terça-feira, 23 de março de 2021

Lua Solitária

 


Lua Solitária

 

Foi bem complicado, pra não dizer infernal. Imagine um homem realizado em sua vida amorosa e também em sua vida profissional. Sim. Esse alguém era eu, Ronaldo Chagas. Antes de Andreia surgir em minha vida, eu era um sujeito do qual ninguém, absolutamente ninguém queria por perto. Bêbado, chato e abusado. Por causa desse meu jeito levei diversas surras e fiquei detido por uma noite na delegacia. Dentro da cadeia fui espancado durante duas horas seguidas, isso porque tirei marra com o “dono da cela”. Assim que tive alta da enfermaria fui liberado e jogado mais uma vez na rua. Tudo o que eu mais queria naquele momento era achar um bar e tomar uma. Porém fiquei só na vontade mesmo. Não havia dinheiro. Aproveitei para iniciar uma nova trajetória em minha vida. Foi quando conheci Andreia, a menina de olhar de fada. Ela mudou radicalmente o meu mundo.

Quando cruzei com ela naquela noite abafada de primavera, Andreia trazia com ela uma alegria contagiante e um sorriso que me fez inveja-la. Eu estava péssimo. Tanto emocional quanto fisicamente eu parecia um troglodita. Algo aconteceu naquela troca de olhares. Andreia me deu um adeus e eu fiquei ali, paralisado, boquiaberto, vendo ela se distanciar balançando aquelas madeixas enormes e negras como a noite. Não demorou muito e nós estávamos namorando secretamente. Os nossos encontros aconteciam sempre no mesmo lugar e na mesma hora e também no mesmo dia. Andreia já era uma mulher feita. Separada. Não tinha filhos. Sofreu violência por parte do ex marido. O sonho dela era engravidar antes dos quarenta anos e conseguiu. Nossos encontros lhe rendeu uma gravidez desejada, mas fora de hora.

Victor nasceu. Forte, bonito, igual Andreia, até os olhinhos de fada da mãe ele tinha. Xodó da família Chagas. Quando meu filho completou um ano, fomos morar numa cabana que eu mesmo a construí perto do rio em meio a floresta. Para sustentar a casa comecei a cortar e a vender lenha. Ganhei muito dinheiro. Não faltava nada, tínhamos tudo. Victor cresceu e eu pude coloca-lo num colégio bacana. Não éramos ricos, mas tínhamos dinheiro, não passávamos sufoco. Minha família era unida. Eu amava Andreia, era apaixonado por ela mesmo com anos de casados. Fazíamos amor duas vezes por semana. Tanto na cabana, quanto na floresta, Andreia e eu não brincávamos em serviço. Minha mulher era maravilhosa.

Hoje caminho sozinho. Tudo o que sobrou daquele lar feliz se encontra dentro da minha mochila do exército. Das vezes que tenho companhia é por que estou sendo perseguido por caçadores. Voltei a ser o que era antes, um troglodita. Na verdade me transformei em coisa pior. Quando Victor se tornou um pré adolescente, eu fui atacado por uma fera. Estava uma noite estranha. Ventava muito e no céu a lua cheia enchia nossos olhos. Eu tomava chá de gengibre na varanda. Andreia e Victor já estavam deitados quando foi ouvido um uivo que estremeceu as árvores. Deixei a xícara cair e fiquei em alerta. Foi muito perto. Minha mulher apareceu na porta enrolada nos lençóis.

— Amor, o que foi isso?

— Entre, fique perto do garoto. Vou dar uma olhada no mato.

— Você tá louco, e se for um bicho?

— É um bicho, meu amor. Vou pegar minha arma e dá uma olhada.

Entrei no mato. Eu estava me cagando de medo, mas precisava tirar aquela história a limpo. Quando cheguei no meio da mata alta, outro uivo e mais perto.

— Santo Deus! – falei fazendo o sinal da cruz.

Andei mais dez passos e escorreguei em algo mole. Era um gato morto. O pobre bichano foi devorado, quase partido ao meio, suas vísceras estavam expostas. Outro uivo seguido de um rosnado. A vontade de sair correndo para dentro de casa era grande, mas jamais iria demonstrar fraqueza para Victor e principalmente para a minha olhos de fada.

— Será um cachorro? – continuei parado.

O mato era alto, cerca de dois metros. Com medo, sem lanterna, contando somente com a luz natural da lua,  criei coragem, fui abrindo passagem afastando o mato quando dei de frente com ela, a fera. Parte homem, parte lobo, uma coisa vinda do inferno. Seus olhos eram vermelhos. Tinha focinho, mas eu vi, era um homem com aspecto de lobo. Quando ele me viu o seu rosnado me fez urinar nas calças. A velocidade com que corria era fora do comum. Eu caí de costas apontando a arma. Sua pata, sua mão, sei lá o que, rasgou minha camisa e suas garras abriram quatro longas feridas em meu peito. Eu atirei. Como um cachorro vira-lata ele caiu a meu lado rodopiando. Em meio a espasmos a fera assassina foi voltando ao normal. Em dois minutos ou menos o que era um lobo, agora é um pobre velho morto.

— Jesus!

A ferida ardia, pegava fogo e sangrava muito. Ouvi vozes vindas do outro lado do matagal.

— Ele correu para esse lado.

Três homens armados com espingardas. Ao me verem deitado perto do corpo do velho eles se assustaram.

— Ronaldo? Você foi atacado? – perguntou o homem mais baixo.

— Que merda foi essa? – emendou o outro apontando para o meu ferimento.

— Ele me arranhou. – falei gemendo. – preciso de um hospital, preciso levar uns pontos, tomar analgésicos, isso tá doendo pra burro. – falei quase chorando.

— Você vai precisar de umas preces, isso sim. Vamos.

— E quanto a ele? – perguntei sendo levantado.

— Cara, esquece, ele já era, vamos avisar as autoridades. Cadê sua mulher e filho? – questionou o baixinho.

— Estão em casa.

— Ótimo. Vamos passar lá e avisa-los.

Daí em diante minha vida não foi mais a mesma. Lembra quando o baixinho disse que eu iria precisar de preces? Então. Eu precisei de muitas preces, muitas orações, mas não foram o suficiente para impedir que o dia mal chegasse. Cinco dias depois desse ataque eu estava na varanda recolhendo minhas ferramentas de trabalho. Foi um dia puxado. Eu me lembro que, durante todo esse dia eu estava estranho, uma fome atípica. Eu queria carne, e crua. No almoço pedi para Andreia fazer um bife mal passado, mais ainda assim minha fome por carne crua continuava. Eu estava terminando de juntar minhas coisas quando senti as primeiras pontadas nas costas. Uma dor horrorosa no rosto inteiro. Todos os ossos estavam esticando, crescendo, assim como os pelos. Pois é. Me transformei naquilo que matei na mata. Entrei em minha casa. A primeira vítima foi meu filho. O devorei por inteiro, comi até os ossos. Corri atrás de Andreia dentro de casa. A matei também. Comi braços, pernas e... Arranquei sua cabeça.

Quando acordei, eu estava deitado no chão da cozinha, empapado de sangue e com uma barriga enorme. Minha casa estava toda revirada, suja, havia vísceras por toda parte, pedaços de corpos. Corpo da minha Andreia, olhos de fada. A cama do meu Victor vazia e com manchas enormes de sangue ainda fresco. Meu garoto Victor. Tentei num ato desrespeitado dar cabo a minha existência. Não consegui, não consegui, por que diabos não consigo? Qual o propósito disso tudo? Nenhum, eu acho. Corri. Me lavei. Recolhi algumas peças de roupas e ferramentas para usar como armas. Enfiei tudo dentro da minha mochila do exército e parti sem rumo. Agora vivo um dia após o outro. Devorando gados em todas as noites de lua cheia, sendo o caçador e sendo a caça. Vivo com saudades, muitas saudades, diga-se de passagem. Para todo lugar que olho vejo o rosto dos dois. As vezes penso em me jogar de um precipício ou então me deixar ser encontrado por meus perseguidores, mas ainda não consigo. Mais eu juro. Um dia eu há de conseguir. FIM

 


terça-feira, 2 de março de 2021

Linha Policial – Segunda parte completa

 


LINHA POLICIAL

Parte dois – Série completa

 

 

A violência é um monstro que impede toda uma sociedade de crescer e evoluir. Temos medo de sair durante o dia e principalmente a noite quando esse monstro toma proporções gigantescas e consome vida por vida. Medo, essa é a palavra que não falta no vocabulário de quem já foi abordado por esse terrível mal assolador. A violência se apresenta de várias formas. Estupros, sequestros, agressões, roubo seguido de morte, arrastões, entre outras vertentes. O pior de todas essas ações são as de quem deveria estar nas ruas combatendo-a, financiam o crescimento do monstro. Homens de terno e gravata, sentados em seus gabinetes. Bandidos de farda. Esses contribuem para que o câncer assuma o controle com sua metástase e mate sem piedade o cidadão de bem.

