Quero
Terminar Com Elaine!
Escrito
por Abril Rocha
João Marcelo avistou o garoto vendedor de balas terminando
de fazer sua primeira venda. Dentro do veículo ele pegou algumas moedas e as
contou com uma agilidade de poucos, isso se deve ao o tempo em que trabalhou na
feira com seu pai quando adolescente e precisava dar troco rapidamente, ou
então tomava uma bronca do velho Gilberto. Dois reais em moedas de dez, cinco e
vinte e cinco centavos. Ele abaixou o vidro, colocou a cabeça pra fora e
assoviou chamando o menino.
- Ei, garoto!
Sem muito jeito pra correr o moleque correu segurando sua
caixinha de Mentos de um único sabor. Bermuda curta e uma camisa bem maior que
seu manequim, sem falar dos joelhos com cicatrizes de quedas antigas e recentes
também.
- Quanto tá o Mentos?
- Dois reais.
- Só tem de extra forte? – reclamou João.
- Infelizmente.
- Já é, toma.
O menino agradeceu pela segunda venda e saiu. João
Marcelo abriu a caixinha e jogou logo duas balas na boca e subiu o vidro da
janela para não gastar o ar frio do ar condicionado. Mastigando o Mentos ele
voltou a tamborilar com os dedos no volante aguardando a chegada de Elaine, sua
namorada há quase dois anos. Só por que ele quer lhe falar algo, hoje ela está
demorando mais que o normal. Essa conversa não pode passar de hoje, pensou. Há
um mês ele vem tentando ter essa conversa, mas lhe faltou coragem. No rádio
algum ouvinte débil metal pediu para que executassem um forró sofrência, na
mesma hora João Marcelo fez questão de mudar de estação, para uma de notícias.
“ A pandemia segue fazendo suas vítimas em todo o país,
hoje, chegamos ao absurdo número de mais de seis milhões de infectados e mais
de cento e setenta e cinco mil mortos...” João achou melhor desligar o rádio.
Ele conferiu se sua máscara reserva ainda se encontrava no porta luvas. O
segurança respirou aliviado ao vê-la lá dentro. Por fim Elaine chegou. Tocou de
leve com os nós dos dedos no vidro da janela do lado do carona. Com muita má
vontade João se esticou para destravar a porta.
- Achei que já tivesse ido. – entrou no carro
abaixando a máscara.
- Vontade não faltou.
Elaine deu uma boa encarada em João que fingiu em não
ter visto.
- Vai dormir lá em casa? Podemos pedir alguma coisa. –
pegou o celular e abriu o aplicativo.
- Esquece, vou pra casa hoje. – disse saindo com o
veículo. – estou cansado.
- Sério? Pensei em jantarmos comida japonesa, você não
gosta?
- Gosto, mas hoje não vai rolar.
- Hum, você anda tão estranho, quer me falar alguma
coisa? – guardou o celular.
Silêncio. Durante dois minutos eles ficaram quietos e
quando Elaine voltou a pegar o aparelho, João falou.
- Na verdade, sim, eu quero lhe falar algo, mas só
quando chegarmos em sua casa. Certo?
- Quanto mistério. – brincou. – tudo bem.
João Marcelo e Elaine trabalham no mesmo shopping. Ele
como segurança e ela como atendente numa perfumaria. Em uma das intermináveis
rondas pelos corredores, João se encantou com a moça simpática, de sorriso
fácil e muitos outros atributos que atraem um homem. De início Elaine não cedeu
aos galanteios do “armário” como costumava chamá-lo, mas com o passar do tempo
ela foi permitido que a paixão falasse mais alto e quando deu por si, já era
tarde demais, Elaine estava perdidamente louca por ele. Quanto a João Marcelo,
tirou sorte grande. Elaine era tudo o que ele imaginava e mais um pouco. Amiga,
compreensiva, estudiosa e inteligente. Tudo isso ele admira nela, porém o que
mais João ama em Elaine é como ela se comporta na cama. Aliás, como ela não se
comporta na cama. No quesito amante a atendente tira nota mil.
