Feridas
Ela pediu para que ele cessasse com os tapas, mas isso
só serviu para alimentar ainda mais o seu ódio. No quarto ao lado às crianças
choram, berram, tapam os ouvidos, estão apavoradas com o pânico da mãe. Será
mais uma noite em que aquela pequena casa servirá de palco para o inferno. Por
mais que ela tente se defender, os socos, os tapas e chutes sempre transpassam
o seu bloqueio. Um deles a atingiu no nariz. A dor é aguda, irritante,
incomoda. Às lágrimas se misturam ao sangue e na mente o arrependimento, onde
eu estava com a cabeça, por que aceitei o seu pedido de casamento? Agora é
um pouco tarde para arrependimentos. Ele não se transformou num monstro, ele
sempre foi um.
— E nem adianta ir na delegacia, senão vai apanhar
mais. — saiu do quarto a deixando em paz pelo menos por enquanto.
Quando a violência toma o lugar do amor, do
companheirismo, não há terapia ou boa conversa que dê jeito. Tudo está
arruinado. Acabou. Acabou o respeito, a dedicação, a paixão e a cumplicidade,
só o que resta é a rivalidade, raiva, pavor e receio. Ela escuta o choro das
crianças encolhida entre a cama e o armário. Antes de se levantar ela confere
seu estado no espelho. Péssima, derrotada, machucada por dentro e por fora.
Quando isso terá fim? Ela usa um pano qualquer para limpar o sangue e sai ainda
tonta.
— Oi, meus amores, a mamãe está aqui.
Os pequeninos a abraçam. A vontade de chorar é grande,
mas ela se segura, é preciso ser forte — pelo menos na frente deles. Enquanto estão
juntos, chorando, implorando aos céus uma solução para esse martírio é possível
ouvir o barulho do motor do carro. Ele vai sair, ela pensou. Um pouco de paz
até sua volta.
— Mamãe, por que não vamos embora? — questionou o
caçula.
— Às coisas não são tão simples assim, meu filho.
— Eu tenho medo do papai.
— Eu tenho vontade de mata-lo. — despejou o mais
velho.
A reação da mãe foi dar três leves tapas na boca do
garoto. Seu coração sangrou mais uma vez.
— Não diga uma coisa dessa, ele é o pai de vocês. Se
fizer isso você será igual a ele.
— Mamãe, na escola, a tia disse que homem de verdade
não bate na mulher. Então meu pai não é homem. — comentou o filho mais novo.
Seria cômico se não fosse trágico. Homens de
verdade não espancam suas esposas. Uma onda sufocante de raiva a possuiu e
quando ela se deu por si ela estava apertando a mandíbula. Algo precisa ser
feito. Não amanhã ou depois, isso precisa ser resolvido agora e já.
— Voltem para a cama, a mamãe volta daqui a pouquinho.
*
O plantão poderia estar melhor, mas fazer o que? O que
poderia ser considerado “melhor” numa delegacia de polícia? Alguém chegar com
uma pizza quatro queijos e cerveja? Solange Viana olhou para sua mesa. Sua
organização é de dar inveja a quem sofre de TOC. Ela volta a olhar pela janela
e seus pensamentos e sentimentos vem a tona lhe causando um certo mal estar. O
passado foi triste. Boa definição. Triste. Ninguém pediu para vir ao mundo,
então porque diabos essas coisas acontecem? Pensou. Quem a vê hoje, não imagina
o que essa bela negra sofreu quando ainda nem sabia o que era viver. Sol tinha
oito anos. Sim, apenas oito anos quando um maníaco a violentou. Uma criança,
indefesa, sendo alvo dos desejos sujos de um adulto mal resolvido. Ele era
amigo de seu pai. Quase todas as noites ele estava dentro de sua casa, comendo,
bebendo, jogando conversa fora e olhando para ela. Solange não entendia o
porquê de tantos olhares, tantos abraços apertados, tantas declarações de amor
a uma criança. Claro que ela não entendia. O desgraçado esperou um momento oportuno
para abusa-la, beija-la como se Sol fosse uma mulher adulta e por fim...
Foi uma tragédia. Nesse dia os olhos da pobre menina
foram abertos da pior maneira possível. Seu libido, ainda adormecido foi despertado.
Eu era apenas uma menininha, o que aquele monstro fez comigo? O pior não
foi isso. Seu pai e sua mãe não acreditaram logo de cara. Sol se lembra que
tomou uma surra por mentir e tudo isso na frente do miserável.
— Calma, Viana, ela é só uma criança. — disse ele
prendendo o riso.
Somente anos mais tarde, quando ele cometeu outra
violência contra um menino foi que tudo foi esclarecido. Que escândalo. A
diferença foi que às coisas não terminaram baratas para o estuprador. O pai do
menino o espancou até a morte colocando um ponto final nessa saga nojenta. Que
alívio. Sol ao saber do ocorrido correu para o seu quarto e chorou durante meia
hora. Ela sabia que estava cometendo um erro, mas ela agradeceu a Deus. Aqui
se faz, aqui se paga. Hoje ela é a Sol Viana, delegada, defensora das
meninas e mulheres que sofrem violência. O celular vibrou em cima da mesa. Ela
já imaginou quem seria.
— Oi, Elton!
— Ah, oi, Sol, liguei pra saber como você está.
— Estou bem, obrigada. — sentou-se. — está um pouco
tarde, o que houve, está sem sono?
— Não consigo desacelerar, estou enrolado com o
TCC.
Solange fez uma careta, ela sabe bem o que é isso.
— TCC. Três letras que apavoram qualquer formando.
— Nem fala.
Silêncio constrangedor.
— Mas, diga... — mexeu nos cabelos.
— O que pretende fazer depois do plantão?
— Bom, pretendo ir pra casa, correr no calçadão,
dormir e quem sabe maratonar uma série na Netflix. Por que, outra proposta
melhor?
— Ah, tá, não é que, eu estava pensando em lhe
convidar para uma sessão de cinema aqui, com direito a comida mexicana...
