segunda-feira, 5 de fevereiro de 2024

Feriado Prolongado

 


DEPOIS DO FERIADO

 

Foi um feriado prolongado com bastante nuvens e poucas rajadas de vento. O clima abafado favoreceu a alguns e prejudicou a muitos que não puderam aproveitar os três dias de folga. No grupo dos que não conseguiram desfrutar do feriadão se encontra Luís Souza e Márcia Bernardo que tiveram que cumprir mandatos e efetuar prisões importantes, além é claro dos intermináveis plantões no departamento. Souza estava louco para que chegasse logo o domingo para então correr para casa e poder dormir suas tão sonhadas trinta e seis horas. Mas isso não aconteceu. É o preço que se paga por ser o melhor investigador da cidade. Quando o relógio marcou 17:40h, Luís foi solicitado para assumir um caso de roubo seguido de morte na autoestrada no sentido cidade. Adeus trinta e seis horas de sono, foi o que Souza pensou se levantando de sua cadeira gesticulando para Márcia.

— Quer dar uma volta? – falou bocejando.

— Oh se quero. – respondeu já pegando o blazer no encosto da cadeira.

Por estar com menos sono que Luís, Márcia se ofereceu para dirigir a viatura. Para ela é sempre um prazer poder conduzir seu líder até às ocorrências. Do departamento até o local do crime Souza pouco falou, ao contrário de sua parceira que palpitou sobre assuntos internos do DP até a chegada na autoestrada.

— Chegamos. – disse ela. – o trânsito está complicado, mas podemos ir andando, o que você acha?

— Legal. – abriu a porta. – hora de gastar as solas dos sapatos.

Ao redor do carro já havia a presença de dois policiais fardados tentando as duras penas manter os curiosos afastados. Souza se aproximou erguendo seu distintivo e abrindo caminho na pequena multidão. Ao verem a dupla de investigadores os PMs puderam respirar aliviados.

— O que temos aqui, policial? – perguntou Souza se inclinado para olhar o interior do veículo.

— A moça chama-se Milena Chagas e o rapaz, Fernando Paiva, ambos mortos por arma de fogo, ela na cabeça e ele no peito como podem ver.

— Sabe o grau de parentesco? – perguntou Márcia fazendo suas anotações.

— Bom, a princípio é um casal de namorados que curtiram o feriadão no litoral e infelizmente encontraram a morte. – disse o outro PM. – os bandidos ou o bandido, limpou tudo, pegaram até a grana da carteira dela.

Luís Souza se ergueu e colocou às mãos na cintura. O carro não é do ano, mas não é um veículo velho, dois anos no máximo. O investigador caminhou até a janela do carona e olhou para o cadáver da mulher. Bonita, morena clara, corpo esbelto e bronzeado, cabelos negros cortados recentemente na altura dos ombros.

— Ela não tem nem trinta anos. – sussurrou o detetive.

— Vinte e seis. – completou o PM.

Souza também deu uma longa olhada no homem. Branco, barba por fazer, corpo bem trabalhado devido as horas de academia. Um sujeito que não passa despercebido. Uma pena. Luís mais uma vez lamentou que pessoas de bem paguem pela falta de segurança e ele não consegue se isentar disso. Mesmo de longe Márcia consegue perceber a irritação do chefe, isso porque sempre que está com raiva ele aperta os dentes e suas têmporas se tornam salientes.

— Mais alguma coisa, Luís? – ela perguntou.

— Não! É só isso. – Souza se afastou da porta do carona ainda de olho no corpo de Fernando. – não. Me arrumem um par de luvas, rápido.

Um dos PMs correu até a viatura e trouxe o par de luvas de procedimento e as entregou a Souza. Sem dificuldade alguma o policial negro as calçou e esticou o braço direito até o bolso da bermuda jeans do morto e de lá retirou uma aliança e a mostrou para Márcia.

— Eles eram amantes.

*

 

Notificar um familiar sobre o falecimento de um ente nunca foi e nunca será uma tarefa fácil. Isso porque não há um jeito menos complicado de se cumprir tal missão. No caso de Souza, ele segue para a casa do falecido com duas complicadíssimas tarefas. A pobre mulher saberá de uma só vez que; enviuvou e que o falecido a traiu. Agora, ocupando o banco do carona, Márcia tenta se colocar no lugar da coitada.

— Tem certeza? – perguntou ela.

— Absoluta. Eu tive um parceiro no início da carreira que traia a esposa e sempre que estava com a amante ele guardava a aliança no bolso ou na carteira. – explicou girando o volante para a esquerda.

— Que sacanagem. – meneou a cabeça olhando para fora. – acho que chegamos.

Rua vazia. Tranquila até demais e arborizada em toda sua extensão. Sem falar das casas. A classe média é predominante naquele bairro. Márcia se antecipou ao detetive tocando o interfone. Um minuto depois a voz metalizada de uma mulher soou timidamente.

Oi, quem deseja?

— É a polícia. – disse Márcia olhando para Souza. – gostaríamos de falar com a esposa do senhor Fernando Paiva.

Polícia? Aconteceu alguma coisa?

— Podemos conversar? – insistiu Márcia.

A resposta demorou um pouco para vir, porém ela veio ao som do portão destravando. Dessa vez a investigadora gordinha permitiu que seu parceiro entrasse na frente e ele não lhe agradeceu por isso. Parada na varanda usando um conjunto de moletom rosa bebê, Sofia Paiva acompanhou a entrada dos agentes. Luís Souza fez bastante força para não se impressionar com a beleza da mulher. Sofia, assim como seu finado marido não passa despercebida. Branca, cabelos cortados bem curtos e um nariz fino e arrebitado. Um espetáculo a céu aberto.

— Em que posso ser útil? – cruzou os braços.

— Sou Luís Souza e essa é minha parceira Márcia Bernardo, somos do departamento de polícia e... – engoliu seco. – Infelizmente não temos boas notícias, senhora...

— Sofia, Sofia Paiva.

— Dona Sofia, seu marido foi morto num assalto na autoestrada. Lamentamos muito.

Em choque. Foi assim que a mulher ficou durante o tempo em que esteve parada na varanda olhando para os investigadores. Márcia deu alguns passos em sua direção.

