sexta-feira, 29 de abril de 2016

Uma emboscada para o Diabo



 Gerson perdeu seu pai vitima da bebida, era uma dose dupla de manhã, á tarde antes do almoço e a noite, juntos com os amigos de bar. Ele também perdeu sua irmã, Maria que se perdeu na vida e se tornou uma das prostitutas mais requisitadas do interior. Seu irmão Afonso foi morto com vinte tiros por um matador de aluguel. Sua mãe, dona Jussara, morreu de desgosto. O coração de velha lavadeira não aguentou e explodiu e a velha foi encontrada morta no rio onde lavava as peças de roupa. Como um bom Cristão, Gerson não culpou Deus por todas essas desgraças em sua vida e sim o diabo. Convicto disso, Gerson se juntou a Beto, um rapaz loiro, magro e que sabe como ninguém manusear uma garrucha. Os dois querem acertar as contas com o diabo e ambos preparam uma emboscada. Gerson é o mais empolgado.
     - É hora desse cão miúdo pagar pelo mal que ele fez a todo mundo, Beto.
     - Como pensa em fazer isso Gerson, o diabo é um bicho esperto.
     - Pode deixar comigo companheiro, sei onde ele mora. – Beto arqueia uma das sobrancelhas.
     - Como assim, você sabe onde o bicho ruim mora?
     - Simples, lá perto das montanhas tem uma gruta horrível e desde pequeno minha falecida mãe, que Deus a tenha, dizia que o diabo morava lá, então fiado nisso vamos pra lá e esperar que o cão do inferno saia para fazer as maldades dele e ai então, você que atira bem mete uma bala na testa dele.
     - Você acha que será tão fácil assim?
     - Claro Beto, porque?
     - Porquê, vai dar certo homem não duvide não. Então tá combinado, a tardinha quando começar a escurecer vamos pra lá entendeu?
     - Sim.

***

    O céu já dá seu tom alaranjado esperando a noite assumir o dia de sol quente. Numa estrada de barro, dois homens caminham lado a lado. Um com uma espingarda apoiada no ombro e outro com uma cruz na mão direita feita de galho de árvore. O lugar é deserto e o pouco vento que corre por ali é quente. Gerson anda arrastando seu chinelo havaianas amarelo e branco junto com a calça desbotada marrom. O cheiro de suor já impregnou em suas vestes e seu chapéu torno na cabeça mostra que ele é um sujeito matuto típico do interior. Já Beto é diferente, usa calça jeans e camisa de manga curta. Na pouca luz os olhos do rapaz parecem menos azuis do que de costume. Beto é um garoto bonito para as características do lugar. Gerson o conheceu num bar perto de sua casa onde começaram a conversar e assim se tornaram amigos.
    A noite chegou e também os destemidos caçadores do diabo. Realmente o lugar é terrível. A gruta é de dar medo no mais valente homem daquelas bandas. Gerson sente frio mesmo sendo verão causticante. Os dois se olham.
    - Então Gerson, ainda quer prosseguir com o plano.
    - Claro, vamos subir e nos esconder.
    - Onde?
    - Lá, na porta da gruta. – Beto engole seco.
    - Você quem manda.

       Depois de muito suor e cansaço os dois heróis do sertão chegam á boca da gruta de onde vem ruídos horripilantes. Gerson e Beto se escondem atrás de uma rocha lascada. Imediatamente Beto carrega sua espingarda com uma rolimã novinha em folha. Gerson retira do bolso um maço de cigarro com dois últimos cigarros.
      - Quer um parceiro?
      - Claro uai. – Um pássaro noturno os assusta e Gerson empurra Beto que se jogou em cima dele.
      - Sai pra lá homem, se ainda fosse uma cabrocha peituda ainda ia.- os dois riem baixinho
      O tempo vai passando e a paciência também. Gerson olha atentamente para a gruta e Beto se recosta na rocha fumando seu cigarro.
      - Gerson. – chama Beto.
      - Fala cabra!
      - Trouxe a cachaça?
      - Eita caramba esqueci, foi mal.
      - Merda!
      - Lá vem ele Beto, já escuto os passos, se prepare. – Beto se vira e aponta a espingarda na direção da gruta. As respirações se misturam e o barulho dos passos chegam a boca da caverna assombrada. – você vai pagar pelo que fez com a minha família seu cão miúdo da disgrama, mata ele agora Beto. – o som da espingarda disparando ecoa nas montanhas e o que se vê depois é o corpo de Gerson caído com a cabeça esfacelada vazando miolo cinza. Beto se levanta e chama seu cachorro feroz que mais parece um urso de dentro da gruta. Sua face já não é dócil como de antes. Em sua testa duas saliências se formaram, uma em cada ponta, um pequeno chifre. Seus olhos de azuis passaram a ser vermelhos e os dentes pontiagudos como de peixe. O cão do inferno chega e começa a lamber o ferimento do pobre Gerson.
    - Agora você vê só, um rola bosta como esse querer me punir, ra, ra,ra. Nunca.
    Na estrada um homem em seu cavalo ruma em direção á cidadezinha. Beto o olha e rir.
    - Entre furioso, o papai vai trazer mais carne fresca pra você mais tarde.

Fim

terça-feira, 26 de abril de 2016

O PREÇO da MORTE(Um conto com Luís Souza)




1

             A paciência nunca foi o forte da assistente de Souza. Está certo que o lugar é conchegante e cheira maravilhosamente bem. Mais uma vez o garçom se aproxima da mesa.
              - Vai querer mais alguma coisa senhora?
              - Vou querer mais uma água com gás, por favor. – diz visivelmente irritada.
              O funcionário do restaurante vai buscar o pedido na mesma hora em que um homem alto, esbelto e bonito aparece na porta com seu terno cinza claro e gravata verde. Itamar está sensacional. Márcia ao vê-lo esquece todas as quase duas horas de espera. Bem barbeado, perfumado e com os olhos mais claro que a luz do dia, o investigador adentra ao salão esbanjando charme e elegância.
               - Me desculpe a demora, peguei um transito horrível. – a beija na mão. – essa cidade está cada dia mais louca.
               - Imaginei.
               - Já fez o pedido? – puxa a cadeira.
               - Ainda não, preferi esperar, afinal, você é a pessoa ideal para isso.
               - Que tal comida italiana, a noite está pedindo uma boa massa e um bom vinho.
               - Você quem manda.
               Depois de uma longa espera, troca de olhares e elogios, o pedido chega. O clima fica ainda mais romântico. Itamar não consegue desviar o olhar do decote da policial. Márcia está linda, cabelos soltos, uma maquiagem leve e um vestido preto que valoriza seu corpo de mulherão. Para o investigador, o fato de Márcia ser gordinha não importa, o que realmente interessa é que ele está jantando com uma mulher maravilhosa. Lá pelas tantas eles pedem a sobremesa.
               - Sempre gostei do pavê daqui. – comenta Itamar.
               - Olha que de doce eu entendo, minha mãe é fera no assunto.
               - Está de folga amanhã? – limpa a boca.
               - Sim, por quê?
               - Podemos dar uma esticadinha, quem sabe mais um vinho, queijo, dormir abraçadinhos, hein?
               - Vou pensar no seu caso.

***

               Itamar não é só beleza. Ele também manda muito bem na cama. Ele gosta de ver uma mulher feliz e satisfeita sexualmente. Márcia se entrega mais uma vez nos braços do investigador que a beija no pescoço e busto. A noite é alta. O quarto do motel fica sem espaço tamanho o prazer que exala dos dois. O clímax chega e ela quer mais. Quando o viu pela primeira vez, ela jamais imaginou estar deitada sobre o corpo do policial charmoso que adentrou a sala de Souza alguns meses atrás. Para ela o sentimento que a consumia era platônico - é muita areia para o meu caminhãozinho, dizia para ela mesma. Agora ela se encontra ali, com ele dentro dela, fazendo amor como nunca. A transa termina e ambos estão lado a lado com suas respirações entre cortadas. Ela alisa seu tórax coberto por pêlos negros.
             - Foi bom pra você? – ele pergunta ofegante.
             - Foi maravilhoso. Quer mais vinho?
             - Adoraria.
             Márcia se levanta completamente nua. Itamar estica o braço acertando um tapinha nas nádegas protuberantes da assistente de detetive.
             - Está bem servida hein.
             - Herança de mamãe. – rir.
             Minutos depois ela volta com duas taças. Itamar reclama.
             - Desse jeito não dá.
             - O que houve? – Márcia franze a testa.
             - Dê só uma olhada. – retira o lençol exibindo sua ereção. – será que você pode resolver isso?
             - Claro que posso.

2

             Duas vans, cincos homens. O líder do bando, Dimas, repassa o plano mentalmente enquanto dirige pelo transito pesado da cidade. A seu lado, Zero, seu companheiro de longa data, fuma seu cigarro fedorento coisa que não incomoda seu chefe. Dimas é mal encarado, cultiva um cavanhaque bem aparado e uma cicatriz no nariz que faz lembrar o jacaré da La Coste. Zero consulta mais uma vez o relógio.
             - Você deveria ser motorista de madame pela forma que dirige.
             - O transito de hoje é algo que mata com freqüência, estudos apontam isso.
             - Onde você ouviu isso? – Zero coça a cabeça.
             - Rádio, internet, TV, tudo isso já existe sabia? – faz a curva.
             O maior banco do país vai surgindo com sua fachada de vidros espelhados. A construção colossal também serve como ponto turístico. Milhares de pessoas passam por ali registrando tudo com suas máquinas fotográficas ou celulares.
             - Chegamos! – comemora Zero.
             - O plano não mudou, qualquer duvida deixe que eu falo. – recomenda Dimas.
             Todos do bando estão de uniforme de empresa de manutenção de elevadores. Na lateral das vans o nome da empresa é gritante, DIMAS MANUTENÇÃO. Todos os cincos homens descem dos veículos quase que simultaneamente. Em seguida um guarda negro de quepe se dirige a eles com seu andar cansado e prancheta em mãos.
             - Bom dia cidadãos, do que se trata?
             - Bom dia seu guarda, serviço de manutenção. – Zero sorrir.
             - Estranho, ninguém me passou nada, vou ligar para a central. – saca o rádio.
             - Não será necessário. – Dimas saca a pistola. – entre na van, e rápido.
             O segurança muda de cor ao ver a arma. Ao erguer as mãos ele deixa cair a prancheta.
             - Nada de alardes meu caro. – Dimas fala sério olhando fixo para o funcionário do banco. – pegue sua prancheta e entre na van, vamos.
             Calmamente Zero conduz o guarda até a van. Abre somente uma porta. O coração do homem vem à boca ao ver Dimas colocando o silenciador na ponta da pistola. Dois disparos tiram a vida do chefe de família.
             - Caminho livre. – dá as costas. – vamos entrar.
             No alto do prédio o nome da agencia brilha sob a luz do sol, Banco Fraga.