     Nos últimos meses o roubo de carro cresceu assustadoramente ao ponto de haver a incrível diminuição de veículos circulando nas ruas. Já não bastasse você perder o seu bem conquistado com suor, a vítima é agredida não importando idade, limitações físicas ou sexo. Os bandidos levam seu carro e lhe deixam um trauma marcado na pele. Covardes. Quem se arrisca, antes de sair de casa recorre a fé para buscar proteção e assim foi com a família Barbosa.

     Carlos esperou com paciência tamborilando os dedos no teto do veículo a saída da esposa. Dentro do carro seus filhos, ainda sonolentos também aguardam a vinda da mamãe.

      - Papai, vamos chegar atrasados na escola. – disse a menina.

      - Podes crer que sim. – respondeu a olhando pelo vidro.

     Por fim ela chegou. Maquiada, perfumada e muito bem arrumada, arrancando aplausos do marido apaixonado. A primeira missão de Carlos antes de ir para o escritório é deixar seus rebentos no colégio. A segunda é levar sua mulher até a rodoviária onde ela trabalha como atendente e pronto. O carro mal pegou a via principal e dois sujeitos armados numa moto os abordou aos berros. Pois é, mais um bem conquistado com sacrifício será levado e o que é pior, às vítimas não terão a chance de se defender. Como ordenou os meliantes, Carlos encostou o carro. Dentro do veículo a mãe tenta sem muito sucesso acalmar as crianças, talvez por que ela mesma esteja tão desesperada quanto aos seus filhos.

     - Perdeu, desce. – falou o que descia da garupa segurando uma pistola.

     A demora começou a irritar os vagabundos que iniciaram com as agressões. Carlos foi puxado a base de socos e coronhadas na cabeça.

     - Calma, cara! – gritou.

     A esposa conseguiu retirar o casal de filhos e se afastar com os dois em seu colo. Outros carros ao verem a ação criminosa davam marcha ré e enquanto isso o chefe da família Barbosa era surrado deitado no asfalto.

      - Tá bom, ele já aprendeu a lição, vamos embora. – falou o piloto da moto.

      Carlos Barbosa acompanhou deitado seu veículo sumindo de sua vista ao som dos choros dos filhos. A sensação de impotência é arrebatadora, principalmente quando atinge ao homem. Ele prende o choro quando as pessoas vão a seu socorro e tudo o que ele quer é o abraço de sua família. A violência saiu ganhando mais uma vez. Até quando isso? Até quando iremos nos sentar diante da tela do televisor a sermos noticiados sobre mais um caso de roubo, morte, sequestro e Eteceteras?

     Carlos se colocou de pé com a revolta saindo pelos olhos. Notou que havia um jovem filmando toda a situação e foi até ele.

      - Meu jovem, aonde pretende postar esse vídeo?

      - Em todas às minhas mídias. – respondeu meio trêmulo.

      - Ótimo, jogue o zoom, foque o meu rosto.

 

*

 

Janaína ainda dormia quando Paulo recebeu um vídeo de dois minutos pelo whatsapp. Um vídeo de um cidadão aos prantos fazendo sua denuncia, “ Levaram meu carro, me agrediram, meus filhos não param de chorar e minha mulher está a base de remédio. Até quando iremos suportar isso? As autoridades polícias deveriam ter vergonha, os criminosos estão dominando nossa cidade, nosso país. Por favor, façam alguma coisa”. Alves pausou o vídeo, já ouviu o bastante. Janaína acordou com o áudio alto do vídeo.

     - Bom dia. – falou bocejando. – posso ver?

     - Bom dia. – a beijou. – ainda hoje vou iniciar uma operação. O número do roubo de carros aumentou absurdamente. Acho que deixamos de olhar para essa questão.

     - Acha que existe uma quadrilha por trás disso? – se sentou.

     - Acho não, tenho certeza. – entregou o telefone. – vou tomar um banho e sair fora.

     A jornalista ouviu e viu o vídeo, mas também leu a mensagem de Mara para Paulo e não gostou do teor da conversa. O relacionamento entre o agente e ela vai bem, ambos estão se curtindo bastante. Pelo visto, a ex de Alves ainda não se resolveu emocionalmente. Janaína tocou na foto de perfil e a mesma mostrou uma mulher estupidamente linda, gostosa, dona de um sorriso mágico capaz de enfeitiçar qualquer marmanjo. Paulo Alves voltou do banho enrolado na toalha.

      - O que achou?

      - Do vídeo ou da mensagem da Mara?

      Alves encolheu os ombros.

      - Pois é, eu iria te mostrar, mas acabei esquecendo. Não vou mentir, temos nos falado com frequência.

      - Sobre? – cruzou os braços.

      - Mara ainda não deu por encerrado o nosso lance. – colocou as mãos na cintura.

      - E você, já deu por encerrado? – segue com os braços cruzados.

      - O que você acha?

      - Bom, eu não chego aos pés dela, mas...

      - Janaína, por favor, esquece isso, estamos juntos agora, você é tudo que importa para mim. Deixe Mara prá lá. Você é uma negra sensacional. – sorriu.

      - Mesmo?

      - Sim!

      - Então vem aqui, você vai receber um prêmio.

 

*

 

Antônio Carlos, mais conhecido como Peixe desde quando ainda defendia as cores da polícia. Antônio Carlos hoje comanda uma poderosa quadrilha, especializada em furto e roubo de veículos. O esquema é o seguinte; o grupo menor pega o produto na rua e o leva até o galpão onde será desmanchado e suas peças vendidas. Peixe paga pelo trabalho do grupo menor. Já o grupo maior o acompanha nas grandes negociações. Peixe, como todo mafioso, tem seu braço direito, Felipe Chagas, o Filé. Perigoso. Filé é o assassino mais letal que Antônio já conheceu. Bom com números e intimidador, perfeito para ser o segundo homem na ausência do chefe.

     Mais um veículo é negociado, exatamente o carro da família Barbosa. Peixe analisa demoradamente o material. A seu lado, Filé, portando uma metralhadora apontada para o assaltante. Antônio joga o cigarro fora e o amassa.

      - Carro de família metida a besta, mas é bom. Quanto você quer nele?

      - Pensei em dez mil. – disse gaguejando.

      - Pago quatro.

      - Mas, ele vale mais de sessenta mil, que tal sete mil?

      - Que tal o Filé te fazer de peneira?

      O sujeito engoliu seco e se afastou.

      - Pago quatro e não se fala mais nisso. – pegou outro cigarro.

      - Já é então. – coçou a nuca.

      - Filé, dá o dinheiro dele. Estarei no escritório caso haja qualquer problema, ok?

      - Deixa comigo.

      Peixe estava subindo as escadas que leva ao seu escritório quando recebeu outra ligação. Mais um carro mas dessa vez um baita produto.

      - Sério? Sem nenhum arranhão ou amassado? – pausa. – caramba, precisou balear o cara? Azar o dele. Trás aqui, vou avaliar. Quanto você quer nessa máquina? – arqueou as sobrancelhas. – ótimo, apareça aqui as 16 horas hoje. – entrou na sala. – faremos um bom negócio meu caro, um bom negócio. – se jogou na cadeira.

 

*

 

Chefe Damião Ramos observa a grande movimentação da cidade de pé segurando a persiana. Está um dia claro, com um sol jorrando seus raios que são refletidos em toda parte. Como pode, uma cidade linda, moderna como essa servir de palco para bandidos? Como pode o governo federal não fazer nada, o governo estadual fechar os olhos e tão pouco o municipal. Poucos são aqueles que a amam e querem o bem dela. Seria ele o único a pensar assim? Claro que não. Ramos tem em seu DP os melhores profissionais, homens que dariam a própria vida em favor da população.

    Ele deixou a janela e se sentou. No encosto da cadeira o seu paletó repousa. Em sua mesa diversas ocorrências, casos em andamento e outros que ainda não foram solucionados. Damião não sabe por onde começar. Paulo bateu na porta e a empurrou em seguida.

     - Atrapalho?

     - Não. O que houve, por que o atraso? – entrelaçou os dedos.

     - Tive contratempos, me desculpe, chefe. – se acomodou.

     - Antes que eu me esqueça, fez um belo trabalho na operação Boi de carga, conseguimos desarticular uma quadrilha inteira de uma só vez.

     - Valeu! – ruborizou. – senhor, quero iniciar uma nova operação. Veja esse vídeo.

     Damião assistiu ao vídeo com sua expressão mudando a cada segundo. Ele devolveu o celular ao detetive e depois voltou para a janela. Se Paulo percebeu o abatimento do chefe? Sim, claro que percebeu.

      - Chefe? O senhor está bem?

      - Inicie essa operação imediatamente, Alves. – se virou para o policial. – se eles, presidente, governador não fazem nada para proteger a cidade, nós faremos. Vamos prender esses vagabundos.

      Paulo Alves deixou a sala do chefe empolgado, mas também bastante intrigado. Nesses quase dois anos trabalhando no DP ele jamais viu os olhos de Damião faiscarem daquela forma. Um justiceiro, foi isso que ele viu lá dentro, um homem com sede de justiça. Determinado a honrar essa vontade de seu superior, Alves ligou o computador e digitou no Google “ roubo de veículos” logo apareceu diversas páginas falando sobre o assunto. Vítimas, mortes, números de roubos, depoimentos entre outras coisas.

