BALA
NEGRA
Um
mês, um conto
Quem disse que não séria fácil ser
uma policial acertou em cheio. Realmente não é. E quem disse que séria difícil
errou por muito. Ser uma policial do calibre de Marli, chega a ser quase um
sonho impossível. Se ela chegou até aqui, foi por puro mérito. Ela tem coragem,
é determinada e possui um espírito de liderança fora do comum. Para se ter uma
ideia, há homens que preferem trabalhar com ela. Claro que nem sempre tudo foi
assim. A menina pobre, moradora de comunidade enfrentou sérias dificuldades no
início de sua brilhante carreira no departamento policial. As barreiras foram
duas, no caso. Uma, Marli é negra. Apesar de sua beleza natural exótica, ela
percebia olhares não muito amistosos, questionadores. E outra, por ser mulher.
O ambiente no meio policial, podemos dizer que em sua maioria é composto por homens.
Todas essas dificuldades ela venceu trabalhando. Aos poucos ela foi
conquistando seu espaço e mostrando seu valor. Hoje em dia, ninguém mais
imagina aquele Departamento sem ela. Até mesmo delegado Cardoso reconhece isso.
A prisão de Nilton Lins pode até lhe
render alguma premiação, subida de cargo ou até mesmo fama, coisa que do fundo
do coração ela não gostaria que acontecesse. Colocar Lins na cadeia a fará
respirar novamente. Com certeza ele não é o seu último inimigo, mas é o sujeito
que de forma indireta arrancou dela o grande amor. Que destruiu sua vida
sentimental. Nilton não tem consciência alguma disso, mas sofrerá as
consequências. Uma mulher estressada tem um poder de destruição de magnitude
mil.
Outra mensagem no WhatsApp.
“Lins está a poucos metros daí,
senhora.”
Porto digitou rápido demais e enviou
não dando bola para os erros de digitação. O que importa é que a mensagem foi
respondida e que ela está ciente do que está acontecendo. Esse fato a fez
lembrar de Pedro, de como isso o incomodava. Ele como professor universitário fazia
questão de escrever certo e não tolerava quem fazia ao contrário. Analfabetismo
funcional não era admitido por ele de forma alguma.
- A pessoa que sabe ler e não ler é
pior que o pobre do analfabeto. E a pessoa que tem instrução e sabe escrever e
mesmo assim não liga para os erros de escrita, sinceramente, deveria sair do
meio dos analfabetos funcionais. Você não tem o direito de fazer parte desse
grupo. – dizia em suas aulas.
Isso gerava discussões intermináveis
entre o casal, mas Pedro acabou sendo vencido pelo cansaço. Hoje ela se recorda
desses episódios dando risadas, mas que na época eram bastante complicados.
Recordações e mais recordações. Lembranças e mais lembranças. Praticamente
nesses últimos dias sua vida se resume a isso. Pedro não foi seu único namorado
e provavelmente não será o seu último, mas o que acontece é que o professor a
completa como nenhum outro a completou. Nesses quase quarenta anos de existência
ela se envolveu com quatro homens e com todos ele teve o prazer de terminar o
relacionamento. Não existia amor de verdade. Pedro, além de ser um excelente
amante, ele também é amigo, cúmplice e o que é melhor, leal, coisa rara hoje em
dia no meio masculino. Por isso ele faz tanto falta e pra falar a verdade, Marli
não sabe se conseguirá seguir sem ele.
*
“ Eu me lembro de muita coisa daquele
dia. Me lembro de quando chegamos naquele motel e o quanto eu a desejava. Era
estranho. O meu desejo por Sabrina extrapolava o tesão, a pele, o prazer. Eu
queria mais do que penetra-la. Eu queria vê-la morrer. Minha mãe tinha razão,
sou mesmo um doente mental. Não há diagnóstico melhor do que vivenciar a
experiência de assistir alguém morrer. Pobre Sabrina. Achou que havia
encontrado o príncipe encantado, chega ser engraçado. Afoga-la naquela banheira
deu um certo trabalho, mas foi recompensador no final. Minha mãe tinha razão.
Claro que antes eu a comi durante uma hora em cima daquela cama cafona. Realizei
todos os seus pedidos mais quentes e depois a chamei para se banhar comigo.
Pobre Sabrina. Tão linda, tão inocente, tão pura.”
- Me dê prazer em baixo d’água. –
pedi.
- O que? Quer que eu faça submersa? –
sorriu me tocando.
- Exatamente. – a essa altura eu já
estava salivando.
- Tudo bem então.