— Podemos conversar lá dentro? – perguntou a detetive.

— Sim, vamos.

Entre longas pausas devido as ondas de choro e de soluços, a dupla de agentes obtiveram informações sobre o finado marido de Sofia. Fernando Paiva era fotógrafo e recebeu uma boa proposta de trabalho no litoral durante o feriadão. Enquanto ouvia atentamente aos relatos da mulher, Luís Souza tentava encontrar o porquê de uma traição já que Sofia, em comparação com a outra, ganha de dez a zero.

— Por que a senhora não foi com o seu esposo, afinal era feriado? – questionou Márcia.

— Fernando não deixou, aliás, ele nunca deixava eu participar dos seus trabalhos, não importasse onde e quando. – voltou a chorar.

Souza se levantou da cadeira e se juntou a viúva ao lado de Márcia no sofá.

— Dona, Sofia, infelizmente temos outra má notícia. O seu marido estava com outra pessoa no carro, uma mulher, e, suspeitamos que ela seja a amante dele.

Sofia deixou o queixo cair e em seguida ela esfregou as têmporas e se encostou em Márcia.

— Meu Deus. Não me sinto bem.

— Vou buscar água. – se ofereceu Souza.

Quando Souza voltou da cozinha segurando o copo pela metade de água, Sofia ainda chorava abraçada a Márcia. Luís pode refletir o quanto o universo feminino é extremamente diferente do masculino. Márcia é uma agente da polícia, uma pessoa altamente capaz e preparada para esse tipo de situação, mas que a cima de tudo ainda é uma mulher. Uma mulher conhece outra mulher. Não querendo interromper aquele momento, mas também querendo dar sequência ao trabalho, Souza deixou o copo sobre a mesa de centro e pigarreou.

— Dona Sofia, sentimos pela sua perda e também...

— Eu, realmente não entendo, por que Fernando fez isso comigo. – falou olhando para Márcia.

— O detetive Luís Souza e eu iremos trabalhar duro para prender o assassino, quanto a isso a senhora pode ficar tranquila.

— Tudo bem. – limpou as lágrimas. – quero ficar por dentro da investigação, tem algum número que eu possa ligar?

Souza pegou seu cartão do bolso da calça e o entregou a viúva.

— Pode ligar a qualquer hora, a senhora falará diretamente comigo.

— Obrigado por terem vindo. – prendeu o choro.

Deixar a casa dos Paiva foi complicado, pelo menos para Márcia. Durante a volta para o departamento ela ficou a pensar nas infinitas coisas que Sofia deve estar imaginando sozinha dentro daquela casa. Traída e viúva, é motivo para uma comemoração pelo falecimento do desgraçado que a trocou por outra ou decretar luto oficial? Sei lá, pensou ela. De todo jeito, o negócio é encontrar o assassino e levá-lo a julgamento e possivelmente trinta anos de prisão sem direito a redução de pena.

— Tente não se envolver muito. – disse Souza percebendo seu abatimento.

— Por favor, me dê a receita.

— Nosso trabalho não é fácil, você sabe disso. Quem sou eu para impedir que você crie sentimentos, mas, para o seu próprio bem, afaste-se deles. Somos agentes da lei, nossa missão é pegar o cara e eu não conseguirei fazer isso sozinho. – estendeu o braço e abriu a mão.

É. Ele tem razão, pensou ela. Márcia precisa se concentrar e ajudá-lo a prender o assassino. Em todos esses anos atuando ao lado de Souza, agora ela entende o porquê dele ser o melhor policial de Norma. Considerado o xerife da cidade. Ela é responsável por isso. Se Luís Souza é Luís Souza é porque Márcia Bernardo existe. A detetive retribuiu o gesto o cumprimentando.

— Vamos nessa parceiro.

 

*

 

Souza chegou em sua sala cansado, sua mente não parava de girar. Na verdade ele se deixou levar pela beleza exótica de Sofia. Como pode? Apesar de Milena Chagas ser jovem, gostosa pra burro, Sofia Paiva transpira sensualidade. O que houve de errado nesse relacionamento? Souza ligou sua cafeteira e colocou o pó no compartimento ainda tentando fazer com que as peças se encaixasse. De repente Suzana, sua ex esposa veio forte em sua mente. Para que seu casamento com ela chegasse ao fim não precisou uma traição. O sexo era cem por cento ativo entre eles. O que houve de fato foi a impaciência e a falta de diálogo entre as partes.

O café ficou pronto, bem forte como prefere o detetive. Ele ocupava sua cadeira quando Márcia entrou com novas informações. Era visível o cansaço também no olhar dela.

— Márcia, tome um café, te fará bem.

— Legal, preciso mesmo ficar ligada. O legista já concluiu o exame, dê uma olhada.

Mesmo com a visão embaçada por causa do sono, Souza conseguiu analisar o resultado do exame dos corpos e mais uma vez lamentou o fato das duas vítimas terem tido um final tão violento. Jovens, bonitos, não importa o que fizeram ou o que deixaram de fazer, ele não está ali para julgar ninguém. Tudo o que Luís Souza quer como policial é dar segurança a população. Nos exames também estão as imagens dos corpos dentro do carro.

— Um roubo seguido de morte. – murmurou Souza passando às fotos. – na certa o assaltante armou uma emboscada.

— Ou simplesmente ele agiu como fazem nas ruas, abordando, forçando o motorista parar.

— Certo. – juntou às folhas do exame. – vou pedir que reforcem o patrulhamento naquela área. Faremos um levantamento, quero saber desde o início do ano até agora o número de assaltos naquela altura da via.

— Tudo bem.

 

*

 

Souza apenas se lembra de ter chegado em casa, trancado a porta. Arrancado a roupa, tomado um banho rápido e se atirado na cama e pronto. Não foi um sono, foi um coma. Foram às vinte quatro horas mais pesadas já vividas pelo policial. Mais uma vez Suzana se fez presente em seus sonhos – ele sempre sonha com ela. Luís não tem problema algum em admitir que ainda ama sua ex mulher e que ainda acredita que um dia eles reatarão o relacionamento e viverão felizes. Os três. Suzana, Jeferson e ele. Parece novela, mas um pouco de fantasia não faz mal a ninguém. Dura é a realidade que o maltrata desde quando ela pediu o divórcio.