      - Hora de enjaular esses bichos.

 

 

LINHA POLICIAL

Paulo Alves

 

Depois de assistir exaustivamente a todos os vídeos sobre roubo de carros e de fazer anotações, Paulo se viu louco por um café fresco e forte. Ao se levantar, uma breve alongada na lombar e nos braços. Posicionando o copo na máquina ele voltou a pensar em Mara. O que ela estaria fazendo nesse momento? Com quem está compartilhando a vida? Por que o traiu? Ele a amava de verdade e chegou a imaginar constituir uma bela família com ela, porém ele não sabe se isso também era os planos dela. Pelo visto não. Ele não foi o bastante para Mara. O copo transbordou. Até nos pensamentos Mara o atrapalha. Sacanagem.

     Após limpar a sujeira Alves voltou para sua mesa que por sinal está uma bagunça. Ao se acomodar tomando seu café extraforte o celular vibrou entre a papelada. O nome no visor o fez sobressaltar.

     - Mara?

     - Oi, amor, posso dar uma passadinha aí?

     - Mara, eu estou trabalhando e mais uma coisa, vê se me esquece, acabou, estou em outra, tenha dignidade, caramba.

     - Dúvido você conseguir falar tudo isso pra mim pessoalmente.

     -  Não me provoque.

     - Venha, estou no bar ao lado do departamento.

     Paulo enxergou nessa situação a chance de colocar um ponto final nessa história. Será complicado, mas é preciso resolver. Enquanto sua ex falava com seu tom de voz meio rouco, Alves sentiu que estava apertando o aparelho de tanta raiva. A raiva em si não era só por Mara, mas sim pelo fato dele ainda não conseguir resistir aos encantos dela.

      - Tudo bem, Mara, cala a boca. Estou descendo.

 

*

 

O rapaz bem vestido deixou a loja de artigos para o lar segurando duas sacolas. Entrou em seu carro e deu a partida saindo devagar da área reservada para clientes. Ao pegar a via, outro veículo deu a partida também.

     - Dá hora esse modelo. Peixe vai vibrar. – disse o motorista.

     - Deve valer uns vinte mil, ou mais. – completou o outro segurando uma pistola.

     - Eu já estou de olho nesse há dias e hoje ele não me escapa.

     - Beleza, vamos esperar um mole dele.

     Lá fora o carro visado pelos bandidos sai da principal e entra numa secundária de baixo movimento. Depois de andar mais trezentos metros o carro de trás acelerou e ficou lado a lado com ele. O homem armado abaixou o vidro, apontou a pistola e o rendeu.

      - Desce do carro, vamos, vamos.

      Nervosa, a vítima abandonou seu bem e correu para a calçada. O vagabundo o fez voltar simplesmente para agredi-lo com chutes e coronhadas.

     - Caraca, deixa o cara, vamos embora. – gritou o motorista.

     - Seu merda. – mais um chute. – otário. – entrou no carro roubado e se foi.

     Revoltado, machucado, impotente, assim ficou a vítima sentada na calçada tentando ligar para a polícia. Moradores daquela rua ao ouvirem a confusão deixaram suas casas e foram ao encontro do rapaz lhe prestar socorro.

     - Meu jovem, você está sangrando na cabeça, venha, entre. – falou um senhor.

     - Essa rua está a cada dia mais perigosa. – comentou outra moradora.

     Por fim ele foi atendido.

     - Alô, por favor, acabaram de levar meu carro, me bateram, foi aqui na rua...

     Na verdade tudo o que é preciso fazer é simplesmente uma reforma na segurança pública. Entra governo, sai governo e nada muda, pelo contrário, só piora. A instituição policial já perdeu sua credibilidade há anos. A corrupção faz parte e está entranhada dentro dos batalhões. O que mais se ouve falar é de comandantes envolvidos com traficantes ou chefiando milícias, com isso, toda a confiança que a população tinha na corporação foi pelo ralo.

     Mas nem tudo está perdido, nem todos são corruptos, há sim quem queira fazer um trabalho sério, honrar seu juramento. Homens como Paulo Alves e chefe Damião Ramos que amam a polícia e se doam sem medir esforços para o bem de toda uma cidade. Esses sim são os verdadeiros heróis.

 

*

 

Mara, sinônimo de mulher gostosa. Tudo nela chama atenção. Olhos, boca, pernas, quadril, seios, é difícil não passar por ela não se excitar. Vestido vermelho um pouco acima dos joelhos e um decote gritante. Pernas cruzadas e tomando um refrescando suco de abacaxi com hortelã, essa é a incrível Mara Santos.

    - Você precisa entender que eu já estou em outra. – falou mais uma vez Paulo salivando olhando para a enorme boca da mulher.

     - A tal jornalista, qual o nome dela mesmo? – sorveu mais suco com o canudo.

     - Janaína Lopes.

     - Eu a vi, bem sem graça ela hein, sou mais eu.

     - Você não a conhece, ela é uma mulher maravilhosa...

     - Você também falava isso pra mim, principalmente quando fazíamos amor, lembra?

     - Pois é, e mesmo assim você me trocou por outro, eu nem sei porque eu estou conversando com você aqui. – se levantou.

     De maneira proposital Mara esbarrou em seu molho de chaves as jogando no chão. Educadamente Paulo se abaixou para pegá-las. Na mesma hora Mara descruzou as pernas. Inevitável. Como se fosse um ímã. Paulo pode conferir as partes íntimas descobertas da mulher.

      - Você não resiste, detetive Paulo Alves, você é como todos os homens. Gostou?

      Paulo ergueu o corpo e deixou o molho em cima da mesa e olhou nos olhos dela.

     - Você não presta, Mara. Não presta nem um pouco. – saiu.

 

*

 

Assim que Alves colocou os pés no DP alguém o informou sobre a solicitação do chefe. Damião mais uma vez se sentiu desafiado ao saber de mais um roubo de carro em menos de vinte quatro horas quase que no mesmo lugar. A temperatura subiu e Ramos se encontra pronto para a guerra se preciso for. Paulo Alves entrou na sala do gigante negro com sua expressão fechada, como é de costume.

    - Alves, quero uma viatura em cada esquina, temos que encurralar esses vermes até eles saírem dos buracos. – Socou a mesa.

    - Calma, chefe, vamos pensar com calma.

    Damião ficou com o braço estendido e com a mão aberta durante um tempo.

     - Está dizendo que eu não estou pensando, é isso? – falou com os olhos faiscando.

     - Não, eu não quis dizer isso. Eu só quero que o senhor se acalme, tá bom?

     Ramos deu as costas para o investigador e colocou as mãos na cintura e depois esfregou o rosto. Deve ter contado até dez, pensou Alves.

      - Tenho que admitir, você está certo. – se virou ficando de frente. – o que você tem em mente? – puxou a cadeira e se sentou.

     - Fiz um levantamento. Comparei alguns números. Chequei pontos. Estamos diante de uma quadrilha especializada. Eles querem fortuna e estão conseguindo.

     - Houve mais um, agrediram o rapaz. – expirou.

     - São os mesmos. É a marca desses vermes, eles não se satisfazem em somente tomar o seu bem, querem marcar a pessoa.

     - Entendi. Bom, o que pensa em fazer, Alves?

     - Não será um trabalho fácil, digamos que teremos que caçar quem está na ponta da linha para capturar o tubarão.

     - Tem a minha permissão para seguir com a operação. – se recostou e esfregou os olhos. – feche a porta quando sair.

     Ao ficar novamente sozinho, Damião voltou a socar a mesa. Paulo estava certo. Policial que troca tiro com bandido é policial burro. É preciso pensar, fazer uso de inteligência também. Defender o povo dessa cidade, quem disse que seria coisa fácil? Esse é o preço que se paga quando se tem polícia correndo nas veias e justiça batendo forte no peito. Ele confia no trabalho do novato, ele não sabe o porquê, mas algo lhe diz que Alves ainda será um líder e tanto.

 

*

 

Os homens de Peixe cautelosamente abriram o portão para o chegada de mais dois produtos. Armados com fuzis eles revistaram os dois homens e depois os levaram para o escritório do chefe. Na chegada mais uma surpresa. Na mesa de vidro vários maços de notas de cem, cinquenta e vinte reais. Antônio de pé olhava para elas.

    - E aí, meus caros, vamos terminar logo com isso, quanto vai me custar as duas maravilhas lá em baixo?

    - Trinta mil, cada. – disso o mais magro e alto.

    Peixe cruzou os braços e olhou para Filé.

     - Que tal trinta nos dois? – Zombou o braço direito de Peixe. – certo, chefe?

     - Certíssimo, Felipe Chagas. – riu.

     - Qual foi, Peixe, você nunca aceita o que a gente pede, assim fica difícil. – declarou o gordo.