— Vamos fazer o seguinte. — bocejou. — me desculpa.
Essa sessão de cinema pode ser lá em casa, não pode?
— Claro!
— Então está combinado. Eu ofereço a casa e a TV e
você leva a comida.
— Perfeito! Que horas então?
— Eu devo acordar lá por umas 17h. Vá as 19h.
Positivo?
— E operante! — riu.
— Beijos! — desligou.
O plantão agora teve uma melhora. É bom saber que
amigos se importam com você e te ligam em horas inesperadas. O coração de
Solange ficou um pouco mais leve e ela pode respirar aliviada. Ânimo renovado.
Hora de encarar a realidade e pra começar, que tal rever casos ainda em aberto?
O dever lhe chama, doutora Sol!
*
O som é alto. Incomoda. O gosto musical dessa nova
geração precisa ser estudado. A música e a comida ruim daquele bar e
restaurante não chega a ser um super problema para alguém com ela, Ester, a
rainha, assim ela se auto denomina. Ester não está ali para dançar ou comer.
Ela está de olho no sujeito parado no balcão tomando cerveja. A rainha já o vem
observando faz tempo, seguindo seus passos. Há poucos dias ela descobriu que
ele é casado. Ester adora homens casados. De hoje ele não passa. Chamar
a atenção de um homem é o coisa mais fácil desse mundo, ainda mais uma mulher
como ela, a rainha. Ester é negra, alta, suas feições fogem das características
de uma pessoa afrodescendente. Ester parece uma modelo devido ao seu andar, seu
jeito de ficar parada, sua postura. Qual homem não se encantaria por ela?
Ele pede outra cerveja. Seu semblante não nega; é
visível, quase palpável o seu estresse, pressa fácil. Todo homem precisa de uma
válvula de escape, nem seja por uma noite. Ester encostou-se no balcão sentindo
o frio do mármore em suas costas nuas.
— Olá? — olhou para o peitoral amostra do sujeito.
— Boa noite. — disse sem muito interesse.
A bebida chegou e Ester a tomou das mãos do garçom.
— Posso ficar com essa? — falou tomando um curto gole.
Ele não gostou muito, mas relevou gesticulando.
— Diga logo o que quer garota. Vou logo dizendo, estou
sem nenhum puto no bolso.
A rainha soltou uma gargalhada e depois fechou sua
expressão a mudando da água para o vinho.
— Não faço programa, se é o que está pensando. Sou
apenas uma mulher dando em cima de um homem.
— Sério?
— Muito sério.
— deu outro gole na cerveja.
Ainda digerindo tudo o que ouviu, o rapaz passou a
observar melhor a deusa ébano a sua frente. Ela tem tudo o que ele gosta em uma
mulher. Ester está um arraso essa noite dentro de um vestido justo ao seu corpo
bem trabalhado por horas de academia.
— Sou das antigas. Na minha época eram os rapazes quem
davam em cima das garotas.
— Posso saber o seu nome?
— Não antes de eu saber o seu. — mexeu na barba por
fazer.
— Ester. — ofereceu a mão.
— Encantado. — a beijou. — sou Silas.
Meia hora depois Ester o beijava feito uma tarada
dentro do carro. Os beijos eram longos, suculentos e bem provocantes. Os
gemidos se misturavam as respirações ofegantes. Ester abriu o zíper da calça de
Silas que a impediu no meio do processo.
— Sou casado.
— E você acha que eu não sei disso.
— Não se importa mesmo?
— Adoro homens casados, experientes e carentes, como
você. — começou a beija-lo no peito.
— Eita!
Ester terminou de abrir o zíper. Em seguida desfivelou
o cinto e seguiu o lambendo no abdômen.
— Relaxa. Feche os olhos e deixe que sua rainha trabalhe
por você.
*
Faltando poucos minutos para às 19 horas Elton parou
sua Honda na calçada da casa de Sol. Nos guidões os pacotes de comida mexicana.
O jovem universitário não está nervoso. Ele está pior do que isso. Antes de
tocar a campainha ele testou seu hálito usando às mãos, mesmo sabe que esse
método não é cem por cento eficaz. Por isso ele recorreu a famosa bala sabor
eucalipto extra forte. Solange e Elton, o casal mais improvável que existe.
Ela, uma delegada de polícia, mulher forte, independente e estabilizada. Ele,
estudante de jornalismo, branco, mora com os pais, típico playboy zona sul. Assim
que a conheceu Elton se apaixonou, mas não revelou isso a ninguém, nem mesmo
para ela. É lógico que Solange vem percebendo suas investidas, mas prefere se
resguardar. Não que ela tenha sua alto estima baixa ou complexo de
inferioridade, longe disso. Sol como uma policial gosta de investigar, apurar
pra depois se entregar de fato. Elton aguardou o portão ser aberto.
— Olá, boa noite. — ergueu os pacotes.
— Boa noite. — dois beijos, cada um de um lado da
face.
Elton pode saborear o perfume adocicado dela.
— Vamos entrando.
A casa de Sol é sem dúvida o que chamamos de
organização e limpeza, impossível não notar. Na TV a série pausada. Tudo muito
claro, arejado, uma leveza total de espírito. Sua moradora também não fica
atrás. Solange Viana estava linda, despojada de sua formalidade habitual. Bermuda
jeans nem muito curta e nem muito longa. Camiseta baby look rosa bebê e cabelos
presos. Perfeita.
— O que faremos, assistiremos o seriado antes ou
depois de comermos? — deixou os pacotes em cima da mesa.
— Durante. Estou morta de fome. — ficou com vergonha.
— Você quem manda delegada.
A comida estava sensacional e o seriado melhor ainda. A
cada minuto que passava Elton sentia seu coração bater na garganta. Solange não
deu brecha para um novo investimento, o assunto não era outro a não ser a trama
e atuação do elenco. A hora passou rápido. Já era quase outro dia e nada.