***

             Márcia abre os olhos preguiçosamente. Demora um pouco até ela relembrar onde está. Olha para o lado da cama, Itamar não estar. Boceja, se envolve no lençol e se levanta. Vai até a janela. O dia é nublado, quase chuvoso. Itamar aparece com uma bandeja de café da manhã coberta de frutas.
              - Achou que eu tinha ido embora?
              - Sim. – o beija.
              - Sou um investigador bastante ocupado sim, mas não a esse ponto de deixar uma bela mulher abandonada num quarto de motel não.
              - O que temos para o café?
              - Café puro, pão integral, requeijão e muitas frutas.
              - Pra mim está perfeito.

***

              O bando de Dimas entra na agencia sem empecilho algum. Utilizando do controle que faz a porta destravar do guarda, Zero deixa a passagem livre para os outros. Lá dentro o barulho de várias vozes falando ao mesmo tempo de som de teclas batendo é quase que orquestral. Mais um guarda se aproxima, um alto de grandes olhos verdes.
               - Seguinte, é um assalto, não queremos machucar ninguém, colabore conosco e ninguém morre, entendeu? - avisa Zero sob a supervisão de Dimas.
               O segurança não esboça reação.
               - Vou logo avisando, não sabemos onde fica o cofre.
               - Venha comigo. – Dimas sobe as escadas alcançando um vão. – não sabe mesmo onde fica o cofre?
               - Pelo amor de Deus, o Fraga é o maior banco desse país, você acha que vão dar informações como essa a um simples funcionário?
               - Quer dizer que não sabe mesmo onde fica o cofre?
               - Não!
               - Então você não tem serventia alguma pra mim. – atira duas vezes na cara do guarda.
               Dimas, Zero, Mauro, Duende e Lex, esses são os bandidos que agora estão no interior do Fraga, a minutos de anunciarem o assalto. Claro que já suspeitaram da presença de ambos. Duende e Mauro sobem para o segundo nadar eliminando mais um segurança. Dimas e Zero rendem todos os caixas e funcionários e Lex vigia a entrada.
              - Todos quietinhos, quero ver as mãos para o alto o tempo todo, quem abaixa-las morre. – diz Zero. – o Dimas vai fazer uma única pergunta.
              O chefe limpa a garganta.
              - Quero saber onde fica o cofre. – ninguém responde. – o silêncio sempre foi algo que me incomodou bastante, principalmente quando eu faço uma pergunta. – todos olham para Dimas com os olhos úmidos. – vou perguntar mais uma vez e espero que eu tenha uma resposta positiva. Onde fica o cofre? – mais silêncio. Dimas olha para Zero que entende o recado. O mesmo dispara contra uma gerente a matando. A choradeira começa irritando os bandidos.
              - Isso aqui está fugindo do controle. – diz Zero olhando para o chefe. – vamos matar todo mundo e fugir.
              - Nada feito, seguiremos com o plano até o fim, custe o que custar. – Dimas olha para um cidadão engravatado abaixado embaixo da mesa. – ele deve saber onde fica o cofre, faremos um trabalho com ele.
***

              Uma cliente chega perto da porta giratória do Fraga e se assusta com a figura de Lex apontando sua pistola para ela. A mulher gira os calcanhares dando meia volta. Corre até um cruzamento onde um policial tenta organizar o transito.
               - Seu policial, acho que o Fraga está sendo assaltado.
               - O Fraga? – as buzinas dos carros atrapalham um pouco a conversa.

3

              De braços cruzados olhando fixo para o acusado sentado a sua frente, Souza aguarda mais alguma palavra do homem.
              - Então foi isso. – abaixa a cabeça.
              - Veja bem senhor Paulo, o seu relato é contraditório, não acha melhor confessar que matou sua esposa, isso lhe pouparia de muitas outras histórias que teria que inventar.
              - Acha mesmo que estou inventando? – limpa as lágrimas.
              - Absolutamente.
              Balançando a cabeça negativamente, Paulo respira fundo e soca a mesa.
              - Tudo bem, tudo bem, eu a matei, confesso, podem me prender. – ergue os punhos.
              - Essa parte eu já sabia, agora me conte onde enterrou o corpo?
              - Esvaziei a piscina, tirei alguns azulejos e a enterrei lá, depois coloquei tudo no lugar.
              - Encheu a piscina não foi?
              Paulo pisca várias vezes.
              - Sim!
              Souza se levanta.
              - Viu, não foi tão ruim assim. – se dirige a porta. – arrume um advogado, vai precisar.

***

              Márcia o aguarda do lado de fora da sala.
              - Então, ele confessou?
              - Sim, o corpo da mulher se encontra na piscina, não na água e sim embaixo da construção, pra mim esse caso já deu, peça ao investigador Jaime que assuma daqui pra frente, não quero ver a cara desse sujeito nem pintado de ouro.
              - Tudo bem chefe.
              O celular de Souza vibra.
              - Souza falando. – pausa. – o que o Fraga? – olha para Márcia. – já estamos indo.
              - O que houve?
              - O Fraga está sob poder de bandidos, vamos pra lá agora.

***

              O homem é mantido sob a mira de uma pistola. O sangue em seu rosto escorre manchando sua camisa branca e a gravata. Dimas olha para ele aguardando uma resposta.
              - Eu já disse, o cofre fica aqui, mas não sabemos onde. – gagueja.
              - É mesmo, e onde vocês guardam todo o dinheiro, na cueca? – Zero rir sendo reprovado por Dimas que faz sinal de silêncio.
              - Juro!
              - Você não tem medo de morrer? – o olhar de Dimas para o homem e soturno.
              - Sim!
              - Então fale onde está o cofre.
              - Vão me matar da mesma forma, não é?
              - Estou de bom humor hoje. – Dimas se levanta da cadeira. – então, podemos ir até lá?
              - Vamos!

***

              Todo o bairro foi isolado. Há várias viaturas aos arredores do banco Fraga. Inúmeros PMs, e agentes. Os curiosos foram afastados e Souza observa a movimentação.
               - Você sabe ao certo quantos são? – pergunta ao guarda de transito.
               - Infelizmente não.
               - Começamos já na desvantagem.
               Um helicóptero já sobrevoa o banco. O barulho é ensurdecedor. Márcia fala ao celular afastada chamando atenção do detetive. Souza volta seu olhar para a agencia e vê algo se movimentando. Márcia também olha, mas não consegue ver nada.
                - Qual o próximo passo? – Márcia cruza os braços.
                - Vamos tentar o primeiro contato com eles.

***

                O homem é obrigado a ir até ao cofre sob a mira da 45 de Zero. Logo atrás Dimas com as mãos enterrados no bolso observa cada passo. O cofre é algo futurístico. O designe não lembra em nada os antigos. A entrada é toda digitalizada e é preciso alguns procedimentos.
                - É aqui. – informa o gerente.
                - Eu não tenho a senha, mas, você a tem, pode abrir. – Dimas continua com seu olhar concentrado.
                - Eu estou tão nervoso que esqueci a numeração e se eu digitar qualquer número errado logo de cara o cofre trava. – o homem transpira apesar do ar congelante.
                - Poxa, mas que triste, qual o seu nome mesmo? – Dimas olha o teclado iluminado.
                - Silvio!
                - Silvio, pense comigo. – limpa a garganta. – se você digitar errado o cofre trava e só quem é capaz de destravá-lo é a central que fica em outro estado não é mesmo?
                - Isso, eles saberiam que o banco foi invadido. E para destravá-lo leva 48 horas.
                - Que chato, não acha, Zero?
                - Podes crer.
                - Com toda essa tecnologia que nos cerca, o maior banco ainda não providenciou um leitor ocular. – Dimas abre os braços. – será que o Fraga ainda confia em senhas numéricas de cinco dígitos? Será?
               Silvio engole seco.
               - Exatamente!- diz Silvio.
               - Mas, digamos que aquilo ali. – aponta para um objeto instalado na parede ao lado igual a um olho mágico. – seja um leitor ocular.
               Silvio transpira ainda mais.
               - Claro que você vai dizer que os seus olhos não foram, podemos assim dizer, cadastrados, não é?
               - Verdade, eu não fui.
               - Seja homem, Silvio, pelo menos uma vez na vida, coloque seus olhos ali e veremos se está dizendo a verdade. – abre mais uma vez os braços.
               Enquanto Dimas convence ao gerente a abrir o cofre, Zero se impressiona com a inteligência do chefe e o seu poder de observar as coisas, como ele viu aquele objeto ali?
               - Vamos lá Silvio, prove que é homem. – Dimas cruza os braços.
               - Eu já falei, eu não fui cadastrado.
               Dimas saca sua pistola e atira contra a cabeça do Silvio que falece na mesma hora.
               - Tire os olhos dele.
               - E se ele estivesse falando a verdade.- Zero engole seco.
               - Azar o dele, vamos pegar cada funcionário, um por um e se precisar arrancar os olhos de cada um deles eu farei, precisamos abrir esse cofre e sumir com a grana.
               Duende aparece na entrada da sala.
               - Ferrou, a policia cercou tudo.
               - Ótimo. – Dimas bate palma de forma sarcástica. – agora a festa ficou completa.