No sonho Suzana o convidava para passear de mãos dadas, pés descalços sentindo o frescor das águas do mar na primavera. Ele lhe contava histórias engraçadas a fazendo chorar de tanto rir. A praia estava deserta. Eles pararam num certo ponto e se beijaram. Souza pode sentir depois de longos anos o sabor do beijo de sua amada. Quando abriu os olhos a vida real lhe aplicou mais uma peça. Feito um adolescente espumando hormônios, Luís Souza estava agarrado ao travesseiro o beijando.

— Mais que droga.

O detetive pegou o celular em cima do criado mudo. Oito e quinze de uma manhã sem nuvens. Bocejando ele partiu para o banho. A água fria batia em seu rosto simpático o fazendo acordar de fato e por causa disso a investigação veio a tona em seus pensamentos matutinos. Encontrar um ladrão que atua nos grandes centros já é complicado, agora imagine tentar encontrar um que cometeu tal delito numa estrada, possivelmente sem a presença de câmeras? Agulha no palheiro? Sim! Dois dias de folga, mas Souza tem certeza de que não conseguirá relaxar. Não tem jeito. Quem nasceu para ser polícia não consegue deixar crime nenhum sair barato. Para Luís Souza, ser um agente da lei é uma vocação, um sacerdócio. Por isso ele decidiu tomar seu café rápido e partir para o ponto de partida. O local do crime.

 

*

 

Voltou a fazer calor. Souza não gosta muito, mas, fazer o que contra às leis da natureza? Ao sair do veículo climatizado e ser recepcionado pelo bafo quente ele lamentou por não estar usando uma roupa mais fresca. Para proteger sua calvície não muito grave do sol, o policial colocou um boné preto de aba curvada e passou a olhar o vai e vem dos carros e também observou o intervalo entre eles. Volta de um feriadão. Cinco e pouca da tarde. O trânsito deveria estar uma loucura. Será que ninguém viu alguém se aproximar do carro de Fernando com uma arma e atirar? Outra coisa se passou pela cabeça do detetive. Do jeito que os corpos estavam, a chance de algumas das vítimas ter reagido é zero. Ato covarde mesmo. Pelo visto não há muito o que fazer. Assalto seguido de morte, essa é a definição do caso.

Souza entrou em seu veículo e depois de esmurrar o volante ele ligou para sua assistente que demorou a atender.

Souza, o que houve? Eu estava no banho.

— Eu resolvi voltar a cena do crime...

Meu Deus, Luís, é sua folga, descanse.

— Só me ouça. Veja bem, passei algum tempo aqui e ainda não vi sequer uma viatura passando. Acho que eu fui bem claro quando falei que gostaria de ver essa área bem patrulhada.

Pois é, eu enviei sua solicitação e eles disseram que estariam deslocando o pessoal.

— Envie outra vez. Se queremos a cidade protegida precisamos ser incisivos.

O que vai fazer agora?

— Mais tarde farei uma nova visita a Sofia. Alguém deve avisá-la de que o marido dela foi morto num assalto e que a possibilidade de pegarmos os culpados é quase zero.

Do outro lado da linha, envolvida por uma toalha branca com detalhes em rosa, Márcia não deixou de perceber a decepção de Souza e também sua indignação. É muito complicado – pelo menos para ele, não conseguir solucionar um caso, que aparentemente é fácil. Nessa história todos saem perdendo, principalmente pessoas como Sofia Paiva que perdeu o marido e também os pais de Milena Chagas que perderam a filha ainda muito nova. Márcia deixou o celular carregando e correu até o quarto. Souza precisa de sua ajuda. Folga é para os fracos.

 

*

Não foi preciso ensaiar discurso, Luís Souza tocou o interfone da casa dos Paiva sabendo exatamente o que dizer. Enquanto aguardava, depois do terceiro toque e quase convencido de que não havia ninguém em casa, Souza pensou em Suzana e Jeferson. O que estariam fazendo agora? Hoje é seu dia de folga. Provavelmente Suzana iria lhe propor um almoço num restaurante a beira mar, ou talvez deixaria Jeferson sair com os amigos e assim ficariam os dois a sós na cama o dia inteiro. Que falta faz uma família. A voz metalizada de Sofia tirou o policial de seu devaneio.

Quem é?

— Sou o policial Luís Souza, podemos conversar?

Só um minuto, vou abrir.

Foram mais do que um minuto, mas Souza não se importou com isso, afinal, ainda era manhã e Sofia não esperava por visita. O portão destravou e a viúva de Fernando o aguardava em pé, escorada na pilastra da varanda. Que mulher linda, pensou o detetive.

— Bom dia. – disse Souza travando o portão.

— Bom dia, detetive, alguma novidade?

— De uma certa forma, sim. – engoliu seco.

— Ótimo. Entre, vou passar um café.

Sofia Paiva estava sensacional. Cabelos molhados, bermuda jeans justa e uma blusa branca quase translúcida mostrando sua lingerie por baixo. A casa estava impecável, Sofia o conduziu até a cozinha.

— Sente-se, policial.

— Obrigado!

Quando ela deu às costas, Luís não conseguiu evitar que seus olhos contemplassem a protuberância das nádegas da mulher. Fernando era realmente um sujeito esquisito. Ele tinha uma mulher gostosa dentro de casa, por que uma outra afinal? Esse é o problema de todo o ser humano, nunca está satisfeito com nada, está sempre querendo mais e mais. Não importa se irá trocar seis por meia dúzia, tudo o que ele quer é conquistar. O cheiro do café sendo passado logo tomou conta da cozinha e o detetive ficou animado. Sofia terminou de passar o café para o bule de louça, pegou às xícaras dentro do armário e muito enrolada ela solicitou a ajuda do agente que prontamente a auxiliou levando-as para a mesa da copa.

— Me perdoe se o café ficou fraco, nunca aprendi fazer isso direito. Era uma das reclamações de Fernando. – ficou cabisbaixa.

— Que nada. Está ótimo.

— O senhor disse que tinha uma novidade.