      - Você acha mesmo difícil? – saiu de trás da mesa. – vou dizer uma coisa seu ladrão de merda, tem sorte de eu estar num bom dia hoje senão as coisas iriam ficar bem ruins para os dois.

      - Vamos fazer o seguinte. – tomou a palavra o magro. – aceitamos os trinta mil nos dois, mas, a partir de hoje não trabalhamos mais para você. Certo?

      Silêncio entre as partes.

      - Legal. – Peixe andou até Filé. – vá com eles. – bateu no ombro do comparsa. – receberão o dinheiro.

      Os dois foram levados para os fundos do galpão. Filé conectou o silenciador na pistola e os matou.

      - Ninguém brinca com o Peixe.

 

LINHA POLICIAL

Paulo Alves

 

Chegou a hora de atacar, mostrar para a vagabundagem que a polícia está com os olhos bem abertos. Paulo Alves reuniu sua equipe na saída do estacionamento do DP para uma última conversa. A ideia é capturar pelo menos um que faça parte da quadrilha e daí iniciar de fato a operação. Paulo achou melhor fazer uso das viaturas descaracterizadas.

     - Rapazes, não será fácil, eu sei, mas, pior que não fazer nada é ficar medindo os esforços. Nossa cidade está sendo sitiada e os civis, a população de bem não tem a quem recorrer a não ser a nós. Vamos dar o nosso melhor e enjaular esses merdas.

     Estaria Damião Ramos certo? Paulo Alves é realmente o líder tão esperado no meio policial? Apesar de ser ainda jovem na idade e novato na profissão, ele tem se mostrado um destemido soldado no campo de batalha e isso tem sido perceptível aos olhos de todos. Essa introdução no estacionamento provou mais uma vez de que a pessoa não se forma policial na academia, mas sim, se nasce policial. Um a um os carros foram saindo do DP. Destino traçado, todos focados, vamos ao combate.

     Paulo sempre fez questão de conduzir a viatura. Para ele, um líder, para ser líder precisa estar a frente em tudo e não só verbalmente. Além do mais, dirigir para ele nos últimos dias vem sendo uma espécie de terapia. Mulheres, sempre elas, o motivo maior para que a vida de qualquer homem saia fora do rumo. Ele ama Janaína e pretende fazer com ela o que não conseguiu com Mara, construir uma família. Mas para que tudo isso venha se tornar realidade, o fantasma da ex precisa ser de uma vez por todas extirpado. Vale um telefonema? Lógico que vale.

     Janaína Lopes estava concentrada em sua nova matéria quando o celular vibrou.

     - Oi, amor, como vão as coisas? – Paulo.

    - Estou enrolada, mas sempre tenho um tempinho para você. – respondeu digitando.

     - Estou no meio da operação, estamos indo buscar essa casta dentro de casa.

      - Tenha cuidado, essa quadrilha é especializada, não são amadores.

      - Também penso assim, vou tentar chegar até o chefe ainda hoje.

      - Vish, pelo visto meu detetive predileto vai chegar tarde em casa hoje.

      - Acho que sim,  por que, você tinha planos?

      - Eu vou fazer uma receita nova que aprendi, mas tudo bem, vou deixar no forno pra você e por favor.

      - Sim?

      - Me acorde se eu estiver dormindo, quero transar.

      - Ah, quanto a isso você não precisa se preocupar. – risos. – beijo amor, te amo.

      - Eu também te amo meu gato.

      Pois é, ao falar com a mulher amada o gás do policial foi renovado. Ele olhou para o companheiro ao lado que tentava em vão segurar o riso.

      - Alguma novidade? – perguntou jogando o aparelho em cima do painel.

      - Sim, nos mandaram ir para o próximo bairro, me parece que lá o índice de roubo é bastante alto.

      - Passe um rádio para a equipe 2, mande-os pra lá, nós iremos seguir com o plano.

      - Sim, senhor.

 

*

 

O carro da polícia parou enfrente a uma pequena loja onde há dois veículos a venda. O valor chamou atenção de Alves. O investigador desceu e andou apressado até um sujeito de mais ou menos cinquenta anos de idade que varria o estabelecimento no momento. Antes de entrar, Paulo deu uma olhada nos dois veículos.

     - Boa tarde, o valor é esse mesmo? – perguntou Alves.

     - Exatamente. – continuou varrendo.

     - Rapaz, mas, o valor dos dois, equivale a esse. – bateu no carro branco. – por que quer se desfazer deles?

     - O senhor pode entrar, por favor? – se apoiou na vassoura.

     O sinal de alerta de Paulo já foi acionado.

     Dentro do estabelecimento há várias coisas a venda, desde discos antigos até capas de celulares, sem falar da poeira que orbitava no ar pesado. O homem foi para trás do balcão e se esforçou em se mostrar simpático ao suposto cliente.

      - Agora podemos conversar mais a vontade. O senhor se interessou por qual deles?

     - Bom, na verdade eu me interessei pelos dois e...

     - Olha, se o senhor levar os dois eu ainda posso fazer uma pequena promoção. – sorriu.

     - Tá de brincadeira? Vai ficar ainda mais barato? – fingiu estar surpreso.

     - Claro. Então, vamos fechar negócio?

     Rapidamente Paulo sacou sua pistola. O sujeito ergueu os braços e arregalou os olhos.

     - Que tal você me falar de onde vem esses carros?

     - Eles são meus...

     - Chega dessa atuação ridícula. – mirou na testa. – então, vai me dizer de onde vem ou...

     - Tá bom, tá bom, vamos conversar.

     Paulo Alves o puxou de trás do balcão e o sentou com truculência. Devagar, mas com detalhes o comerciante foi revelando o esquema. Por precaução, Alves chamou um de seus homens para guardar a entrada da loja. Foram meia hora de conversa e no fim o sujeito pareceu arrependido e por que não dizer temeroso.

    - Então o líder do bando é o tal de Peixe?

    - Sim! – falou de cabeça baixa. – aí, meu Deus, aonde fui me meter. – tampou o rosto com às mãos. – ele vai me matar, vai acabar com a minha família.

    - Você deveria ter pensado nisso antes de aceitar entrar no jogo. – despejou outro policial.

    - Eu, eu não consigo tirar nem do aluguel o que vendo aqui na loja e do nada alguém me oferece semanalmente não só o do aluguel, mas o equivale a um ano de vendas. Eu não pensei duas vezes. Mas agora...

     - Pois é. – disse Paulo. – o senhor será levado para o DP, quanto a sua família vou ver o que posso fazer. Feche a loja. Vamos lá pessoal.

 

*

 

 

Durante a volta para o DP o comerciante, instigado pelo agente sentado a seu lado, fez mais revelações sobre o chefe do bando e como funciona o esquema. Na verdade a loja só serve de fachada e periodicamente Peixe passa por lá para saber como está o andamento das coisas e é claro deixar o pagamento.

    - Ex policial? – Paulo perguntou mais uma vez.

    - O senhor promete proteger minha família? – chorou.

    - Chico. – falou Alves. – pode deixar comigo, ainda hoje vou enviar uma patrulha na sua casa. Agora só me diga como funciona a parada.

     - Já que o senhor está dizendo. – puxou ar. – vamos lá. O Antônio Carlos, quero dizer, o Peixe é o mandachuva e ele conta com o apoio do Felipe Chagas, o Filé, um sujeito cheio de marra, perigoso demais e...

     Sorte. Alves sabe muito bem que não basta ser um bom policial, ele precisa contar com a sorte de vez em quando. Passar por aquela rua e dá de frente com a loja do seu Francisco, além de ter sido usado o faro de tira, Paulo teve o auxílio das forças positivas que regem o universo. Assim acredita ele. O comerciante laranja entregou todo o esquema, mostrou como funciona as engrenagens.

     - Muito bem, seu Chico, não vou prometer, mas vou tentar uma redução de pena para o senhor. – o carro desceu a rampa do estacionamento do DP.

      - Tudo que eu mais quero é me livrar de vez do Peixe. Vou cumprir minha pena e quando tudo isso acabar, vou voltar para mim terra, viver do plantio. – desceu algemado.

       Francisco foi conduzido por um agente enquanto Paulo pedia a todos que se juntasse afim dele refazer o plano. O detetive tem algo em mente. Ele sabe que a essa altura Peixe já deve ter sido informado sobre a ação da polícia. E ainda há um agravante, Antônio Carlos é um ex agente da lei e sabe quais são os padrões utilizados. Por isso o cuidado deve ser redobrado.

     - Rapazes, o nosso alvo é perigoso e ele conta com ajuda de outro igual ao pior que ele, então temos que atacar às bases, enfraquecer o sistema. Se preparem, daqui a meia hora sairemos.

 

Chefe Damião está no corredor falando ao celular acompanhado de outro policial apaisana. Mesmo distante é possível saber que a montanha negra, um dos seus apelidos da época em que atuava nas ruas, se encontra nervoso. Paulo se aproximou e cumprimentou os colegas.

    - É sobre a operação? – perguntou o agente de terno e gravata.

    - Sim!

    - Acho que você terá um novo membro na equipe. – apontou para Damião que guardava o aparelho no bolso.