A pergunta que não quer calar é; se Elaine o completa
tanto na cama, como fora dela, por que então João Marcelo quer terminar com
ela? O que está havendo de errado? O que Elaine fez? Em silêncio ele dirige de
forma que ele sempre reprovou os outros motoristas, mudando de pista todo o
tempo e buzinando cada vez que alguém toma sua frente. Elaine o olha de
soslaio, mas não diz nada para não deixar o clima pior do que já está. Vou
terminar com ela hoje, pensou. De hoje não passa, voltou a pensar e a mudar de faixa
também. Elaine confere fotos no Instagram, mas o seu pensamento está a
quilômetros da rede social. Ela tinha feito planos para essa noite. Elaine
passou boa parte do dia se imaginando com a lingerie que ganhou dos dia dos
namorados a qual a deixa apetitosa segundo João. Pensou na comida japonesa também,
depois das três horas de sexo no sofá-cama. Pra ser sincera ela nem imagina o
que se passa na cabeça de seu namorado.
*
O Corsa branco saiu da via principal e entrou numa
secundária, justamente onde mora Elaine. João Marcelo entrou naquela rua de
paralelepípedo esperando ser a última vez e parou enfrente ao portão e esperou
sua namorada sair.
- Tem certeza de que não quer ficar? Vou fazer valer a
pena. – tentou beija-lo. – nossa, o que deu em você hein?
Pela primeira vez em meia hora ele olhou para ela “
ela está muito gata hoje”. Olhou para o volante e depois para ela outra vez.
- Quero te falar uma coisa.
- Sou toda ouvido. – cruzou os braços por cima da
bolsa.
- Veja bem, não há um jeito fácil de se falar isso,
então, lá vai...
Elaine sentiu o coração bater na garganta.
- Quero terminar com você.
Elaine gelou e em seguida, para espanto de João, ela
soltou uma ruidosa e incômoda gargalhada.
- Sério?
A resposta à pergunta não veio de imediato, João ainda
tentava entender o porquê da gargalhada. O segurança sentiu uma vontade louca
de dizer que tudo não passou de uma pegadinha sem graça, porém, a confirmação
que saiu de sua boca foi algo inesperado até mesmo para ele.
- Muito sério. – manteve o olhar.
Elaine voltou a rir, mas agora de forma mais contida e
isso o irritou.
- Não estou entendendo! – encolheu os ombros.
- Quem não está entendendo sou eu, João Marcelo, que
conversa é essa de terminar?
- Exatamente isso que você ouviu, eu estou terminado
com você, entendeu agora ou quer que desenhe?
- Mas, espera aí, aconteceu alguma coisa, eu fiz algo
de errado?
Boa pergunta. O que Elaine fez para merecer o fim de
seu relacionamento de forma tão abrupta e de uma certa forma traumática? João
ficou em silêncio mais uma vez, talvez tentando formular uma resposta plausível,
mas não a encontrou. Elaine seguiu olhando para ele, em sua mente às peças
ainda não se encaixaram. Vendo que seu quase ex namorado não conseguirá lhe
responder, ela tomou a iniciativa.
- E os nossos planos e sonhos?
- É... Terão que ser adiados. – não a conseguiu olhar
nos olhos.
- Tem outra na jogada? Você cansou de mim?
- Outra mulher? Imagina. – bufou.
- Então? – os olhos se encheram de água.
João Marcelo não contava com isso. Ao vê-la chorar seu
coração doeu como nunca havia doído antes. É incrível o capacidade do ser
humano de se deixar levar pela reação de outro. Agora foi a vez de João se
pegar com os olhos marejados, mas ele não deixou que Elaine o visse emocionado.
Ela continuava ali, a seu lado, aguardando uma resposta. Nesse momento Elaine
só gostaria de ouvir algo, poderia até ser uma mentira, mas ela ansiava por
algo dito por ele.
- Não existe ninguém, Elaine, eu apenas não quero
mais.
João Marcelo até agora vem seguindo a risca tudo o que
Augusto, seu companheiro de trabalho recomendou. Terminar sem nenhum motivo
aparente. A conversa rolou a dois dias depois do expediente sentados numa
lanchonete bastante famosa por seus sanduíches. João passou boa parte do tempo
calado, absorvendo os conselhos nada construtivos de seu colega falante.
- E você já fez isso antes? – perguntou João já
cansado.
- Lógico. A garota ficou perdida. Ela achava que eu
estava me arrastando de paixão por ela e aí quando eu falei que não queria mais
ela ficou com aquela cara que quem não entendeu nada. – riu. – vai por mim.
- Mas, Augusto, eu gosto da Elaine.
