segunda-feira, 29 de abril de 2019

GOLPE DE VISTA

Um conto policial com Luís Souza


1


Marcelo Duarte leva uma surra cada vez que ele chega para colocar o carro na garagem de sua casa. Depois de alguns minutos tentando, por fim ele consegue. O dia foi longo. O dia a dia de um policial tem seus altos e baixos. Viver sempre na linha de frente é algo que poucos são capazes de encarar. Duarte é um desses agentes que se arriscam para proteger o cidadão de bem. Negro e de boa aparência, Marcelo tem orgulho de sua profissão e não se imagina sendo outra coisa na vida.
  Subindo as escadas que dá acesso à porta da frente, o policial estranha o silêncio e também a escuridão em que se encontra sua casa. Ele estranha por que sua esposa Sara jamais sairia sem antes o avisar. Mesmo desconfiado o agente tira a mochila das costas para pegar a chave que está no bolso. Ele abre a porta e a sala está num breu total. Tateando ele encontra o interruptor e quando a lâmpada lança sua luz, Sara e Júnior deixam o esconderijo cantando “parabéns pra você”
- Nossa, dessa vez vocês me pegaram. - diz sem graça.
- Feliz aniversário papai. - pula nos braços do pai.
- Boa noite filho, você está pesado hein.
- Feliz aniversário meu amor. - beija o esposo.
- Obrigado, com a correria de hoje, até havia me esquecido.
- Vamos para cozinha, temos salada, frango assado e um bolo que o Júnior fez.
- O que, meu garotinho fez um bolo? - pega o garoto no colo.
- Sim, de chocolate, como o senhor gosta.

  Sara em fim consegue fazer Marcelo Júnior dormir. Duarte confere algo na internet quando sua bela esposa passa chamando sua atenção.
- Vem logo, estou subindo pelas paredes.
- Sério, a festa ainda não acabou?
- Claro que não, ela está apenas começando, garotão.
    Mais tarde, esgotados pelas horas de sexo intenso, o casal Duarte conversa jogados na cama sobre um assunto que incomoda um pouco o policial. Marcelo não quer mais ter filhos, para ele, um só está de bom tamanho.
- Mas amor, pense, será que Marcelinho vai entender o fato de ser sozinho?
- Espero que ele entende que o pai dele rala muito para manter os estudos, a roupa que ele usa a comida que ele come e muito mais.
- Marcelo, é claro que ele não vai entender, ele é apenas uma criança, só tem cinco anos.
- As coisas precisam melhorar, Sara, colocar mais um filho no mundo será mais uma responsabilidade.
- E se eu começar a trabalhar?
- Esquece esse assunto. - se levanta. - mulher minha não trabalha, eu me arrebento todo, mas, definitivamente isso está fora de questão.
- Nossa, falou o policial durão Duarte, que machismo. - gesticula.

2

   Cadeia é coisa para animal. Pra falar a verdade, nem animal merece viver num lugar como esse. As celas estão hiperlotadas. Não há higiene. Não há ventilação que dê vazão. Os presos estão a beira de uma rebelião caso nada seja feito pelas autoridades. No meio desse inferno de homens que se aglomeram existe um que sorrir de orelha a orelha. Alan Silva, o assassino. Enquanto seus companheiros dão voz de ordem batendo nas grades, ele se limita a ficar em pé no canto, observando a calamidade. Um dos lideres da cela ao ver a calma do assassino, grita.
- Junte-se a nós, Alan.
   Ele apenas gesticula dizendo que não. Tudo isso tem um motivo. Alan vai ganhar a liberdade em questão de horas depois de seis anos trancafiado nesse esgoto. Ele precisa sair bem dessa. Ele não pode morrer caso haja uma rebelião. Alan ganhou o respeito de todos ali devido ao seu aspecto. Baixo, careca e de grandes olhos verdes. Ele assusta realmente. Assim que chegou na cadeia ele quase matou um preso de tanta pancada com as próprias mãos. Com isso ele conquistou o repeito e o temor da galera. Como assassino, Alan tem inúmeros crimes em seu curriculum. Ele mata pelo prazer de matar. Ele adorar ver sua vítima lutando contra a morte certa. Alan é sujo, covarde, um ser digno do inferno. Daqui a pouco ele ganhará a liberdade. O monstro estará de volta as ruas para destruir vidas e retalhá-las.

  Duas horas depois o advogado de Alan chega a penitenciaria com os papéis. Sorridente por ter feito seu trabalho, o sujeito encara os agentes penitenciários homem a homem.
- Quero ver o meu cliente.
- É complicado. - comenta um agente. - a polícia prende esses merdas e ai vem um outro merda e o solta.
- Como disse? Vou iniciar uma ação contra você seu idiota.
   O doutor é conduzido pelos corredores úmidos e estreitos até chegar onde seu cliente mais ilustre se encontra algemado.
- Quem fez isso, tire as algemas dele, por favor.
- Não posso, ordens da direção.
- Tudo bem, doutor. - diz Alan de cabeça baixa. - podemos andar logo isso?

3

   O sol forte cozinha os miolos, mas Souza continua com a pesca. Ele já perdeu a noção do tempo em que está sentado na beira do rio com sua vara sem pegar nada. Para distrair ele abre mais uma lata de cerveja.
- Até agora nada, Luís? - pergunta o velho a seu lado.
- Acho que os peixes estão de férias também.
- Acho melhor você tentar lá do outro lado. - se abana com o chapéu de palha.
- Eu acho melhor eu voltar para o meu quarto antes que o sol termine de derreter meu cérebro.
   O velho de poucos dentes sorrir quando sua vara é puxada.
- Opa! Acho que o problema é com você cara.
- Acabei de crer.
  Souza está de férias. Pelo menos por quinze dias ele estará fora do departamento. Coisa difícil é tirar o departamento de policial de dentro dele. De volta ao quarto do hotel ele faz uma ligação para Márcia que assumiu seu lugar.
- Não consegui pescar uma sardinha se quer.
- Acho que você como pescador é um bom policial, Souza.
- Como vão as coisas por ai? - se joga no sofá.
- Tudo tranquilo, aquela rotina de sempre. - Márcia olha pela janela. - Souza, relaxa, não precisa se preocupar, curta as férias e deixe que eu resolvo tudo por aqui.
- Você é a melhor assistente que já tive. - brinca.
- Olha que eu acredito hein.