— Essa temporada ficou massa. — Elton se levantou e
foi até o banheiro.
— Verdade.
— Eu já vou indo, foi legal.
Sol se levantou do sofá.
— Se você quiser e puder, podemos marcar para o
próximo final de semana. O que acha?
O futuro jornalista viu nessa fala a oportunidade que
faltou durante as quatro horas em que ficou ali.
— Poxa, uma semana inteira sem te ver?
Sol não estava se entendendo. Ela não é uma pessoa
tímida, mas hoje isso fugiu de seu controle.
— Bom, é que você está muito envolvido com o seu TCC
então eu...
— Se eu pudesse viria aqui todos os dias.
Sol sorriu e focou o chão.
— E por que não vem, a partir de hoje?
Por essa ele não esperava.
— Só que, eu não quero maratonar seriados. — se
aproximou um pouco mais.
— Ah, não é?
— Não.
Elton a segurou no rosto. Eles trocaram olhares com os
corações bombeando sangue a mil.
— Aceita namorar um universitário?
— Aceito, claro que aceito.
Foi legal. Sol não estava acreditando. Ela foi pedida
em namoro depois de alguns anos sem nenhum envolvimento. Seu último
relacionamento foi bom, mas também não deixou saudades. Quanto a Elton, ela
admite em ter resistido algumas vezes. A chance de não dar certo era de cem por
cento, mas o seu pensamento mudou. No beijo ela pode sentir um sentimento puro
vindo dele, então, porque não arriscar?
*
Não é de costume, mas Sol chegou meia hora mais cedo a
delegacia surpreendendo seus companheiros de farda. A delegada sabe que algo
está diferente nela. Sim. Agora ela está namorando. Oficialmente namorando.
Solange precisava desse novo gás. Se a vida de uma mulher comum já não é nada
fácil, imagina a vida de uma policial? Todo ser humano precisa se distrair,
encontrar algo que o faça sair dessa realidade cruel pelos menos por algumas
horas. Sol estava assoberbada, necessitando urgente de um escape. Elton?
Ela deixou sua bolsa em cima da mesa e correu até a
cafeteira. Um policial se aproximou dela segurando um papel.
— Bom dia, doutora. Dê uma olhada nisso.
— Homem encontrado morto dentro de um carro. — Sol leu
rápido. — já temos um suspeito ou mesmo o autor do crime?
— Não senhora.
— Vamos nessa então.
O carro foi isolado por fita amarela e preta. Dois PMs
guardam o corpo com suas expressões nada amigáveis. Policial nenhum gosta
disso. Curiosos apontam seus smartphones fazendo registros do ocorrido. Hoje em
dia qualquer um é repórter ou cinegrafista e isso ajuda a deixar o clima ainda
mais pesado. Na tentativa de conseguir uma melhor imagem, um rapaz excedeu o
limite.
— Mais um passo e eu lhe prendo por desacato. —
vociferou o agente.
Sol Viana chegou acompanhada de mais dois policiais.
Sua presença ali diminuiu e muito a pressão. Ela está maravilhosa essa manhã.
— Bom dia, senhores.
Ela não esperou o retorno do cumprimento, passou
direto afastando a fita chegando bem perto do automóvel. Lá está ele, o cadáver,
cabeça apoiada no encosto do banco virada para a janela do carona. Braços
caídos, boca semiaberta e olhos arregalados. Horrível. O defunto tinha o zíper
da calça aberto e seu membro exposto.
— Será que ele infartou batendo uma? — zombou o
soldado.
— Mais respeito, por favor. — Sol olhou para o banco
de trás. — ela atacou de novo.
— A rainha?
— Ela mesmo. Vamos aguardar a chegada dos peritos.
Dentro da viatura Solange pensa enquanto observa o trabalho
dos peritos. Ester já é sua velha conhecida. Assassina fria. Seu modus operandi
é o sua assinatura. Primeiro ela proporciona um prazer extremo a vítima. Enquanto
pratica sexo oral ela aplica rapidamente cianeto na virilha de sua pressa. Suas
vítimas, todos homens casados e agressores. De forma lenta o seu passado volta
lhe causando desconforto. Sol só tinha oito anos. Como pode alguém abusar de
uma criança? Como pode um adulto se satisfazer sexualmente usando uma menininha
que mal deixara as fraudas? O processo de libertação desse mal não foi nada
fácil, Sol tinha pesadelos e ficou uma semana sem conseguir dormir. Toda a
família adoeceu, todos sentiram. Só depois de muito sofrimento, muita angústia,
num belo dia Sol virou a chave. Ela decidiu usar sua terrível experiência para ajudar.
Serei uma policial e vou dedicar-me a punir homens ou mulheres que abusarem
de crianças. Está certo, pode parecer pessoal, e é. Sol precisava disso.
Cada prisão efetuada nesse sentido é como se fosse um peso a menos, e ela não
vai parar até se livrar totalmente de toda essa carga.
— Terminamos aqui, senhora.
Sol nem viu o perito chegar.
— Ah, sim. Qual o seu parecer inicial?
— O de sempre. Sem marca de violência. Recolhi
material do pênis.
— DNA!
— Exatamente.
Sol desceu do carro.
— Temos uma identificação? — cruzou os braços.
— Sim. Silas Monteiro, 36 anos. É casado. — mostrou a
aliança dentro do saco de evidências. — tudo leva a crer que a nossa rainha
atacou novamente.
— Bom trabalho. Vamos aguardar.
Sol voltou para a delegacia um pouco mais indignada,
preocupada e porque não dizer intrigada. Cada um resolve seus conflitos do
jeito que da ou que achar melhor. No caso de Solange, ela decidiu ficar do lado
da lei. Ester preferiu punir homens violentos se utilizando da própria
violência. Certa ocasião, quando esteve perto de prendê-la, a delegada pode por
um instante ouvir sua história. Sol não conseguiu se mover, todos os seus
músculos se petrificaram. Ela também foi abusada.