4

               Assim como Duende informou ao chefe, a policia cercou todas as saídas do bairro. Todos aguardam nervosos o primeiro contato dos bandidos. Souza recebe a informação de que há pelo menos 60 pessoas como reféns dentro da agência. Algo precisa ser feito rápido. O detetive olha mais uma vez para a entrada do Fraga quando de repente uma mulher loira, com a maquiagem borrada aparece chorando. Ela grita.
               - Eles querem um negociador, e rápido.
               A policia se agita. Atiradores tomam suas posições e Souza se coloca a disposição para negociar. Ao andar na direção da porta, o detetive percebe que uma arma é apontada para a cabeça da refém, isso faz o coração do experiente investigador parar por alguns segundos.
               - Por favor, pare. – a mulher diz soluçando.
               - Quem está ai com você senhora?
               - Isso não importa.
               Souza percebe que alguém está falando por ela.
               - Vocês são quantos? – Souza fica praticamente imóvel.
               - Eles não querem você como negociador, eles conhecem sua fama. – a mulher treme os lábios quando fala. – chamem outro, caso contrario tudo irá pelos ares.
               Souza sente o chão sair de seus pés ao ouvir que tudo iria pelos ares.
               - Vocês tem uma bomba?
               A mulher engole seco várias vezes antes de dizer que sim. Um fio de suor grosso escorre pelo meio das costas do policial que usa um colete a prova de balas.
               - Tudo bem, que garantias temos que não vão matar os reféns?
              - Arrumem outro negociador. – a mulher é puxada com truculência para dentro da agencia.
              Souza volta para junto de Márcia e outros policiais totalmente sem saber o que fazer.
              - O que houve? – Márcia pergunta.
              - Eles tem uma bomba.
              - O que? – o PM olha para Souza que lhe devolve o mesmo olhar de espanto.
              - Temos que agir e rápido, eles não estão blefando.

***

              Zero segura uma esferográfica que serve como apoio para segurar o olho de Silvio. Dimas acompanha todo o sinistro trabalho do parceiro.
              - Pronto, será que funciona fora do corpo?
              - Isso só saberemos se você colocar essa porcaria ali. – aponta para o identificador ocular.
              Zero aproxima o globo ocular escorrendo sangue do objeto. Imediatamente a porta do cofre faz um estalido seco e em seguida um silvo agudo anuncia a abertura.
              - Funcionou! – Zero comemora.
              - Ótimo, chame Mauro, depois que limparem tudo instalem a bomba.
              - Pode deixar, mestre.

***

              Mais uma vez Márcia está ao telefone celular. Enquanto isso Souza quebra a cabeça para encontrar um bom negociador. O helicóptero passa mais uma vez levantando poeira. A assistente gesticula bastante.
              - Isso não é uma boa hora meu querido, estamos com problemas muito sérios. – pausa. – sei que eu preciso resolver logo isso meu querido, porém, a questão é, o meu emprego vem em primeiro lugar. – ela olha para Souza que olha para ela. – preciso desligar, meu chefe precisa de mim.
              - Algum problema?
              - Não, nada sério, conseguimos um negociador? – Márcia disfarça a preocupação.
              - Ainda não.
              Um Renaut Duster marrom metálico estaciona do outro lado da calçada. Um sujeito branco, calvo de mais ou menos 50 anos, de terno e gravata ambos de cor escura, desce do veículo e atravessa a rua sem pressa. Meio encurvado o homem passa pelos agentes apontando para Souza.
              - Com licença, preciso falar com ele.
              - Quem é o senhor? – Um PM marrento pergunta.
              - Sou Almir Oliveira, negociador, posso falar com Souza?
              Almir é conduzido até Souza que olha mais uma vez para o banco.
              - Bom dia Luis!
              Souza se vira e dá de cara com Almir sorrindo.
              - Russo?

***

              O trabalho é chato e ao mesmo tempo prazeroso. Ensacar montinhos de notas de cem e de cinqüenta reais é realmente muito bom. Mauro fica com a pior parte, colocar os montinhos dentro do saco enquanto Zero apenas segura sentado.
              - Nossa, é muito dinheiro. – diz Mauro suando bastante.
              - Cale a boca e trabalhe, não temos o dia todo.
              - Será quanto ficará para cada um?
              - Ei, garoto, apenas faça seu trabalho que disso o chefe se encarrega.

              Dimas confere se tudo está em ordem. Duende e Lex estão atentos a cada movimento dos reféns que se encolhem nos cantos.
              - Não queremos machucar ninguém, Silvio não colaborou conosco por isso foi punido, infelizmente com a vida.
              Uma mulher chora copiosamente ao ouvir a notícia da morte de Silvio. Dimas se dirige a ela com seu olhar triste de sempre.
              - O que ele era seu? – a mulher morena de longos cabelos negros treme o corpo inteiro com a aproximação do bandido.
              - O que importa isso agora, ele está morto.
              - Você é boa com as palavras, da próxima vez, vou usar você para falar com o negociador.

5

              Márcia escuta a conversa entre Russo e Souza quando sente seu celular vibrar. Discretamente ela se afasta. No Whatsapp a mensagem de Itamar.
              - Você precisa resolver logo isso, não aguento mais de ansiedade.
              Ela digita com rapidez.
              - Pelo amor de Deus, é só uma suspeita, eu não estou grávida.
              Ele digita.
              - Quando fará o exame?
              Ela digita.
              - Assim que tudo terminar. Preciso trabalhar. A gente se fala depois.
              Souza fala tudo sobre o caso com Russo que escuta a tudo com atenção.
              - É isso, não sabemos quantos são, e nem o que querem, só sabemos que eles tem uma bomba.
              - Uma bomba. – diz sem expressão alguma.
              - Arrume um colete, vamos lhe dar cobertura.
              - Acho que não será necessário, preciso ter a confiança deles.
              - Você tem certeza, eles são perigosos, não sabemos do que são capaz.
              - Pode deixar.
              Russo anda em direção a porta da agencia com os braços erguidos. Os atiradores deixam de respirar por alguns segundos quando a porta abre bem devagar. A tal mulher morena surge para falar pelos bandidos, sua expressão é a pior possível. De longe Souza e Márcia observam cada gesto do negociador e tentam ler os lábios da mulher. Impossível. Minutos depois Russo volta para juntos dos policiais.
              - Existe uma bomba realmente, eles a instalaram no interior do cofre.
              - E quais as exigências? – Souza cruza os braços.
              - Pediu que aguardássemos.
              Tudo é muito confuso. Bandidos não perdem tempo, esses não seguem um padrão. Souza confia no trabalho de Almir, sabe de sua competência, por isso ele sabe que pode virar o jogo a qualquer momento.
***

             Dimas observa seus companheiros subindo e descendo com sacos de dinheiro. Olha para o relógio e depois olha para os reféns. Dimas nasceu numa família religiosa. Seu pai foi um severo Cristão que não admitia erros e nem que faltasse com respeito a santíssima trindade. Certa vez, ele castigou a Dimas e seus irmãos por mentirem, dizendo que iriam para o culto, quando na verdade, uma partida de futebol os aguardavam. Ele lembra de quando chegaram, seu pai esperava na varanda de casa com seu cinto nos ombros. A surra foi generalizada e não bastasse a pancadaria, todos deveria rezar ajoelhados no milho por uma hora. Dimas cresceu revoltado. Depois que se tornou adulto e ele e seus irmãos partiram para a vida do crime sem hesitar. Juntos assaltaram e mataram. Se transformaram nos bandidos mais perigosos da região. Seu pai morreu de desgosto e sua mãe foi abandonada num abrigo, até hoje não se tem notícias dela.
            Zero desce com mais um saco pesado nas costas.
            - O ultimo, qual o próximo passo?
            - Vamos falar com eles lá fora.

***

            Márcia disfarça e entra na viatura. Disca o número de Itamar que atende ao primeiro toque.
             - Quer me matar do coração, vá fazer logo esse exame.
             - Ainda não consegui sair daqui, as coisas estão se complicando.
             - Meu Deus, como fui infantil. Como deixei isso acontecer?
             - Fica calmo, eu não estou grávida. – Márcia olha pelo retrovisor.
             - Como tem tanta certeza assim?
             - Não sei, apenas tenho.
             - Você me falou que não fazia uso de anticoncepcional e nem tinha problemas para engravidar.
             - Graças a Deus por isso.
             - Não conte ao Souza.
             - Nem em sonho, ele não admite isso, meu emprego está em jogo aqui.
             - Conheço Luis a muito tempo, ele não se envolve e não admite que colegas de trabalho se envolvam amorosamente.
             - Por isso eu peço que você me dê um tempo, ele não pode desconfiar de nada, assim que eu tiver uma chance, farei o exame.
             - Tudo bem, estarei aguardando.

***

             Russo chega perto da porta e dessa vez um homem negro de camisa regata aparece no lugar dos bandidos para negociar. Toda atenção da policia se volta para aquele lugar. Russo gesticula. Aponta para os prédios varias vezes. O homem é puxado para dentro com violência. Almir volta a se juntar a Souza.
              - Então?
              - Eles não estão de brincadeira, há um corpo de um segurança em uma das vans.
              Souza quase que salta.
              - O que?
              - Isso mesmo, eles já empacotaram todo o dinheiro, querem colocar tudo nas vans e fugirem.
              - Não podemos fazer isso.
              - São profissionais, arquitetaram tudo, se não for assim, 50 pessoas irão para o espaço. Temos que manter aquelas pessoas vivas, você entendeu?
              Isso não desce pela garganta de Souza. Deixar que os bandidos fujam levando tudo. Mais do que o dinheiro é a vida.
              - E tem mais, a bomba é acionada através de um controle remoto.
               Luis esfrega o rosto.
              - E mais essa agora, que garantia temos de que quando eles fugirem não vão explodir tudo?
              - Pois é. – Russo olha para o banco. – eles viraram o jogo.

6

             A mesa de Itamar é uma desorganização total. Pilha de documentos e outros papéis importantes. Até mesmo o telefone sumiu no meio da bagunça. Volta e meia ele se levanta para ir até a máquina pegar café. Passa alguns segundo olhando pela janela e tenta não pensar na possibilidade de Márcia estar grávida. Realmente ele está apaixonado. O primeiro encontro foi maravilhoso. Márcia estava linda. Tomaram café juntos. Se bem que a assistente de Souza estava um pouco tímida, deu um certo trabalho até Itamar experimentar de sua boca dentro do carro.
             - Você é linda. – diz Itamar segurando o queixo de Márcia.
             Tudo ficou no beijo. Itamar sempre foi respeitador. Jamais avançou o sinal com suas namoradas no primeiro encontro. Ele a deixou em casa e partiu. Márcia gostou ainda mais dele e não via a hora de se entregar em seus braços.

