domingo, 20 de setembro de 2020

Pele

 


PELE


Carlos Henrique olhou pelo retrovisor da viatura e do bolso sacou um lenço. Passou várias vezes o pedaço de pano no volante e depois aguardou a volta de sua superior. Mais uma olhada e outra vez ele passou o pano no volante. Guardou o lenço no bolso da jaqueta e esperou. Sônia bateu no vidro da janela do carona. Com muita má vontade ele a abriu.

      - Quem disse que poderia dirigir? – ela perguntou se acomodando.

      - Ah, sei lá, só achei que devia. – Carlos Henrique tentava não olhar muito para Sônia.

      - Essa operação está acabando com meus cabelos. – disse a delegada se olhando no espelho interno.

      Só o cabelo? Pensou Carlos.

      - Temos que voltar para a delegacia. Vou reunir o pessoal. Quero terminar logo com isso.

      - Sim senhora, chefe. – ligou o carro.

      Sônia Gusmão, delegada de polícia. Uma mulher determinada, imponente, conhecida no meio como sendo a madrasta má. Sônia não dá mole para bandido. A delegada titular tem vitiligo. Aos doze anos ela se viu com esse dilema. Começou nas pernas e conforme o tempo foi passando, o que era uma pele morena jambo, foi dando lugar ao branco. Hoje em dia o seu rosto arredondado tem poucos lugares onde a cor original ainda predomina e por mais que Sônia seja uma mulher bonita, seu aspecto mudou e as reação das pessoas deixam isso claro. Na adolescente ela sofreu com comentários e piadinhas maldosas. Até hoje ela lembra de seu apelido na quarta série, “cavalo de índio” hoje ela dá risada, mas na época era bastante complicado.

     Antes de ingressar na profissão a sua vida se resumia em ouvir palavras que as deixavam com sua autoestima no chão. Sônia cansou de ouvir da boca de familiares que uma pessoa como ela jamais conseguiria chegar a lugar algum. Foi preciso muita garra, muita força de vontade para seguir galgando os degraus do sonho de se tornar uma policial. Ela chegou lá. Assim que colocou os pés no departamento de polícia pela primeira vez, uma enxurrada de olhares se direcionaram para Gusmão. Ela se lembra que até mesmo os criminosos estranharam a presença dela ali.

     - Vejam só isso, no que esse lugar se transformou? – disse o delegado da época.

     Claro que tudo isso ainda causava nela um certo incômodo, mas Sônia Gusmão precisava se manter firme afinal ela tinha um objetivo. Hoje ela lidera uma delegacia repleta de homens nutridos pelo duplo preconceito, uma mulher a frente de operações e não bastasse ser mulher, uma mulher com vitiligo, é o fim da picada.

      Carlos Henrique estacionou a viatura na entrada do DP e aguardou que sua superior saísse.

      - Algum problema, Carlos? Você não falou nada desde então?

      - Não há problema algum, só estou pensando numas coisas.

      Sônia conferiu o horário no relógio de pulso.

      - Temos um tempinho, se quiser conversar. – repousou sua mão na mão dele.

      Sim, as mãos de Sônia também sofreram com a ação do vitiligo e mesmo sendo elas delicadas, finas e bem tratadas, mesmo assim esse ato causou desconforto no policial.

     - É... eu estou bem.

     - Tem certeza? – retirou a mão – sou sua amiga, pode contar comigo sempre.

     - Ah, valeu, de boa.

     Sônia saiu do carro e entrou. Imediatamente Carlos Henrique pegou o lenço do bolso e limpou as costas da mão.

     - Droga.


*

    Toda equipe está na sala da delegada. Todos escutam com atenção as orientações da líder. A operação irá exigir de cada um foco e concentração. Os homens olham para a figura de Sônia e ela consegue distinguir o que cada um pensa no momento, ela conhece muito bem o que cada gesto representa, mas nem isso é capaz de lhe tirar a paz. Nesse meio também está Carlos Henrique, mexendo nervosamente no que restou de um lápis, ele, mais do que os outros, trás no olhar repulsa.

    - Bom, é isso pessoal, vamos entrar lá e tentar fazer o mínimo de estrago possível, certo, alguém tem alguma coisa a dizer?