   Tirar férias sozinho é bom e ruim ao mesmo tempo. Claro que Luís gostaria de estar junto com Suzana e Jéferson. Certamente ele ensinaria seu filho como pescar enquanto que sua esposa ficaria no quarto lendo um bom livro. As férias renderiam mais. Todas as noites eles jantariam num restaurante diferente escolhido por Suzana, é claro. Quando se estar sozinho você tem mais liberdade e só. Souza sente falta deles e isso machuca bastante.
    Para distrair, o detetive resolve tomar um banho e descer para mais algumas cervejas no bar do hotel. Como de praxe ele se senta no banco do balcão e fica ali olhando o movimento do luxuoso hotel a beira mar. O agente pede mais uma latinha quando uma linda morena cor de jambo encosta no balcão já fazendo seu pedido.
- Um suco por favor.
   Ela é demais, alta, cabelos cacheados e olhos negros. Cheirosa e dona de um corpo impressionante. Souza deixa de lado sua cerveja para apreciar aquela paisagem digna dos deuses. Ela percebe os olhares do policial que intensifica a paquera. O suco chega e a morena continua ali, no balcão a alguns centímetros de seu paquerador. Para não perdê-la de vista, Souza aguça sua audição quando ela diz o número do quarto.
- Quarto 412, por favor.
    Luís está no 414. Mais uma vez ela cruza olhares com ele que joga todo o seu charme pra cima dela que retribui com um sorriso pra lá de iluminado. Muito sem jeito ela termina o suco e sobe. Em seguida Souza pede sua comanda e sobe também. Mais tarde eles se esbarram no elevador. O detetive cria coragem para dizer um “oi”.
- Tirando férias ou a trabalho? - ele pergunta.
- Um pouco de cada, e você? - o elevador chega.
- Eu estou curtindo. - eles entram. - me chamo Luís.
- Clara, prazer.
    Eles ficam em silêncio.
- Eu estou trabalhando duro em minha monografia. - ela começa.
- Nossa, isso deve ser muito chato.
- Se é, vou me formar em publicidade, eu precisava ficar num lugar tranquilo, então resolvi vir para a costa.
    Eles saem do elevador e continuam a conversa.
- Bom, desejo sucesso em sua carreira. Se eu puder ajudar eu estou no 414.
- Obrigado, Luís, prazer em conhecê-lo.

4

   A liberdade é algo valioso para qualquer homem. Depois de seis anos trancado naquele chiqueiro humano, Alan está nas ruas novamente. De calça jeans e casaco preto com o capuz cobrindo sua careca, ele caminha com as mãos enterradas nos bolsos do casaco olhando cada pessoa que passa por ele. Realmente seu aspecto causa estranheza em quem passa. Seus olhos verdes transmitem pânico e ele sabe disso. Sem dinheiro e sem ter para onde ir, Alan precisa colocar seu plano em ação. A cadeia não o recuperou. Pelo contrário, ajudou a nutrir o desejo de vingança guardado dentro dele.
    A última vez em que ele cometeu um crime foi um prato cheio para um psicopata como ele. Sua vítima foi uma mulher, linda, maravilhosa. Alan a desejou assim que seus olhos bateram nela. Era quase noite e ela certamente estava vindo do trabalho. Como um animal enfurecido Alan a seguiu até descobrir onde ela morava. A moça branca de quadris largos morava numa casa simples num bairro de classe média. Só de lembrar ele saliva. É um assassino contumaz. No momento da abordagem logo pela manhã quando ela fazia sua caminhada, sua faca fria encostou no abdome da mulher que não teve poder de reação.
- Sem fazer escândalo, venha comigo.
- Por favor, não!
     Alan a forçou a andar de mãos dadas com ele até seu destino final. O beco para onde ele a levou costumava ficar deserto as sete da manhã. Local ideal para um monstro cometer suas atrocidades. A vítima só sabia chorar e engolir seco. Seu maior medo sempre foi ser violentada, penetrada por um doente do inferno como Alan Silva. E foi bem ali, naquele beco sujo, com uma faca na garganta que ela foi estuprada e morta. Enquanto executava tamanha barbaridade, ele sorria e exibia seu olhar de satisfação para ela. Depois que ejaculou, Alan cortou lentamente seu pescoço deixando seu corpo ali mesmo em meio ao sangue fresco.
    Era noite do mesmo dia e Alan já estava louco de vontade de matar. Ele saía de uma galeria quando um policial negro o abordou apontando sua arma.
- Você está preso, Alan, venha comigo.
   Tal policial é conhecido pelos seus métodos nada profissionais de arrancar confissões. Seu companheiro enquanto dirigia a viatura ouvia os pedidos de Alan.
- Pelo amor de Deus, pare.
- Duarte, acho que ele vai nos mostrar onde ele estuprou e matou a mulher hoje de manhã, não vai? - olha pelo espelho interno Duarte torturando Alan que berra.
- Ele é durão, me passe esse outro alicate.
    Alan os levou até o beco. Duarte se controlava para não atirar na cabeça do miserável. Ainda com o alicate na mão Marcelo olhava para o local ainda com as manchas de sangue e imaginou o sofrimento da vítima.
- Eu poderia acabar com você agora mesmo, você sabe disso, não sabe? - olha nos olhos de Alan. - vou quebrar seu galho, vou deixar que os seus parceiros de cela façam isso por mim. Andando.
    Isso foi a seis anos. Seis miseráveis anos guardando dentro dele a vontade de acabar com Duarte. Foi esse sentimento que o manteve vivo. E agora que ele ganhou a liberdade, nada melhor que caçar o desgraçado e matá-lo. O assassino agora se mistura entre os civis de bem com o coração cheio das piores maldades que possam existir. Alan Silva, o inimigo do estado, um perigo para a sociedade, solto nas ruas. Verdadeiramente um país da impunidade.

5

   Antes de voltar para o trabalho, Duarte acorda bem cedo para colocar o lixo na caçamba e passar na padaria. Ao voltar para casa, antes de abrir o portão ele para e olha para os dois lados da rua. Algo ou alguém o observe, isso ele sente no ar. Uma senhora que faz sua caminhada passa vagarosamente e o cumprimenta.
- Bom dia senhor Marcelo.
- Bom dia dona Tereza.
   Ele mal olha para a mulher. Seus olhos se fixam nas Árvores que enfeitam a calçada. Com certeza tem alguém entre elas o observando. Logo hoje que ele deixou sua arma dentro de casa. Quando ele entra, lá fora uma sombra se move atrás da amendoeira. Já dentro de casa Sara prepara o café quando seu marido aparece com os olhos arregalados.
- O que foi, viu um fantasma?
- Sabe quando você tem a sensação de que estão te observando?
- Sim!
- Acho que tinha alguém entre as árvores da calçada.
   Sara termina de passar o café.
- Então, pensou no assunto?
- Que assunto? - se senta e abre o jornal.
- Meu Deus, será que já esqueceu?
- Meu amor, vamos dar esse assunto por encerrado por enquanto, tudo bem?
- Diga isso ao seu filho.