***

             Toda a policia envolvida no assalto ao banco Fraga, agora busca soluções de como reverter à situação. Russo e Souza conversam sem parar enquanto que Márcia tem as entranhas retorcida devido a preocupação e ansiedade. Ter um bebê agora faria com que seus planos vá por água a baixo. Claro que ser mãe é um dos sonhos, mas a principio isso está fora de cogitação. A preocupação bate ainda mais forte ao pensar com quem ficaria a criança, sua mãe já não tem tanta saúde para isso. Às vezes é melhor não saber de nada, não descobrir coisa alguma, mas se tratando de uma gravidez, é melhor que isso se resolva e rápido. Respirando fundo para se acalmar e tentar se concentrar no caso ela sente seu celular vibrar mais uma vez.
             - Meu querido, por favor, eu já não falei que eu não estou grávida.
             - Sou investigador de policia, preciso de provas. Se necessário for, eu mesmo compro um teste de farmácia.
             - Itamar, relaxa.
             - Essa espera está me corroendo por dentro, sabia?
             - Não sofra por antecipação meu querido, beijos, preciso ficar atenta.

***

             Russo convence Souza agir conforme a exigência dos bandidos. O corpo do pobre segurança é retirado da van. Os veículos são conduzidos até a porta principal da agência de marcha ré e com as portas de trás abertas. Lá dentro Dimas organiza os reféns, cada um irá colocar os sacos de dinheiro dentro das vans e voltar para dentro do banco.
           - Quem ousar sair correndo vou explodir tudo. – mostra o controle. – ei você. – chama um adolescente marrento de boné com a aba para trás. – você foi escalado para falar com o negociador.
           O medo deixa o garoto meio fora de si. Ele aparece na porta acenando. Russo olha para Souza.
            - Dependendo do que seja, essa será a nossa ultima cartada, vou invadir.
            - Por favor, me dê uma chance. – Russo ajeita o paletó. – vou virar esse jogo.
            Márcia e Souza, além de outros agentes observam a conversa de Russo com o garoto. O dialogo demorou um pouco mais. Luis transpira.
            - Minha vontade é de invadir e salvar os reféns.
            - Tenha calma, Almir é experiente, sabe o que está fazendo. – a assistente coloca a mão no ombro do chefe que a olha de canto de olho.
            - Por que está tão estranha hoje?
            Foi como tomar um soco na boca do estômago. Márcia por alguns segundos ficou sem saber o que responder.
            - Eu, estranha?
            - Sim, está agindo como se não importasse com o que está acontecendo. Você normalmente já teria dado uma ideia boa. – se vira para ela.
            - Nada, coisa de mulher, sabe, aqueles dias.
            Cético Souza volta a olhar para a porta do banco onde Russo continua a negociar com o adolescente. Quase dez minutos depois ele volta com seu andar cansado e ombros jogados pra frente.
            - E então?
            - Seguinte, eles são cinco, o plano deles é que cada um dos reféns coloque os sacos dentro da van, em seguida eles voltam para dentro da agência, querem que facilitem a fuga, depois de uma hora da fuga ai sim podemos partir atrás.
            - Como? – Souza dá um passo. – vou falar com ele. – Russo segura o braça do detetive.
            - Se fizer isso será morto, eles não tem nada a perder, você sim, pense, Luis. Se você tentar fazer algo agora eles vão explodir tudo, não só os reféns mais todos nós, pense na tragédia que será.
            - Russo, uma hora, é tempo o suficiente para chegarem a outro país, sei lá.
            - Por isso peço que me deixe resolver isso, você sabe, sou um cara sozinho, obtive sucesso na profissão, mas quanto à questão familiar sou um zero a esquerda, já negociei com os mais perigosos chefes do narco tráfico e tudo, mas não fui capaz de manter minha família perto de mim.
            Souza se identifica com o passado de Almir e de repente ele se vê passando pelo mesmo que ele. Assim como Russo, Souza não tem família, é bem sucedido na profissão, mais a base que é uma família isso faz falta.
             - Souza, me dê essa chance.
             Por um instante Luis Souza olha ao redor e contempla uma imensidão de policiais e curiosos como que aguardando por sua decisão. 50 vidas em jogo, 50 famílias. De repente toda a sua carreira de detetive passa como um filme. Uma decisão errada pode colocar tudo a perder.
             - Russo, vá lá e faça o seu melhor, vou me reunir com outros e bolar um plano.
             - Obrigado!

***
            Dimas de braços cruzados aguarda a chegada do negociador. No salão principal do banco os sacos lotados de cédulas aguardam o momento de sua retirada para as vans. Com seu olhar triste o bandido parece não temer, diferente de seus companheiros que não param de andar de um lado para outro. Os reféns permanecem sentados e se quer ousam em reagir. Os bandidos transpiram ameaça e parecem saber exatamente o que querem. Zero sai de onde está e para perto do chefe.
            - Isso está demorando mais que o necessário, você não acha?
            - Acho que você deveria voltar para sua posição.
            Nesse momento acontece uma movimentação do lado de fora. Dimas chama outro refém para falar com Russo.
            - Vai! – empurra a mulher.

            Souza fala com outros agentes. Nada de concreto ainda foi feito. Não há como fechar as estradas e nem bloquear as fronteiras. Infelizmente os marginais estão com toda vantagem nas mãos.
            - Essas foram às exigências.
            - Uma hora é muita coisa. – uma PM coça a cabeça.
            - Eles não vão para muito longe, devem ficar por aqui mesmo, América do sul. – Souza olha para o mapa.
            - Não podemos em furar os tanques de combustível das vans. – comenta outro agente.
            - Sem chance, vão levar com eles o controle remoto, se perceberam algo errado vão explodir a bomba.
            Russo volta a e se junta ao grupo.
            - Tudo pronto. – olha para o mapa. – qual o plano?
            - Acho que eles devem ficar por aqui mesmo.
            - Você sabe que não podemos bloquear as fronteiras.
            - Sim, o jeito é, assim que eles deixarem a agência, o esquadrão anti bomba entrará em ação para desativar a bomba. Partiremos atrás deles o mais rápido possível, quero esses desgraçados na cadeia.

7

           Aos poucos os reféns vão organizando os sacos dentro das vans. Os atiradores estão com seus olhos atentos esperando alguma falha dos bandidos. Dimas e seu grupo não aparecem hora alguma frustrando os agentes. Como formigas os oprimidos carregam as notas e depois de colocá-las nos veículos eles voltam para o interior do banco. Alguns com suas expressões sérias e outros com seus olhos vermelhos de choro, principalmente as mulheres. Russo e Souza acompanham tudo literalmente de braços cruzados. O trabalho dos reféns termina. Russo olha para Souza e Márcia.
            - Chegou à hora, reforce para os homens que eles não devem reagir a nada, 50 vidas estão em jogo. – orienta Almir.
            - Pode deixar.
            Um dos reféns, um sujeito idoso faz sinal para que o negociador se aproxime. Russo anda a passos largos.
            - O que eles querem?
            O pobre velho com sua voz pastosa tenta transmitir o recado.
            - Eles vão sair e pediu para lembrarem da bomba.
            - Pode deixar, vá lá pra dentro, vamos tirar vocês dessa situação em minutos.
            Dimas pela primeira vez aumenta o volume da voz ao falar. Ele pede agilidade de seu grupo. Imediatamente todos os reféns são colocados próximos do cofre. O som de conversas e choro irrita ao líder que chega a agredir alguns com tapas.
            - Chega desse barulho, vamos.
            A bomba está lá. Às pessoas ao verem o objeto entram em pânico dando inicio aos questionamentos.
             - Vão nos matar?
             Lex e Mauro são os responsáveis por organizar os oprimidos numa fila. Zero e Duende terminam de carregar as armas juntos com Dimas. As pessoas são forçadas a entrar no cofre apertado e abafado. Muitos não aguentam e desmaiam. Pela ultimas vez Dimas olha para a bomba.
             - Atenção, vamos embora. Quem se mover morre.
             Lá fora a tensão é sufocante. Souza morde o lábio inferior e prende a respiração. Márcia se junta a ele no nervosismo. Russo olha para os prédios vizinhos e se certifica se os atiradores não irão se precipitar.
             - Souza, os atiradores não podem atirar, caso contrário tudo irá pelos ares.
             - Eu já reforcei a ordem.
             Dimas e Zero assumem a van branca e disparam rua a fora derrubando cones de sinalização. Pouco depois Lex e Duende entram na van azul abandonando a agência. Eles passam pelo cerco policial em alta velocidade. Souza soca a palma da mão.
             - Vamos entrar! – ordena o detetive.

***

             Luis vai à frente do grupo de agentes até o cofre. Márcia também sobe dando cobertura ao chefe. Furioso ele não consegue pensar direito. Verificando cada canto do andar, Souza consegue localizar os reféns que pedem por socorro.
             - Eles estão ali.
             O esquadrão anti bomba já se encontra no local. O salão principal do Fraga foi invadido por agentes que auxiliam na retirada das pessoas. Lá fora o barulho ensurdecedor das sirenes é algo que incomoda, mas soa como música aos ouvidos de quem passou momentos de pânico. Márcia vê de perto o trabalho dos especialistas. O relógio que outrora marcava uma contagem regressiva, agora não marca mais. O especialista em bomba meneia a cabeça negativamente.
             - Fomos enganados.
             - O que? – Márcia entra no cofre.
             - Isso mesmo, isso aqui não passa de uma replica, bem feita, mas uma farsa.
             Souza esmurra a parede ao saber de tudo.
             - Vamos atrás desses caras, eles não devem estar muito longe, vamos. Onde está o Russo?
             - Sumiu, não o vejo desde quando os bandidos fugiram. – confirma Márcia.
             - Deve estar por ai. Você vem comigo?
             A assistente mais uma vez é pega de surpresa.
             - Vá na frente, qualquer coisa pego uma viatura.
             - Tudo bem! - Dispara porta a fora.