     Alves torceu a boca.

    - Soube que teve êxito nessa primeira fase, cadê o laranja? Vamos arrancar mais informações dele.

    - Já fizemos isso. Antônio Carlos. Conhece?

    Damião apertou os olhos.

     - O Peixe? Achei que já estivesse morto. Ele era um péssimo profissional, um mal exemplo.

     - Ele comanda a quadrilha, ele e um tal de Felipe Chagas, Filé.

     - Já ouvi falar desse tal Filé. – falou o outro agente. – barra pesada, matador impiedoso.

     - Então, detetive Alves, qual o plano? – Damião cruzou os braços ficando ainda maior.

     - Peixe tem outras bases, vamos ataca-las.

     - Um bom plano, enfraquecer o sistema. – falou o engravatado.

     - Sairemos daqui a poucos minutos, o senhor vai mesmo compor a equipe?

     - Se me aceitarem, é claro. – sorriu. – vai ser bom sair um pouco da burocracia e viver novas aventuras. Então, detetive Alves, me aceita como membro de sua equipe?

     - Vamos nessa, montanha negra. – se empolgou batendo no braço do chefe. – opa! Me desculpa, chefe.

 

*

 

Se Antônio Carlos achava a vida de agente da lei algo sem futuro, sem perspectiva, imagina agora atuando contra a lei. Na época em que defendia as cores do estado, ele não passava de um soldadinho mequetrefe, mal caráter que vivia abusando das garotas de programa e extorquindo traficantes. Na verdade, Peixe já era um bandido antes de ingressar na polícia. Sua adolescência e parte da juventude foram marcadas pelas badernas, saques e pequenos assaltos. Hoje ele lida com muita grana, algo que ele sempre almejou. Antônio construiu sutilmente um império onde há homens trabalhando para ele em toda cidade. Se ele acha tudo isso perigoso? Sim! Quanto mais poderoso, mas os seus aliados e rivais desejam sua queda e assim poder assumirem seu trono. Peixe não confia em ninguém e desconfia de todos.

     Peixe é tão cismado que ele mesmo se encarrega de fazer a contabilidade. Desconfiar é pouco. Filé entrou na sala trazendo péssimas notícias.

     - Chico caiu. – despejou.

     - Merda. – parou de contar. – já deve ter entregado nosso esquema. E a família dele, já deram jeito?

     - Sumiram.

     - Eu ainda disse que ele não era de confiança. E as nossas outras bases?

     - Reforçamos a segurança.

     - A polícia vai cair dentro. Peça a rapaziada que coloque quente pra cima deles, atirem pra matar mesmo.

     - Deixa comigo.

     Vida de cão. Vida sem paz. Chegou o momento de lutar pelo que conquistou. Ele abriu a primeira gaveta e pegou sua arma e a deixou sobre os maços de dinheiro.

     - Venham me pegar, seus vermes.

Linha Policial

Paulo Alves

 

A polícia entende que precisa dar uma resposta a sociedade, algo precisa sim ser feito ou toda cidade se transformará num campo de batalha onde só um lado sairá vencedor. O que esperar das autoridades que deveriam apoiar esses homens que se arriscam dia após dia para tentar manter o que restou da cidade? Nada. Eles simplesmente fecham os olhos e fingem que nada está acontecendo. Ou pior. Para alguns, quanto mais violência melhor. Quanto mais vagabundo circulando pelas ruas livremente melhor para meia dúzia de engravatados que lucram com o tráfico e outras ações.

     Boa parte da população entende que é fundamental que o estado esteja presente. O cidadão de bem sabe que mesmo em meio a esse antro de salteadores, existe gente lutando por eles. Gente como Paulo Alves e sua equipe. Por isso, nada está perdido, ainda há uma ponta de esperança nos corações. As viaturas voltaram para as ruas, o plano será seguido a risca. Quando todos estão unidos e focados, não tem como dar errado. A ordem foi dada, buscar o meliante dentro de casa. Mais uma vez na condução da viatura, Alves voltou a pensar em Janaína e Também em Mara. O que ambas devem estar fazendo agora? Pensou.

 

*

 

Janaína desceu as escadas do prédio apressadamente para tentar comer alguma coisa antes de voltar para a redação. Vinte minutos, foi o que restou do seu almoço. Ela preferiu terminar de editar o texto de sua matéria do que fazer isso depois do almoço. Já na calçada, usando uma bermuda jeans e camisa de uma banda de rock internacional e sua inseparável mochilinha de couro azul, a namorada de Paulo Alves sofreu um esbarrão que quase a levou ao chão.

     - Eita! – disse ela.

     - Aí, me perdoa, Janaína Lopes. – desdenhou Mara.

     A jornalista olhou fixo aquela deusa em forma de mulher engolindo toda raiva.

     - Ora, ora, se não é a amada, idolatrada, salve, salve, Mara Santos, que desprazer em vê-la.

      - Cruzes!

      - Fala logo o que você quer, estou no meu horário de almoço.

      - Eu? Nada, só estava passando e...

      - Arruma outra por que essa não rola. Eu sei que você vem sondando o Paulo, querendo saber como estamos, certo? – ajeitou a mochila.

      - Imagina. Eu? Sondando o Paulo. Eu tenho mais o que fazer, você não acha?

      Visivelmente irritada, Janaína precisou ficar na ponta dos pés pra falar.

      - Se liga só, ó piranha, esquece o Paulo, ele já te esqueceu faz tempo, a neguinha aqui fez isso. Graças a Deus estamos muito bem e para matar sua curiosidade, ele e eu transamos todos os dias, entendeu? TODOS! – saiu andando deixando a morena com a boca aberta.

      - AFF, barraqueira!

 

*

 

Paulo Alves jogou o carro na calçada. Ao ver a movimentação policial o sujeito que estava em pé, parado na porta de um bar, correu para dentro derrubando às mesas. Alves desceu junto com outros agentes.

     - Vá por trás. – gritou.

     As poucas pessoas que ali estavam bebendo foram rendidas e todas revistadas. Paulo entrou correndo loja a dentro com a arma em punho. Um disparo quase o acertou.

     - Droga. – se abrigou atrás das caixas de cerveja.

     Mais tiros. Estilhaços de vidro voam por todos os lados. Foi preciso deitar-se no chão e revidar.

     - Aqui é a polícia, você está cercado. – gritou o detetive.

     Agora o atirador pegou pesado. O bandido esqueceu o dedo no gatilho fazendo da parede, vidraças, garrafas de vinho, uísque, vodca uma chuva cristalina. Todo vagabundo é burro e Paulo sabe disso. Eles não sabem atirar, mas ele sim. De maneira inteligente o policial aguardou a munição de seu oponente acabar para então mandar ver. Alves se baseou mais ou menos de onde vieram os tiros e disparou contra o balcão de madeira. Dois disparos, não mais do que isso. O grito gutural do marginal denunciou sua localização e Também o seu estado.

     - Saia com às mãos pra cima, vamos.

     Silêncio.

     - Não vou repetir.

     Um policial que estava nos fundos abriu abruptamente a porta que dá acesso ao balcão e sinalizou para o líder.

     - Esse já era, Paulo.

     - E lá fora, como estão as coisas? – colocou a arma no coldre atrás da calça.

     - Dominamos tudo. Me parece que aqui era um tipo de escritório. Segundo testemunhas, Peixe, a cada quinze dias estava aqui, junto com o Filé, cobrando e fazendo pagamentos.

      - Ótimo. Leve todos para o DP. Quero mais informações.

    Dois a zero para a polícia. Mais um elo da corrente da vagabundagem que foi rompido. Paulo deixou aquele lugar com cinco elementos algemados. O corpo do bandido morto permaneceu no local até a chegada da defesa civil. Depois de uma rápida conferida nos documentos do cadáver, Paulo Alves pressupôs de que se tratava de um dos homens de confiança de Peixe, o qual foi designado a chefiar aquela região. O corpo foi retirado e junto com seus parceiros de farda, Alves comemorou mais uma façanha.

    - Ainda não ganhamos a guerra, mas, se a cada dia, uma batalha for ganha, não tenham dúvidas, iremos desarticular a quadrilha do Peixe.

     Não adianta dizer o contrário. Quando um agente se encontra focado e principalmente, determinado, só quem tem a ganhar é a população que aos poucos vai vendo o índice de roubo de veículos caindo. Paulo, assim como Damião Ramos, sabem que é o tipo de trabalho que só as formigas fazem. Aos poucos e com a concentração ligada no máximo. Todos os oficiais envolvidos nessa operação aguardam o contra ataque que certamente virá. Peixe não vai deixar isso barato, ainda mais sendo ele um ex policial, conhecedor dos procedimentos.

      - Não vamos dar a chance deles se recomporem. Temos que sufoca-los até eles saírem dos buracos. – disse um agente.

      - Vamos nessa então. – Paulo bateu no teto da viatura.