    Lá fora Alan continua a olhar para a casa de Duarte. Descobrir onde seu inimigo mora não foi tão difícil. Agora ele sabe que Marcelo tem uma família. Alias uma bela família. A esposa é deliciosa, seria um desperdício somente matá-la. Já o garoto seria uma novidade, ele jamais matou uma criança, mas não custa tentar. O portão da casa dos Duarte abre e Alan acompanha a manobra desajeitada que o policial faz com o carro. Sara fica no portão por alguns instantes o suficiente para o assassino salivar de desejo. Hora de começar com a festa.

   Souza está no quarto, deitado na cama quase dormindo quando tocam na porta. Hesitante em se levantar o detetive rola de um lado para outro até criar coragem para se levantar. Pronto, resta apenas caminhar até a porta e abri-la. Mais um toque na porta e a voz serena de Clara faz o desanimo do policial desaparecer.
- Opa, já vai.
   Antes da porta ser aberta o perfuma suave da morena já invadia o quarto. Souza contempla aquela maravilha negra a sua frente com um sorriso brilhante. Ela é uma gata.
- Oi, desculpa o incomodo, é que você se ofereceu para me ajudar com a monografia, então achei…
- Sim, veio ao lugar certo.
    Luís Souza passou duas maravilhosas horas ao lado da morena que se sentia bem em estar ali. Souza esclareceu muita coisa e agora o trabalho está praticamente pronto.
- Nossa, você é muito bom mesmo. - diz fechando o notebook.
- Nem tanto. - sorrir sem graça.
- Como posso lhe pagar pela ajuda? - coloca o aparelho dentro da bolsa.
- Aqui perto tem uma petiscaria ótima, você aceitando em jantar comigo hoje a noite já está de bom tamanho.
    Clara rir não acreditando. Foi isso mesmo que ela ouviu? Depois de sair de um relacionamento conturbado ela volta a ouvir um convite de um homem? Ela aceita. Clara resolve dar um crédito ao homem de sorriso fácil a sua frente.
- Que horas?
- As vinte, o que acha?
- Ótimo!

    Marcelinho joga videogame na sala enquanto que Sara lava a louça do café quando a campainha toca.
- Droga! - enxuga as mãos.
    Ela atravessa o jardim dando saltinhos pois está sem as sandálias. Abre o portão e um sujeito baixo, careca de olhos verdes aparece segurando uma maleta.
- Oi, tem algo que eu possa consertar?

7

    Ser um bom policial não significa ser um bom motorista. Duarte toma uma coça toda vez que precisa guardar o carro na garagem. Ele passou o dia inteiro envolvido com depoimentos demorados e conversas com seus superiores. Além disso sua cabeça também girava a mil por hora com o fato de ter mais um filho. Isso sim vem lhe tirando o sono. O dia passou e ele tomou uma decisão. Não passaria de hoje. Ele faria amor com Sara e a engravidaria. O agente sai da garagem assoviando uma canção. A princípio ele não estranha o silêncio. Enfia a chave na fechadura e a gira.
- Cheguei pessoal!
    Orientado por Sara, Duarte sempre limpa os sapatos no tapete antes de entrar. O silêncio é sepulcral. A essa hora já era possível ouvir o barulho de Marcelinho jogando e sentir o cheiro maravilhoso do refogado. Nada disso acontece.
- Pessoal, já chega de sustos, certo?
    Na cozinha tudo em ordem. Há uma mistura de sentimentos dentro de Marcelo. No fogão não há panelas e na mesa somente a jarra com as flores. Ele vai ao banheiro e nada, tudo normal. Passa pela área de serviço e o cesto de roupa transborda. Mais estranho ainda, Sara jamais deixaria esse monte de roupa acumulando ali. O coração começa a acelerar quando ele ganha a sala de visitas e há uma gota de sangue na mesa. Ele vai em direção ao quarto de Júnior e o cômodo se encontra vazio. Com as pernas tremendo ele abre a porta do seu quarto e ambos se encontram deitados com suas expressões mais serenas do que manequins de lojas.
- Gente, isso já foi longe demais não acham, já chega de pegadinhas.
    Duarte acende a luz e Sara e Marcelinho não se movem. Ele anda até próximo da cama tirando o paletó e o joga ao lado do filho.
- Vamos lá pessoal. Acabou.
- Acabou nada, está apenas começando. - diz Alan na porta do quarto apontando uma pistola com um silenciador.

    Por fora Souza se mostra um homem fino e educado, mas por dentro ele explode de paixão. Com Clara não é muito diferente. Ela tirou sorte grande em conhecer um sujeito como Luís. Ela se cansou de homens que se aproximavam dela querendo apenas uma noite de sexo. Seu último relacionamento acabou por que a pessoa não se importava com seus sentimentos e sequer se preocupava com o futuro dos dois. Assim que rompeu com seu ex, Clara prometeu que daria um tempo e se dedicaria aos estudos. Até se esbarrar com o detetive.
- Então você é policial?
- Sim, chefio um departamento lá na cidade. - belisca a comida.
- Deve ser uma loucura, correr atrás de bandido.
- Já me acostumei.
- Você tem família?
- Meu pai e minha mãe moram no interior…
- Não, Luís. - risos. - quero saber se você tem família.
     Souza ri da pergunta.
- Já tive, agora estou divorciado, pronto para negócio.
- Negócio? - olha nos olhos dele.
- Isso mesmo. - segura nas mãos de Clara. - estou aberto a novas e emocionantes aventuras.
- Não gosto de aventuras, adoro romantismo.
- Está falando com o cara mais romântico do planeta.

    Quando o medo se transforma em pânico não adianta tentar tomar o controle da situação. Tudo está perdido. Marcelo Duarte olha fixo nos olhos vivos de Alan que respira ameaças a todo tempo.
- Você os matou! - diz em meio as lágrimas.
- Sua mulher deu um pouco mais de trabalho, já o garoto foi tranquilo. - entra no quarto. - sabe, a morte por envenenamento é angustiante, a pessoa sabe que em breve tudo escurecerá, por isso ela sofre, não tem volta, agora chegou a sua vez, Duarte.
- Seu miserável. - vocifera olhando para os corpos.
- Cuidado com as palavras, policial, elas pode definir seu futuro. - olha para Sara. - uma bela mulher não acha? Eu pude senti-la também, maravilhosa.
     Duarte se descontrola e tenta em vão agredir seu inimigo que atira em seu ombro. O grito ecoa pelo pequeno cômodo e Alan mais uma vez está no controle.
- Você me jogou naquela lixo e agora chegou a minha vez de triunfar. - transpira. - de joelhos e implore por sua vida, miserável.

8

   Fazia tempo que Souza não sentia o calor de um beijo apaixonado. Por alguns instantes ele voltou a ser adolescente abraçado a Clara no sofá. Eles não se desgrudam nem por um minuto. De um lado um homem experiente e machucado por dentro. Do outro uma menina começando sua vida. Clara se entrega. Ela se esquece do que passou com seu ex, das ignorâncias, das transas forçadas e das brigas. Por fim ela tem um homem de verdade a seu lado.
- Nossa, que calor. - ela diz se abanando com as mãos.
- Eu quem diga, você não existe. - dá um selinho carinhoso. - quer passar a noite aqui?
- Não sei, Luís, melhor não avançarmos o sinal.
- Tudo bem, que tal uma cerveja?