***

             Sozinha no canto Márcia disca o número de Itamar. Ele atende.
              - Consegui uma folguinha. – a assistente olha pela janela ainda em tempo de ver o ultimo refém sendo ajudado por PMs
              - Como foi o desenrolar das coisas por ai, as redes sociais, TVs, rádios só falam desse assalto.
              - Foi muito conturbado, Souza partiu atrás dos caras como louco.
              - Uma pena eu não poder ajudar. – silêncio. – Márcia, precisamos resolver nossa situação.
              - Itamar, não posso dar bandeira, você sabe, meu emprego está em jogo.
              - Preciso te ver. – Itamar fala com voz doce.
              - Mais como?
              - Vou dar um jeito.

8

              Mesmo com o helicóptero dando apoio, não foi possível localizar as vans com os bandidos. Souza no banco do carona da viatura olha atentamente para cada rua, viela e beco.
               - Onde esses caras se meteram? – diz para ele mesmo.
               A partir de agora o trabalho será minucioso. Se for preciso ele formará uma força tarefa que ficará de plantão 24 hora nas ruas a procura dos marginais. O detetive saca o celular.
               - Márcia, forme mais uma equipe de busca, vamos sufocar esses caras, Russo já apareceu?
               - Pode deixar, Russo ainda não apareceu, na certa voltou para o departamento.
               - Ótimo, faça o que te pedi.

***

               Russo dirige a cima da velocidade permitida pela costa admirando a paisagem que o mar proporciona. O rádio sintonizado num programa de notícias, a cada vinte minutos ele é atualizado sobre o assalto ao banco Fraga. De repente a sua frente duas vans, uma azul e outra branca saem de um edifício garagem. Ele pisa fundo no acelerador.

***

               Demorou um pouco, mas Itamar chega ao local onde Márcia o aguarda. Sempre bonito e elegante, o investigador olha ao seu redor e só vê agentes. Em meio aquele caos a figura de Márcia ameniza a situação.
               - Lhe trouxe isso. – entrega nas mãos da assistente um teste de farmácia.
               - Não quer que eu faça isso agora, né?
               - Podemos sair daqui? – Itamar ajeita a gravata.
               - Dois minutos.
               Afastados de todo o tumulto do centro, os policiais conversam dentro do carro particular do investigador.
               - Quando lhe conheci me apaixonei. – Itamar segura na mão da mulher que disfarça o riso. – você tem razão, não podemos ter esse filho.
               - Isso acabaria com meus planos.
               - E isso acabaria com a minha família.
               A palavra família ficou rebatendo dentro do carro até cair com força na cabeça de Márcia que pisca várias vezes.
                - Sua família, você é casado? – os olhos marejados.
                - Cedo ou tarde você descobriria, sou casado á 15 anos.
                Quinze anos. Uma vida. Ela ainda não digeriu essa revelação. Márcia olha para o parabrisa, mas tudo o que vê não passa de vultos. Nunca em sua vida ela imaginou ser a outra, o pivô de uma destruição familiar. Ela não consegue mais olhar naquele rosto fascinante. Asco, é tudo o que ela sente agora por ele.
                - Por favor, me leve para o local de onde me tirou.
                - Márcia, por favor, vamos conversar.
                - Chega! – grita. – não estava preocupado comigo não é, e sim com sua reputação. Medo que sua mulher descubra tudo.
                - Quero que saiba de uma coisa, caso esteja mesmo grávida, darei toda assistência possível, mas por favor, não conte nada a Paula.
                - Me leve de volta.

***

               Zero joga o saco com dinheiro dentro do barco junto com Duende. O barulho das ondas batendo nas pedras ajuda a acalmar o clima. O sujeito baixo de rosto peculiar como de um duende pára um instante para descansar.
               - Estamos ricos, minha aposentadoria está garantida.
               - Pois é, a minha também. – Zero olha os sacos.
               - Quanto vai dar para cada um? -  Duende esfrega as mãos.
               - Pra você nada.
               - O que?
               Zero atira contra a cabeça de sujeito. Dentro da van Lex e Mauro aguardam novas ordens. Mauro num salto olha para o parceiro.
               - O que foi isso, um tiro?
               - Sim, deu ruim pra você. - Lex atira contra Mauro que morre ali mesmo. Ele desce e se junta a Zero e Dimas.
               - Serviço feito chefe. – informa Lex.
               - Aqueles idiotas iriam fazer muito peso no barco. – Dimas coça o cavanhaque.
               - O que faremos com os corpos Dimas? – Lex pergunta.
               - Vamos jogá-los no mar. Vamos acabar logo com isso e sairmos daqui.
               Lex dá as costas e é morto por Zero. Dimas pega sua mochila.
               - Podemos partir, chefe. – Zero se vira para Dimas que aponta sua pistola.
               - Faça companhia a seus colegas no inferno. – atira acertando a cabeça.

9

               Nada mais é como antes. Anestesiada, essa é a sensação sentida por Márcia ao descer do carro de Itamar. Realmente ela estava vivendo um sonho de princesa onde tudo é perfeito e seguro. O que fazer agora? Nunca mais se apaixonar? Deixar de acreditar num amor verdadeiro? Os policiais continuam com seus trabalhos ao redor do banco e tudo para ela não passa de borrões, vultos e sombras. Ela era a outra. Nossa que clima esquisito. O coração pede uma cura para a dor. Ela não tem. Márcia precisa chorar urgentemente. A assistente de Souza prende os lábios segurando o pranto iminente.
               - A senhora está bem dona Márcia? – pergunta um PM.
               - Sim, apenas bocejei, qual o problema?
               - Conseguimos as identificações dos bandidos, a senhora quer dar uma olhada?
             - Sim!
             O agente mostra as fotos dos meliantes.
             - Dimas, é o chefe do grupo, o outro é o Zero braço direito de Dimas e os outros Duende, Mauro e Lex. – o PM esclarece tudo para Márcia que tenta focar no que ele está dizendo.
             - Souza já sabe disso?
             - Sim, enviamos fotos via e-mail para ele.
             - Preciso que fechem todas as saídas do estado inclusive às marítimas.
             - Pode deixar senhora.

***

             Souza olha foto por foto e analisa o rosto de cada um deles. O que chama mais atenção é Dimas. Como pode um sujeito de rosto tão sereno ser o mentor de um grupo criminoso. Hoje ele leva a sério o ditado que diz, “quem vê cara não vê coração”. O detetive pede ao parceiro que faça a volta no quarteirão.
              - Quero dar mais uma olhada naquele ultimo bairro. – esclarece.

***

              Dimas sobe no barco carregando o ultimo saco com o dinheiro. O sol escaldante o faz transpirar. Ele se apóia na escadinha para recuperar o fôlego.
              - Cansado?
              - Muito. – Dimas olha para Russo. – seu plano deu certo, conseguimos a grana e nos livramos desses merdas, para onde vamos?
              - Você fez um bom trabalho, nunca achei que conseguiria. – Russo olha para as ondas socando as pedras. – tem uma ilha aqui perto, podemos nos esconder lá e depois cada um segue seu destino, vamos dividir a fortuna pela metade, o que acha?
              - Acho que eu deveria levar um pouco mais já que arrisquei minha vida.
              - Também acho, agora vamos, Souza já deve estar por perto a ilha não é tão longe.
              Dimas sobe as escadas rapidamente quando Russo atira contra seu peito. O sujeito cai segurando o ferimento.
              - O mal do ser humano é a ganância, nunca está satisfeito com nada. – discursa calmamente.
              - Desgraçado. – grita. Russo acerto outro tiro matando o bandido.
              O velho negociador coloca a arma na cintura e tenta ligar o motor do barco.
              - Merda!
              O barulho do helicóptero da policia o assusta a ponto de fazê-lo cair. Nervoso ele vira a chave mais uma vez e nada acontece. A aeronave dá rasantes levantando poeira para todos lado. Russo corre até uma caixa de madeira. Dentro há uma metralhadora.
              - Não vou perder essa grana toda.
              Há um atirador no helicóptero atento a qualquer movimento suspeito vindo da embarcação. A voz do piloto ecoa intimidando a Almir que confere se a arma está carregada.
              - Saia do barco, por favor.
              Russo não obedece a ordem. Aos poucos ele vai tentando pegar ângulo para atirar. Ele não está pensando direito. Abrir fogo sozinho contra uma aeronave é suicídio. Quando o que está em jogo é o dinheiro, ninguém pensa direito realmente. Mesmo com a embarcação chocalhando bastante Russo consegue se apoiar e atirar. Sem sucesso. Atira novamente. O atirador também tem dificuldade de conseguir mirar. Russo volta a se apoiar e dessa vez ele consegue acertar a aeronave que vai caindo girando até explodir na água. Almir sorrir exibindo seus dentes amarelados. Com passos vacilantes ele liga o motor e dispara rumo a ilha.

10

     Souza é notificado pelo rádio sobre o abatimento do helicóptero e fica ainda mais indignado em saber quem o derrubou. Russo para ele estava acima de qualquer suspeita. A viatura para na praia e antes mesmo do veículo estacionar o detetive já estava fora dele.
     - Com licença. - diz a um jovem ao lado de seu jetski. - estamos numa operação policial, precisamos de seu veículo.
     - Mais como assim?
     tarde demais, Souza e outro agente já estão de posse do jetski seguindo mar a fora.
     - Senhor, tem certeza de que sabe pilotar essa coisa?
     - Nunca é tarde para se aprender.