— Ah, sim. – colocou a xícara no pirex. – veja bem, dona Sofia, a polícia está trabalhando nesse caso vinte quatro horas, mas está difícil. Cheguei a triste conclusão de que seu marido e...

Nossa! Esse ponto da conversa é bastante delicado. Sofia abreviou o desconforto do detetive.

— A amante dele.

— Sim, a Milena Chagas. Foram mortos num assalto. Mandei intensificar o patrulhamento naquela região e até agora, nada.

Silêncio. Nada pior que um silêncio incômodo. Ele chega a ser tangível.

— Ele prometeu que bateria umas fotos minhas para um book. – chorou. – ele me ligou falando isso.

— Sinto muito. – Souza queria poder abraça-la.

— Por que ele fez isso comigo? Por que me sacanear? Ele tinha uma mulher de verdade dentro de casa.

E tinha mesmo, pensou Souza.

— Vou continuar com as investigações, pelo menos tentar recuperar o que foi roubado, celulares, a câmera...

— Pois é, aquela câmera foi muito cara, Fernando passou meses economizando. Se o senhor puder recuperá-la, vou lhe agradecer.

Luís dava mais uma golada no café quando olhou para os porta-retratos em cima do raque na sala. Mesmo de longe o policial pode ver que nem sempre Sofia teve os cabelos tão curtos. A mudança no visual obrigou o detetive a tecer um comentário.

— O cabelo curto é devido ao forte calor que vem fazendo?

— O que? – levantou as sobrancelhas.

— Me desculpa, eu não pude deixar de notar nas fotos ali. – apontou para a sala. – seus cabelos passavam dos ombros e agora...

— Ah, sim, cortei Joãozinho mesmo, sou calorenta demais, não gosto de sentir os cabelos grudados no pescoço.

— Seu marido gostou?

Sofia deu de ombros.

Para disfarçar, Souza conferiu o horário em seu relógio. Engoliu o restante do café e se despediu, mesmo querendo permanecer mais um pouco perto da beldade. Ele saiu da casa de Sofia e ao entrar no carro o celular vibrou. Márcia.

Luís, dê uma olhada nesse vídeo.

Souza tocou na tela e o vídeo de doze segundos teve início. Nele, o policial pode ver um sujeito mediano usando boné e roupas um pouco maiores atravessando a pista supostamente segurando uma arma. O vídeo termina quando o tal andarilho chega do outro lado da estrada sentido Norma. Souza retornou a ligação.

— Onde conseguiu esse vídeo?

Perto de onde aconteceu o crime existe uma propriedade privada. O dono, cansado de ter seu terreno invadido por moleques para roubar frutas, instalou ele mesmo uma câmera e aí...

— Acho que temos o nosso ladrão e assassino. Fez um bom trabalho. Lhe agradeço por ser tão eficiente.

Que nada. Só me pague um almoço depois.

— Confirmado.

 

*

 

Souza deu graças a Deus pelo fato do dia ter amanhecido nublado e a previsão do tempo ter dado alerta de chuva de moderada a fraca ao longo do dia. Isso porque o sepultamento de Fernando estava marcado para as 13 horas e sinceramente ele não estava nem um pouco afim de se enfiar dentro de um terno sob um sol escaldante. O combinado foi que ele acompanhasse os Paiva e Márcia os Chagas. O detetive chegou ao cemitério vinte minutos antes, tempo o suficiente para presenciar dor e revolta dos familiares. Lógico que ele se importou, mas no fundo ele queria saber como estava Sofia Paiva a minutos de sepultar seu amado. Ele passou abrindo caminho entre outras pessoas paradas enfrente as capelas lotadas até a que trás no quadro na entrada o nome do finado.

— Licença. – falou buscando Sofia com os olhos.

Lá estava ela. Sentada, sendo amparada por duas mulheres cujo uma delas Souza julgou ser sua irmã devido algumas semelhanças.

— Você precisa ser forte. – disse a outra.

Sofia chorava de forma contida segurando um lenço e uma garrafa de água mineral pela metade. Não, ela não usava preto, mas sim algo mais confortável. Calça jeans e camiseta e como é de praxe, óculos escuros. Luís Souza ficou parado na frente da capela e se sentiu ridículo por estar usando terno, as pessoas poderiam facilmente confundi-lo com um pastor. Mas que se dane. Tudo o que ele mais quer é prestar suas condolências e dar o fora dali o mais rápido possível. Respirando fundo ele deu seu primeiro passo para dentro da capela em direção a Sofia.

— Oi!

— Detetive Souza, que bom que veio. – o abraçou.

Mesmo chorosa Sofia se mantém linda e perfumada também. Depois do abraço ela o conduziu aos seus parentes. Se Souza fosse branco seu rosto estaria ruborizado. A viúva o apresentou como sendo o agente que vai colocar o culpado pela dor que estão sentindo na cadeia. O suor escorria das costas até entre suas nádegas de vergonha. De uma certa forma, Sofia está certa, Souza tem se esforçado bastante. Assim que terminou de cumprimentar os familiares, o agente se lembrou que deveria ligar para Márcia que acompanha o sepultamento de Milena, porém a viúva de Fernando não desgrudou dele um segundo sequer. Nem mesmo na hora do cortejo Souza pode deixar de sentir o cheiro adocicado do perfume dela.

Quando a urna foi depositada dentro da gaveta a comoção foi geral. A mãe do falecido foi levada carregada do local. Os aplausos também se fizeram presentes. Todos prestaram sua última homenagem ao fotógrafo, menos Sofia que limitou-se em somente lançar uma rosa dentro da gaveta e se distanciar. Ela tem seus motivos, pensou Souza. Na saída do cemitério tudo foi mais tranquilo. O detetive conseguiu telefonar para suas assistente encostado num pé de goiabada.

— Como foram às coisas por aí?

Tristeza. É só o que consigo dizer. E aí?

— Vamos dizer que a mesma coisa. Estou saindo agora daqui. Vou dar uma chegada em casa e depois partir para o departamento. A gente se vê lá então.

Quando estava deixando o local, mais uma vez Sofia o surpreendeu, quase o levando ao constrangimento.