 

*

 

Assim que entrou com o carro na garagem, Alves sentiu o cheiro da comida sendo preparada. Se Paulo é um cara de sorte? Sim. Janaína além de ser uma mulher carinhosa e dedicada, é também uma cozinheira de mão cheia. Muito diferente de Mara que conseguia queimar ovo e miojo. Não importa o cansaço. Uma boa comida faz qualquer um sorrir no final de um dia agitado.

     - Ufa! Consegui chegar cedo.

     Janaína estava mexendo a panela quando Paulo a abraçou por trás.

     - Já vai ficar pronto.

     - Legal. Vou tomar um banho rapidinho.

     - Estive com a Mara hoje.

     Alves parou no meio do caminho.

      - Ela teve coragem de ir até a redação?

      - Não. Nos esbarramos na rua. Aquela mulher é louca mesmo. Mas pode deixar, acho que ela não vai mais atrapalhar a gente. Mandei umas verdades na fuça dela.

       - Que assim seja. – ergueu os braços para o alto.

      Janaína saiu de cima de Paulo e rolou para o seu lado da cama. Ambos estão ofegantes depois de duas horas de sexo intenso. Suada e descabelada, a jornalista se levantou rapidamente e correu nua até o banheiro.

      - Aí, preciso fazer xixi.

      - Volta logo. Já estou me animando de novo. – disse Paulo esparramado na cama.

       - Meu Deus, sério, ainda vai querer a segunda? – falou se sentando no sanitário.

       - Lógico. – riu.

      O celular vibrou em cima do criado mudo. Era Damião Ramos.

       - As ordens, chefe.

       - Preciso que vá até a Rua Setembro. Carvalho foi morto. Tudo leva o crer que foi obra do Peixe. Estarei chegando lá em meia hora.

 

*

 

Como não se revoltar ao ver o corpo de um companheiro crivado de balas e jogado no canto da rua? Como não ficar consternado ao vislumbrar tal cena? Rapidamente o local foi isolado por fita amarela com polícias ao redor do cadáver. Paulo Alves abriu caminho entre os curiosos e ergueu seu distintivo. Sem tocar nas fitas ele passou por entre elas e caminhou a passos não tão firmes até o corpo. Ele não queria acreditar, mas seus olhos disseram que sim, era Carvalho, membro de sua equipe na operação. Soldado dedicado, um bom policial, tinha a confiança de todos, principalmente do chefe Ramos. Um jovem agente que tinha tudo para crescer na profissão.

     - Merda! – disse baixo.

     - Pegaram ele numa emboscada. – começou o policial fardado. – Carvalho estava naquela galeria do outro lado do bairro. Saiu de lá e veio andando, ele mora aqui próximo.

     - É, já estavam de olho nele desde da galeria. Foi o Peixe.

     Nesse meio tempo, Damião Ramos desceu da viatura que ele próprio conduzia acompanhado por outros oficiais. O chefe caminhou de maneira desastrosa, esbarrando e se desculpando ao mesmo tempo até Alves que ao vê-lo se sentiu intimidado. O suor grosso que escorre desde a cabeça até o pescoço, encharca a camisa branca embaixo do paletó.

     - Vamos tirar essas pessoas daqui, vamos, pessoal. – disse Ramos em alto e bom tom.

     - Foi uma emboscada, chefe. Um recado. – Paulo engoliu seco ao ver os olhos de Damião faiscarem.

     - Me diga uma coisa que eu ainda não saiba, detetive. – olhou para o corpo. – qual o próximo passo, Alves?

     Paulo Alves sabia que iria sobrar para ele. Chefe Damião Ramos é do tipo de líder que adora ver seus liderados tomarem iniciativa. Ele gosta de ter ao lado guerreiros dispostos a tudo. No momento o detetive não sabia o que responder, mas foi obrigado a retomar o controle da situação. Ramos quer briga.

     - Reúna os homens, chefe. Vamos a guerra. – saiu.

     Vendo seu novato se afastar, o coração de Damião saltou de orgulho. Ele se lembrou dos velhos tempos quando era apenas um investigador, sedento por fazer justiça. O corpo de Carvalho era retirado quando Ramos acionou seus homens via rádio.

      - Atenção. Vamos fechar a cidade. Isso é uma ordem. Prendam Antônio Carlos o vulgo Peixe.

      O rádio foi deixado no banco do motorista. Do outro lado da rua, encostado em seu próprio veículo, Alves olhava para o chefe.

      - Chefe Damião, quero o senhor comigo.

      - Às ordens, detetive Alves.

LINHA POLICIAL

Paulo Alves

 

Quando ainda pertencia o lado da lei, Antônio Carlos não fazia tanto estardalhaço quando havia uma baixa na corporação. Ele apenas lamentava e agradecia aos céus por não ter sido ele a vítima. Para Peixe, a vida de um policial era semelhante a de um mosquito, que nasce pela manhã e morre ao entardecer. Simples assim. Mas agora que ele se encontra defendendo a bandeira da criminalidade, o que era comum, passou a não ter significado algum. Matar ou mandar matar um policial não gera nele sentimento algum, nem mesmo receio. Ele sabe que assassinar um tira e crime hediondo e mais do que isso. O batalhão inteiro virá com força total atrás dele e ele simplesmente segue contando seu dinheiro sujo em seu escritório – eles que lutem!

     Contabilidade feita. Tudo dentro do esperado. Conta bancária cada vez mais gorda e muitos outros negócios rentáveis para tocar. Peixe deixou o escritório esfregando às mãos sendo observado por Filé e outros capangas. É nítida a preocupação no olhar de cada um deles, principalmente de Felipe Chagas o autor dos disparos que tiraram a vida de Carvalho.

     - Tem certeza de que o senhor não quer dar o fora antes que seja tarde? – Filé coçou a cabeça.

     - Absoluta. Eles virão e isso é normal. Temos que pensar  da seguinte forma; o que nós faríamos?

     - Bom, eu... – disse outro comparsa.

     - Exatamente. Reuniria meus melhores homens e iniciaria uma caçada. – estalou os dedos. – agora já não é mais uma investigação ou operação policial. Tudo agora é uma questão de honra. Vingança. Aqueles canalhas safados morderam a isca. Eles estão emocionalmente desestabilizados. Temos que tirar proveito disso.

      - Hum, agora entendi. – disse Filé. – uma guerra. Era tudo o que você queria.

      - Sim. – deu às costas. – temos um bom armamento. Estamos em maior número, essa briga está no papo.

      - Peixe. – Falou Filé sorrindo. – chegou o momento de usarmos aquele brinquedinho?

      - Divirta-se, meu caro.

 

*

 

A madrugada demorou a passar e Paulo aproveitou para arrancar mais informações dos detidos assim como Damião Ramos também. Na sala de interrogatório ambos apavoram quem se encontra sentado naquela cadeira fria e algemado a mesa. Ramos é quem mais mete medo com seus dois metros de altura e pesando três dígitos bem pesados na balança. O detido não consegue segurar o tremor das pernas assim que o chefe se coloca em pé atrás dele e para deixar às coisas ainda mais interessantes, Damião repousou suas enormes mãos em seus ombros com força.

     - Isso é tudo que você tem a dizer sobre o Peixe. Não acredito. – piscou para Paulo no canto da sala de braços cruzados.

     - Pode acreditar. Ele quase não aparecia lá na loja e quando aparecia era só para deixar minha grana e pegar a parte dele. Eu juro.

     - Quem jura sempre mente. – retrucou Alves.

     - Verdade. – Ramos bateu na mesa. – Peixe deve ter uma base, um escritório, sei lá, me diga alguma coisa. – disse perto do ouvido do detido.

     - Preciso de garantias.

     A gargalhada do chefe fez as paredes da sala balançarem, até mesmo Alves se assustou descruzando os braços.

     - Ok, lhe darei garantias. Agora fale tudo o que sabe.

     Damião saiu da sala deixando Paulo colhendo às informações. Ele gostaria de ficar, mas achou melhor que Alves terminasse o serviço, afinal, ele é o líder em questão. Além do mais, Ramos está curtindo muito esse lance de deixar um pouco a parte burocrática e assumir o papel de agente que coloca a cara para bater. Nesse momento ele está nas mãos do novato e isso é muito bom. Com sono e cansado Damião se serviu de uma xícara de café e caminhou até sua sala. A vida de um policial é injusta demais, cercada de altos e baixos e quase sempre os momentos difíceis superam os bons. Ao se jogar na cadeira ele se recorda de quando ainda era um aspirante, de como era vibrante, empolgado e as vezes impetuoso. Isso tudo o levou a chefia de polícia. Tal cargo o engessou, o transformou num burocrata em potencial.

    Mas hoje ele tem a chance de mudar. Terá a oportunidade de retornar o campo de batalha e guerrear como um verdadeiro soldado. Ramos engoliu o café e se levantou. Saiu de sua sala e esbarrou com Alves no meio do caminho.

     - Peixe tem um escritório, fica no centro, podemos cercar o lugar hoje, antes das seis da manhã.

     - Sim. Vou junto. – colocou às mãos na cintura.

     - O senhor tem certeza? Me parece cansado.

     Ramos sentiu vontade de bocejar, mas se controlou.