— Entende agora, delegada? Eu era só uma criança.
— Escute, Ester, eu também sofri violência sexual
quando tinha oito anos, sei muito bem o que sente. Eu decidi ficar do lado
certo. Você não acha que se tornar uma assassina é se igualar a eles?
Ester estava a poucos metros da policial que apontava
uma pistola para ela. Mesmo que por um breve momento a rainha pode refletir.
Sol estava coberta de razão e ela sabia disso, mas era tarde, o estrago já
havia sido feito.
— Venha comigo.
— Acho que não, doutora.
Ester despareceu e Solange não encontrou forças para
ir atrás. A arma voltou para o coldre e desde aquele dia em diante a delegada vem
trabalhando em sua captura. Não é nada fácil. Ester é rápida, esperta e possuí
muita sagacidade. Os crimes vem acumulando e incomodando a ordem pública. Algo
precisa ser feito e com urgência. Assim como eu ela teve sua infância
invadida por um homem que não conseguiu controlar suas emoções e desejo. Se
todos e todas decidirem pagar com a mesma moeda, como ficará esse mundo?
*
A palavra arrependimento é algo que Ester fez questão
de apagar de seu vocabulário. Pra falar a verdade, palavras como remorso e receio
também. Tudo isso foi extirpado de sua existência desde quando teve a vida
atravessada por um tarado. Ela mata por prazer. Homem de verdade não bate e nem
violenta criancinhas, pensou tomando vinho observando o dia chegar em sua
metade. Homens são seres fortes, possuem instintos de bravura, são provedores,
porém não resistem a um rabo de saia. É fácil domina-los. A cada trabalho bem
sucedido, Ester faz questão de comemorar. Mesmo que de forma solitária, a
rainha procura sempre brindar o feito. Menos um otário no mundo.
A polícia não a preocupa. A lei deveria lhe agradecer
ou invés de caça-la. Aquela delegada deveria se juntar a ela, fariam uma dupla perfeita.
Eu estou punindo os culpados, como diz o famoso personagem dos quadrinhos, o
Justiceiro. Não que ela ache tudo isso divertido. Claro que não. Matar
pessoas nunca será algo fácil — pelo menos para ela. O que a move é exatamente o
sentimento de vingança. Isso deveria ser algo controlável, e é, porém, Ester o
deixa aflorar. Ao tomar ciência de que uma mulher vem sendo agredida ou
violentada, toda bondade e misericórdia que há nela é deixada de lado, só
Deus tem misericórdia. Eu não. Ester se transforma num vulcão em erupção e
aí tudo ao seu redor é consumido, queimado e destruído. Ao se lembrar do seu
primeiro crime, estranhamente ela sorri e dá risadas. Gostosas risadas. A
vítima tinha idade para ser seu avô, batia na esposa sempre que bebia. A pobre
mulher, também idosa já havia desistido de tudo e se conformado com sua dolorosa
existência ao lado daquele maníaco desgraçado. O velho foi pressa fácil. Bastou
um olhar malicioso e pronto, o idoso quase morre de um ataque do coração. Levá-lo
para um lugar mais reservado foi ainda mais fácil.
— Deus ouviu as minhas preces e me enviou o seu anjo. —
dizia ele enquanto tinha o zíper da calça aberto.
Foi tudo muito rápido e no final de tudo a rainha
ainda saiu de cena levando uma boa grana que velho tinha no bolso.
Ester não parou mais, tomou gosto pelo crime. Pode
parecer sinistro, mas só ela sabe o quanto isso a faz bem. No caso dela, é
legal saber que alguém se livrou das surras, das humilhações diárias. Não
importa o que falam sobre ela e nem o que a lei diz sobre isso. Ester, a rainha
não irá parar, nunca, jamais.
*
Sol desceu da viatura torcendo para que não houvesse
ninguém na residência do falecido. A pior parte de uma investigação é ser o
anunciante de uma tragédia. Solange tocou a campainha duas vezes e aguardou. A casa não é lá essas coisas, mas dá pro
gasto. Quando já estava comemorando o adiantamento do anúncio, alguém abriu
lentamente o portão. Um menino de mais ou menos dez anos.
— Olá, tudo bem?
O garoto tinha um semblante pesado.
— Posso falar com a mamãe?
Nesse momento uma outra criança apareceu no portão.
Uma menina, pelo menos ela estava sorridente. Ela voltou gritando a mãe. Sol
tentou acariciar os cabelos despenteados do menino, mas ele não deixou,
afastou-se grunhindo. Pouco depois apareceu no portão uma moça jovem, bonita,
mas seu olhar era caído, triste. Ela tinha marcas no rosto e braços.
— Em que posso ajudar? — sua voz era quase infantil.
— Sou a delegada Solange Viana, podemos conversar em
particular?
A mulher convidou a policial para entrar e pediu as
crianças que fossem brincar no quintal.
— Lindos, seus filhos.
Sol ficou em pé, no meio da sala mal arrumada.
— Obrigada. Não repare a bagunça. Sente-se. —
sentou-se na ponta do sofá colocando um dos travesseiros no colo.
— Bom, senhora...
— Cris. Pode me chamar de Cris.
— Então, dona Cris, é sobre seu marido, Silas.
Sol pode sentir Cris se preparando para o pior.
— A senhora vai precisar ser forte.
Cris não chorou. Ela passou a olhar para os filhos
brincando lá fora.
— Ele foi encontrado morto. Lamento muito sua perda.
Depois do um longo e ruidoso suspiro, Cris passou a
falar.
— Eu fui até a polícia, denuncia-lo. A senhora está
vendo essas marcas? Pois é, foram feitas por ele. Silas estava descontrolado,
insuportável, me batia e... — Cris passou a soluçar. — ele me forçava a ter
relações com ele. Era horrível. As crianças tinha medo dele. O meu filho mais
velho, tadinho, tentava me proteger, mas acabava apanhado também.
Solange não sabia o que dizer. Por isso decidiu falar
sobre as investigações.