- Ela não serve pra você, cara, se liga, sou uma cara que
sabe das coisas. Mulher pra você chama-se Tatiane.
João ergueu o corpo e arregalou os olhos.
- A Tati? Sério?
- Ela mesma. Compare. – mordeu o hambúrguer.
- Bom, se for na questão física, Elaine tem tudo e
muito mais.
- Caramba, estou vendo que você não percebe o que está
ao seu redor mesmo. – limpou os cantos da boca. – Elaine pode ser gostosa pra
caramba, mas a Tati vai além disso.
- Exemplo? – levantou uma sobrancelha.
- Imagina, de uma só tacada você terá uma cozinheira
de primeira, uma dona de casa perfeita, uma amante pra todas as horas e o que é
melhor, ela não vai ficar te cobrando nada e nem te enchendo o saco. E então?
João Marcelo pensou.
- E como você sabe disso tudo?
- Eu já te falei e vou falar de novo, sou um cara que
saco das coisas da vida. Quando o assunto é mulher e relacionamento, o Gutinho
aqui é especialista.
- Se você está dizendo...
- Vai por mim. Termine com Elaine e fique com a Tati e
depois me conta.
*
Pois é, não está sendo uma conversa fácil. Na verdade,
João Marcelo nunca terminou um relacionamento e pra ser ainda mais sincero, ele
jamais teve um relacionamento sólido. Todas as garotas com quem saiu não significaram
praticamente nada para ele, e ele para elas também não. Está aí o porquê dessa
conversa indigesta dentro de seu carro.
- Então, quer dizer que naquela noite em que juramos
um para o outro, amor eterno, não passou de palavras jogadas ao vento? – Elaine
soluçou.
Isso aconteceu de fato. Eles haviam acabado de transar.
Ambos ainda nus naquela cama de motel de quinta categoria. Fizeram um
juramento. Para Elaine, aquele gesto de unir os dedos mínimos significou
bastante, mas para João, que queria somente partir para o segundo tempo, não
simbolizou nada.
- Promete me amar até o último dia de sua vida?
- Prometo. – falou revirando os olhos. Elaine não viu
pois estava com a cabeça apoiada em seu peito.
Feito isso eles voltaram a fazer amor, João Marcelo
queria fazer valer as quatro horas pagas na entrada do motel. Elaine falou
sério naquele dia, ela o amava e já sonhava com o dia do casamento.
- Não estou lembrado desse dia.
- Como pode não lembrar? Foi o dia em que passamos
mais tempo na cama, só paramos para comer. E você reclamou da comida.
João abaixou a cabeça. Pior que ele se lembrava
daquele dia perfeitamente. A comida demorou pra chegar e quando chegou estava
fria e o tempero não o agradou muito. Eles saíram do motel direto para uma
lanchonete comer pizza.
- João, só me dê um motivo, por favor. – Elaine quase implorou.
Ela queria um motivo e isso o segurança não tinha de
fato. Ele precisou inventar um, mas não colou. Elaine sabe que durante esses
quase dois anos juntos ela se entregou de corpo e alma, acreditou que estava
vivendo um conto de fadas. Antes de começar a falar ele pigarreou algumas vezes.
- Bom... é, eu... – desviou o olhar mais uma vez.
Típico de quem está mentindo. – melhor terminarmos agora do que deixar para
mais tarde.
- E quem disse que eu pensava em me separar de você?
Outro forte golpe e dessa vez pegou na boca do
estômago. Está certo que de início ninguém acredita que um namoro possa se transformar
em algo duradouro, essas coisas vão acontecendo com o passar do tempo e para
Elaine bastou um ano e meio para ter certeza de que João Marcelo seria o homem
que ela adoraria compartilhar seus dias. Um amor de verdade.
- Quer dizer que investi dois anos praticamente, em
algo que iria terminar da forma mais sem sentido do mundo, me explica isso?
João Marcelo sabia que seria bombardeado por perguntas
das quais ele não teria as respostas. Quanto a isso ele resolveu mais uma vez
seguir as orientações de Augusto. Frieza e firmeza, mesmo que às respostas não
tenham fundamento algum.
- Eu já não estava feliz. – mentiu mais uma vez.
- Mas, como? Você vivia falando que eu era a razão de
sua felicidade.
Caramba, ela não se cansa, pensou.