— Detetive Souza, obrigado por ter vindo. Vejo que há senso de humanidade em você. Fernando não agiu certo comigo, mas, morrer daquele jeito é algo que não desejo a ninguém.

— Verdade! – engoliu. – se precisar de mim é só me ligar.

— É bem provável que eu vá ficar sozinha essa noite, então...

Souza prendeu a respiração.

— Bem, eu estava pensando se você não se importaria de jantar lá em casa.

Como assim? Você acabou de sepultar seu marido. A cabeça de Luís deu um giro de 360° e parou bem na frente de Sofia que tinha nos olhos o brilho de quem aguarda uma resposta positiva. Souza não pode negar.

— Ah, sim, claro, qual o horário?

— Às 20h. Farei uma receita de família. Você vai gostar.

Daquele momento em diante Souza não teve cabeça para mais nada, a não ser nesse tal jantar com a viúva. Ele já se envolveu demais, isso é perigoso e ele sabe muito bem disso. Sofia está carente, precisando de um abraço, um colo ou talvez os dois juntos. Luís Souza não quer se ver de repente se aproveitando desse momento de total fragilidade de Sofia, mas por outro lado ele também não pode desperdiçar as chances que a vida lhe dá.

Ele saiu do cemitério dividido em pensamentos. O primeiro é o fato dele ainda não conseguir, pelo menos por enquanto, prender o assassino do casal. O caso é complexo. Encontrar um meliante que atua nas estradas eventualmente, é como tentar acertar todos os números da loteria. Difícil. O melhor a ser feito nesses casos é mapear toda a extensão da via e colocar às viaturas nos pontos estratégicos. O segundo pensamento, não poderia ser outro. Sofia.

 

*

 

Às 16h Souza, Márcia e outros policiais estavam reunidos dentro da sala do detetive, circulando pontos num mapa aberto sobre a mesa. Era Souza quem fazia as marcações e falava como proceder.

— Temos que aceitar o fato de que falhamos ao deixarmos essa importante via de Norma sem proteção. A partir de hoje isso vai mudar. Quero quatro viaturas patrulhando, duas subindo e duas descendo.

— Luís. – pediu a palavra um dos agentes. – segundo o secretário, não há pessoal o suficiente para deslocar para essa região.

— Moura, desde quando você está na polícia? – Souza cruzou os braços.

— Caminhando para dez anos.

— E há dez você escuta isso, certo?

O homem assentiu.

— Cara, Norma é a nossa casa, ela precisa ser protegida. Chega desses discursos prontos, a nossa cidade não precisa disso. Ela precisa de você, dele, dela, de nós.

Todos concordaram com gestos de cabeça.

— Valeu! Vamos seguir com o plano. – pegou o piloto vermelho.

Souza precisou bater de frente com o sistema para fazer o trabalho que eles próprios deveriam dar apoio. E não era muita coisa, Luís apenas queria mais segurança ao cidadão que transita por aquela estrada todo santo dia. Depois da reunião que terminou perto das vinte horas, Márcia ainda o alugou para falar sobre o sepultamento de Milena Chagas e também sobre o que a família da vítima pretende fazer no próximo final de semana.

— Passeata? – Souza cruzou os braços.

— Sim, na realidade será um protesto. Será no mesmo lugar onde os corpos foram encontrados. Vamos nos preparar, a imprensa vai cair matando.

— Eles estão no direito deles, o nosso dever é fazer com que seja um movimento pacífico e só. Vou seguir na caça ao elemento da foto. Boa noite.

— Vai direto pra casa ou vai passar em outro lugar antes?

A pergunta deixou o detetive desconsertado, na mesma hora a boca de Luís ficou seca.

— Não sei ainda. No caminho eu vejo.

Márcia nunca entenderia o fato de Souza ter aceitado jantar com a viúva de uma vítima aonde ele trabalha para solucionar o caso. Certas coisas não precisam serem ditas e também, mais cedo ou mais tarde ela vai acabar descobrindo mesmo. Márcia Bernardo é muito esperta. Luís Souza deixou o departamento às pressas e antes de dar a partida em seu veículo, algo lhe ocorreu – não posso chegar lá de mãos vazias.

Quando estacionou o carro em frente a casa de Sofia, Souza estava se sentindo um adolescente. O coração palpitava e ele não entendia o porquê – calma, Luís, é apenas um jantar, nada mais que isso. Por um instante o policial hesitou em tocar o interfone, seria o certo a se fazer? Na verdade Souza teme por estar se deixando levar por uma paixão que ele sabe muito bem que é sem futuro. Ainda remoendo tal sentimento, ele pressionou o botão, que mal há em um simples jantar? Sofia Paiva não respondeu, aliás, o portão destravando respondeu por ela. Luís Souza entrou sem pressa.

— Boa noite, detetive Souza.

Sofia já era bonita, mas essa noite ela está radiante, toda a concentração do policial caiu por terra ao presenciar aquela mulher dentro de um vestido branco e curto, cabelos lavados cheirando a creme de pentear. Linda demais.

— Boa noite. – respondeu atropelando as palavras.

— Vamos entrando.

Às costas dela estava a mostra, ainda úmida do banho. Isso deixou Souza ainda mais excitado. Dentro da casa o perfume de Sofia se misturou ao da comida que diga-se de passagem estava muito bom. Ela o conduziu até a sala onde havia sobre a mesa de centro uma garrafa de vinho e duas taças.

— Que tal uma bebida para abrir o apetite? – sugeriu.

— Acho ótimo.

A conversa foi boa. Sofia fez diversas perguntas e Souza as respondeu sem reclamar ou parecer que estava desconfortável. Ela também se abriu. O papo variava. Uma hora era Fernando e Milena e outra hora ela própria. Aqueles momentos foram tão intensos que o detetive se esqueceu do fato dela ter sepultado o marido a horas atrás, que estranho! Mais estranho ainda foi quando Souza fez a seguinte pergunta.

— Você ainda o amava?

A reação dela foi se levantar, puxar o vestido e dizer.

— Vou ver se o frango já está pronto.

Que mancada, Souza!