— Estamos apurando os fatos. Vamos manter a senhora
informada a cada avanço das investigações. — Sol retirou da bolsa dois cartões.
— um é o meu contato e o outro é de uma profissional muito boa, ela vai lhe
orientar, há também terapia para as crianças.
— Ah, sim, lhe agradeço.
A delegada deixou a residência. Cris fechou o portão e
caminhou em direção aos filhos amassando os dois cartões, Silas, tomara que
esteja sofrendo no inferno. Os cartões foram parar na lata de lixo do
jardim.
— Crianças, que tal brincarmos de pique pega?
*
O que há de errado com os homens? O que se passa na
mente masculina? Até quando esse terror vai durar? Será que a lei Maria da
Penha não é suficiente? Ainda dentro do carro, em frente ao prédio do IML, Sol
permite que sua cabeça de voltas e mais voltas em torno disso. Silas fez da
vida de sua própria família um inferno na terra e por que? Cris não é uma
mulher feia, transmite ser uma boa mãe e excelente dona de casa. Então o que
havia de errado? O mais curioso é que ao receber a notícia do falecimento do esposo,
Cris não esboçou qualquer emoção. Ficou apática. Talvez aliviada? Será? Teria a
rainha feito um favor para ela? De qualquer forma um crime aconteceu e algo
precisa ser feito. Quando se preparava para descer o celular vibrou.
— Oi, amor!
Elton curtiu o “ oi, amor”
— Ah, oi, está podendo falar?
— Claro!
— É que, eu queria te ver hoje...
— Queria ou quer? — desceu da viatura.
— Quero.
— Sim, podemos nos ver hoje sim.
— Legal, eu levo a comida.
— Esse meu namorado quer me ver imensa. Às vinte
então. — subiu as escadas da entrada. — beijos.
Solange ganhou o corredor silencioso. Sol não gosta
muito de ir ao IML. Para ela as piores vibrações emanam daquele lugar, sem
falar do forte odor. Ela parou e se identificou para o funcionário atrás do
balcão.
— Solange Viana, delegada de polícia, preciso falar
com o doutor Jonas.
— Doutor Jonas está em um procedimento.
— Ótimo. — seguiu andando.
Antes mesmo de chegar a sala de procedimento é
possível ouvir o som pesado vindo lá de dentro. Sol reconheceu logo de cara a
voz potente de Bruce Dixon e até arriscou cantarolar com seu inglês deficiente.
A delegada bateu e em seguida abriu a porta. Jonas fazia marcações em um
cadáver e nem se assustou com a chegada da policial.
— Olá, vamos entrando. — correu para diminuir o volume
do rádio.
— Defunto e Iron Maiden, boa combinação.
Doutor Jonas estava hipnotizado com a presença de Sol.
— Na verdade, esse lugar não combina com a senhora.
Olha isso. — tirou os óculos.
— Sabia que eu posso lhe autuar por assédio?
— Ah, para com isso, delegada, estou apenas lhe
elogiando.
— Você me elogia todas as vezes que venho aqui. —
sorriu. — e aí, o que tem pra mim? — Sol olhou para o corpo nu na mesa. Uma mulher.
— o que aconteceu aqui?
Jonas colocou os óculos e deu a volta na mesa.
— Essa pobre coitada tirou a própria vida por causa do
fim de um relacionamento, acredita?
De uma forma ou de outra, os homens seguem
matando as mulheres, pensou enquanto olhava para o cadáver.
— Eu acho que a senhora não veio até aqui por
causa dela, acertei?
Sol estava distante e não ouviu Jonas. O legista
pigarreou alto.
— Sim?
— Silas tinha uma grande quantidade de cianeto no
organismo. Fizemos um exame de DNA com o material colhido do pênis e adivinha?
— Ester, a rainha. — deu de ombros.
— Essa criminosa vem fazendo uma verdadeira coleção.
— Pois é. — Sol não sabia o que dizer. — fez um bom
trabalho, doutor Jonas.
— Apareça sempre que puder, doutora Sol. — enfatizou o
Sol abrindo os braços.
*
As louças bem organizadas dentro da pia. Quase todas
as luzes estão apagadas dentro da casa. Sol, como uma policial experiente não
gosta de sua residência totalmente no escuro, por isso ela deixou que a luz do
banheiro clareasse um pouco o restante. Elton e ela se beijam deitados no sofá
ao som de Missão Impossível. Os dois estão com seus hormônios saindo pelos
ouvidos. No caso do universitário um pouco mais. Ele não transa faz algum tempo
e agora ele tem nos braços uma mulher sensacional, linda, gostosa e que não
para de beija-lo um segundo sequer. O estudante de jornalismo decide avançar.
Suas mãos desceram lentamente das costas até a bunda. Até aí tudo bem para um
segundo encontro. Solange não reagiu. A mão permaneceu parada no local. Sol o
segurou no rosto. Seria isso um tipo de autorização? Pensou. Confiante nesse
pensamento, Elton a puxou um pouco mais para junto dele e a mão que se
encontrava parada, começou a se movimentar. Sol finalmente reagiu.
Negativamente para o desespero do estudante.
— Vamos com calma, não acha? — Sol se levantou
ajeitando os cabelos.
— Peço desculpas.
Elton estava com o rosto ruborizado.
— Não precisa se desculpar. — voltou a sentar-se ao
lado dele. — confesso que estava quase cedendo, mas, eu acho que não podemos deixar
com que nossos instintos prevaleçam.
— Certo! — esfregou o rosto. — então. Você ainda não
me falou muito sobre o seu trabalho. Acho que é uma boa hora para isso.
— Ah, eu posso falar sobre muitas coisas. — deitou no
sofá e colocou a cabeça no colo dele. — o que quer saber exatamente?
— Pelo que andei pesquisando, você...
— Pesquisando?
— Sim! Vi que você atua na área de violência contra a
mulher e que está na cola de uma tal de Ester, a rainha.