João estava sendo massacrado com as verdades ditas por
Elaine, por isso ele achou melhor pensar em outra coisa, achou melhor pensar em
Tati. Três dias depois da conversa com Augusto ele passou a observar melhor.
Tatiane Santos é bonita, não tanto quanto Elaine, mas não é de se jogar fora.
Ao andar, Tati parece desfilar, braços e pernas num sincronismo beirando a
perfeição. Guto tinha razão, falou para ele mesmo ao vê-la passar. Com o passar
dos dias o seu interesse por ela foi aumentando e isso ficou claro para ela também
que passou a retribuir os olhares. Começaram os cumprimentos, sorrisos, gestos,
até que o convite para almoçarem juntos aconteceu e daí não parou mais. Augusto
os viu e vibrou de longe e na primeira oportunidade comemorou com o colega de
trabalho.
- É isso aí, cara. Resta somente dar um pé na bunda da
Elaine e pronto, caminho livre.
- Calma, eu ainda não estou com a Tati, não quero trair
a Elaine.
- João, João, deixa essa ingenuidade, rapaz, o mundo é
mal. A Tati foi feita pra você, não percebe isso?
- Poxa, quer dizer que, além de terminar com a mulher
que eu amo, ainda terei que trai-la?
Augusto deu tapinhas na testa do parceiro.
- Hello, acorda, você só vai experimentar pra ver se o
produto é bom. Não vejo traição nisso.
- Tem certeza?
- Absoluta.
Foi o que aconteceu. Só não rolou sexo, mas um beijo saborosíssimo,
ah isso rolou. João Marcelo não teve dúvidas, é com ela que vou ficar. Não é
que o desgraçado do Guto tinha razão, pensou logo após o almoço com Tati.
*
Elaine limpou às lágrimas que desciam dos olhos e entupiam
suas narinas. João em silêncio estava e em silêncio ficou. Resolveu vencer pelo
cansaço. Que clima péssimo. Antes de descer pela última vez do Corsa branco,
ela ainda o espetou mais uma vez.
- Não se preocupe, não farei força para te esquecer.
Coisas boas jamais devem ser esquecidas, e você, João Marcelo, foi algo bom que
surgiu em minha vida. Boa noite. – saiu do carro.
João soltou a respiração assim que ela desapareceu fechando
o portão. Página virada. Fim de história. O nó na garganta se formou e para
parar de doer ele foi obrigado a chorar. Escondendo o rosto no volante ele
soluçou a vontade. Chorou até ficar cansado. Antes de ligar o veículo ele
conferiu seu aplicativo de mensagem. Haviam dois áudios, um de Tati e outro de
Augusto. Ele tocou no de Tati.
“Dá uma passadinha aqui no apartamento. Tchau. Beijos!”
Fungando o nariz João tocou no áudio de Guto.
“Grande parceiro de labuta! Como estão as coisas,
falou com ela?”
Ele pensou em digitar, mas preferiu mandar áudio.
- Mano, foi complicado, mas, consegui, terminei com
ela e agora estou indo afogar as mágoas com a Tati. Te ligo mais tarde.
Jogou o celular no banco do passageiro e olhou para a
janela do quarto de Elaine. A luz estava acesa, é bem provável que ela esteja encolhida
chorando na cama. Fazer o que? Vida que segue. Manobrou o carro voltando para a
avenida principal. Vida nova.
*
A noite passada começou um pouco conturbada, mas o seu
término em nada lembrou o seu início. Tatiane fez o segurança esquecer que
havia terminado um relacionamento a poucas horas atrás. O jantar foi bom, mas o
que aconteceu depois dele foi extraordinário. João Marcelo dormiu no
apartamento dela, não houve condições dele dirigir.
No dia seguinte eles foram juntos trabalhar. Assim que
Tati ocupou o lugar que pertenceu a Elaine por quase dois anos, João pode
sentir o impacto, “Ela não está mais ali”.
- Algum problema? – perguntou ela ajustando o cinto. –
por que está me olhando desse jeito?
- De que jeito?
- Pareço uma estranha?
É verdade, Tati ainda é uma estranha para ele. Aquela
manhã de sol fraco ainda lhe guardava outras fortes emoções. Entrar naquele
shopping com outra pessoa que não fosse Elaine fez com que João pensasse que
todos os seus colegas e conhecidos estivessem olhando para ele e o julgando.