Sim, o assado estava pronto. Na copa o bate papo continuou, mas Luís evitou tocar no assunto sobre o que ela sentia por Fernando, estava na cara que ela o amava e não esperava ser traída. Souza comeu e não comeu pouco. Entre uma garfada e outra uma ligeira troca de olhares, mais que droga, será mesmo que eu estou me apaixonando por ela? O jantar acabou e Sofia serviu a sobremesa, bolo de chocolate com sorvete de baunilha. Um docinho é sempre bom para tirar o sal da boca. Souza iniciou um novo assunto sobre as demandas de um departamento policial.

— Nossa! Deve ser uma loucura mesmo.

— Sim! Sufocante às vezes.

— Ainda mais pra você, Souza. Eu já o tinha visto nas páginas polícias dos jornais e até mesmo na TV. Como é ser o melhor agente de Norma? – sorriu.

— Me orgulho disso, mas não é nada fácil. Às pessoas acham que eu sou infalível e isso sim eu acho perigoso. Ninguém é cem por cento. Esse mesmo povo que grita Luís Souza o melhor, será o mesmo povo que me crucificará quando eu vir a falhar. Entende?

— Entendo.

— A voz do povo nunca foi a voz de Deus.

Eles voltaram para a sala, o vinho os esperava lá e Souza achando cada vez mais estranho o jeito de Sofia lidar com o luto. Também pudera, o falecido brincou com os sentimentos dela, talvez seja um jeito de extravasar, exorcizar os demônios que rondam uma traição. Souza também relaxou e entrou de vez naquela dança, deixa de ser tolo, você não está se aproveitando da situação.

 

*

 

Souza abriu os olhos e eles parecem pesar uma tonelada cada um. Aos poucos a mente vai processando tudo o que se encontra ao se redor. Ele não está em sua casa, esse não é o seu quarto, essas não são suas coisas. Afinal, onde estou? Bem devagar ele foi girando o pescoço para sua esquerda onde há alguém dormindo profundamente. Putz! Foi a única coisa que saiu de sua boca.

Sim, era ela mesma. Sofia Paiva, envolvida em Lençóis com seios amostra. Luís Souza ergueu o tronco vendo tudo aquilo acontecer em câmera lenta. Ele afastou os seus lençóis e para a sua surpresa ele também estava nu.

— Eu não acredito. – sussurrou.

Ao lado, colocados de qualquer maneira em cima de uma cadeira estavam seus pertences como celular, distintivo, relógio e arma. Atordoado ele conferiu as horas. A madrugada estava perto de acabar e ele precisava colocar seus pensamentos em ordem. Mas de uma coisa ele tinha plena certeza; Sofia e ele transaram. Então qual o espanto, não era isso que ele tanto queria? Sem fazer barulho ele se levantou. Vestiu a cueca e depois a calça. Foi até o banheiro, talvez a água fria o faça despertar. Antes de molhar o rosto o policial parou diante do espelho e sua mente entrou em funcionamento, bebemos além da conta, ela se insinuou para mim e deu no que deu. Não há inocente nessa história. Sim, a água fez o efeito esperado. Souza deixou o banheiro e antes de ir até a cozinha ele parou na porta do quarto e ficou hipnotizado ao ver Sofia dormindo, ela é realmente tudo aquilo que eu achava. Chega de variar, detetive, você precisa ir embora dessa casa imediatamente, pensou indo em direção a copa.

A casa dos Paiva é grande com corredores de largura padrão ornamentado por quadros de figuras abstratas. Há quartos sobrando também, talvez Fernando e Sofia haviam planejado terem mais de um filho. Todos os dois quartos estavam trancados, exceto um no final do corredor. A porta entreaberta e lá dentro a luz fraca do amanhecer se esforçando para iluminar alguns objetos. Luís Souza parou. Olhou para dentro do cômodo, o que ela guarda aqui? Antes de entrar ele olhou para a outra extremidade do corredor, vamos nessa. Livros, malas, artesanatos, um cabideiro com meia dúzia de roupas penduradas junto com uma máquina fotográfica e no chão um boné e roupas masculinas, possivelmente de Fernando. Souza saiu daquele quarto bagunçado e empoeirado com uma certa pressa. Seu coração ardia como chama viva. Sofia havia mudado de posição, agora não só os seios estavam a mostra como também a perna direita, uma delícia de mulher. O agente se vestiu. Pegou o celular e ligou para Márcia que demorou para atender.

Souza? São quase seis da manhã, o que houve?

— Me desculpa te acordar tão cedo. Venha para a casa dos Paiva.

O que? Casa dos Paiva, o que você está fazendo aí a essa hora?

— Márcia, por favor, é uma história longa, venha logo e ligue para o departamento, peça uma viatura.

Depois de colocar sua camisa polo cinza e a colocá-la por dentro da calça, Souza se sentou na beirada da cama e tocou em Sofia algumas vezes até ela despertar. Ao abrir os olhos e contemplar Luís ela sorriu. Por distração ou por força do hábito ela o chamou de amor. Souza sentiu como se cravassem uma faca em seu peito.

— Algum problema, por que está vestido?

Luís não estava conseguindo falar.

— Recebeu alguma chamada de emergência? Eu entendo. – acariciou às costas do detetive.

Faça o seu trabalho, policial. Souza se levantou, cruzou os braços e deixou o agente da lei assumir a situação.

— Você os matou, não foi?

 

*

 

Foi preciso ser forte, muito forte aliás. Sofia é uma mulher fantástica e mexeu com Souza de uma certa forma. Se não fosse às circunstâncias desfavoráveis, ele com certeza investiria pesado nesse relacionamento. O que aconteceu entre eles foi tão profundo, tão intenso que Luís pode esquecer por algumas horas Suzana. Souza é um excelente policial, gosta do que faz, por isso ele sempre faz questão de se lembrar daquela máxima, sorte no jogo e azar no amor. No caso dele seria sorte na profissão, azar no amor.

— Como assim, eu os matei, do que você está falando? – se cobriu.

— Sofia, facilite às coisas. Me diga, você matou Fernando e Milena, não foi?

— Eu, eu amava o Fernando. – o rosto ruborizado.

— O amava tanto que não suportou o fato dele ter uma amante.

— Eu me desdobrava para que o nosso casamento não caísse na rotina e no entanto...