— Pois é. Ester vem sendo a pedra em meu sapato a
algum tempo.
— Assassina de homens violentos com suas parceiras.
Parece coisa de filme. Deve haver uma razão.
Elton estava entrando em uma área bastante delicada.
— Sempre há uma razão. — a tristeza na voz da agente
pode ser notada.
— O que aconteceu? — acariciou a testa da namorada.
— Ester foi abusada quando criança. Assim como eu.
Uma ligeira tonteira Elton sentiu ao ouvir tal
declaração, isso o impediu de falar qualquer coisa.
— Eu tinha oito anos de idade e fui violentada por um
sujeito já adulto, aconteceu o mesmo com Ester.
— Jesus! — sussurrou. — que sujeito execrável.
— E bota execrável nisso. Diferente de mim, Ester
resolveu matar, se tornar uma criminosa.
— Ela deveria buscar ajuda, sei lá. Cada um resolve
seus conflitos do jeito que acha melhor, mas nesse caso, Ester está se vingando
mesmo. uma serial killer.
— Por mais que eu me identifique com o que aconteceu
com ela, isso precisa acabar. Vou prendê-la.
— Claro que vai. Minha heroína. — a beijou na testa.
*
A pessoa que comete esse tipo de mal a uma criança,
não sabe o dano, talvez irreversível, que está causando a ela. Abusar de um
infante é jogar contra a natureza. Assim como qualquer outra criatura, a
criança tem sua função no mundo: alegria, pureza, inocência e esperança num
futuro incerto, essas são algumas das inúmeras funções de um pequenino na
terra. A violência sexual pode de uma vez só fazer com que esses coisas sejam
diluídas, até o seu desaparecimento total. Em outros casos, podem gerar na
criança um sentimento destrutivo, despertar o monstro que existe em cada um de
nós. Ester se encontra nesse grupo. Quando ainda não havia assumido o seu lado assassino,
algo que ela relutou durante muito tempo aconteceu. Ela se apaixonou. Ester não
queria de forma alguma contato com seres do sexo oposto, mas isso fugiu do seu
controle. Todos os homens são iguais, a violência é o segundo nome deles.
Felipe, jovem negro assim como ela, morador de comunidade, fez o coração da
rainha bater diferente e um pouco mais acelerado. Eles flertaram por alguns
dias, mas ela disse não quando finalmente o garoto criou coragem. Ela disse
não, mesmo morrendo de paixão por ele. Ele merece coisa melhor.
Danos irreversíveis. Sim. Aquele ato que durou apenas
alguns minutos deixou uma ferida aberta. Ela não tem cura, não cicatriza e dói
o tempo todo. O que fazer para esquecer tudo por pelo menos algumas horas? Correr,
se exercitar, é uma boa ideia? Uma rainha que se preze jamais pode aparecer em
público mal vestida. Ester é uma mulher maravilhosa, sempre foi e o que é pior,
ela sabe disso. Corpo perfeito. Cintura fina, seios apontando pra cima, sem
falar no jeito de andar. Braços e pernas em perfeita sincronia. Agora, imagine
isso tudo dentro de um traje de academia? Antes de ganhar a rua ela se
certifica se não há alguém a espiando, alguém que porte um distintivo por
exemplo. Nada. A barra tá limpa. Ela ajusta o cronômetro no relógio de pulso e
pronto.
Três quilômetros. Bom tempo de corrida. Ela para
sempre na mesma banca de jornal e de maneira rápida Ester dá uma olhada nas
manchetes em destaque. Nada de bom, nada de novo. A corrida segue. Ela não pode
parar. Enquanto corre sua mente gira, se fortalece, cresce. A vida é
comparada a uma vela acesa e escondida. Não sabemos quanto tempo ainda temos de
chama brilhando. Um dia essa chama vai se apagar. Isso é a única certeza que
temos. Todo mundo morre.
*
Um policial parrudo entrou na sala de Sol segurando um
pen drive.
— A senhora precisa ver isso.
Solange o conectou em seu notebook. Depois de alguns
cliques um vídeo teve início.
— São imagens de uma câmera de segurança de uma loja
que fica em frente a uma banca de jornais.
O vídeo mostra Ester parada, lendo um jornal de
exposição na lateral da banca. Sol olhou para o agente.
— É a nossa rainha. — disse o parrudo.
— Sim! Diga aos detetives que fizeram um bom trabalho.
Reúna a equipe, Barreto, reunião em dez minutos.
— Sim, senhora.
Solange Viana parece ser uma moça frágil, fácil de
intimidar, mas só parece. Sol é competente, tem faro de polícia e um espírito
de liderança fora do comum. Antes de assumir o cargo, havia uma outra mulher,
um pouco mais velha. Era uma agente muito boa, mas que não conseguia manter a
ordem, seus subordinados não acreditavam nela. Quando Sol por fim ocupou o seu
lugar, as coisas finalmente começaram a entrar nos eixos. Foi difícil no
início, mas, graças a sua determinação e eficácia, até mesmo quem duvidava de
sua capacidade passou a admira-la.
— Senhores, prometo não me alongar muito, mesmo
porque, quero hoje mesmo colocar o plano em ação. Eu já venho sofrendo algumas
cobranças de meus superiores e com razão. Ester parece não acreditar que nunca
será presa. Vocês viram no vídeo. Ela simplesmente caminha e lê jornal em praça
pública. Essa é a verdadeira sensação de impunidade. Temos que pegá-la, já,
agora. Barreto, agora é com você.
— Obrigado, senhora. Atenção. Sabemos que o nosso alvo
se esconde na região norte e que frequenta bares, boates e clubes, assim disseram
os detetives. Quero que anotem os detalhes do plano.