Mais isso não estava acontecendo, era algo da sua cabeça. Eles cruzaram todo o
primeiro andar do shopping lado a lado, Tati ainda não se sentia tão a vontade
para dar a mão em público e João agradeceu aos céus por isso. O seu maior
desafio ainda estava por vir. Passar na frente da perfumaria e dá de cara com
sua ex, será algo constrangedor e de uma certa forma inédito. E assim foi. Lá
estava ela, Elaine, muito bem vestida, muito bem maquiada e para a sua
surpresa, com uma cara ótima. A mensagem transmitida ficou bem claro para ele.
Acabou!
Felizmente para alguns e infelizmente outros a vida
não pode parar. João Marcelo e Elaine se cruzaram diversas vezes, se olharam
muitas vezes também, porém depois daquela noite eles nunca mais se falaram. O
tempo é o melhor remédio e Elaine conseguiu se curar e João por sua vez, fez do
tempo o seu maior e pior inimigo. Elaine curtiu muito, dançou bastante, cantou
e encantou, viveu intensamente cada segundo. Já João Marcelo se dividiu entre ficar
com Tati, trabalhar e ouvir às orientações sem muito fundamento de Augusto. O
que é a vida para um homem sem disposição para encara-la!
*
A pandemia passou. O uso de máscara já não é mais
necessário. Por fim os maiores e mais importantes laboratórios de todo o mundo
desenvolveram uma vacina cem por cento eficaz contra o vírus e houve uma
imunização geral salvando milhares e milhares de vidas. O mundo voltou a
sorrir. Às festas de fim de ano voltaram a lotar os calçadões das praias, o
carnaval pode colorir inúmeras cidades, voltamos a nos abraçar, nos aglomerar,
retiramos as barreiras do distanciamento. Livres em fim.
João Marcelo abriu os olhos naquela manhã fria e
chuvosa. Ele não estava afim de trabalhar, mas se lembrou dos infinitos boletos
em aberto. Girou para um lado e girou para outro e se levantou. O sedentarismo
arruinou sua vida e ainda tem arruinado, João já não tem mais o corpo atlético
de antigamente, sem falar da aparência que piorou bastante desde sua juventude.
Doente, vivendo de freelancer e pagando aluguel, o ex segurança vai empurrando
com a barriga – literalmente, o que restou de sua vida. Engoliu o único pedaço
de pão existente e para ajudar a descê-lo, tomou de uma só vez o café dormido e
frio da paupérrima garrafa térmica. Vestiu uma calça jeans larga e encardida, a
camisa do seu time do coração e uma jaqueta e saiu.
Cinquenta e dois anos, apenas cinquenta e dois anos e
João Marcelo parece que já passou dos oitenta. Seu andar é lento e arrastado, a
barba por fazer complementa o terrível aspecto do que um dia foi um homem
bonito e atraente. Ele caminha pela calçada molhada sem se desviar muito dos obstáculos
e olhando com mais cuidado João parece puxar de uma das pernas. Seu local de
trabalho não fica muito longe, somente duas quadras de onde mora e mesmo assim
ele passa o dia reclamando da distância. Para garantir o suficiente para honrar
as contas, ele precisa ficar oito horas por dia em pé pesando produtos num
supermercado e ainda tendo que sorrir para os clientes.
Depois de se vestir com o uniforme do estabelecimento,
antes de iniciar mais um longo dia, ele passa no refeitório para encher sua
caneca com café fresco e seguir para o interior do mercado que a essa altura já
conta com a presença de clientes. Tudo certo em seu local de trabalho. João mal
respirou fundo e já recebeu algumas batatas para pesar no lugar de um bom dia.
Trabalhar com o público, ele nunca gostou muito disso, mesmo quando era
responsável por manter a ordem dentro do shopping ele não era chegado a se
relacionar com as pessoas. Na verdade, tudo o que João Marcelo quer é que o
expediente acabe logo.
Três da tarde. Hora de se livrar dos clientes, da
música instrumental ruim do sistema de som precário do mercado, do uniforme
incômodo e ir embora. João refaz o mesmo caminho se arrastando e agora tudo
parece ainda mais difícil. Além das pernas cansadas e do sono, ele trás embaixo
do braço um embrulho com pedaços de carne que comprou no trabalho. O pacote
deve pesar no máximo dois quilos, mas para alguém sem saúde como ele, o troço
parece pesar duas toneladas. Novamente ele caminha pela calçada esbarrando em
tudo e em todos sem se importar ou pedir desculpas por isso. Sua distração é
tão profundo que ele não consegue ver ninguém a sua frente.