— Não se sinta culpada, Sofia, o Fernando, ele sim forçou toda essa confusão, mas agora a questão é o seguinte, por que matar a garota?

Ela tentou de todas as formas não chorar, mas tudo foi por água a baixo quando se recordou daquela tarde. A muito tempo ela já vinha desconfiando do marido. Todas as vezes em que ele chegava tarde ou até mesmo das vezes em que não chegava, ela dizia sozinha deitada na cama, deve estar com alguma vagabunda. A intuição de Sofia nunca a enganou. Ao chegar em casa o cheiro de perfume barato impregnado em suas roupas o denunciava.

— Que perfume é esse Fernando?

— Ah, sim, a modelo deixou cair um pouco de perfume em cima das minhas coisas.

Pois é, Sofia nunca engoliu suas desculpas. Ela se cansou das mentiras. Cansou de ser passada para trás. Certa noite ela pegou um táxi e foi até o estúdio onde Fernando trabalhava. Permaneceu dentro do veículo até poder ver com os próprios olhos a safadeza do marido. Foi complicado, mas Sofia segurou a bronca. Fernando e Milena saíram juntos, abraçados e entraram no carro.

— Siga o Renault Logan por favor. – pediu ao motorista.

O motel. Um dos piores momentos de sua vida. Mesmo passando por uma situação crítica, Sofia se manteve fria e fez uma ligação para Fernando.

Oi, amor!

— Vai chegar tarde hoje?

Sim! Apareceu um trabalho de última hora e acho que vamos varar a madrugada.

— Poxa, que pena, fiz aquele frango assado que você gosta. – falou olhando da janela do carona do táxi.

Hum, que delícia, quando eu chegar eu esquento no micro-ondas. Amor, vou ter que desligar.

— Tá bom, te amo.

- Tchau!

Ainda dentro do táxi, Sofia viu quando a luz da janela do último quarto se acendeu. Seu coração sangrou. O taxista olhava para ela já imaginando o que se passava em sua cabeça. Se ela veio as lágrimas? Sim, claro, não tinha como não chorar. Restou ao motorista lhe oferecer uma caixa de lencinhos.

— Muito obrigada. – disse puxando alguns.

De repente o ódio começou a incendiar sua mente e quando deu por sim, Sofia havia esmagado a caixa de lencinhos do taxista.

— Sem problemas, senhora, eu compro outra. – gaguejou.

— Me tire daqui, rápido.

Passaram-se os dias, às semanas e alguns meses. O fotógrafo seguia mentindo, enganando, dando munição ao rancor de sua mulher chegando tarde em casa até o dia em que ele desapareceu por dois dias. Sofia só faltava bater com o cabeça nas paredes de casa. Ela queria vingança. Queria sangue escorrendo em suas mãos. Para aliviar a tensão ela recorreu as redes sociais. Trêmula, a bonita morena clara visitou o perfil de Fernando no Instagram. Foi passando às fotos e quando estava desistindo de procurar, eis que lá estava ela, linda, maravilhosa, fazendo caras e bocas numa foto branco e preto de corpo inteiro. Milena Chagas. Sofia chorou e clicou no nome. Milena, jovem, bela por natureza e sem modéstia alguma. Fotos lindas, cabelos esvoaçantes tendo ao fundo um mar azul da cor do céu. Invejada, Sofia buscou algum defeito em seu corpo torneado, mas sem sucesso.

— Vaca!

Destilando veneno ela jogou o telefone na outra extremidade do sofá e chorou até ficar cansada. Foi quase impossível dormir aquela noite sabendo que Fernando poderia estar saboreando o corpo perfeito de Milena naquela hora. Quando finalmente pegou no sono o sol já invadia o quarto trazendo com ele os desprazeres de um novo dia – pelo menos para ela.

Na véspera de feriado, Fernando analisava algumas fotos em seu notebook sentado na copa da cozinha. Sofia fritava bifes a milanesa quando o mesmo comentou.

— Vou para o litoral nesse feriadão.

— Aí, que bom, posso ir? – se virou segurando a escumadeira.

— Vou a trabalho. Pintou a chance de ganhar uma boa grana, porém vou passar os três dias ralando bastante. Me desculpa.

— Tudo bem. – voltou ao fogão.

Serei mais uma vez passada para trás. Esse desgraçado sabe que eu amo viajar para o litoral, amo ver o por do sol sentada na areia curtindo a brisa suave de final de tarde e no entanto ele a levará em meu lugar. A minha vontade é de jogar esse óleo quente e vê-lo derreter. Estou lutando contra meus princípios, eu não sou assim, nunca tive pensamentos ou sentimentos mortais. Eles estão me forçando, eles sim são culpados.

Tragédia anunciada. Fernando às seis da manhã guardava suas coisas na mala do carro. Destruída, porém ainda respirando vingança, Sofia acompanhava cada movimento do marido. Naquela manhã ele não a beijou se despedindo, não apalpou seu corpo inteiro como fazia antes. Não! Nada disso pertence a ela mais. Alguém mais linda, mais atraente tomou o seu lugar e passará três dias com seu homem a beira mar. Que porcaria de vida.

Luís Souza sentiu pena. Ele sabe que não deveria sentir, mas fazer o que? Ele ainda é de carne e osso. Sofia se encolheu na cama puxando os lençóis para enxugar suas lágrimas sendo observada pelo policial para a sua frente.

— O que mais aconteceu, Sofia? – Souza jogou o peso de uma perna para outra.

— Três dias e eu vivendo como prisioneira dentro de minha própria casa, refém dos meu piores sentimentos. – falava entre os dentes. – só no terceiro dia que os demônios me deram sinal verde e então eu pude sair e...

 

*

 

Sofia teve sorte em encontrar o salão em que ela frequenta aberto e por ser feriado prolongado ele também se encontrava vazio.

— Mas, querida, não tem nem quinze dias que você veio aqui para hidratação.

— Pois é, quero que corte bem curtinho, bem menininho mesmo.

— Você quem manda. Sente-se. – deu de ombros a dona do salão.