***

     O terno sujo e a gravata frouxa passam despercebidos por Russo que carrega com dificuldade os sacos de dinheiro até uma outra embarcação. Antes de jogar o ultimo ele ainda dá uma olhada dentro para se certificar que nada ficou para trás. O sorriso no rosto mostra a satisfação em ser um bilionário. O devaneio termina quando o barulho do jetski pilotado por Souza penetra em seus ouvidos com fúria.
     - Maldição!
     Russo saca sua metralhadora e sem pensar muito efetua disparos. Souza quase perde o controle da embarcação deixando seu companheiro em pânico.
     - Parado, Almir, melhor se entregar. - vocifera Souza.
     - Vai a merda! - mais disparos.
     O agente é atingido no braços. Souza reduz a velocidade.
     - Como você está?
     - Estou bem, vamos pegar esse desgraçado.
     Almir sobe no barco e se ajeita no assento. Antes de dar a partida ele ainda atira. Os policiais pulam na água e desaparecem. Russo comemora sua vitória quando mais um helicóptero aparece com Márcia dentro dele. Russo dá a partida com o coração pulando feito um cavalo.
      - Já chega dessa história.
      Souza surge do nada pulando em cima de Russo que tenta pegar sua arma. A briga naquele cubículo é feia. Apesar de mais velho, Almir é bom de luta. Ele consegue dar duas cotoveladas no estômago de Luis que perde o ar. Antes que pudesse se recuperar, Souza recebe outro soco no rosto. Da aeronave Márcia observa roendo as unhas o desenrolar da situação e vê inclusive seu chefe acertando dois poderosos diretos no nariz de Russo que perde totalmente o rumo.
       - Chega Russo, você está preso.

11

       Ensopado Souza se junta a Márcia no helicóptero. Com os olhos caídos a assistente parabeniza ao chefe.
       - Conseguiu!
       - Que sufoco, e você, está bem?
       - Sim!
       Os corpos de Dimas, Zero, Duende, Mauro e de Lex foram encontrados e levados para o instituto médico legal. Russo, o mentor do roubo que ficará na história foi levado preventivamente até seu julgamento.
       No dia seguinte Márcia foi a primeira chegar e foi direto para a sala de Souza. Vinte minutos depois ele chega com seu humor moderado habitual.
       - Opa, o que houve, madrugou? - Diz deixando seu celular sobre a mesa.
       - Queria lhe falar algo. - A voz sai calma.
       - Sou todo ouvido!
       Ela se ajeita mais uma vez na cadeira enquanto Souza se apoia na mesa cruzando os braços.
       - Eu me envolvi com Itamar...
       - Ele é casado, você sabia? - a expressão de Souza lembra uma rocha.
       - Descobri isso mais tarde, eu realmente me apaixonei por ele, fiz planos e tudo, porém as coisas não funcionam como a gente quer. - Márcia enfia a mão no bolso do paletó e retira o teste de farmácia. Souza arregala os olhos os projetando no objeto.
       - Meu Deus, não me diga que...
       - Eu ainda não sei, não tive coragem.
       Souza pega o teste e também não tem coragem de ver o resultado.
       - Sabe que isso pode acabar com sua brilhante carreira na policia, não sabe?
       - Sim, estou disposta a aceitar tudo.
       Souza olha para o objeto em sua mão sem expressão alguma.
       - É seu sonho ser mãe?
       - Sim!
       - Então continue nutrindo esse sonho e pode voltar para sua sala. - o detetive devolve o teste. Márcia pra lá de espantada vê o resultado que deu negativo.    

           

         

segunda-feira, 25 de abril de 2016

CRUEL ETERNIDADE



De tão cinzento que está o dia que nem parece ser 16 horas da tarde. O vento frio e úmido varre as folhas de amendoeira para juntos dos jazigos e sepulturas. O ruído do carrinho subindo cemitério acima é a única coisa boa a se ouvir naquele lugar sinistro e silencioso.  As mãos cadavéricas que empurram o carrinho enferrujado são de Jair, um ex bruxo. Em cima do carrinho está a urna que em seu interior repousa para todo o sempre o corpo de sua filha Marli. Muito cansado, Jair pára e olha ao redor, ainda falta bastante para chegar até onde estão enterrados seus familiares, a razão da vida de Jair.

             O aspecto do ex bruxo é o pior dentre todos esses anos em que ele está sobre a face da terra. A calça surrada. A camisa xadrez perdeu suas cores e agora ela não passa de um pano de chão. As botas chafurdam na lama podre junto com as rodas do carrinho. Jair quer chorar, só não consegue. Marli, sua filha caçula de oito filhos, a única que ainda restara de sua família, agora dorme profundamente num caixão barato.

             Faltando apenas alguns metros para chegar à cova já aberta para sepultar Marli, Jair recorda quando ela tinha apenas meses de idade. Como ela era linda, fofinha, engraçada. Jair faz força para chorar. Uma gota de chuva cai em seu rosto flácido e ele pensa em se tratar de suas saudosas lágrimas. Pronto, enfim a cova de Marli, bem ao lado da de Juarez, seu filho mais rebelde. Os olhos úmidos do ex bruxo percorrem as sepulturas onde estão às fotos. A primeira tumba guarda Tereza, sua mulher a quem amou desesperadamente. Ao lado de Tereza repousa Juarez o rebelde, Jorge, seu segundo moleque peralta. Em seguida Laura, sua eterna chorona, Laura chorava por qualquer coisa. A outra cova guarda Quincas, filho quieto, gostava de ficar sozinho e pouco falava. Ao lado de Quincas está à geniosa Lourdes, menina que deu trabalho para Jair devido o fogo no rabo que tinha. A quinta filha é Conceição, menina religiosa, foi a única a se converter ao Catolicismo. A outra cova tem em seu interior os restos mortais de Afrânio, gênio, bastante inteligente, Afrânio foi o único a salvar o nome da família. Foi autor de vários livros de sucesso, teve seu primeiro livro lançado no ano de 1890.

              Agora resta apenas deixar o corpo de sua ultima filha na terra para que os vermes cuidem dela. Jair abaixa a cabeça. Tenta mais uma vez chorar, não consegue. Bem devagar ele vai abrindo a urna, ele quer dar a ultima olhada em sua caçulinha antes de depositá-la na cova fria. O ex bruxo afasta a tampa e lá está Marli, morta, parece dormir. Marli assim como seus irmãos viveu bastante. Aos 95 anos ela deixa cinco netos e outros bisnetos. Jair quase sem forças recoloca a tampa resmungando algo.

              A ultima pá da terra negra deixa claro que Marli nunca mais voltará, nunca mais Jair ouvirá ela pedir seu colo, ou que lhe faça um cafuné. Fim de história. A ultima coisa a fazer e fincar a cruz feita de concreto pintada com cal e pronto. Um trovão faz os jazigos tremerem. Antes de ir embora Jair faz o sinal da cruz. Ao se virar ele bate de frente com um ser envolto de uma capa de chuva surrada. Friamente ele fala os nomes dos mortos de Jair:
              - Tereza, Juarez, Jorge, Laura, Quincas, Lourdes, a besta da Conceição, Afrânio e finalmente Marli. – o ser olha para Jair com seus olhos vermelhos. – fez um bom trabalho, Jair, achei que você fosse desistir.
              - Fiz o que me pediu, agora me dê a mortalidade, não aguento mais enterrar pessoas amadas.
               O ser diz que não com o dedo indicador.
               - Seu pacto diz que você deve sepultar os netos e bisnetos também.
               - Meu Deus! – vocifera Jair. – quando isso terá fim?
               - Em que ano estamos mesmo?
               - Sei lá mil novecentos e pouco. – Jair mais uma vez tenta chorar e não consegue.
               Antes de ir embora o ser bate no ombro magro do ex bruxo.
              - Força meu camarada, força.

FIM

sábado, 23 de abril de 2016

FOI MELHOR ASSIM!

O pedaço de papel retirado bruscamente do caderno balança fixado com o imã de geladeira de uma empresa de gás. “Passe no mercado e compre ovos e leite”, é o que o diz o papel. Atrasado como sempre, Sérgio, quase que deixa o recado para trás. Antes de sair ele o retira da porta da geladeira e o enterra no bolso traseiro. Ainda em fase de experiência na empresa, o boa praça de cabelos lisos e bem aparados, sem barba e sem bigode, desce as escadas ao invés de pegar o elevador. Sérgio, no auge de seus 36 anos, ainda mantém um corpo atlético. Não gosta de se vestir social. Para ele basta uma calça jeans e camisa pólo para estar bem vestido; sem falar do tênis Adidas.
    Ao dar a partida no Eco Sport preto, Sérgio ainda confere o papel no bolso.
    - Farei isso depois do expediente. Agora nem pensar. – sai com o carro.

***

    Fernanda é a típica dona de casa que consegue fazer tudo ao mesmo tempo. Ela já acorda de manhã, vai até o quarto do filho Felipe de 8 anos chamá-lo.
    - Lipe, vamos. Estamos em cima da hora. – o garoto se remexe na cama resmungando.
    Vai para a cozinha e coloca a água para ferver. Enquanto isso retira da geladeira margarina e leite. Ao perceber que não tem o achocolatado, a bonita mulher de olhos claros e cabelos vermelhos xinga baixinho - Droga, lá vou eu ao mercado. Felipe desce ainda de pijama bocejando e exigindo seu café da manhã. Fernanda ainda com toda paciência do mundo o alerta para o horário que já se avança. Vendo que falta seu achocolatado, o pirralho questiona. Mais uma vez usando sua maior virtude, Fernanda explica ao filho que passará no mercado a noite depois do trabalho.

***

    O dia não foi nada diferente dos outros anteriores. Ao chegar, sua mesa está abarrotada de trabalho. Sérgio respira fundo e inicia verificando folha por folha. Pede um cafezinho e liga o computador. No meio onde trabalha ele é o melhor. É disputado a tapa pelas empresas e isso lhe rende prestígio e um bom salário.

***

    Depois de deixar Felipe na escola, Fernanda segue para a loja de sapatos onde ela é a gerente. Sempre bem arrumada, cheirosa e maquiada. Fernanda é uma mulher de 34 anos que ainda sonha em conseguir sua estabilidade profissional. Para ela chegar ao cargo de chefia foi algo conquistado com suor e sangue. Ela trabalhava de domingo a domingo, de sol a sol. Hoje, ela tem uma renda razoavelmente legal onde consegue investir na vida estudantil de seu único filho.