Dez minutos depois a sala da delegada estava novamente
vazia. Sol aproveitou para assistir mais uma vez o vídeo. Agora um pouco mais
tranquila, ela pode deixar sua mente trabalhar mais devagar. Lá está ela. A
rainha. Uma bela mulher negra. Ela não é só bonita. Ester tem uma sensualidade,
um poder de atração de poucas. Do que adianta todas essas vantagens? Por trás disso
tudo existe uma maníaca. Um monstro. Lá está ela lendo um jornal, em busca de novas
vítimas em meio a pessoas comuns. Sol voltou o vídeo. Ester, por que não fez
desse mal que fizeram a você, algo para combatê-lo, por que não fez igual a mim? Somos mulheres, somos fortes,
unidas nos tornamos invencíveis, podemos mudar o mundo. O vídeo acabou e
Sol não o voltou. Ela deixou sua sala disposta tirar a coroa da rainha.
*
Agora Elton entende o que seu pai falou a muito tempo
atrás. Estudos e namorada não combinam. Se já estava complicado o
desenvolvimento do TCC sem a interferência de uma paixão, com ela buzinando
noite e dia em sua mente a questão fica praticamente insustentável. Sol não sai
de sua cabeça nem por um minuto sequer. Em contra partida, o formando em jornalismo
tem curtido cada segundo dessa nova fase de sua vida. Quando ele imaginaria
estar ao lado de uma policial? Nunca. Solange e ele é como água e óleo. Ela,
uma negra, mulher que batalhou pra caramba até atingir seu objetivo. Ele, rapaz
branco de classe média, não faz ideia do que é viver numa comunidade dominada
por traficantes, não sabe o que é passar por dificuldade. Solange e Elton. Tem
como dar certo esse relacionamento?
Na tentativa de esfriar um pouco a cabeça, Elton deixou
de lado a elaboração do trabalho conclusivo e se apegou ao smartphone, quem
sabe curtir algumas fotos de minha princesa ajude a amenizar a pressão, pensou
se recostando na cadeira. Lá está ela, bonita, sorriso fácil. Olhando assim
ninguém diz que é uma delegada competente.
— Parabéns, gata.
Elton vai passando foto por foto e dá de frente com
uma imagem antiga, Sol era apenas uma menina agarrada na perna de um homem que
ele julga ser o pai dela. Imediatamente ele se recorda do que aconteceu com
ela. Violência sexual. Uma criança. Meu Deus. Elton fechou os olhos e tentou se
colocar na pele do pai de Sol, mas não conseguiu. Deve ser horrível, imaginou.
— Sinto muito, Sol.
*
Ester enlouquece seus admiradores dançando e rebolando
ao som estridente da música eletrônica daquela boate de luxo. Hoje ela estava
afim de extravasar. Ela dança sozinha, mas por opção. Claro que já houve
convites para se juntarem a ela. Todos negados. A rainha não está disponível.
Nada de beijos ou amassos, tão pouco uma transa sem compromisso. Ela só quer
dançar, chacoalhar o esqueleto até não conseguir mais. A música mudou e Ester segue
sendo o centro das atenções mesmo havendo outras pessoas dançando também. Uma
moça branca de vestido preto, curtíssimo se aproximou dela. Sua performance era
tão boa quanto a de Ester. Elas trocaram olhares sérios, mas em seguida a
rainha se desarmou, ela é linda.
Depois de vinte minutos levando os meninos a quase
ejacularem nas calças, as duas bebem sentadas no balcão.
— Nunca lhe vi aqui. — Ester beliscou a cerveja.
— Sou nova na cidade. E você, sempre viveu aqui?
— Vamos dizer que sim.
Nesse momento um rapaz alto, moreno, boa pinta
encostou no balcão. Ester não tirou os olhos dele.
— Cuidado, Ester.
— E por que eu deveria ter cuidado? — segue olhando
para o moreno.
— Ele é casado, bate na esposa. A coitada já até foi
parar no hospital.
Algo mudou em Ester. Sua expressão, seu jeito de se
sentar e até sua respiração se tornou mais pesada. Ela olhou para a garota que acabara
de conhecer.
— Ele bate em mulher?
— Sim e ainda trai a pobre.
A rainha bebeu de uma só vez toda a cerveja da lata.
— Bom saber. — arrotou baixo. — obrigada, Clara.
Arrastar um homem para um lugar mais reservado,
diga-se de passagem, não é tarefa difícil. Homem é bicho bobo. Por mais sério
que ele seja, quando está diante de uma presença feminina, qualquer montanha de
gelo se derrete. Foi assim com Fred. No início ele resistiu, falou que era
casado, tentou argumentar, mas acabou sendo fisgado pelo poder de atração da
rainha. A noite só está começando. Ester foi levada para um lugar deserto, numa
estrada de cascalho entre as mais diversas árvores e outras plantações.
— Você sempre trás as meninas com quem sai pra cá?
— Pois é. Gostou da vista? — desligou o motor do
carro.
— Maravilhosa.
— Curte qual som? — a voz de Fred é grave e um pouco
rouca.
— Um pouco de tudo. Ultimamente tenho ouvido
sofrência. Acredita?
Fred riu, mas não muito.
— Você me parece tenso, Fred, posso ajudar? — Ester
colocou a mão no volume entre às pernas do rapaz.
— Caramba, você é rápida, hein! Que tal uns beijinhos
antes?
— Mais que caretice é essa, senhor Frederico? Sou uma
mulher de decisão.
— Sério?
— Muito sério. — se abaixou. — agora relaxe. Feche os
olhos e flutue.
Como um patinho. O sujeito fechou os olhos. Sentiu o
zíper da calça ser aberto e em seguida sentiu também o frio de um metal em sua
testa.
— Ah, o que é isso? — Fred arregalou os olhos.
— Uma Glock, policial, nunca viu uma dessas? Eu sempre
carrego uma para ocasiões especiais.
— Calma, Ester, vamos com calma. Não faça besteira.
— Eu não mato polícias, esqueceu? Eu só mato quem
merece morrer. Agora saia do carro.
Hesitante, frustrado, Fred praticamente escorreu para
fora do veículo. Ester é muito esperta mesmo. Os pneus do Renault Duster cantou
espalhando cascalhos pra cima do policial. Fred fez alguns gestos com os braços.