  Viaturas estacionadas nas calçadas. Fitas amarelas cercam a casa dos Duarte. Diversos policias circulam apressadamente pelo quintal e dentro da residência também. No meio desse inferno está Márcia Bernardo usando seu terninho cinza claro. Visivelmente abalada, a assistente demora um pouco a sair da casa. As imagens ainda lhe causam revolta e tristeza. Surpreendentemente ela visualiza Ubiracir entre as viaturas. Para o secretário de segurança estar no local do crime, isso indica que a situação é pra lá de grave, é emergencial.
- Senhor?
- Você viu os corpos? - Ubiracir enxuga o suar do bigode com um lenço.
- Sim, não gosto nem de lembrar, o assassino realmente veio para se vingar, não sobrou ninguém para contar a história.
- Eu conhecia o Duarte, era um agente que vestia a camisa, tinha seu jeito grosso de trabalhar, mas, não merecia o fim que teve, lamento muito.
- Será necessário falar com o Souza? - aperta os olhos por causa do sol.
- Pois é, eu estava devendo essas pequenas férias ao Souza a algum tempo, seria uma covardia interrompê-las, mas, acho que ele não vai gostar do fato de sequer avisá-lo, ligue para ele.
     Como diz a lenda, o assassino sempre volta para ver o resultado de sua obra. Não foi diferente com Alan. Como um simples transeunte ele passa observando toda aquela agitação na casa. Um sorriso cínico e isso basta para alguém como ele. Sua missão está completa, hora de desfrutar da felicidade que só a liberdade proporciona. Um homem livre, é isso que ele é, um perigoso homem livre.

    Dá para ver nos olhos dela que a paixão a pegou em cheio. Ainda no banho Clara volta a sonhar com Luís, com seu novo amor. Não importa se ele é mais velho do que ela alguns anos, o que importa é o sentimento. O que importa é o coração. Ela sente que Souza a fará feliz e isso basta. Clara ainda não está acreditando que tudo isso esteja acontecendo. A linda morena sorrir como boba com a água morna escorrendo por suas costas. Como ela gostaria que ele estivesse ali. Clara se vê tentada a ligar, mas se segura. O melhor desse relacionamento ainda está por vir e nada melhor do que se resguardar para o grande momento.
     As latas vazias de cerveja estão se acumulando na mesa de centro e Souza não está nem ai pra isso. O que ele queria realmente era Clara ali junto a ele. Ela o fez esquecer de Suzana e isso é um ótimo sinal. Vida nova finalmente. Valeu apena esperar tanto tempo pelas férias. Conhecer Clara foi algo providencial, o vento agora está soprando a eu favor e é bom tirar proveito disso. De vento em polpa, Souza toca o barquinho de sua vida. Até que o celular toca.
- Fala Márcia. - silêncio. - o que? - as expressões variam a cada palavra da assistente. - mais que droga, chego ai amanhã.

     Clara já está deitada, mas ainda acordada quando seu celular toca. O nome Luís aparece no visor.
- Oi! - ela diz com voz adocicada.
- Posso passa ai?
- Luís, tem meia hora que sai do seu quarto. Já bateu saudade?
- Preciso falar com você.
- Tudo bem.
     Como um relâmpago ela se levanta. Se olha no espelho, se perfuma, observa se sua roupa de dormir não está tão insinuante quando ele toca na porta. Clara tenta segurar o riso mas não consegue, será agora o grande momento?
- Oi? - o “oi” sai animado, mais do que ele esperava.
- Oi.

9

     Souza dirige pela estrada no automático. Ele não sabe em que pensar, se em Clara ou em Duarte e sua família. Uma baita perda. Ele conhecia Duarte e era fã de seu trabalho. Eles trabalharam juntos apenas uma vez, foi o suficiente para o detetive manter uma amizade com ele. Foi durante uma investigação sobre roubo de carros. Graças a Duarte eles conseguiram capturar não só o chefe da organização como desarticular toda quadrilha. Souza não se importava com o jeito bruto de agir de Marcelo, isso era favorável a operação. Nos últimos tempos eles se afastaram um pouco. Duarte foi transferido para outro departamento e eles perderam o contato. Agora, tudo que resta são recordações. Toda família morta com requinte de crueldade. Souza quer pôr as mãos em quem fez isso e não descansará enquanto isso não acontecer. O policial passa pela placa de boas vinda a cidade quando o celular toca. Clara.
- Oi, já estou chegando.
- Me avise quando estiver em seu apartamento.
- Farei isso, não se preocupe.
- Beijo!
- Outro!

    Toda polícia da cidade está empenhada nesse caso. Até mesmo a impressa cobra resultado. Ubiracir já perdeu o número de vezes em que pediu paciência aos jornalistas.
- Os senhores já tem um suspeito?
- Não, tudo o que temos são hipóteses. - há uma guerra de microfones.
- É verdade que Alan Silva conseguiu a liberdade?
- Veja bem meu jovem, o foco agora é descobrir quem fez essa barbaridade.
    Em todos os telejornais o assunto em voga é o massacre da família Duarte. A imprensa investigativa cita o nome de Alan sempre que pode e isso causa um certo desconforto aos agentes. Souza chega a cidade e ela está pegando fogo. Mesmo abalado o xerife quer saber a fundo tudo o ocorrido. A reunião com o secretário de segurança foi as portas fechadas, uma longa conversa sem direito a cafezinho como é de costume.
- A imprensa está cobrando resultado, Souza, e tudo o que temos até agora não passa de hipóteses, mais nada. - Ubiracir apoia os cotovelos na mesa.
- Vou pedir para que Márcia faça o levantamento do histórico de Duarte, caso ela encontre algo partiremos desse ponto.
- Faça o que for preciso, mas faça.
- Tudo certo, vamos trabalhar.
      Luís já estava de saída quando Ubiracir faz um comentário.
- Suas merecidas férias foram por água a baixo, me desculpe.
- Secretário, eu não o perdoaria se o senhor tivesse me deixado de fora. Vou resolver esse caso, vou por esse maldito na cadeia.