      - Normal, para quem não prega os olhos a mais de quinze horas.

     - Vou reunir os rapazes.

     - Eu vou na sala de armas, nada de pistola, eu quero brinquedo grande, compatível com o meu tamanho. – riu.

 

*

 

Mara sente seu corpo sendo invadido por Paulo enquanto o mesmo diz coisas obscenas ao pé de seu ouvido. A morena se derrete, o suor se misturando ao do policial naquela cama ardente. A intensidade das penetradas vão aumentando a deixando sem ar.

    - Aí, Paulo! – suspirou.

     Paulo Alves a morde nas costas e depois nos ombros e em seguida, de maneira não tão delicada ele puxa seus cabelos e diz.

     - Sua sem vergonha. Foi assim que aconteceu naquele quarto de motel?

     Mara despertou do sonho ofegante e com a boca seca. Olhou para o outro lado do quarto e depois para a janela. Por morar no quinto andar de um prédio dentro de um condomínio, Mara pode se dar ao luxo de dormir com ela aberta, principalmente nas noites mais quentes. Pois é, ela deixou Paulo escorrer por entre os dedos e agora chora amargamente. Está difícil esquecê-lo. Agora ela sabe o quanto burra ela foi. Trocá-lo por uma aventura que durou duas horas somente. Foi mais que o suficiente para estragar toda uma vida promissora ao lado dele. Chorar não vai adiantar nada. O jeito é seguir em frente e colher o que se plantou.

 

*

 

O dia começou a mostrar seus primeiros faixos de luz e o DP não parou um instante sequer. Faltando poucos minutos para as seis da manhã as viaturas começaram a sair da garagem. Homens uniformizados e armados com fuzis e outras automáticas. Acomodado no banco do carona da terceira viatura e portando uma calibre doze entre as pernas está Damião tendo como condutor e líder, Alves. Eles conversam, trocam experiência e traçam planos de como será a abordagem. Tanto Alves quanto Ramos tem a plena convicção de que haverá uma forte resistência, Peixe não joga limpo, nunca jogou.

     - Acredita que aquele pilantra entregou uma operação que poderia salvar milhares e milhares de vidas. Na época ele embolsou seiscentos mil reais limpinhos. Antônio nunca esteve do nosso lado.

     - Além de levar companheiros para emboscadas. – completou Paulo.

     - Sim. Nada ficou provado, mas está na cara que foi ele o responsável. Chegou o dia. Demorou, mas a conta chegou. – bateu no cano da arma.

     Se as coordenadas estiverem certas, a prisão de Peixe é apenas uma questão de tempo. Um policial de verdade não se dar ao luxo de relaxar e achar que tudo está sob controle. Quando isso acontece é certo o fracasso de uma operação. É evidente que Antônio e seu grupo estejam preparados para o combate e podem até estar em vantagem no quesito armamento, porém, o que sobra na parte policial é a vontade e o poder de resistência. Contra isso não há bomba núclear que posso destruir.

 

*

 

 

A primeira viatura parou e em seguida às outras. Paulo Alves desceu portando seu fuzil olhando a extensão da rua. Damião conferiu se tudo estava acontecendo como o planejado.

   - Equipe um, dois, três e quatro já estão em suas posições?

   - Tudo ok, senhor!

   Alves pegou o binóculo em cima do painel do carro e o ajustou. Um pequeno prédio de cinco andares logo na saída da rua.

    - Quero um homem com um fuzil de mira naquele prédio. Precisamos ter cobertura, senhor. – passou o equipamento para Ramos.

    - Beleza. – chamou no rádio mais uma vez. – equipe um na escuta. Vão para a saída da rua, preciso de um atirador no prédio verde, estão vendo?

    - Copiado!

    Alves conferiu o horário. Seis e trinta e cinco. Uma boa hora para iniciar uma guerra. Lado a lado, chefe Damião e investigador Paulo Alves, juntos caminhando rua acima.

LINHA POLICIAL

- Paulo Alves –

Final

 

Peixe sabe muito bem que estará cometendo uma loucura enfrentando a polícia de igual para igual. Ele também sabe das terríveis consequências que isso pode acarretar. Mesmo ciente de tudo isso, ele se prepara. Mandou que seus homens ficassem em suas posições e que abrissem fogo contra os agentes assim que aparecessem. Filé, seu braço direito ficou responsável por dar cobertura para o bando utilizando a Ponto trinta que ficará no ponto mais alto do galpão. Peixe por sua vez fará uso de um fuzil com mira. Nada como um confronto para por em prática aquilo que aprendeu na época em que defendia as cores do estado. Antônio Carlos sempre foi um bom atirador, o melhor de seu grupo.

     Um dos soldados de Peixe que se encontra do lado de fora do galpão chamou no rádio anunciando a chegada da polícia. Imediatamente Peixe e os outros verificaram suas armas e as destravaram. Filé segue com a mão no gatilho da ponto trinta e mastigando uma goma de mascar. A potente arma foi minuciosamente posicionada para não deixar que os homens da lei invadam o lugar. Na época da compra do equipamento, Felipe foi contra, a ponto de questionar seu chefe pela aquisição.

      - Pra mim foi dinheiro jogado fora. – disse olhando para a máquina de guerra.

      - Filé, meu querido, somos o vilões aqui. Conheço as entranhas da polícia, sei do que aqueles vermes são capaz. Um dia a casa vai cair e quando isso acontecer, ela será nossa principal defesa. Pense.

      Só o tempo para mostrar quem estava certo e quem estava equivocado. Observando a movimentação policial usando binóculos, Filé consegue dar razão ao seu líder. O rádio chama.

      - Filé na escuta.

     - Vê alguma coisa? – perguntou Peixe.

     - Sim. Muitos carros e também uma montanha usando terno e gravata.

     Silêncio.

     - Montanha usando terno e gravata? Que merda é essa?

     - Exatamente, chefe, um baita negão portando uma calibre doze cromada, uma lindeza de arma.

     Dentro do escritório Antônio balbuciou deixando o rádio sobre a mesa.

     - Chefe Damião Ramos. – engoliu seco.

     Antônio e Damião. Velhos conhecidos. Fazia tempo que Peixe não ouvia falar do Montanha gigante, porém Antônio conhece muito bem sua reputação. Pois é, logo com quem ele foi arrumar encrenca. Tarde demais para bater em retirado. Peixe olhou para sua arma quando uma nuvem negra se apossou de seu rosto. Hora de por fim na trajetória do chefão da polícia.

      - Filé, você me ouve? – pegou o rádio abruptamente.

      - Em alto e bom som.

      - Quando tiver a chance não hesite em atirar contra essa montanha gigante, ok?

      - Não precisa me pedir duas vezes. – cuspiu a goma de mascar.

 

*

 

Agora os dois agentes se encontram cada um de um lado do portão. Damião na esquerda e Paulo na direita. Faz silêncio lá dentro e isso não é nada bom. Paz e tranquilidade são palavras que não existem no dicionário policial, toda paz precede uma tempestade e toda tranquilidade um desfecho trágico. Os inimigos estão lá e podem ser sentidos, mas exatamente aonde estão? Pelo rádio Alves acionou o atirador posicionado no prédio no início da rua.

    - Vê alguma movimentação?

    - Negativo, senhor.

     Sem emitir som Damião se comunicou com Paulo.

      - É uma armadilha.

     Todos os envolvidos nessa operação sabem que se trata de uma emboscada, por isso todo o cuidado é pouco, ter baixas não está nos planos de nenhum dos dois, principalmente nos de Paulo Alves. A grande questão é; o galpão precisa ser sondado e para que isso aconteça ele precisa ser invadido. Se é seguro fazer tal coisa? Lógico que não, nem mesmo é inteligente fazer tal coisa, porém algo precisa ser feito. Peixe está lá dentro, e trama algo. Ele por si só já é uma ameaça, agora imagine acompanhado e muito bem armado? Nessas horas não se é permitido pensar, mas sim agir. Alves fez um gesto rápido autorizando a invasão do lugar.

      - A hora é essa, rapaziada. – sussurrou.

 

*

 

O que é a intuição policial. Antônio se encontra fora da polícia faz alguns anos, porém o seu faro de tira continua aguçado. Não foi preciso ver, mas sentir quando seus ex colegas estavam prontos para invadir. Ele acionou Filé que abriu fogo. A ponto trinta não tem o poder de fogo da ponto cinquenta, mas ainda assim é uma baita arma letal que não deveria estar em poder de pessoas como Felipe Chagas. A primeira rajada deixou os agentes em pânico. Tudo não passou de um tiro de alerta, demonstração de poder, agora a brincadeira será pra valer. Filé girou a arma e disparou contra as viaturas paradas na calçada. Os moradores do lugar fecharam suas portas e janelas enquanto os carros eram metralhados.

     - Mais que merda. – falou Damião deitado no asfalto. – ninguém de pé, ouviram?

     Filé girou a arma para o lado esquerdo onde havia alguns polícias abrigados atrás das árvores e postes. Dedo no gatilho e bala voando. Os agentes mal podiam respirar. Alves chamou o atirador via rádio.