“ Sabrina mergulhou. Assim que senti
sua boca segurei em seus ombros e forcei seu corpo para baixo. Nossa. Ao bater
os braços a menina jogou muita água para fora molhando o carpete. A coitada
lutou muito contra a morte, mas não teve jeito. Só a soltei quando vi sua
barriga ficar estufada de tanta água que bebeu. A morte por afogamento deve ser
horrível. Deus me livre. Sai da banheira e notei que a minha ereção permanecia
firme. Abandonei o quarto deixando para trás um corpo nu boiando. Assim que
alcancei a rua senti vontade de comemorar meu primeiro homicídio com algumas
doses de tequila. Foi o que fiz.”
Restam somente cento e cinquenta
metros para a chegada a tal lanchonete onde Marli o aguarda. Nilton veste uma
camisa azul social para fora, na tentativa de esconder sua pistola presa ao cos
da calça jeans. Seus passos são firmes, moderados e silenciosos devido ao par
de tênis que usa. O cara não passa despercebido de jeito nenhum. Os olhares
femininos são pra ele, o centro das atenções. Finalmente ele pisa na loja e
suas narinas sugam o cheiro do café fresco, do pão de queijo além de outros
cheiros. Seu alerta interno foi acionado e ele não sabe porque. Seus olhos
escuros como noite sem lua escanearam todo o lugar e nada captaram de estranho,
são os mesmos clientes de sempre. Lins entrou e ocupou a mesa que fica de
frente para a saída. Uma estratégia caso tenha que sair às pressas. Nilton não
está a vontade, algo o incomoda bastante. Mais uma vez ele olha ao redor, olha
para a entrada, olha para o balcão, para a pequena fila do caixa. Tudo normal.
- Bom dia. – disse a única garçonete
do lugar.
Assustado, Lins mal cumprimenta a
menina.
- Ah, oi!
- O mesmo de sempre? – a moça tem um
sorriso exageradamente aberto.
- Sim, acho que sim.
- Tudo bem. Anotado.
Algo voltou a dizer dentro dele que
ele não deveria estar ali, não deveria ter saído de casa. O coração do
assassino do machado acelerou de repente. Péssimo sinal. Ele já sentiu isso uma
vez e quase foi pego. Uma van de uma empresa de internet encostou e dois
funcionários regularmente uniformizados desceram. Um deles pegou a escada que
se encontrava fixada no teto do veículo e a posicionou no poste. Um deles olhou
para dentro da lanchonete. Nilton colocou sua mão direita na arma.
- Mais que merda! – sussurrou.
Um susto seguido de outro e Nilton
não está gostando nem um pouco disso. Até o barulho da escada sendo armada o
fez saltar da cadeira. Seu pedido chegou e assim que bateu os olhos na bandeja
ele percebeu que a fome já não existia mais.
- Me desculpe, é que prefiro que
embrulhe para viagem, já estou de saída.
- Sem problema. – voltou com a
bandeja ainda sorrindo.
Nilton tentou manter a calma
respirando devagar porém às coisas pioraram quando uma dupla de rapazes passou
na calçada e atravessaram a rua aproveitando o sinal fechado. Ambos ficaram parados,
de costas olhando para a vitrine de uma loja de esportes que fica em frente.
Hora de sair daquele lugar o mais rápido possível. A garçonete voltava com o
pacote quando Lins cruzava a porta.
- Ei, senhor, o seu pedido.
Nesse momento Marli saia do corredor
que dá acesso ao banheiro feminino. Os olhares se cruzaram. O bandido sentiu
suas vísceras se contorcerem. Marli ao ver seu alvo ali a menos de vinte passos
sentiu os membros superiores ficarem fracos e mesmo assim ela conseguiu sacar
sua Glock e lhe dar voz de prisão.
- Nilton Lins, fique onde estar, você
está preso.
Corre corre e gritaria às nove da
manhã dentro de uma lanchonete. Lins disparou pela calçada tirando sua arma da
cintura. Os dois rapazes deixaram a loja de esportes correndo do outro lado.
- Atenção, indivíduo em fuga e está
armado. – anunciou um dos policiais do outro lado da rua também correndo pelo
rádio.
Nessa hora ela agradeceu aos céus por
ter escolhido um calçado leve e sem salto. Os transeuntes tentam entender o que
está acontecendo, mas tudo o que conseguem ver é uma mulher negra, armada, correndo
como louca atrás de um sujeito branco também armado. Não há muito o que fazer,
Nilton não quer ir para a cadeia, por isso ele atira duas vezes. O tiro
direcionado a dupla de agentes do outro lado explodiu o vidro da janela
traseira de um Sandero preto parado em frente a um horte-frute. Os policiais
deram graças a Deus por não haver ninguém no interior do veículo. O outro
disparo passou longe de Marli, porém deixou alguém ferido lá trás.
- Mais que droga. – vociferou Porto.
– não resista, Lins, será pior.