     Souza e Márcia vão ao IML. O detetive quer se mostrar forte, porém as lembranças o fazem esmorecer. O médico responsável pelos exames conduz os agentes pelos corredores frios até chegarem a sala onde os corpos dos Duarte aguardam liberação para o sepultamento. O legista alto e albino limpa a garganta antes de falar.
- Tanto a mãe como o filho tiveram morte por envenenamento. Já o pai sofreu várias lesões na cabeça, foi o que causou a morte.
- Desgraçado! - Souza fecha os punhos.
- É só isso? - Márcia anota tudo no bloco.
- Não, o pior vem agora. - limpa mais uma vez a garganta. Luís e sua assistente congelam. - ambos foram violentados, lamento muito.
     Enjoo, é o que se pode resumir o que Souza sente ao ouvir da boca do legista que seu amigo Marcelo e toda sua família foram estuprados. Um monstro. Um terrível monstro que agora, nesse exato momento pode estar fazendo outras vítimas.
- Tudo leva a crer que a violência sexual ocorreu quando já estavam mortos. O pai teve a parede do reto rompida.
     Num ato de puro ímpeto Souza deixa a sala e anda apressadamente pelos corredores até chegar ao estacionamento. Antes de entrar na viatura ele ainda esmurra o teto do veículo algumas vezes. Márcia chega ofegante.
- Tenha calma, estamos mais perto desse monstro do que você pensa.
- Como assim?
- O doutor disse que encontrou uma pequena quantidade de sêmen em Sara, isso vai nos ajudar, vamos, eu dirijo, você não está em condições.

11

     O dia demorou a passar e tudo o que Souza mais quer é um carinho. Sua namorada está a quilômetros da cidade e ele a quer ali, junto a ele. Suzana também vem em seu pensamento e os sentimentos se misturam fazendo de sua cabeça um tornado devastador. Dia ruim, dia péssimo. Tudo que resta é se jogar na cama e apagar, mas ele não consegue. O policial saca o celular do bolso e disca com cuidado os números de Clara que demora atender.
- Me desculpe, estava no banho.
- Hum, nada mal. - sorrir.
- O que aconteceu, estou vendo pelos noticiários.
- Isso mesmo, perdi um amigo, um amigo distante, porém ainda tínhamos algum laço
souza polpou Clara dos detalhes contando apenas o que interessava. Tudo o que ele queria na realidade era ouvir a voz de sua morena e escutar algumas palavras que acalentasse seu coração. Ele conseguiu e finalmente ele dormiu. Não foi um sono leve como costuma ser. Souza teve diversos pesadelos onde o assassino de Duarte o matava. No meio da madrugada ele se levantou transpirando a procura de água. Sua língua grudara no céu da boca. No pesadelo o bandido não tinha rosto e o cortava com uma espécie de punhal enquanto gargalhava. Foi tudo tão real, tudo muito assustador. Com a madrugada chegando ao seu final o agente declara aberta a temporada de caça.

      Medo, isso é tudo o que Alan sente no momento, medo. Medo de voltar ao inferno de grades com demônios enjaulados com ele. Se arrependimento matasse, com certeza ele já estaria morto. Debaixo do viaduto as quatro da manhã o assassino da família Duarte termina de roer o que sobrou de suas unhas. Sem dinheiro e sem ter para onde fugir e com a polícia em seu encalço ele decide seguir seu rumo, deixando a vida levar. Alan decide pagar pra ver.

    Pela manhã Souza e Márcia já estão a mil por hora dando ordens aos agentes convocados para as buscas. Todos os terminas rodoviários, estações, aeroportos, rodovias e até portos estão sob vigilância intensa. Ninguém sai sem antes passar pelos agentes.
- Temos que achar esse cara nem que seja no inferno.
     Márcia trabalha com Souza a bastante tempo, tempo o suficiente para saber que seu superior está com os nervos a flor da pele. O celular da assistente toca e ela atende ao segundo toque.
- Sim, ela mesmo, ok, vou avisá-lo.
     Luís arqueia as sobrancelhas.
- Qual a boa notícia?
- Saiu o resultado do exame do sêmen encontrado em Sara Duarte, trata-se de Alan Silva.
     O nome não soa estranho. Alan Silva. O desgraçado que destruiu a vida da família de seu amigo. Agora sim as investigações estão caminhando. Agora sim eles tem um suspeito. Alan Silva, o assassino. Pode esperar, seus dias estão contados.
- Volte para o departamento e faça um levantamento sobre esse tal de Alan Silva.
- Pode deixar.
      Souza entra em seu próprio carro e segue para o aeroporto onde se encontrará com Ubiracir que já o aguarda. O nome de Alan Silva martela em sua cabeça com força. Ele não só deu fim a vida de Duarte, como também o estuprou depois de morto. O ódio volta a dominar o experiente detetive que reluta contra a vontade de matar o sujeito assim que o encontrar. Mesmo que Alan já tenha saído da cidade ou do país ele está decidido em ir atrás sem medir esforços.
- Vou pegá-lo! - soca o volante.

12

      A estadia de Clara termina. Com muita tristeza ele arruma as malas e se despede do quarto. Foram dias memoráveis onde ela em fim encontrou o homem que roubou seu coração, Luís Souza. Nunca em sua vida ela imaginou se apaixonar por um homem mais velho. Será tudo isso um sonho ou uma simples aventura? Antes de sair ela ainda se recorda de seu último encontro com ele, o quanto foi maravilhoso. Como é bom estar apaixonada. Clara já havia se esquecido disso. Ela tranca a porta e se vai.

    O grande amor de Clara no momento não tem cabeça para pensar em romances. A seu lado o secretário de segurança lhe faz cobranças emergenciais e ele não escuta palavra alguma de seu superior.
- Alan Silva, esse cara é um assassino frio, cruel, como pode a justiça dar liberdade a um monstro como esse? - Ubiracir ruboriza.
- É como funciona a lei em nosso país, nós os tiramos de circulação e a justiça os coloca em atividade para matar bons profissionais como Duarte.
- Foi Duarte quem o prendeu da última vez, se eu não estou errado. Foi uma vingança.  O desgraçado fez tudo isso de caso pensado.
- Na cadeia eles tem tempo para pensar no que aprontarão aqui fora. - Souza limpa a garganta. - é o que eu penso secretário, homens como Alan jamais deveriam sair de lá de dentro. Mas pode ficar tranquilo, vou colocá-lo de volta na cadeia e dessa vez será diferente, ele cometeu um crime hediondo.
- Justamente, vamos terminar o que viemos fazer e partir para o porto.

