Na cozinha, ainda
ouvindo os roncos, ela refletiu, não, nada de morte, não vou destruir minha
vida por causa de um maldito como esse. Ao sair da cozinha ela começou sua
busca pelo seu celular. Ele deve ter escondido por aqui. Seu coração
disparou ao ouvir um forte ronco de Antônio Carlos ao se virar na cama. Preciso
encontrar a merda do telefone agora.
Muito tempo depois de revirar toda a sala atrás do aparelho,
Márcia se encontrava com seu ânimo na altura dos pés. Ela já não se importava
mais com o perigo de Antônio acordar e não vê-la na cama. Que se dane.
Com uma tremenda dor de cabeça ela voltou para a cozinha e todo aquele terrível
sentimento de morte a possuiu. O golpe precisa ser rápido e fatal, não quero
que ele sofra muito. Pensou abrindo a gaveta fazendo o mínimo de barulho
possível se apossando de uma faca serrilhada. Se Antônio planejou tudo nos
mínimos detalhes, por que não escondeu também as facas e outros objetos cortantes
e perfurantes? Hum! Até parece que eu não sei. Ele sabe que sou fraca e
que não tenho coragem de matar uma mosca. Sou uma idiota.
Ela se afastou do armário da cozinha e se aproximou de pia.
Chorou mais um pouco e já entregando os pontos ela reparou na lixeirinha abarrotada.
Será? Ela foi tirando sem muita paciência tanto o lixo seco como o
molhado até se deparar com seu celular dentro de um saco plástico transparente bem
amarrado. Filho da...
Graças a Deus ele ainda tinha carga. Para garantir que
estaria segura ao fazer a ligação do banheiro, Márcia foi até a porta do
quarto. Como um recém nascido o seu ex marido dormia esparramado na cama. Monte
de lixo. O plano havia dado certo. Fazê-lo se esgotar transando foi sim uma
jogada de mestre.
*
Rodrigues bocejou mais uma vez antes de criar coragem para se
levantar e levar os papéis das últimas ocorrências a sala do chefe. Foi um
plantão tranquilo na medida do possível, mas ainda assim cansativo. Ela juntou
os documentos e os organizou por data e hora e os colocou dentro de uma pasta.
O telefone ao lado do computador berrou espantando seu sono.
— Departamento de polícia.
— Preciso de ajuda. Eu fui sequestrada...
— Positivo! A senhora consegue me informar o endereço?
— Consigo!
— Ótimo. E os sequestradores, são quantos? — Rodrigues girou na
cadeira sentido o corredor.
— Eu fui sequestrada pelo meu ex marido.
*
Gilberto Pedrosa parou a viatura uma rua antes do endereço
passado por Márcia. Carolina Rodrigues está sentada a seu lado torcendo para
que não tenha caído num trote. Isso seria ruim demais.
— Esse é o plano então? Eu sigo pela rua da parte de cima e
você a principal.
— Positivo! — checou a arma. — a chance disso ser um trote é
grande demais, então... quero pelo menos dar uma lição nessa desocupada.
— Vamos nessa. — desceu do veículo.
A rua principal referida por Rodrigues é a única aonde a
companhia de asfalto caprichou no quesito finalização. Toda ela foi
perfeitamente asfaltada e o seu calçamento refeito. Demorou, porém o serviço
saiu de primeira categoria. Gil Pedrosa seguiu por ela a passos moderados até
três casas antes do endereço indicado. Casa azul com o muro verde claro. Longe
de parecer ser um cativeiro. Gilberto não sabe o porquê, mas algo dentro dele
já o faz acreditar que se trata realmente de um sequestro. Quem sequestra a
ex mulher? Achando graça de seus pensamentos, ele ligou para sua parceira.
— E aí?
— Tudo normal. Acabei de ligar para o lugar onde Márcia
Castelar trabalha e fui informada que ela não apareceu ontem e nem responde as
mensagens.
— Aonde há fumaça... — olhou para o final da rua.
— Vai pedir reforço?
— Se for mesmo uma briga entre ex marido e ex mulher, tendo a
acreditar que não será preciso.
— Gil, ele tem uma arma. Algo me diz que essa mulher corre
perigo. Precisamos agir o quanto antes.
Pedrosa apertou os lábios.
— Positivo! Desça até aqui.
*
Antônio Carlos abriu os olhos e a única coisa que lhe veio a
mente foi: Márcia. Ao girar o corpo para o outro lado da cama e vê-la dormindo
foi como voltar nos velhos e bons tempos de recém casados. A vontade foi de
abraça-la e de lhe desejar um feliz dia, mas algo o fez parar. Sim!
Infelizmente eles já não formam mais um casal, uma família. Doeu muito sentir
isso.
— Acorda logo, mulher. Meu café já está pronto?
Fingindo Sonolência, ela abriu os braços se espreguiçando
ruidosamente.
— Tenha calma.
Márcia voltou a sentir o frio do metal do revólver, dessa vez
em sua testa.
— Calma o cacete. Vai logo.
Ambos se preparavam para deixar o quarto quando ouviram
palmas. Antônio olhou para Márcia. Ela deu de ombros.
— Você ligou para o polícia, sua desgraçada. — mirou em sua
cabeça.