Em meio a toda aquela confusão,
Nilton conseguiu ouvir o pedido da detetive. Não. Ele não está afim de atendê-la.
Tudo que ele quer no momento é seguir fugindo. Nilton Lins é um cara esbelto,
está bem fisicamente, mas, na boa, ficar correndo a pé não dará em nada,
pensou. Nesses casos o melhor a fazer é atrasar a polícia. Uma mulher deixava o
correios quando foi baleada quase que a queima roupa no braço. Ela se assustou
e caiu sentada na calçada. O assassino do machado deu uma rápida olhada para
trás e viu Marli prestando socorro a vítima.
- Boa garoto! – vibrou.
Marli sinalizou para que um dos
policiais assumissem o seu lugar.
- Fique aqui. Chama o socorro. Vou
atrás do Lins. – disparou a correr.
- Cuidado, senhora.
Muitas coisas passaram pela mente de Marli.
Duas delas funcionam como um combustível. Pedro é uma delas. Ela o ama e lutará
para reatar seu casamento. A outra é justamente o seu nome, sua carreira como
agente da lei. Nessa missão Marli não pode falhar jamais. Seu inimigo outra vez
olhou para ela antes de atravessar um cruzamento. O que esse merda pensa que é?
Pensou. “ A minha vontade é de mirar e atirar, pelas costas mesmo. Dane-se. Eu
não tenho o dia todo, ainda tenho um casamento para recuperar”. Enquanto Porto
pensava, seu adversário passava pelo cruzamento, olhando para trás. Nilton foi
surpreendido por uma motocicleta que avançou o sinal. O choque foi tão forte
que seu corpo foi arremessado a mais ou menos setenta metros de distância.
Marli viu tudo como se fosse em câmera lenta.
- Jesus Cristo! – exclamou boquiaberta.
Lins bateu no asfalto e ainda rolou
só parando dois metros depois.
- Argh! Me ajudem, me levem para o
hospital. – falou aos berros.
O lado direito do rosto está inteiro
ralado. Seu antebraço esquerdo está com um fratura exposta. Estranhamente ele
começou a tossir e a cada tosse, novas manchas de sangue aparecem no asfalto. Uma
possível hemorragia interna. Ele levanta a cabeça e visualiza Marli chegando e
decide seguir fugindo. As pessoas estão perplexas. Como ainda consegue
caminhar?
- Nilton, pare, já chega. – gritou
Marli.
“ O que essa negra pensa que é para
me dar ordens?” Lins apertou o passo. O sangue escorre da fratura exposta de
seu antebraço deixando para trás grossas gotas. Sua visão de repente se torna
turva e outra onda de tosse acontece.
- PARE! – Marli apontou sua Glock.
A investigadora parece não acreditar
no que está acontecendo bem diante dos seus olhos. Nilton Lins se encontra
gravemente ferido, necessitando de auxílio médico com urgência e mesmo assim o
seu instinto de sobrevivência consegue falar mais alto. Ele voltou a sacar sua
arma e a apontou para a policial. É possível ouvir o som estridente das sirenas
das viaturas e é bem provável que aja ambulância também. Armas apontadas.
Olhares frios. Nilton sente dores terríveis por todo o corpo, ele mal consegue
impor a arma. Nessa hora Marli recorre a fé, “ Solte a arma, por favor, meu
Deus, eu não quero atirar”
Os curiosos vão se aglomerando. Carros
passando a uma velocidade abaixo do permitido congestionando o trânsito.
Viaturas freando abruptamente e Marli sem muita opção. Nilton tosse outra vez
despejando uma quantidade considerável de sangue pela boca. Seu olhar para a
policial já não carrega mais aquele ódio.
- Solte a arma, Lins, você precisa de
ajuda.
Ele sorriu sem graça. Apertou o cano
da pistola contra sua têmpora e atirou.
Acabou. Tudo acabou. O corpo do
assassino do machado ao atingir o chão produziu um barulho surdo. Marli engoliu
seco. A Glock voltou para o coldre. Um nó se formou em sua garganta, mas ela
não chorou. Está tudo acabado. Em
questão de minutos seus parceiros de operação foram ao seu encontro lhe prestar
congratulações, mas a única coisa que ela gostaria de verdade era abraçar seu marido.
Cansada, suada, Marli deveria estar feliz, mas não está. Ela viu o inimigo
número um da cidade sair de cena, bem na sua frente, mas, nem por isso ela
consegue se alegrar. Salvou toda uma cidade, mas não o seu casamento. Droga de
vida.
Dentro da viatura, seguindo para o
departamento, sentada no banco do passageiro, ela segura firme seu celular
olhando a paisagem que passa voando. De repente o aparelho vibra. Sem querer
olhar ela olhou. Era Pedro. FIM.