Ela voltou para casa e foi direto para o quarto. Ao passar pelo espelho ela lamentou pela falta dos longos cabelos que tinha. De repente sua imagem ficou desfigurada e Sofia xingou. Ela sempre soube que Fernando possuía uma arma em casa, mas aonde? Furiosa, a mulher revirou o cômodo inteiro, mas a encontrou embaixo do colchão, carregada. Isso feito, é hora de se disfarçar. Pegou um boné velho do marido e também suas roupas e as guardou numa sacola de uma loja famosa do shopping e saiu para aguardar a chegada do carro do aplicativo. No portão Sofia ligou para Fernando.

Oi, amor?

— Já está na estrada?

Quase, o trânsito não está ajudando, devo chegar tarde.

— Estou morrendo de saudades, em que altura você está mais ou menos?

Fernando inocentemente lhe passou às informações e maquiavélica ela calculou tudo e entrou no carro sabendo exatamente como iria proceder. Mais uma vez Sofia se deixou levar pelas vozes que a rodeavam. Nada de bom era dito, nada de arrependimento ou algo como: pense mais um pouco. Não, essas coisas não eram ditas. Essas vozes negativas lhe fizeram companhia até o seu desembarque. O motorista do aplicativo estranhou o lugar.

— Tem certeza que a senhora quer ficar aqui mesmo?

— Absoluta!

— Veja bem. Para voltar a senhora terá que ir até a autoestrada que fica lá. Certo?

— Certíssimo! – desceu segurando a sacola.

Daí em diante foi fácil. Sofia trocou de roupa, colocou a arma na cintura e foi andando até a estrada e esperou. Quem olhasse para ela diria que se tratava de um andarilho pedindo qualquer trocado. Roupas largas e um boné surrado enterrado na cabeça. A espera chegou ao fim assim que ela avistou o Renault Logan vindo tentando achar uma brecha entre os outros veículos. Hora boa. Lá estavam eles, Fernando e Milena. Sofia se jogou na frente do carro praticamente.

— Tá louco cara, quer morrer? – gritou Fernando.

— Aí, meu Deus! – vociferou Milena.

Sofia sacou a arma e apontou para seu marido. Seus olhos faiscavam.

— Jesus, Sofia, o que está fazendo aqui, por que está vestida desde jeito?

— Cala a boca, vou acabar com a sua safadeza agora.

Milena berrava pedindo socorro. Os carros passavam em alta velocidade buzinando para eles. Sofia seguia mirando em Fernando que clamava pela vida.

— Solte a arma, Sofia, por favor. – gritou o fotógrafo.

Milena levou às mãos no cinto de segurança para destrava-lo, mas foi atingida na cabeça. Fernando entrou em pânico chorando e xingando horrores.

— Cala a boca, Fernando. – gritou.

— Sua desgraçada, o que você fez, ela não tinha culpa alguma. – Fernando chorava tanto que salivava.

Incomodada com os berros e sentindo que já não tinha mais como voltar atrás, não lhe restou outra coisa a não ser mata-lo. Sofia disparou duas vezes contra seu marido. Engolindo novos sentimentos ela pegou os pertences de ambos os mortos para simular um assalto e fugiu.

— Nossa! – disse Souza.

Souza precisou respirar fundo para levar mais oxigênio ao cérebro e tentar ligar os pontos. Sofia é uma mulher exuberante, mas também bastante calculista, uma assassina fria. Por mais que estivesse machucada emocionalmente, isso não lhe dá o direito de ceifar vidas. Quando todas as peças se encaixaram o policial se lembrou do vídeo enviado por Márcia onde um andarilho aparece meio que correndo, era ela.

— Luís?

Souza olhou para ela.

— Como descobriu?

— Não foi preciso muito esforço. Vi a máquina fotográfica de Fernando dentro do outro quarto, além de outras provas.

— Quanto tempo ficarei presa? – voltou a ficar chorosa.

— Não sei, não sou juíz. – colocou às mãos na cintura.

— Está furioso comigo?

Boa pergunta, pensou o agente. Na verdade Souza não sabe o que sentir numa hora dessas.

— Você me de palhaço.

— Eu precisava me defender. Quando você e sua parceira estiveram aqui da primeira vez eu logo vi que seria descoberta, você é o melhor policial de Norma. Certa disso eu resolvi ficar o mais próximo de você.

— Eu estava curtindo tudo aquilo, Sofia. Caramba! – passou as mãos na cabeça. – você brincou com meus sentimentos.

— Era para me proteger. – falou soluçando. – no início era pura defesa, mas daí veio o que eu não esperava.

Souza gelou.

— O que você não esperava? – Luís se inclinou para ela.

— Me apaixonar por você.

Nesse momento Souza chegou a seguinte conclusão, Deus só pode ter feito meu coração de aço, incrível! Lá fora os motores ruidosos das viaturas anunciaram suas chegadas.

— Você chamou seus colegas?

O pomo de Adão subia e descia. O coração estava sangrando e ardia.

— Se vista, Sofia Paiva...

Sofia mordeu o lábio inferior e deixou uma lágrima descer.

— A senhora está presa, acusada das mortes de Fernando Paiva e Milena Chagas.

 

*

 

 

O garçom terminou de servir a dupla de investigadores. O restaurante é despojado, a iluminação faz com que o lugar fique ainda mais luxuoso, sem falar da comida que é sensacional. Nessa noite de sexta-feira, Márcia Bernardo conseguiu arrancar do chefe um elogio, coisa que é difícil, pra não dizer impossível. Souza reconhece que sua parceira é uma mulher bonita, mas ele jamais externou isso.

— As gordinhas estão em alta, aliás, sempre estivemos.

— Mas eu não lhe acho gorda.

— Há, vai dizer que é excesso de gostosura?

— Bom, já que você mesma falou. – riu.

Foi um jantar maravilhoso, Souza cumpriu o que prometeu. Por várias vezes Márcia se viu tentada a perguntar o que ele fazia na casa de Sofia Paiva tão cedo. Com certeza Souza não admitiria que teria passado a noite com ela. E além do mais, isso não é de sua conta. Fato é, de uma certa forma, esse envolvimento trouxe a resolução de um caso difícil e mais uma vez ela e Luís Souza saíram vencedores. FIM.