quarta-feira, 25 de setembro de 2019

O Prisioneiro da Lua Cheia




Os pés são magros e estão cobertos de feridas. Elas ainda estão abertas e sangram. Envolta do pescoço uma grossa corrente que de tão justa marca a pele e impede o condenado de respirar direito. A calça jeans está suja e rasgada, um verdadeiro pano de chão. Sem camisa e suando em demasia, o condenado seguia andando e tropeçando em galhos, mato e pedras pontudas. Desde quando foi capturado por Basílio perto do riacho que divide aquela gigantesca floresta o pobre homem não pronunciou sequer uma única palavra, somente caminha sob as ameaças do velho caçador. Ao lado de Basílio está Tião segurando uma garrucha e ao lado de Tião está Clemente também segurando uma espingarda. Ambos são fiéis ao velho Basílio e confiam cegamente em tudo que é dito por ele.
    - Quer dizer que no seio da floresta se encontra as almas dos amaldiçoados? – perguntou Clemente.
     - Exatamente. – respondeu Basílio esticando a corrente. – essa praga será enforcada lá. Vamos, ande.
     O condenado continua andando a passos firmes na frente dos três amigos. Basílio segura a corrente com uma mão e com a outra ele tem um tipo de chicote improvisado louco para castigar o pobre.
      - E ele não fala? – perguntou Tião. – sabemos pelo menos o seu nome?
      - Acho que ele é mudo, só pode. – completou Clemente.
      Irritado com o maldito silêncio da parte do condenado, Basílio finalmente resolveu fazer uso do chicote. O som do couro entrando em contato com a pele do sujeito saiu alto assustando os dois homens.
       - Eita, Basílio, desse jeito ele vai morrer antes de chegar ao seu destino final. – falou Tião.
       - Essa praga não sente dor, vejam só.
      Outra vez o chicote bateu na altura do ombro esquerdo do homem que finalmente esboçou uma expressão de dor fazendo o velho caçador cair na risada.
       - Viram, ele sente dor sim. Qual o seu nome, praga do inferno?
       Mais uma vez o silêncio. O condenado apenas olha para Basílio que estica ainda mais a corrente.
       - Não me olhe assim. Ande.
       Quase asfixiado o sujeito engole seco e fala.
       - Gomes!
       - O que? – Basílio coloca a mão atrás da orelha direita.
       - Podem me chamar de Gomes.
       - Pra mim você não passa de um animal nojento. – cuspiu no rosto do sujeito. – Graças a Deus eu consegui te prender, já não há mais risco para nossa aldeia, não é homens?
       Tião e Clemente disseram que sim numa só voz. Os quatros seguem juntos para o seio da floresta. Segundo o que dizem, nesse lugar há uma entidade que guarda a alma dos amaldiçoados sacrificados ali. Gomes é um desses pobres coitados que de uma forma ou de outra se venderam ao maligno e por isso devem ter esse destino final.
     - Basílio, é verdade que se nós o matarmos aqui mesmo, um de nós será o próximo condenado? – Tião perguntou.
     - Não. Se o matarmos aqui, o espírito dele não terá sossego e está arriscado ele reencarnar em nossa família.
      Clemente fez o sinal da cruz e rezou baixinho.
      - Vamos enforcar essa desgraça lá para que não volte nunca mais. – completou.

*

Com fome e principalmente com muita sede Gomes perdeu o controle das pernas e caiu. Caiu para frente com o rosto no meio do mato cortante. Furioso e sem paciência, Basílio mais uma vez fez uso do chicote. Dez chibatadas. As costas do condenado ficaram cobertas por vergões. A ardência fez aumentar o ódio e pela primeira vez Gomes se mostrou na defensiva. Clemente apontou sua espingarda.
     - Mais um passo e te mando pro inferno aqui mesmo.
      - Calma, Clemente, deixe esse diabo comigo. – Basílio puxou a corrente e a enrolou num tronco de uma árvore média. Feito um cão sarnento Gomes se agitava. – vamos ver se ele aprende depois da coça que irei dar.
      Muitas, inúmeras chicotadas, em toda parte do corpo. Por mais que Gomes quisesse ele não conseguiria se livrar dos açoites violentos. Agora não são só os pés estão feridos. Pernas, troncos, braços, pescoço e até o rosto. Basílio bateu até ficar exausto e passar a tarefa para Tião.
      - Acho que ele já aprendeu a lição.
     Gomes está caído, encolhido, urinado e tremendo. Clemente interveio.
      - Vamos, está ficando tarde.
      Ofegante, Basílio tomou o instrumento de tortura das mãos de Tião e voltou a martirizar o pobre. Os vergões deram lugar as feridas. Uma gota de sangue atingiu o rosto de Clemente que o limpou imediatamente. Cinco minutos depois Basílio deu por encerrado o castigo e caiu sentado de cansaço.
      - Bicho sem vergonha do cão. – disse buscando ar. – vê se aprende a respeitar a autoridade.
       - Quero água. – pediu Gomes ainda em posição fetal.
       Tião e Clemente se olharam e depois deixaram para que o velho decidisse.
       - Não tem água aqui, não para você, agora vamos, levante-se.