— Como? Você me tomou o celular, esqueceu?
Ofegante, Antônio Carlos foi até a janela mas não a abriu.
Mais palmas.
— Merda! Quem será? — rosnou.
— Deve ser algum vizinho querendo alguma coisa. — supôs
Márcia.
— Eu não falo e nem me dou bem com vizinho algum aqui.
Lembra? — falou andando de um lado para outro. — vamos fazer o seguinte. Agiremos
naturalmente. Vou abrir a porta e despachar seja quem for rápido.
Márcia foi para o sofá enquanto que Antônio escondia a arma na
parte de trás da calça. Visivelmente nervosa sua ex mulher não parava com as
mãos quietas.
— Eu juro por Deus. Se você tentar gritar, fazer algum gesto,
sair correndo, eu vou matar não só você como os outros também. Estamos
entendidos?
Meu Deus!
— Sim, claro.
Antônio Carlos abriu a porta e depois o portão dando de
frente com um casal de braços dados sorrindo para ele.
— Olá, bom dia. Somos da congregação das testemunhas de
Jeová. Aceitaria um estudo? — disso o homem negro de blazer preto.
— Ah, mil perdões, eu já defendo outra fé. — Antônio também
estava sorrindo.
— Ah, vamos lá, será rápido. Prometo. — insistiu a mulher de
rabo de cavalo.
Antônio Carlos refletiu sobre.
— Se realmente for rápido, tudo bem. Vou falar com a minha
esposa.
Rodrigues respirou um pouco mais aliviada ao saber que Márcia
ainda estava viva.
— Amor, são as testemunhas de Jeová, eles nos darão um rápido
estudo, tudo bem?
Ao ver o casal de crente o semblante de Márcia decaiu. Ela
imaginou que seria a polícia, bombeiros, Swat, sabe-se lá mais o que, menos um
casal de bíblia. Estou morta!
Gil e Rodrigues
sentaram-se lado a lado. Antônio ocupou a outra poltrona ficando de frente para
o casal. Márcia tentava às duras penas agir com naturalidade, mas seu corpo
parecia se mover sem controle.
— Bom! — começou Gil. — vamos começar então.
Começar o que afinal de contas? Gilberto mal sabe recitar a
oração do Pai Nosso. Como ele gostaria de poder voltar no tempo e valorizar as
aulas na catequese. Antônio Carlos olha fixamente para ele aguardando suas
santas palavras. Vendo que, a qualquer momento seu parceiro entregará o
disfarce, Carolina Rodrigues assumiu a palavra.
— Os senhores conhecem o maior de todos os mandamentos?
— “amar a Deus com todas as suas forças, com todo o seu
entendimento e ao próximo como a ti mesmo” — respondeu Antônio sorrindo.
Depois disso, o que se seguiu foi embromação por parte de
Rodrigues. Pedrosa não sabia o que falar, muito menos o que esperar de toda
aquela situação.
— Os senhores possuem uma bíblia?
Márcia olhou para Antônio.
— Claro que temos. Querida pegue lá no armário, ela está na
penúltima gaveta entre as camisas.
Márcia prontamente o obedeceu.
— Querem beber alguma coisa, irmãos? Vou preparar um suco
para a gente.
Enquanto Márcia buscava pela sagrada escritura, seu ex marido
entrava na cozinha e a primeira coisa que viu foi justamente a lixeirinha fora
do lugar.
— Mas que merda é essa? — girou nos calcanhares batendo de
frente com a arma de Gilberto Pedrosa em sua boca.
— Já chega dessa palhaçada. Me dê sua arma. Você está preso.
Márcia deixou o quarto pasma com o desenrolar daquilo tudo. Eles
não eram crentes? Pensou deixando cair a bíblia. Rodrigues foi até seu
encontro.
— Dona Márcia Castelar, foi comigo que a senhora falou ao
telefone. Você está bem?
— Sim, sim. — enquanto respondia os questionamentos ela
assistia seu ex sendo algemado e levado para fora.
*
De cabelos soltos, molhados, e levemente maquiada, Rodrigues
parece ter saído das capas de uma daquelas antigas revistas de moda. Claro que
isso não é nenhuma novidade para Gil, ele sempre soube que, por trás daquela
policial durona havia uma mulher incrível, uma gata.
— Por que nunca ficamos juntos? — brincou Pedrosa.
— Pelo simples fato de você não ser o tipo de homem que eu
gosto.
— Caramba! Você é bem direta ao ponto, hein. — completou o
que faltava de cerveja em seu copo.
— Tive uma boa educação. — riu. — e esse coração, senhor
Gilberto Pedrosa, já está conformado, ou pretende sequestrar sua ex mulher e
força-la a fazer tudo o que ela não fez no casamento?
Ambos explodiram na gargalhada sob os olhares de outros
frequentadores do bar.
— Putz! Que loucura. A que ponto chegamos. — Gil deu um gole na
bebida. — confesso que no início eu fiquei bastante enciumado, mas agora entendo
que Bete tem todo o direito de ser feliz.
— Vida que segue, detetive. — mexeu nos cabelos.
— Vamos aproveitar que estamos aqui para você me ensinar
algumas passagens bíblicas...
— Ah, vai ver se estou lá na esquina.
FIM.