***

    Na hora do almoço, Sérgio, junto com seus colegas de seção, almoça no costumeiro restaurante perto da empresa. Ele pede o prato do dia: arroz, feijão, bife com fritas e suco de laranja. Bastante simples. Enquanto comem, os amigos conversam sobre assuntos diversos. O futebol é o mais interessante deles. Sérgio é motivo de chacota, já que seu clube perdeu de goleada na noite passada. Sérgio é torcedor do tipo, nem ligo se perder, mas adoro quando ganha. Ao conferir o relógio, seu companheiro lamenta, pois já é hora de voltar à labuta.

***

    A volta do almoço é sempre complicada. Fernanda não consegue esconder o sono que sente. Antes de voltar para a loja, ela retoca a maquiagem. Ser chefe foi o que ela mais desejou, mas às vezes é complicado. Ela é vista por todos como chata e exigente. Gosta de ver tudo em ordem e se tiver que chamar a atenção ela chama, mas não na frente de todos. Em fim ela chega à loja e todos se encontram trabalhando.

***

    Fim de expediente e Sérgio ainda se encontra em sua mesa organizando a papelada para o dia seguinte. A sua seção vai ficando vazia e escura. Uma colega se aproxima.
     - Vai agora ou vai ficar depois da hora?
     - Já estou indo, tenho que passar no mercado ainda.
     - Valeu então, até amanhã.
     - Até.
     Perto de casa ele estaciona e adentra ao iluminado mercado e vai direto à seção de laticínios. Confere o valor e não demora muito para escolher a mais barata das marcas. Pronto agora vamos aos ovos! Andando rápido, Sérgio passa na seção de frios e resolve levar um queijo. Quando está escolhendo qual vai levar, a seu lado uma mulher atraente de cabelos vermelhos chamativos pegando um pote de achocolatado. Os olhares se cruzam e o inevitável acontece.
     - Oi, tudo bom. – pergunta ela.
     - Tudo e com você?
     - Bem, graças a Deus, vindo do trabalho? – responde e pergunta Fernanda olhando nos olhos negros de Sérgio.
     - Pois é. Como vai o garoto, Felipe não é?
     - Lipe vai bem, crescendo pra caramba, pelo visto vai ficar maior que o pai dele.
     - Você está muito bem Fernanda, cada dia mais jovem. – a mulher não consegue esconder que gostou do elogio.
     - Obrigada, você também está ótimo. – depois disso, eles ficam em silêncio se olhando até que Sergio termina com o clima.
     - Olha só, você está com pressa? – Fernanda pega mais um pote de margarina.
     - Não, por quê?
     - Aqui nesse mercado tem uma área de alimentação, que tal passarmos lá depois de pagarmos? – diz Sérgio. Ela pensa um pouco e aceita.

***

     Bem confortados numa mesa tomando suco e comendo um lanche saboroso, Fernanda e Sérgio conversam.
     - Pretende continuar crescendo na loja ou vai mudar de profissão? – pergunta Sérgio sugando um bom gole de suco de abacaxi.
     - Sei lá, pretendo estudar, fazer um preparatório. – ela não tira os olhos dele e nem ele dela. – e você, continua sendo o preferido da galera?
     - Sempre. – Ri. – Muito trabalho, você lembra o quanto ralei para chegar ao nível que estou hoje. – Ela balança a cabeça concordando. – Então, agora acho que consegui alcançar o meu objetivo.
     - Parabéns, você sempre foi perseverante.
     - Pois é. Só não consegui ser com você. – os olhares se intensificam. Fernanda puxa ar para os pulmões.
     - Esqueça isso, acabou, é passado. – É possível sentir um lamento no tom de voz da mulher.
     - É verdade, éramos jovens. Mas, podíamos ter tentado, sei lá, insistido mais.
     - Acho que não, tomamos a decisão certa, melhor pra todo mundo. – Mexe no suco com o canudo.
     - Não foi isso que planejei para nossas vidas. – lamenta Sérgio.
     - Nem eu.
     - Eu não consegui realizar seu sonho. Eu queria ser pai de um filho seu e não consegui. E por falar nisso, como vai o Eduardo?
     - Trabalhando, como sempre, no momento ele se encontra viajando.
     - Você me parece feliz.
     - Muito, estou muito feliz. – responde Fernanda. Ela confere o relógio. – Está ficando tarde, amanhã é dia, vamos embora? – Sérgio a olha.
     - Quer uma carona? – Fernanda quase que engasga.
     - Agora você tem carro seu metido? – brinca.
     - Deus é bom.
     - Podes crer.
     O papo continua com os dois caminhando para a saída do mercado. Com a noite já vencendo o dia, Sérgio e Fernanda se despedem.
    - Bom, foi legal te rever. – diz Sérgio.
    - Também achei.
    - Valeu. Eu já vou indo. – Ele a beija. O cheiro do perfume o faz lembrar dos velhos tempos.
    - Tchau. – Ela o beija e sente o toque da pele lisa e por um momento ela volta ao passado.
    Dentro do carro Sérgio fala olhando Fernanda indo embora.
    - Foi melhor assim.
    Fernanda ajeita a sacola na mão e pensa alto.
    - Foi melhor assim.

Fim

sexta-feira, 22 de abril de 2016

CAVALHEIRO da NOITE


 A vontade de matar corre em suas veias desde sua terrível infância no orfanato. A morte é a sua única companhia desde então. Sua face é inconfundível e sua voz faz gelar a espinha. Para ele é natural esquartejar um cretino ou uma vagabunda. O mundo é mal e ele é pior ainda. Por debaixo do sobretudo preto e das luvas marrons se esconde a pior das criaturas. Alguns o chamam de demônio, outros de filho das trevas, porém o que ele mais gosta é o “Cavalheiro da noite”. Ao ler no jornal o seu nome ele rir como um adolescente curtindo com a cara de alguém.
             Em pé, na varanda de um edifício, olhando a pouca movimentação lá em baixo ele se recorda do dia em que foi massacrado pelo colega de orfanato. Disso ele se lembra bem. Que noite terrível. Dois jovens maiores do que ele o seguraram na cama enquanto seu desafeto o cortava com um caco de vidro todo o seu rosto infantil. Ele gritava, gemia, pedia pelo o amor de Deus, mas ninguém vinha a seu socorro. Os cortes eram profundos e feitos lentamente. Seu inimigo o desfigurou o transformando num monstro tanto por fora quanto por dentro.
             Pela manhã a madre o encontrou desmaiado e com o rosto coberto por feridas:
             - Santa Maria, o que fizeram com você meu filho?
             Ele não falou. Pra falar a verdade desde esse dia ele não falou mais. Apenas agiu.

***

             Hoje, no auge de seus 30 anos ele se encontra ali, parado na penumbra de um edifício de dez andares observando a madrugada. Ele ama a noite, principalmente chuvosa como hoje, fria, sombria e diabólica.
              Uma prostituta passa correndo desesperada com suas roupas rasgadas e maquiagem borrada. Ela corre olhando para trás e não vê a raiz da árvore. A menina cai ralando seu joelho. Seu agressor a alcança já chutando suas costas. Ela se contorce no asfalto molhado de tanta dor e implora por sua vida fazendo posição de oração. O covarde a chuta ainda mais. A vagabunda cai de costas no chão e é pisoteada:
               - Morre sua vaca!
               Enquanto pisa no rosto da meretriz o homem sente uma forte ardência em seu ombro direito. Imediatamente ele olha e vê sua carne jorrando sangue. Seu grito é alto. Ao ver próximo dele um sujeito com a cabeça coberta por um capuz e sobretudo preto portando uma faca em cada mão ele se desespera.
               - Quem é você? – pergunta segurando a ferida.
               Como sempre ele não responde, prefere esfaquear sua vítima. Outro golpe e o homem tem dois de seus dedos decepados pelas lâminas afiadas. A prostituta se arrasta saindo de perto da carnificina. Seu rosto apavorado recebe um espirro do sangue de seu agressor. Ela grita e chora e o rapaz também.
               O cavalheiro da noite segue furando e cortando até o homem cair de bruços. O assassino monta as costas e vai enterrando suas facas nos pulmões da vítima. Um sangue grosso escorre pela boca do homem que já se encaminha para a morte, morte horrível, dolorosa. Ofegante seu assassino continua a furar suas costas, já não há mais onde feri-lo e mesmo assim ele continua.

***

               O garoto sente cada perfuração do prego em seu corpo pedindo pelo amor de Deus para que seu agressor cesse as pauladas. O futuro cavalheiro da noite gosta do que vê, o sofrimento, a dor estampada no rosto da pessoa, o sangue sendo cuspido pela ferida. Enquanto é espancado o garoto observa as cicatrizes que ele mesmo desenhou naquele pobre rosto juvenil e logo o pânico aumenta. Às pauladas não cessam. Ainda a vida, ainda há respiração, ainda há ódio guardado. Por fim ele morre, vingança completa, finalmente ele vai poder viver em paz. Paz? Será? Quando?

***

               Sua vítima número... ele já perdeu as contas para de respirar. O cavalheiro da noite olha para o lado e contempla a vagabunda chorando de soluçar. Buscando forças ela consegue fazer a ilustre pergunta.
               - Quem é você? Por quê me protegeu? Você vai me matar também?
               Ele meneia a cabeça dizendo que não. A mulher se encolhe com medo do rosto coberto por cicatrizes de seu defensor. Por alguns instantes ela fecha os olhos e quando os abre ele já não está mais lá.

***

               Matar em defesa de alguém, isso foi inédito para ele. Um herói? Será que ele está se tornando um herói? Ele acha pouco provável. Agora caminhando na escuridão com as facas ainda gotejando o sangue do covarde o cavalheiro da noite já imagina as manchetes de amanhã, “o cavalheiro da noite atacou outra vez”.
               O sono vem, porém ele o ignora quando vê um viciado em crack dobrando a esquina como um zumbi.