Segundos depois alguns polícias saíram de trás das árvores.
— Ela fugiu, sentido cidade, saiu tudo errado.
— Fique tranquilo. — falou pegando o rádio. — atenção,
delegada, o alvo fugiu levando o veículo, ela vai sair na estrada principal.
Copiado?
— Copiado!
Me subestimaram. Acharam que eu não
desconfiaria do que aconteceu lá na boate. Primeiro mandaram aquela garota
ridícula que nem dançar sabia direito e depois o moreno bonitão. Não adianta.
Policiais exalam cheiro e poucos conseguem senti-lo. Eu sou uma dessas pessoas.
Agora é hora da rainha sair de cena até às coisas se acalmarem.
Ester nunca foi uma boa motorista, porém o que sabe dá
para o gasto. Assim como foi previsto, ela saiu da estrada de cascalhos e sem
se preocupar em sinalizar pegou a principal. Ela sabe que virão atrás dela, por
isso ela não para de olhar pelo retrovisor. Nada dos vermes até agora. A rainha
pisa fundo. O carro é dos bons e permite que ela usufrua do seu potencial. Mais
a frente já é possível ver despontando no horizonte, naquela paisagem noturna das
luzes da cidade. Novamente, sem sinalizar, Ester joga o carro para uma entrada
a esquerda e se choca com outro veículo. Sua cabeça bate com força no volante.
A dor é intensa. Ela vê tudo em câmera lenta, inclusive Solange abrindo a porta
e apontando sua arma para ela lhe dando voz de prisão.
— Você está presa, Ester.
Barreto abre a porta do carona e pega a arma. Sol a
puxa com truculência para fora do carro.
— Coloque suas mãos para trás, vamos.
Novas pulseiras, que pensamento ridículo
meu.
— Barreto, leve-a. Acabou.
*
Ester está a quase uma semana na cadeia e até agora
ninguém de sua família apareceu. Isso não a abala nem um pouco. Já era algo
esperado. Ela olha para as grades e também para além delas e tenta imaginar o
que estaria fazendo nesse momento longe daquele chiqueiro. Em uma semana ela
emagreceu, tosse todas as noites incomodando as outras garotas e quando
finalmente consegue dormir, os pesadelos a fazem acordar. Eu mereço. Todas
foram para o banho de sol, mas a rainha preferiu ficar ali, sentada, olhando
além das grades. Um agente apareceu de repente em seu campo de visão.
— A senhora tem visita, rainha.
Hum, gostei da formalidade.
Ester é conduzida até uma sala onde Sol a aguarda. Ao
ver a delegada Ester deixou seus ombros caírem.
— Como tem passado, Ester?
— Não te interessa. — sentou-se ainda algemada.
— Tudo bem. — Sol não abaixou a cabeça. — trinta anos.
— Pois é. Tempo de sobra para pensar no que vou fazer
com você depois que eu conseguir sair daqui.
Sol sorriu.
— Acho que você não vai sair, Ester. O juiz está
revendo sua condenação e eu acho que nos próximos oitenta anos, essa será sua
casa.
Ester cruzou as pernas e olhou profundamente nos olhos
da policial.
— A morte também é uma forma de fuga, sabia? — grunhiu.
Essa fala de Ester mexeu com Sol. Ela se entristeceu.
— Você é jovem. É bonita e inteligente. Ester, por que
deixou tudo isso acontecer? Eu também tinha motivos para sair matando, mas...
— Você não é uma assassina, delegada. Eu já nasci com
isso dentro de mim. Aquele porco que me violentou só acionou. Essa é a
diferença e quer saber? Faria tudo de novo. Não me arrependo de nada.
Silêncio.
— São suas últimas palavras? — Sol fez força para não
desabar na frente da condenada.
Ester tirou os olhos de Sol e olhou para a pequena
janela também de grades.
— Você ainda vai ouvir falar muito de Ester a rainha,
Solange Viana. Isso aqui não é o fim. — apontou para a janela.
Sol se levantou.
— A decisão é sua.
Ester voltou para a cela e permaneceu no mesmo lugar
onde estava. Em dias ali, Sol foi sua primeira visita. De uma certa forma isso mexeu
com ela. Ela se importa comigo! Trinta, cinquenta, oitenta anos, do que
adianta? Sua vida acabou mesmo. Por um momento ela sentiu inveja de Sol por
conseguir superar o mal que fizeram a ela. Parabéns delegada. Como diz o
ditado: quem é rei nunca perde a majestade. Ester é uma rainha e não importa
aonde.
— Vamos ver quem manda nessa jóssa.
*
Elton não sabe, mas ele possuiu o poder de fazer com
que sua namorada esqueça dos problemas quando estão juntos e isso é bom. Sol
gosta de beija-lo, de sentir sua pele, do seu calor. Com ele por perto tudo se
transforma. Solange dessa vez acertou em cheio. Eles param de se beijar
deitados no sofá e se olham.
— Você perdeu a aposta. — Elton vibrou.
— Claro que não.
— Apostamos que você não aguentaria dois episódios da
série sem me pedir um beijo. Veja, o episódio ainda está na metade. — apertou o
nariz dela.
— Sério? Que bom que eu perdi.
— Sei que o momento não tem nada a ver, mas, como foi
hoje com Ester?
Sol parou de sorrir.
— Não foi legal. Ester, de fato assumiu o que sempre
foi, uma criminosa. Uma pena. Que desperdício.
— Sim! Vi a foto dela no jornal. Mas e você, como está
a sua cabeça?
— Melhor impossível. Diferente de Ester, eu venci o
mal com o bem. Mudei minha história. Não seria o ato de um maníaco que daria os
rumos de minha vida.
— Apoiada! — vibrou.
Sol pegou o controle remoto e desligou a TV deixando a
sala no escuro.
— Agora vem que eu estou louca para perder outra
aposta. FIM.