*

Não há corpo humano que resista. Depois de ser flagelado e ser obrigado a andar até o seio da floresta, Gomes viu sua visão ficar escurecida e as pernas perderem as forças. Mais uma vez ele caiu e apagou. Clemente o cutucou com o cano da espingarda e viu que ele ainda respirava. Tião abriu a mochila e pegou a garrafa de água e a jogou em seu rosto. Gomes despertou e passou a lamber o resto da água misturada ao sangue.
      - Bom. Chegamos. – Basílio olhou ao redor. – Tião, encontre uma boa árvore, vamos acabar logo com isso.
       O seio da floresta. Lugar estranho. Um odor forte de carne podre e sangue pisado. Clemente apontou sua arma para Gomes enquanto que Basílio retirava a corda da bolsa. Os quatros em silêncio, somente os cantos dos grilos e das poucas aves ali existentes. Tião gritou.
       - Será ali.
       - Ótimo. Estou terminando o nó. Coloque esse diabo de pé, Clemente.
       A corda é jogada no galho. Só depois de colocada no pescoço é que a corrente é retirada. Tião, do outro lado a esticou. Gomes sentiu o aperto e engoliu em seco e voltou a pedir água.
       - Por tudo que há de mais sagrado, me dê água.
       - Não dê água a ele. Esse maldito precisa pagar por tudo o que fez, ele devorou crianças, mulheres e velhos.
       - Eu, eu estava transformado, eu, eu não me lembro de nada. Por favor. – a fala saiu rouca devido a sede.
       - Já chega desse assunto. Você nunca mais fará mal a ninguém. As luas cheias agora não serão mais vistas como uma ameaça. Clemente, vá ajudar a puxar a corda.
       Clemente se encaminhou para junto de Tião. Basílio sacou seu trinta e oito e Gomes rezou o Pai nosso. Os dois capangas começaram a puxar a corda e o corpo do pobre coitado foi erguido. Basílio assistia a tudo olhando a agonia da morte. A corda vai sendo puxada e os pés magros e feridos já não tocam o chão. Os olhos de Gomes se esbugalharam e mesmo assim permaneceram fixos no caçador. Mais uma puxada na corda. Com o peso do corpo o pescoço cedeu. Os espasmos cessaram e Gomes encontrou a morte. Morreu com os olhos abertos.
     - Amarrem a corda e venham rezar comigo.
     - Vamos deixar o corpo aqui? – Tião perguntou.
     - Sim. Assim que sairmos daqui a tal entidade virá buscá-lo.
     Os três amigos ficaram um ao lado do outro e rezaram uma ladainha sinistra e depois se foram. Já um pouco mais afastados do seio da floresta eles se despediram.
      - Vou seguir pelo rio companheiros. – disse Basílio.
      - Nós iremos por baixo, pelo vale. – falou Clemente.
      - Certo. Fizemos um bom trabalho. Aquele bicho já faz parte do passado.

*

O corpo se encontra lá, pendurado, um aspecto de fazer qualquer um ficar em pânico. A tal entidade o visitou e não recolheu a alma do pobre Gomes. Em forma de vento ela o presenteou com a vida. Os olhos que outrora estavam abertos, mostrando o quanto fora angustiante a sua partida desse mundo, agora piscam e vislumbram o anoitecer naquela floresta fechada e úmida. De sua pele de cor acinzentada, com feridas e vergões começam a brotar pelos negros e grossos. No lugar da boca um focinho se formou. As orelhas começaram a crescer e a ficarem pontudas. Aos poucos Gomes vai se transformando num lobo enorme, furioso e com uma força diabólica. A corda que envolvia seu pescoço se rompeu e logo suas patas tocaram o chão. O lobisomem sente no ar o cheiro dos humanos. Ele farejou por alguns minutos e ergueu a cabeça e correu em direção ao vale.