     - Consegue ver o atirador?

     - Ainda não, mas deduzo.

    - Compartilhe.

    - Ele deve estar na parte alta do galpão, lado direito, coberto por madeira e folhas de zinco. Estou ao seu comando.

    - Fogo nesse merda.

    Mira ajustada. Respiração zerada. O gatilho vai sendo esmagado aos poucos até que o dispositivo liberou a bala que atingiu Filé no ombro. Do lugar onde Peixe estava foi possível ver a poeira rosada saindo do ombro de seu assecla que não conseguindo sustentar o próprio peso e caiu se arrebentando no chão. A queda lhe rendeu uma das pernas quebrada. Da cintura Filé sacou sua pistola voltando a ser uma ameaça aos agentes. Lá fora Paulo e Damião seguem firmes na invasão ao galpão. Antônio resolveu revidar ao ataque disparando duas vezes contra o portão de entrada.

     - Vamos precisar de um blindado, eles estão usando artilharia pesada. – falou um policial abaixado.

     - Também pensei nessa possibilidade, mas eu acho iremos perder tempo. – respondeu Alves sob mais um disparo.

     - Alves. – disse Ramos. – estamos numa guerra, Antônio se preparou para isso, vamos atacar.

     Ele não deixa de estar certo, pensou Paulo.

     - Tem razão. – chamou o atirador no rádio. – atenção atirador, nos dê cobertura, vamos invadir agora.

     - Positivo, senhor.

 

*

 

Atiradores um, dois e três dão cobertura ao grupo que simultaneamente invadem o galpão. Chuva de disparos, gritaria e ordens de rendição. Os homens de Peixe vão caindo feito moscas com o efeito do inseticida. Damião correu para se proteger atrás das caixas e quase foi atingido por Filé. O chefe de polícia revidou o ataque, mas sem sucesso. Do alto, Peixe tem uma visão privilegiada. Basta somente mirar e puxar o gatilho e pronto, mais um policial no chão. A cada corpo que cai uma comemoração.

     - Venham me pegar. – gritou. – conte seus mortos.

    Filé se arrastou até próximo dos carros. Sangrando e sentindo fortes dores ele não desiste de defender seu grupo. Ele viu um policial vindo em sua direção, por isso se antecipou atirando e o acertando no peito. Paulo Alves viu quando seu companheiro foi atingido e isso entregou a localização de Filé. Alves correu agachado entre os veículos e caixas e viu Felipe deitado segurando o ferimento da bala.

     - Solte a arma, você está preso.

     Não dando ouvidos ao comando policial, Filé apontou para Alves, mas foi alvejado por Damião que estava do outro lado.

      - Não tive escolha. – explicou o chefe.

      - Relaxa. Acho que esse era o tal de Filé. Peixe está escondido em algum lugar lá em cima.

      - Ele atira bem, estamos vulneráveis aqui em baixo. – recarregou a calibre doze.

      - O jeito é sufoca-lo até ele sair.

      E assim foi feito. Chumbo grosso pra cima de Antônio que não pode nem respirar, falar ou pensar. Ele, como um ex policial sabe bem o que é ficar encurralado em meio ao fogo cruzado. Nesses casos o melhor a se fazer é manter a calma e esperar. Escondido atrás de sua mesa ele aguarda até que os disparos cessem e ele possa revidar. Enquanto isso ele tenta refazer o plano mentalmente. Não há muito o que fazer. A fuga seria sua melhor opção. Um tiro explodiu um quadro de moldura de vidro o assustando.

     - Droga, logo nesse quadro.

     Peixe se recorda de que na parte dos fundos do galpão há um carro estrategicamente posicionado para fuga nesses casos extremos. Mas ele também lembrou que a essa altura todo o quarteirão foi tomado por agentes e que possivelmente estão sob ordens de Damião Ramos para atirarem. O melhor a se fazer é ficar e manter a resistência. Antônio pensou em Filé. Estaria ele morto? Ou ferido em posse dos vermes de farda? Por que ele ainda não subiu aqui para me dar suporte?

     Os tiros pararam. Arrastejando  até o ponto onde estava, Peixe utilizou a mira do fuzil para averiguar. Lá embaixo ele viu Damião recarregando sua doze. Os miseráveis não desistem, pensou. A melhor defesa é o ataque. O chefe Ramos não está em sua linha de tiro perfeita, mas vale a pena arriscar. Ele mirou e disparou. Damião rodopiou deixando cair sua arma alarmando a todos. Alves imediatamente o puxou para um abrigo.

    - Fique calmo, chefe.

    - Droga. – disse olhando o ferimento na clavícula direita. – ele ainda está vivo. Subam e arranquem o Peixe de lá. – berrou.

    Paulo Alves entendeu a ordem, assim como os outros. Damião era socorrido quando o novato avançava em direção ao andar. Do alto mais tiros. Peixe sabe que é jogada perdida, mas o que vale e cair atirando. Alves alcançou as escadas e pediu cobertura. Finalmente a porta de entrada. Por descuido Peixe a esqueceu entreaberta. Alves deu um tempo e nesse curto período os tiros pararam outra vez. Para não ser surpreendido Paulo se agachou. De repente o vidro da porta explodiu cobrindo Alves de estilhaços.

     - Sua mãezinha não lhe ensinou a bater antes de entrar, policial. – atirou outra vez.

     - Abaixe a arma, Peixe, você perdeu.

     - Não estou afim. – disparou.

     - Você está sozinho, cara, não seja burro. – atirou de volta.

     - Pelo visto você é novo nessa maldita profissão. Eu já estive do seu lado, meu caro e tudo o que consegui foi desprezo e humilhação. Agora chegou a minha vez. – atirou duas vezes. – sabe aquele idiota lá embaixo, Damião Ramos, pois bem, ele sempre gostou de fazer justiça aonde não cabia justiça, sempre arruinou meus planos e quando finalmente ele atingiu seu objetivo, ele simplesmente me ignorou, ignorou a todos.

     - Isso ficou no passado. Você ainda tem a chance de se redimir. Pense.

     - Você é mesmo muito bobo, oficial... Qual o seu nome?

     - Alves, Paulo Alves.

     - Esqueça essa ideia de ser o paladino da justiça. Ser policial hoje em dia é sinônimo de bandido vestindo uma farda do estado.

     Paulo já estava de saco cheio de ficar ali abaixado ouvindo as asneiras de Peixe. Chega de justificativas. Antônio Carlos está errado e cometeu erros contra toda uma cidade. Ele precisa pagar. Alves se levantou e pulou para dentro rolando para trás do armário. Peixe atirou várias vezes. A intenção de Paulo é prendê-lo, pelo visto isso não será possível. Ele ajustou sua arma para o automático e saiu do abrigo surpreendendo o bandido que foi atingido várias vezes até cair.

     - A justiça sou eu.

     Peixe não morreu, mas está gravemente ferido, por isso Alves correu até a janela com cuidado e solicitou uma ambulância.

     - Rápido. – gritou.

 

*

 

No dia seguinte, no hospital, Paulo entrou na enfermaria em busca do quarto onde chefe Damião se encontra se recuperando. A seu lado Janaína, muito falante pra variar. Finalmente o quarto 508. Paulo agradeceu aos céus pois já não aguentava mais ouvir Janaína falar sobre suas dificuldades na redação do jornal.

     - Olha ele ali, não falei que ele era enorme.

     - Estou nervosa, sempre ouvi falar do chefe Ramos, mas nunca o vi pessoalmente. Posso fazer uma exclusiva com ele? – se empolgou.

     - Melhor não, estamos dentro de uma hospital. Sossega.

     Damião se sentiu pai de um filho que orgulhosamente leva a namorada para conhecer a família.

     - Ora, ora se não é a famosa Janaína Lopes, gosto de ler suas matérias.

     - Obrigada, chefe, podemos marcar uma entrevista?

     Paulo a beliscou.

     - Qual o problema, Alves? – sorriu para Janaína. – será um prazer, querida.

     - Aí, obrigada, vou deixar vocês a vontade. – bateu palminhas de leve.

     Assim que a jornalista se afastou Damião desfez o sorriso e olhou para Paulo.

     - E o Peixe?

     - Ainda em estado grave, mas vai sobreviver.

     - Preciso dele vivo. Ele precisa pagar pelos pecados cometidos contra a nossa farda, Alves. Entendeu?

     - Perfeitamente, chefe.

     - Outra coisa. – engoliu seco antes de prosseguir. – você é o orgulho da corporação. O novato Paulo Alves ficou no passado. Eu me vejo em você, pilhado, sedento por fazer seu trabalho bem feito, você verdadeiramente honra o distintivo. Parabéns, meu líder. – riu.

      - Eu, seu líder? Eu quem agradeço por me deixar fazer parte desse grupo.

      Damião enxugou às lágrimas e completou.

      - Romão Félix, quero que fique de olho nele. Acho que tem tráfico de drogas na jogada.

      - Pode deixar comigo, senhor.

      - Conto com você. FIM