- João Marcelo?
- Aham? – grunhiu girando os calcanhares.
- É você mesmo? – perguntou Elaine.
Sim. Era ela mesmo. Desde quando eles se separaram
João tinha uma ligeira impressão de que seu coração já não batia mais, ou até
duvidava de sua existência, ele se sentia um morto vivo andando pelas ruas.
Hoje o órgão vital deu sinal de vida. Elaine, sim, ela, bem a sua frente.
- Oi? – apertou os olhos.
- Meu Deus, como são as coisas. Ainda hoje pela manhã
estava pensando em você. – disse gesticulando e segurando algumas sacolas de
lojas famosas de vestuário.
- Sério? – arqueou às sobrancelhas.
- É sério, nunca mais nos vimos. E como você está,
como tem passado?
João já esperava por essa pergunta.
- Ah, levando. E você?
- Eu estou ótima. Você está com pressa?
- Ah, é, não. – coçou a nuca.
- Eu só estou passando por aqui. Venha, meu carro está
logo ali. Vamos dar uma volta.
João Marcelo não teve como escapar. Por mais que ele
quisesse, estar diante da mulher que ama é quase impossível negar um convite
como esse. O constrangimento também foi grande. Mal vestido, sem se barbear, e talvez
mal cheiroso, esse é o quadro atual do ex namorado de Elaine. Está mais que
claro que ela subiu na vida. Não é preciso saber, basta ver. Roupas de grife
famosas, sem falar do carro. João mal soube como entrar no veículo.
- Pensei em irmos comer algo no shopping. – sugeriu
Elaine ligando o carro.
- Qual, o que trabalhávamos?
- Lógico que não. Vamos num shopping de verdade.
Elaine e ele tem
a mesma idade, mas ao contrário de João Marcelo, ela está bem conservada. Uma
pele bem cuidada. Dentes alinhados. Olhos brilhantes, enfim, Elaine está com
tudo em cima. Muitas coisas foram faladas durante o percurso, mas a que ambos
queriam mesmo deixaram para falar somente quando chegassem na praça de
alimentação.
- Nunca entrei nesse shopping. – falou João descendo
do carro.
- Eu praticamente vivo aqui. – acionou o pequeno
controle travando as portas do veículo.
- Não diga. – enterrou às mãos nos bolsos.
- Sim, só que a trabalho. Meu marido e eu somos sócio
de uma loja.
A palavra marido não desceu muito bem. João foi
obrigado a engolir seco.
- Ah, tá!
Agora eles estão sentados. Frente a frente. João
Marcelo não se cansa de admira-la. Elaine melhorou um milhão de vezes. Como ela
está linda, feliz, radiante e por que não dizer, rica.
- Vou pedir uma refeição que a juventude adora,
hambúrguer e batata frita. Me acompanha?
- É, acho que sim. – tentou sorrir, mas não conseguiu.
Ela chamou a atendente que tirou os pedidos. Ele observava
os gestos, a maneira educada de tratar as pessoas e imaginou se eles ainda
estivessem juntos, com certeza a realidade seria outra. A menina da lanchonete levou
os pedidos. Elaine sorriu para João.
- O que tem feito da vida?
Ele já esperava por essa pergunta também.
- Bom! Eu hoje trabalho num supermercado pesando os
produtos e só.
- Não quis mais ser segurança? – se ajeitou na
cadeira.
- Pois é. Houve um problema na empresa e eu fui um dos
muitos demitidos e...
- Eu fiquei sabendo que você havia feito concurso para
a polícia federal. Me conte essa história.
João sentiu seu corpo inteiro derreter como se fosse
uma vela.
- A Tatiane... – engasgou.
- Ah, sim, o que tem ela? – ainda sorrindo.
- Ela engravidou nessa época e me fez optar em seguir
outro caminho. O concurso me levaria tempo e dinheiro, coisa que não tínhamos,
então...
- Ah!
- E foi isso. Consegui outro emprego, mas não de
segurança. Preenchi uma vaga de auxiliar de serviços gerais numa médio empresa.