FIM




VERTENDO SANGUE



 Tudo dói. Principalmente as lembranças. Elas estão mais vivas do que nunca. Pra que viver? Pra que ficar chorando e enchendo a cara com uísque barato? Por que tudo isso aconteceu? Foram dois baques sofridos. Logo ele que sempre foi considerado um herói. Agora ele não passa de uma escória da humanidade. Tudo chegou ao fim enfim. A vida é mesmo assim, um dia no auge, no outro estamos no vale repleto de cães famintos.
          O dia já nasceu e tem algumas horas. Clóvis continua deitado no chão gelado em posição fetal. A garrafa de uísque continua caída em cima da mesa de centro na sala. A desorganização naquele apartamento é algo impressionante. Tudo está fora do lugar, mais parece que algum assaltante esteve por ali.
           Lentamente ele vai despertando. O sol penetra na cortina deixando o desenho das flores ainda mais vivos. Clóvis abre seus olhos azuis e por um breve instante ele não sabe onde está. Com muita dificuldade ele consegue se levantar se apoiando nos joelhos. Por fim está de pé. O gosto amargo na boca lhe causa náuseas. Ele se segura para não vomitar no carpete. No banheiro, depois de urinar a borda do sanitário, a nostalgia volta ao se lembrar das broncas que levava de ex mulher.
           - Quantas vezes terei que lavar esse vaso?
           Ele estranha. Em dias ele consegue sorrir dessa lembrança. Clóvis se olha no espelho e nota novas rugas na testa e no canto dos olhos. Escovar os dentes foi uma tarefa quase que impossível já que as náuseas aumentam a cada segundo. Tudo que ele quer é uma xícara de café e bem forte. Clóvis apenas troca de camisa e desce rumo à padaria que fica em frente ao prédio.
           O barulho da máquina de café e o cheiro de pão fresquinho abriu seu apetite. Ele olha ao redor e vê pessoas fazendo o desjejum como pessoas normais. Mas, espere um pouco, elas são pessoas normais, eu é que não sou. A voz do dono da padaria o trás de volta a realidade.
            - Bom dia doutor Clóvis, vai o mesmo de sempre?
            - Bom dia Gilmar, sim, o mesmo de sempre.
            - Forte e sem açúcar.
            - Exatamente!
            Hoje Clóvis não está para conversa. Em outra época ele com certeza perderia um tempão jogando conversa fora com Gilmar no balcão. Mas, hoje não. Ele preferiu tomar seu café sentado na mesa admirando o vai e vem dos carros. A sua frente uma ruiva o devora com os olhos. Olhos negros e que dizem muitas coisas. Clóvis ainda é um homem bonito e bastante charmoso. Cabelos negros apesar dos 43 anos, pele bem tratada e uma ótima forma física. A ruiva continua ali, disfarçando, ou talvez esperando uma reação do bonitão a sua frente. Clóvis não está interessado nela, nenhum pouco. Tudo o que ele quer é sua família de volta. Ele quer Mônica a seu lado e Guilherme em suas costas. Isso sim o traria de volta ao mundo dos vivos.
            A ruiva se cansou e foi embora fazendo caretas. Clóvis deu dá de ombros. Gilmar trás o café.
            - Mais alguma coisa, doutor?
            - Não, apenas o café.
          - É ai, doutor, derrubou quantas ontem?
          - Uma.
          - É melhor o senhor sair dessa fossa, a bebida ainda vai matar o senhor.
          - Eu já estou morto, Gilmar, eu já estou morto.

***

          Ao meio dia, depois de um breve cochilo, ele é acordado com o toque do celular. Mesmo com a visão embaçada ele consegue ver o nome.
           - Fala Marcão.
           - Cara, você realmente abandonou tudo? – vocifera.
           - Marcão, me dá um tempo, valeu, eu preciso de um tempo. – boceja.
           - Clóvis, você é um dos melhores cirurgiões que existe, mestre nessa arte.
           - Um mestre que não conseguiu salvar a vida do próprio filho, você quis dizer. – os olhos enchem de água.
           - Cara, retome sua vida, infelizmente Deus quis o Guilherme junto Dele, você fez o que pode.
           Clóvis aperta o celular contra a cabeça deixando as lágrimas desceram.
           - Pelo amor de Deus, Marcão, me esquece, por favor. – desliga e arremessa o aparelho longe. Caído estava, caído permaneceu. O choro é amargo, doído e cortante. Lembrar de seu filho naquela mesa de cirurgia perdendo a vida é algo sufocante. Ele estava lá, diante de seu tesouro o vendo ir embora sem poder fazer nada. Aquela noite foi a pior, parecia que nunca teria fim. Ele se recorda de Mônica o xingando no corredor do hospital.
           - Seu merda, não consegue salvar seu próprio filho, seu médico de merda.
           Ele desabou no chão frio do corredor sendo confortado por Marcão. Ao chegar em casa no outro dia, ela já não estava mais lá. Mônica o havia abandonado. No cemitério ela deu outro escândalo ao vê-lo entrar na capela.
           - Saia daqui seu desgraçado, saia daqui. – gritava a plenos pulmões.
           Uma tortura diária. Mais uma vez ele não almoça. Ficou ali jogado no sofá olhando para a janela semi aberta. A noite chegou e a fome também. Ele vai ao banheiro e se olha no espelho. A barba por fazer o deixa dez anos mais velho, porém não há ânimo para fazê-la. Clóvis trocou de roupa. Colocou uma calça social e camisa de mangas compridas azul claro. Pegou a chave do carro e desceu dispensando o elevador.

***

            O restaurante é o mesmo de quando conheceu Mônica. Disso ele se lembra bem. Ela estava sentada na mesa do canto da vitrine. Quando o médico entrou foi à primeira coisa que viu. Uma mulher linda de cabelos castanhos bem tratados. Olhos grandes cor de mel e boca pequena. Clóvis se encantou pela gerente de banco almoçando sozinha. Depois de muito paquerá-la ela cedeu ao charme do cirurgião.
            - Como se chama?
            - Mônica, e você?
            - Clóvis, Clóvis Moura a seu dispor.
            A partir desse dia a onda de amor os afogou. Mônica era o mundo de Clóvis e vice e versa. O casamento aconteceu dois anos depois quando a gerente de banco descobriu a gravidez. Guilherme chegou e triplicou a felicidade. A família era bem estruturada. Clóvis pediu que Mônica deixasse o emprego no banco. Clóvis é do tipo de homem que não terceriza a criação dos filhos. Para ele quem deve cuidar dos rebentos é pai e mãe.
             Volta ao mesmo lugar onde tudo começou é um tanto quanto sacrificante. O garçom o atente com a mesma simpatia, e ele faz o mesmo pedido, carne branca e salada e para beber, um ótimo vinho tinto. Pagou tudo no cartão. No caminho de volta a sua caverna, sim, sua caverna, é o que se tornou o seu apartamento, Clóvis não consegue esquecer quando viajou de carro com a família e dirigiu por quatro horas, parando apenas para comer. Foi cansativo, porém recompensador. Guilherme fazia bagunça na cadeirinha junto com sua mãe. Eles cantavam sucessos populares e cantigas antigas. Às quatro horas passaram voando.

***

             No apartamento ele confere algumas fotos, nelas estão registrados os melhores momentos de sua vida familiar. Mônica fantasiada de bruxa e ele de Batman no carnaval de Salvador. Clóvis beijando a barriga de oito meses de gravidez de Mônica. Guilherme recém nascido em seu colo. Ele vai passando foto por foto e é como se fossem facadas em seu peito. A ultima o deixou sem chão. Justamente a ultima foto em família. Guilherme ainda vivo e com saúde aparentemente. Sorrisos, alegria e uma longa vida pela frente. Clóvis desmorona como uma montanha. Cai de joelhos. Chora bastante e soca o peito. Os minutos seguem. Dor, muita dor. A noite é alta. Ele abre a janela e do décimo andar as coisas parecem ainda piores. As lágrimas continuam a dar um ar lustroso ao rosto bonito do cirurgião. Ele abre os braços, está pronto para a morte faz tempo. Um ônibus passa em alta velocidade. Um carro freia quase atropelando uma senhora desatenta. Chega dessa vida, chega de lágrimas, chega dessa caverna. Clóvis fecha os olhos para nunca mais abri-los quando um pássaro noturno pousa no beiral da pequena varanda. O bicho tem um canto triste e enfadonho. Clóvis tenta enxotá-lo, mas o bicho parece querer falar algo com sua cantoria.
             - Nem morrer em paz a gente consegue mais.
             Como magia o pássaro se transforma num homem alto e de capa negra. Olhos amarelos e cabelos bem penteados loiros.
             - Clóvis?
             - Devo está tento uma alucinação, só pode ser.
             - Pense o que quiser, a minha proposta é a seguinte, me chamo Daniel e quero resolver seu problema.
             - Como assim, resolver meu problema, você por um acaso pode trazer minha família de volta?
             - Melhor, posso lhe dar a imortalidade, o que acha?
             Ainda com algumas lágrimas escorrendo, Clóvis olha para baixo e depois para o homem. Quem seria ele, um anjo que veio buscar sua alma com ele ainda vivo? Ou o demônio que veio atormentá-lo?
             - Quem é você, Daniel?
             - Isso você verá depois, agora desça daí, já. – Daniel é incisivo.
              Lentamente o médico desce e fica cara a cara com o ser.
             - Então, quer se juntar a mim e ser imortal?
             Seria horrível. Sentir essa dor, essa saudade, essa angustia durante sabe se lá quanto tempo. A morte o livraria disso tudo em segundos. Clóvis meneia a cabeça e se vê tentado a voltar para a beira quando Daniel o segura pelo braço. A força dele é sobrenatural. Quando Clóvis dá por si está abraçado e servindo de jantar para Daniel. A vontade do vampiro é sugá-lo até a morte. Relutante Daniel pára deixando o corpo do médico cair. Clóvis fica no chão se mexendo. Daniel volta a se transformar no pássaro sinistro batendo em retirada.
             Tropeçando Clóvis anda até no meio da sala. Olha tudo com estranheza. As fotos estão jogadas no sofá. Ele as pega e as olha com indiferença. A dor sumiu. A tristeza, a magoa, angustia, o desespero desapareceram. Ele deixa cair às fotos e se dirige ao banheiro. No espelho sua imagem não existe. Sorrir. Novo homem, revigorado. No pescoço pálido a marca da mordida. Os olhos outrora azuis como uma piscina, agora dão lugar a um amarelo vivo. Os lábios roxos e a pele fria, essa é a sua condição. Um vampiro, um ser da noite, sedento por sangue fresco.