Clemente e Tião aproveitaram o vento fresco para descansar e fazer café. Juntaram algumas pedras e fizeram um fogareiro. Pegaram alguns gravetos e atearam fogo e pronto. Demorou um pouco até a água chegar a temperatura ideal para jogar o pó, mas isso não os incomodou nem um pouco. Enquanto tomam do café forte feito uma tinta não diluída, os compadres batem papo, jogam conversar fora. Um barulho é ouvido por ambos.
     - Ouviu isso, Clemente?
     - Sim, parecia um rosnado de porco. – pegou a espingarda. – vou até ali olhar, deve ser um javali.
     - Boa, qualquer coisa a gente  o leva para a aldeia e distribui a carne.
     Clemente andou até próximo das árvores com a arma abaixada. O solo estava molhado e mole. As botas chafurdaram. Muito irritado, Clemente utilizou o cano da garrucha para ajudá-lo a sair quando a fera o atacou no braço. Assustado e muito ferido o capiau ainda tentou atirar, mas foi outra vez mordido e dessa vez teve o membro arrancado. Tião gritou desesperado ao ver o companheiro urrar jorrando sangue.
      - Minha nossa senhora. – pegou a outra arma. Mirou e disparou. O tiro passou longe.
      - Aí, meu Deus. – berrou Clemente outra vez mordido. Ao tentar se defender o bicho comeu sua mão direita.
      Muito sangue perdido. Muita carne e ossos expostos. O pobre Clemente caiu já perdendo a consciência. O lobisomem o mordeu no pescoço. A jugular esguichou sangue nos olhos e focinho levando Clemente a morte. Tião, para não ser o próximo jantar do homem lobo correu para dentro da floresta, mas foi alcançado e ferido no ombro. Ainda com um pedaço generoso do homem na boca o lobisomem o derrubou usando as patas. Tião mal teve tempo de se recuperar do primeiro ataque voltou a sentir a terrível dor de uma mordida.
      - Aí, alguém me ajude.
     Não havia ninguém. Tião teve a cabeça devorada e só o corpo foi poupado. O barulho do lobo mastigando a cabeça é algo perturbador. Ao terminar de mastigar e de engolir, o bicho rumou atrás de outra presa.

*

Basílio ouviu de longe os rosnados e é claro se preparou para o confronto. Verificou a munição. Tudo ok. Em sua cabeça ele imaginou um animal grande como um urso ou sei lá o que, mas ao ver o lobisomem correndo em sua direção, salivando e mostrando seus dentes, o velho caçador sentiu algo escorrer por entre suas pernas.
     - Cão do satanás.
     O 38 foi apontado, mas Basílio não conseguiu mirar pois estava tremendo muito. Mesmo com medo e desequilibrado ele resolveu atirar. Não obteve sucesso. O animal continuava vindo e cada vez mais rápido. Basílio atirou e nada. Sentindo que seria devorado o velho esboçou uma corrida, mas foi alcançado. O lobisomem usou as garras para freá-lo. Basílio caiu ferido nas costas e gritando. O animal o pulou e parou em sua frente. Uivando o lobo foi dando lugar a Gomes.
     - Maldição, por que não me matou, por que, por que?
     - Agora você será um amaldiçoado como eu, seu velho, será caçado, perseguido e chicoteado, sentirá sede...
      - Cale a boca. – se levantou procurando sua arma. – vou tirar minha própria vida.
      - Velho burro, esqueceu? Todo amaldiçoado deve ser enforcado no seio da floresta, caso contrário a maldição entrará em sua casa. Você está condenado, Basílio.
      Gomes voltou a se transformar em lobisomem e correu em direção as aldeias. Basílio voltou a cair no chão gritando horrores.
      - Volte, volte, seu demônio, termine o trabalho. Desgraçado, desgraçado, desgraçado. Fim.







segunda-feira, 16 de setembro de 2019

Ainda Existia Amor


Escrito por Abril Rocha


Ainda Existia Amor

Foi complicado, eu sei que foi. Quase um ano, eu acho. Depois daquele dia eu fui um outro José Marcos, um outro homem. Fiquei anestesiado, fazendo tudo no automático, não sentia prazer e nem satisfação. Logo eu que amava o meu trabalho, amava produzir e de repente tudo se tornou um fardo difícil de carregar e suportar. Quando Mônica falou na minha cara que tudo havia terminado eu achei que ela estivesse brincando, ou talvez no calor da discussão ela tenha blefado, mas não, ela falou sério.
     Jamais imaginei que um dia aquela mulher chamaria a polícia só para me tirar de dentro de minha casa. Eu não estava aceitando toda aquela situação, Mônica aos berros me expulsou de casa. Eu saí antes da chegada dos policiais. Foi complicado.
      - Posso pelo menos pegar algumas peças de roupa? – eu perguntei parado na porta.
      - Não, pelo amor de Deus, José Marcos, vá embora. – falou entre os dentes e com o rosto ruborizado.
      Foi o que fiz. Entrei no carro e sem saber direito para onde ir dei a partida. Deixei a minha casa, ou melhor, a nossa casa, tudo o que conquistamos juntos em anos de trabalho duro. Claro que naquela mesma noite eu tentei ligar para o celular dela, mas como era de se esperar Mônica não me atendia. Passei aquela noite em claro, chorando e tentando encontrar uma solução.