Ganhava pouco, não dava para cobrir os gastos do bebê e Tati sempre me cobrando.
Por fim, comecei a trabalhar a noite como entregador. Ou seja, quase infartei
de tanto trabalhar...
- E a Tati, não te ajudava? – cruzou os braços.
- Não. Mais a culpa não era dela. No início do
casamento. – fez sinal de aspas quando falou casamento. – eu disse a ela que
mulher minha não trabalhava fora. Acabei me estrepando. Trabalhava feito burro
de carga e mesmo assim não conseguia bancar minha esposa e nem honrar as
dívidas.
Às palavras de João vinham carregadas de tristeza,
arrependimento e principalmente de frustração, isso Elaine podia sentir sem
fazer muita força. Ela já estava com pena dele. Apesar de tudo, João Marcelo
era bom no que fazia. Tantas foram às vezes em que ele evitou que o pior
acontecesse no shopping onde trabalhava. Ele se sairia bem como um policial
federal. A vida é feita de escolhas e infelizmente muitos optam pelo lado menos
trabalhoso ou dão ouvidos a pessoas derrotadas, mal intencionadas.
- Meu Deus. E a Tati, o que aconteceu com ela? – dessa
vez Elaine realmente estava querendo saber.
- É uma longa história, mas vou tentar resumir. Tati
se cansou de viver ao lado de um perdedor e foi embora para a casa dos pais
dela no interior do estado. Levou nosso filho. – nessa hora a voz ficou
embargada. – essa é o pior parte da história. Não poder ver o Felipe dói
bastante. Resumindo. Nada deu certo na minha vida.
- Jesus! – colocou a mão na frente da boca.
- Bom. Acho que já chega de falar sobre mim. Me fale
de você. – João disfarçou o choro sorrindo.
Como Elaine esperou por esse dia, por esse momento e
por essa pergunta. Como foi aguardada essa hora em que ela poderá jogar tudo na
cara de João sem dó. Pois é. Todas essas coisas se dissiparam do coração da
empresária assim que ela colocou os olhos nele lá na rua. Não será necessário
dizer a ele o quão idiota ele foi ao dar ouvidos a Augusto, em ter terminado
com ela para ficar com Tati. Não, não será preciso. No fundo ele sabe que
escolheu muito mal. Mas, já que ele quer saber...
- Então. Depois que você terminou comigo, decidi mudar
a rota. Entrei na faculdade de administração. Me formei, estagiei e graças a
Deus arrumei um bom emprego numa multinacional. Fiz minha vida. Comprei meu
apartamento. Tudo isso solteira, não queria atrapalhar meus planos. Só depois
de estabelecida foi que comecei a pensar em arrumar alguém. – riu envergonhada.
– durante uma série de conferências conheci o Fausto, hoje meu marido. Me
apaixonei. Ele tinha planos de seguir a carreira do empreendedorismo, mas não
tinha força, e é claro, nem recursos financeiros. Eu acreditei nele, por isso
embarquei junto na jornada. Custei cursos e mais cursos, fizemos investimentos
juntos, conquistamos tudo juntos e hoje somos bem sucedidos. Nossos filhos estão
bem encaminhados, graças a Deus.
Quando Elaine terminou de falar, João Marcelo parecia um
balão de festa, só que murcho. Se arrependimento matasse, ele já estaria em
decomposição, essa que é a verdade. Ela era a mulher para ele. Quem mandou
seguir conselhos de um porcalhão como Augusto?
- Uau! – foi só o que ele conseguiu falar.
Os pedidos chegaram.
Eles comeram, beberam, bateram bastante papo e foram
embora, mas algo ainda deixava João incomodado. Elaine o deixou no portão de
sua casa. Antes de descer ele criou coragem e a perguntou.
- Você faria o mesmo por mim, não faria? – os olhos
cheios de água.
Ela apenas assentiu.
- Você me amava! – abaixou a cabeça.
- Você não tinha ideia.
Foi como uma lança atravessando o peito.
- Era com você que eu gostaria de viver, ter filhos,
construir uma família. Eu não tenho dúvidas de que hoje você seria o policial
federal que tanto sonhou em ser. Mas...
João Marcelo abriu a porta e sem olhar para Elaine ele
se despediu.
- Boa noite, Elaine!
- Boa noite, João, a gente se vê por aí!
FIM.