      Um carro passa em velocidade abaixo do permitido numa rua secundária a estrada principal. Alan surge apontando sua arma para o para-brisa rendendo os ocupantes.
- Perdeu, perdeu, sai, sai.
- Calma, calma, vamos sair.
      Dentro do carro há uma mulher e duas meninas adolescentes. Ao vê-las Alan saliva de vontade de cometer mais um estupro, mas dessa vez com a vítima viva. Ele olha com seus olhos ameaçadores para a menina mais alta e se distrai. O chefe da família comete um erro gravíssimo colocando não só sua vida em risco como a de toda sua família. Ele tenta desarmar Alan que se desvia do golpe certeiro. As mulheres gritam enquanto o assassino desfere duas coronhadas.
- Viu, seu trouxa, vai apanhar na frente delas agora.
      Alan o machuca bastante. Ele bate até o homem ficar desacordado no asfalto. Antes de entrar no carro ele ainda olha para a menina e sorrir para ela.
- Que desperdício. - entra e arranca com o veículo.
    Dentro do carro ele encontra uma quantia em dinheiro, doces, estojo com maquiagem e um canivete. Alan está decidido a deixar a cidade nem que seja a pé. Ele roubará um carro a cada uma hora, mas ele precisa dar o fora. Na saída para a estrada ele esbarra com uma viatura parada com dois policiais.
- Merda, não tem como voltar.
     O bandido pega o canivete e o dinheiro e sem ser percebido ele desce do carro e volta para a cidade. Os outros veículos começam a buzinar diante do carro abandonado no meio da pista e isso chama atenção dos agentes. Alan aperta o passo e desaparece numa rua de pouca iluminação. Ele jamais imaginou estar nessa situação, sendo procurado por todos os departamentos policiais. Sua cabeça está a prêmio. A polícia não costuma aliviar a barra de um assassino e principalmente se esse assassino matou um policial. Ele sente medo, porém não passa pela sua cabeça se entregar e nem se encontrado com facilidade. Se tiver que morrer, não morrerá de joelhos. Jamais.

    Ainda no estacionamento do departamento a ficha criminal de Alan Silva se encontra nas mãos de Souza, ou melhor, na tela de seu celular. Dentro da viatura ele analisa cada detalhe do sujeito. Na foto Alan parece sorrir. O bandido desperta o que há de mais perigoso no detetive e antes mesmo de terminar de ler a ficha ele fecha a guia e sai do carro.
     O agente entra no departamento e não consegue ver ninguém a sua frente. No automático ele entra em sua sala onde Márcia se encontra buscando algo na internet. Souza passa calado por ela e se acomoda em sua cadeira. Percebendo a agitação do chefe, a assistente deixa de lado o computador.
- O que foi?
- O que foi o que? - Souza mexe nos papéis.
- Te conheço, Luís Souza.
- Não está dando certo, temos que cercar a cidade, a essa hora Alan Silva pode estar cometendo outros crimes, eu li a ficha dele, ele é perigoso.
- Não estou falando de Alan.
      Souza franze o cenho.
- Do que está falando então?
- De suas férias, o que aconteceu por lá?
     Um curto, mas significativo sorriso deixa claro para Márcia o que se passa com o agente.
- Clara!
- Esse é o nome dela?
- Sim!
      Ciumes, nesse momento tudo que a agente sente se resume numa só palavra, ciúmes. Não é de hoje que Márcia gosta de Souza. Ela sabe que seu chefe jamais se envolveria com ela, por mais que ela seja uma mulher interessante. Sempre que ela escuta da boca de Souza que ele se envolveu com outra mulher, parece que seu coração foi partido em mil pedaços. Mas, como sempre faz, Márcia faz questão de ser imparcial nesse tipo de conversa.
- Foi legal?
- Muito!
- E Suzana?
        O nome Suzana fez Souza voltar para a realidade e saber o quanto ele ainda a ama. Clara é a sua paixão, mas Suzana é o seu significado de vida.
- Bom, acho que podemos dar por encerrada essa conversa, vamos focar no caso.

13

      A vítima é uma mulher de seus cinquenta anos. Ela derrama lágrimas de amargura com Alan em cima dela a penetrando. O lugar é uma casa inacabada num terreno distante da cidade. Depois de estuprá-la por algumas vezes, Alan a amarrou com as mãos para trás. Ela chora enquanto seu assassino amola a faca.
- Cale a boca, serei rápido, você nem sentirá.
      Na manhã seguinte o lugar estava repleto de policiais olhando para o corpo de uma mulher loira fatiada do peito ao umbigo. Isso aconteceu a 15 anos e o crime repercutiu na imprensa nacional e internacional como o “açougueiro”. Alan sempre foi um bandido escorregadio para a polícia. Até mesmo quando uma recompensa por sua captura foi divulgada, ninguém conseguiu pôr as mãos nele.
      Hoje mais uma vez ele é considerado inimigo publico número um. Todos sabem de sua existência, todos querem sua prisão ou morte. A população está indignada. Como pode a justiça dar liberdade a um monstro que já provou que não é capaz de viver em sociedade. Um indivíduo de altíssima periculosidade, solto para cometer mais de suas atrocidades. Para não ser reconhecido Alan anda fazendo das sombras o seu abrigo, seu lar. Nas ruas ele jamais levanta a cabeça. Sem banho, com fome, com um canivete e uma pistola com munição acabando, essa é a sua situação atual. Para não levantar suspeitas Alan caminha na calçada. Cada viatura que passa o seu coração acelera e é preciso apertar o passo e fingir que é um civil normal. Saindo de uma rua muito movimentada ele ganha uma praça, passa por uma estátua e um chafariz e dali para a estação ferroviária. No bolso apenas alguns reais, mas o suficiente para uma passagem. Para passar pelo guichê será fácil, ele fará uso de sua baixa estatura. Ha uma pequena fila e para disfarçar o nervosismo ele procura não pensar muito. Alan apenas observa o vai e vem de pessoas no terminal, no anúncio e na voz da locutora chamando um funcionário. Finalmente sua vez. A mocinha dentro da cabine do guichê tem uma voz irritante, porém suportável.
- Boa viagem, senhor.
      Alan não responde, é típico dele ser mal educado. Quando o assassino está saindo do guichê rumo ao portão que dá acesso à plataforma ele percebe que cometeu um erro terrível. Ao olhar para trás ele visualiza uma câmera de segurança instalada na parte de cima da cabine.
- Essa não!
      Um vigilante mais atento certamente o reconhecerá. Como ele pode ser tão ingênuo. Bem a sua frente uma dupla de guardas da estação conversam quando o mais alto e negro saca o rádio. Alan faz uma meia parada antes do guarda branco olhar para ele. Para disfarçar, o bandido anda até a máquina de salgadinhos e refrigerantes e simula uma compra. O guarda não tira os olhos dele e fala algo com seu companheiro. Os olhos verdes e vivos do assassino cruzam com o do segurança. Sem perceber Alan já está andando apressadamente, quase correndo para a plataforma.
        Os dois guardas descem as escadas olhando para todos os lados.
- Tem certeza de que é ele mesmo? - pergunta o negro.
- Sim, se não for é muito parecido.
      Já na plataforma eles se separam. O negro vai para esquerda e o branco para direita onde ficam os caixas vinte quatro horas. Alan se encontra atrás de uma delas segurando seu canivete. Quando o guarda fica a dois passos das máquinas, Alan aparece cravando o canivete até o cabo no peito do segurança. Sem conseguir esboçar qualquer reação o homem vai caindo. Com dificuldade Alan arrasta seu corpo para trás das máquinas. Uma mulher idosa ao ver a cena grita chamando atenção de todos ali na plataforma.
- Velha filha da mãe.