*

Como eu falei, foram dias, meses onde vivi um verdadeiro inferno emocional. Eu não conseguia render no emprego, minha vida se resumia do trabalho para casa, da casa para o trabalho. Nós finais de semana eu não tinha ânimo para tomar umas com a rapaziada. Fiquei muito mal mesmo. Nesse ínterim pintaram algumas mulheres, porém eu as dispensei, eu não queria outra coisa se não fosse Mônica. Quatro meses depois de eu ter ido pegar minhas coisas eu tomei coragem e liguei e ela me atendeu.
     - Oi?
     - Como estão as coisas por aí?
     - Normal.
     - Você já conseguiu um advogado?
     - Ainda não, tá difícil encontrar um que agilize logo isso. E você?
     - A mesma coisa. Se você quiser podemos resolver isso amigavelmente, na boa, entendeu, prometo não falhar com o nosso filho.
      - Zé Marcos, acho melhor cada um arrumar seu advogado e fazermos isso em juízo.
       - Ok, Tudo bem então.
      Nossa, foi como se alguém tivesse enfiado uma faca em meu peito. Deixei o celular de lado e chorei muito. Mônica estava irredutível querendo o divórcio o mais rápido possível. Quatro meses sem falar com ela e nada havia mudado.

*

Eu estava fazendo minha corrida noturna depois de um dia estressante de trabalho quando a música que eu ouvia parou e o telefone tocou. Parei e vi o nome de Mônica no identificador. Na mesma hora tive vontade de chorar. Seria ela com a novidade de um advogado? Ou o Marquinhos adoeceu, sei lá, atendi.
     - Oi, Mônica, boa noite, aconteceu alguma coisa? – falei ofegante.
     - Aí, me desculpa, você estava correndo não é? Posso ligar outra hora.
     - Eu já terminei. – menti.
     - Andei pensando, você estava certo, acho melhor resolvermos isso amigavelmente, você poderia continuar pagando o colégio do Marquinhos e também uma pequena mesada, o que acha?
     - Por mim tudo beleza, o casamento acabou, mas continuarei honrando os dois, vamos marcar uma conversa?
     - Pode ser hoje? Ainda é cedo, quero resolver logo isso.
     - Ótimo, vou tomar um banho e chego aí em meia hora.
*

Lá estava eu, em minha casa, diante da mulher que amava acertando as coisas da separação. Mônica me recebeu muito bem. Ao entrar senti o cheiro da comida fresca, quase chorei. Me sentei na mesa da cozinha e a aguardei terminar o jantar. Era estrogonofe de frango. Salivei.
      Perto das 22h terminamos tudo. Fiquei um pouco com Marquinhos que logo dormiu no sofá. Fui ao banheiro, joguei água fria no rosto e sai.
     - Bom, Mônica eu já vou indo, irei depositar o valor amanhã, certo?
     - Certo. – ela olhou para baixo. – vai jantar?
     Com fome eu estava, mas juro por Deus que eu não contava com esse convite.
     - O cheiro está bom.
     - Sente-se, vou por na mesa.
     Foi maravilhoso. Mônica e eu, comemos, bebemos e conversamos como bons amigos. Não houve lavagem de roupas e nem acusações, jantamos em harmonia e quando vi já passava da meia noite.
     - Meu Deus, amanhã tenho que acordar cedo. – falei bebendo o que restava da Coca-Cola. – Mônica obrigado pelo jantar.
     - Pode dormir aqui, se quiser, é claro.
     - Ah, eu não quero ser um incômodo.
     - Nada! Além do mais está perigoso. Vou preparar o quarto.
     Por fora eu me segurava para não explodir de felicidade. Pela primeira vez em quase um ano vou dormir em minha casa, com minha família. Tomei um banho enquanto Mônica preparava o quarto de hóspedes. Tudo pronto. Entrei no quarto e me deitei. Com a porta somente encostada vi quando Mônica saiu do banho. Fiquei pensando, será que ainda existe amor no coração dela? Será? Nessa hora me lembrei de quando nos conhecemos, tocava uma canção no rádio, “ Still loving you” do Scorpions e essa ficou sendo nossa trilha sonora toda vez que queríamos fazer amor. Nervoso, não sabendo qual seria a reação de Mônica comecei a assoviar. Fechei os olhos e assoviei. Passados alguns segundos, ainda com os olhos fechados, morrendo de vergonha pelo mico, abri os olhos e Mônica estava em pé na porta. FIM.