     Souza ainda escreve pensativo em sua sala. Ele tenta colocar seus pensamentos em ordem depois da conversa com Márcia. Será que realmente Clara foi capaz de fazê-lo esquecer de Suzana, ou ela não passa de uma aventura? Isso só o tempo dirá. O detetive toma o maior susto ao ouvir sua assistente entrando sem bater.
- Pegue suas coisas, rápido.
- O que houve?
- Alan Silva está no terminal ferroviário e já fez nova vítima.
- Desgraçado, vamos lá.


14

     Na mão direita o canivete, na esquerda a arma e atrás dele um exército. Alan sabe que tudo está perdido, mas não será fácil pegá-lo. As pessoas que esperam a composição se espalham ao verem o tumulto formado, alguns pulam nos trilhos arriscando a vida. Mulheres guardam os filhos enquanto que os guardas tentam manter a ordem. O assassino corre em direção ao final da plataforma onde é possível ver algumas grades. Porém suas esperanças se vão quando ele bate de frente com viaturas do outro lado das grades. Antes de ser visto ele volta e se esconde entre um vão da escada e a lanchonete. Tremendo bastante ele confere a munição.
- Droga, preciso sair daqui.

     Souza e Márcia já estão no local. Alguns jornalistas também se aglomeram por ali. Patrulheiros da polícia fazem um cordão de isolamento. Ninguém sai ou entra. Souza se identifica.
- Luís Souza! - diz com o distintivo na mão. - estamos numa situação critica senhores, o meliante se encontra armado e cercado, todo cuidado ainda assim é muito pouco. Cerquem esse lugar, quero os seus melhores atiradores em posição.
- Sim senhor!
     Imediatamente homens de preto e com rifles ocupam os melhores lugares nos prédios vizinhos a estação. Até mesmo na rua um deles se encontra deitado com seu olhar fixo na lente do rifle aguardando ordens. Souza entra no terminal junto com outros agentes.
- Quero duplas, se espalhem, virem esse lugar de ponta cabeça, mais me tragam ele vivo.

     Não há com fugir e nem sair dessa com vida. Sua respiração começa a ficar descontrolada. Alan Silva pela primeira vez pensa em se entregar a acabar de vez com esse pesadelo. Não! Isso não acontecerá. Ele tem um nome e um status a zelar. Inimigo público. Se tiver que fazer desse lugar um inferno isso ele fará. Enquanto a plataforma e evacuada ele olha para dois polícias e sai do esconderijo atirando nas costas de ambos. Diante do som dos disparos outros tiras ficam em alerta. Alan se aproxima e rouba as armas.
- Essa foi fácil.

     Souza e seu parceiro descem as escadas em dois lances.
- Será que o pegaram?
O detetive não responde. Eles chegam a plataforma.
- O som veio de lá. - Souza aponta para as lanchonetes.
     De repente mais tiros obrigando os policiais a se jogarem no chão. Souza rola para junto da parede ainda segurando sua pistola. Alguém chama pelo rádio.
- Souza!
- Temos dois policiais caídos, não sabemos se estão mortos.
- O que? - pergunta o outro agente.

      Alan corre para mais perto da escada rolante. Permanece ali para respirar um pouco. Confere mais uma vez as armas dos vermes e volta a olhar para frente e para trás. Uma dupla vem descendo a rampa apontando as armas.
- Parado!
      Alan atira e os policiais também. Um dos disparos acerta a vidraçaria da loja de eletrônicos. Os estilhaços voam acertando o rosto de Alan. Os cortes são rasos, mas permitem que o assassino piore seu aspecto. Furioso ele atira mais uma vez.
- Souza, o pegamos, ele está perto da escada rolante de subida. - diz pelo rádio.
Tomado pelo ódio, Alan sai de onde está. Usando as armas que roubou ele atira acertando um policial bem na cabeça.
- Pega essa, seu otário. - grita a plenos pulmões.
Vendo seu parceiro agonizando no chão, o policial se abriga e mais uma vez ele fala pelo rádio.
- Ele matou o Jaime, eu consegui ver duas armas.
     Souza olha para seu parceiro e tem a terrível sensação de está sendo caçado. Isso é inadmissível. Apenas um sujeito contra um batalhão de homens preparados. O detetive olha para a parte de cima do terminal e vê dois PMs e assovia. Imediatamente eles descem. Um deles porta um fuzil.
- Me dê isso, agora.

     Clara está viajando e olhando a paisagem. Em cada rosto ela vê o de Luís. Ele conseguiu fisgá-la de modo que ela não consegue esquecê-lo. O ônibus segue para sua cidade natal quando seu coração arde de desejo em tê-lo ali juto a ela. Chorar é o que lhe resta. Algo que ela jamais imaginou, chorar de paixão feito uma adolescente.

15

      Os passos de Souza são rápidos e precisos. Em toda sua carreira como policial, ele segurou um fuzil apenas duas vezes. Hoje ele faz questão de ter um em suas mãos. Uma arma de guerra, uma arma que causa destruição quando o alvo é atingido. De onde ele está já é possível ver a escada rolante. No chão os pedaços de vidro. Seu olhar faz o exato caminho de Alan. Os telefones públicos. Se ele fosse o perseguido, com certeza, ele buscaria abrigo ali. Souza não está sozinho, há agentes lhe dando cobertura em pontos estratégicos. De repente um tiro que acerta a estrutura da cobertura da plataforma. Nem isso foi capaz de fazer Souza parar. Mais alguns passos e ele está perto dos aparelhos telefônicos. Uma rápida olhada no piso e é possível notar rastros de sangue fresco.
- O desgraçado se feriu. - sussurra para ele mesmo.
      Luís Souza avança quando outro disparo acerta em cheio o seu ombro direito. O susto foi tão grande que Souza não conseguiu conter o berro que deu. Mesmo sentindo uma dor lancinante ele se apoia no fuzil. Agora será difícil manter a posição. Chega dessa história, hora de contra atacar. Com o disparo Souza soube exatamente onde Alan está.
- Saia com as mãos para cima, você está cercado, Alan Silva.
    Mais dois disparos vindos de trás da banca de jornais. Souza foi abrigado a abrir fogo. Um longo silêncio se fez. Depois de um tempo Souza se vê prendendo a respiração. Mais uma vez ele tenta fazer contato.
- Não piore as coisas, Alan, não precisa terminar assim.
- Eu não vou voltar para aquele chiqueiro. - a voz sai abafada. - nunca. - atira.
    Luís dispara duas vezes na direção da voz e mais uma vez silêncio. Ele sabe que homens como Alan em situações extremas como esta estão dispostos a tudo, até morrer se for o caso. Alan não tem mais saída e ele sabe disso. Ele atacará mesmo sem arma. Usará as próprias mãos se preciso for. O jeito é sufocá-lo, fazê-lo sentir medo, pânico, pavor.
- Alan, você não vai conseguir sair daqui com vida, a menos que se entregue. Olhe ao seu redor, há dezenas de agentes te esperando lá fora, mesmo que me mate, eles irão te abater, tenha certeza disso.
       Outro silêncio incomodo. Na parte de cima do terminal Márcia e Ubiracir esperam o desenrolar da situação assim como a imprensa. Olhando daquele ponto pode se notar que o terminal se transformou num espetáculo a céu aberto. A polícia tenta a duras penas manter o local seguro, mas os curiosos querem as melhores posições para baterem fotos ou filmarem com seus aparelhos moveis. Um verdadeiro caos instaurado.
      O ferimento volta a doer forte. Souza já encontra dificuldade para segurar o fuzil. Seu corpo pede repouso. Ele se aperta entre os vãos dos telefones para tentar dar uma olhada na ferida. O detetive olha para cima e consegue ver um policial subindo a estrutura pesada da plataforma. Ele faz sinal de “ok” para o chefe e segue subindo. Seguro de que terá cobertura perfeita Souza resolve arriscar. O policial negro mesmo sentindo forte dor apoia o fuzil no ombro bom e anda.
     É tudo muito rápido, rápido demais para pensar em qualquer coisa. Como uma assombração Alan surpreende Souza saindo de um ângulo diferente o acertando com o canivete o braço do agente. Com o golpe Souza foi obrigado a soltar o fuzil. Ao tentar desferir outro golpe Alan rosna e não acerta.
- Morra desgraçado.
Transtorno, é só o que Souza consegue ver no rosto desfigurado do bandido. Alan desfere golpes sem direção certa e Souza apenas se defende buscando um lugar onde ele possa acertá-lo de uma vez por todas.
- Eu não vou voltar para aquele inferno. - vocifera.
    O canivete passa a centímetros do rosto do detetive. Alan parece se cansar das tentativas. Souza vê nisso uma oportunidade de contra atacá-lo. Eles se olhando por um instante e surpreendentemente Alan sorrir para ele num sinal de puro desespero, ou não. No alto da estrutura o policial chama pelo rádio.
- Não atirem, eles estão num confronto homem a homem.
     O secretário de segurança passa a mão na cabeça de poucos cabelos e olha para a assistente.
- Meu Deus. - ele diz.

     O sangue escorre formando pequenas poças no piso escuro da plataforma. Souza sente o corte arder feito brasa viva. A sua frente um Alan disposto a tudo. E a cobertura, por que não o abateu ainda? Mais uma tentativa frustrada de furar o agente que se esquiva perfeitamente do golpe. De modo assustador Alan vocifera e arregala os olhos avançando pra cima do agente com o canivete no alto da cabeça.
- Morra!
     Num gesto de puro ímpeto Souza consegue tirar o objeto cortante e acertá-lo no nariz. O soco faz o rosto de Alan explodir em sangue. O grito é agudo e ele perde um pouco o rumo. Antes que seu oponente possa se recompor, Souza o acerta, dessa vez na têmpora. Ele não cai. O canivete caiu nos trilhos e como um cão furioso ele corre para cima de Souza. Eles trocam violentos socos, chutes, cotoveladas. A briga vai pro chão. Alan se encontra por cima esbravejando palavras entrecortadas. Souza segura firme seus braços mesmo com dor. Certa hora do confronto Alan acerta um soco no ferimento da bala. Todo o corpo de Souza fica fraco. O bandido soca com vontade duas vezes o rosto de Souza.
- Vou te matar seu verme escroto. - cospe no rosto do policial uma boa quantidade de saliva misturada com o sangue do nariz.

16

     Não é hora e nem lugar para morrer. Luís Souza tem polícia na veia. Mesmo sentindo os ossos de seu rosto se partindo ele consegue enxergar um ponto vulnerável. Um ponto onde Alan não suportará de tanta dor. O nariz já quebrado. Souza espera que ele o acerte com mais um soco. O exato momento onde ele abaixa a guarda e pronto. Juntando todas as forças que lhe resta Luís mais uma vez arrebenta com o nariz do bandido que cai para o lado gritando e chorando segurando o rosto. O detetive se levanta e o chuta nas costelas.
- Você está preso, Alan Silva.
- Me mate, por favor, me mate, não quero voltar, não quero.
      Antes de algemá-lo Souza faz sinal de “ok” para o cobertura em cima da estrutura. Aos poucos a plataforma vai sendo invadida por agentes. Sentado no chão perto do bandido Luís aguarda a chegada da ambulância. Márcia e Ubiracir ao verem o estado do amigo se desesperam.
- Ai meu Deus, Souza você está bem? - Márcia se ajoelha ao lado do chefe.
- Vou sobreviver. - diz com voz sumida.

      O cemitério está lotado mesmo com o tempo ameaçando chover. A família Duarte é sepultada. Emoção e tristeza dão as ordens naquele lugar. Souza preferiu ficar distante. Com o rosto ainda inchado e o braço na tipoia ele olha os caixões sendo baixados a sepultura. O agente engole seco e não evita que as lágrimas desçam. Márcia e Ubiracir vem a seu encontro e ele não os enxerga.
- Fez um bom trabalho Souza. - o secretário bate levemente no ombro bom.
- Até quando assistiremos colegas nossos serem sepultados?
Márcia tira os óculos escuros e olha para o chefe.
- Também sinto muito, as vezes me pego perguntando, será que vale mesmo a pena viver essa vida? - Ubiracir olha para Souza que não tira os olhos das três sepulturas.
- Ubiracir, temos que continuar, por Duarte e por tantos outros que morreram defendendo a população, eles sim são os verdadeiros heróis.
Márcia deixa cair as lágrimas, finalmente.

     Com o paletó jogado no ombro Souza caminha até a entrada do prédio. Ele sente algo estranho no ar. Olha para a rua e nada vê. Volta a olhar para a entrada e saca sua arma.
- Mais que merda. - balbucia.
     A porta do prédio vai abrindo devagar e seu coração salta do peito. Souza dá um passo para trás quando Clara aparece de braços abertos para ele.
- O que foi, vai me prender?
     Ele guarda a arma no coldre e corre para ela. O beijo é longo, repleto de sentimentos. Souza sente o corpo da mulher junto ao seu acendendo o desejo. Eles param de se beijar.
- O que houve com você? - indaga Clara segurando a cabeça do detetive.
- É uma longa história, depois te conto, agora vem cá. - a beija novamente.
       Márcia passa com seu carro ainda em tempo de ver os pombinhos se beijando com a chuva começando a cair. O ciúme vem na frente, mas logo ele é dissipado. Ela gosta tanto dele que prefere vê-lo feliz. Se Souza está bem ela também está feliz. Vida que segue. FIM