     Novamente os olhares, os gestos. Ninguém falou nada. Um por um foram deixando a sala, até mesmo seu parceiro se foi. Sônia é forte, guerreira, mas está cansada. Qual o problema com as pessoas? Quando foi que a melanina ou a falta dela passou a ser algo primordial para a condução da vida? O que vale mais, a cor da pele ou a experiência profissional? Sônia se acomodou em sua cadeira e por um instante ela fechou os olhos e repensou sua vida inteira até ali. Infância, adolescência, juventude e vida adulta. Lembrou também dos tratamentos que não deram em nada para minimizar o problema, das piadinhas, dos apelidos, enfim, uma avalanche de situações desagradáveis sofridas. O choro veio forte, mas foi preciso contê-lo, afinal, ela tem uma prisão pra fazer.


*

    O prédio é um dos mais altos do centro, possui cerca de vinte andares, sua fachada é moderna, espelhada, impossível não parar para admira-lo. Lá dentro inúmeras empresas do mais alto escalão montaram seus escritórios e é claro, empresas que arranham a credibilidade de quem as investiga. Tudo começou com um comentário e logo veio a denuncia. O entra e sai de pessoas não muito convidativas de um escritório de empresa de móveis levantou suspeita do restante do prédio. Depois de um trabalho minucioso, Sônia Gusmão descobriu um grande esquema de lavagem de dinheiro, tubarões do crime usam o lugar como polo para mega negociações, milhões circulam por aquele metro quadrado o dia inteiro.

      Um perímetro foi estabelecido. Prédios vizinhos estão servindo de base de apóio a operação. As viaturas vão parando uma seguida da outra causando um certo pânico nos transeuntes. Sônia ao lado de Carlos Henrique anda até a portaria. Ele toca no interfone e olha para a delegada terminando de fazer um rabo de cavalo. É costume de Sônia fazer isso toda vez que há um risco iminente de confronto. A voz do porteiro soou.

     - Do que se trata?

     - É a polícia, abra por favor. – Falou Sônia.

     Imediatamente se ouviu o ruído do trinco da porta se abrindo. A dupla de agentes entrou e logo em seguida outros policiais fizeram o mesmo. Carlos Henrique odiou o fato de ter que entrar no elevador e respirar o mesmo ar que Sônia. Mais uma vez eles trocaram olhares e Sônia identificou uma certa raiva.

      - Quer me fala alguma coisa? – tirou os olhos dele e se admirou no espelho.

      - Eu? Nada! – abaixou a cabeça.

      - Pode focar na missão?

      - Já estou focado, senhora delegada.

      Décimo terceiro andar, hora de algemar um certo peixe grande do crime. Bem a frente de Sônia a porta do escritório de uma não muito famosa marca de móveis. Carlos Henrique sacou sua Glock junto com sua superior. A delegada tocou a campainha. Uma mocinha, maquiada, usando uniforme e coque os atendeu.

      - Pois não?

      - Fique onde estar. – disse Carlos Henrique abrindo passagem para Sônia. – polícia. – mostrou a identificação.

      Sônia entrou na sala brutalmente refrigerada. Passou por outro funcionário que digitava no notebook.

      - Larga isso e vá para o canto. – olhou para Carlos que entendeu o recado.

      A policial atravessou o escritório e surpreendeu o homem sentado atrás de uma mesa enorme de tampo de vidro.

      - Senhor Alcides Mendonça?

      - Ele mesmo. – soltou a caneta.

      - O senhor está preso acusado de lavagem de dinheiro e associação ao crime organizando. Levanta.

      - Calma aí, quero ligar para o meu advogado.

      - O senhor pode ligar sim, mas, lá da delegacia.

      Missão cumprida. Prisão realizada com sucesso e mais uma vez Sônia e Carlos Henrique estão lado a lado dentro da viatura, mas dessa vez eles tem um passageiro ilustre. Sônia olha para o companheiro ao volante e estende o braço com o punho fechado esperando o cumprimento. Sim, demorou um pouco para acontecer. Carlos Henrique observou bem aquela mão  manchada e com muita relutância ele bateu o seu punho no dela.

      - Senti uma ponta de preconceito, policial. – disse Alcides no banco de trás. – vitiligo não pega.

      - Fique quieto se não quiser perder os dentes. – falou Carlos Henrique o olhando pelo espelho interno.


*

Foi um dia intenso e tudo o que Sônia mais queria era chegar em casa, tomar uma chuveirada quente e relaxar no sofá-cama. Tudo isso ela fez. Vestida apenas com um roupão ela pegou o livro e começou sua leitura que diga-se de passagem se encontra atrasada. A delegada não está concentrada, por isso mais uma vez ela abandonou o livro e ligou pedindo um lanche. Deixou o celular de lado e foi para a janela. A noite está ótima, fresca, ideal para fazer amor até não dar mais. Vez por outra sua mente esbarra em Carlos Henrique, aquele homem bruto, mal humorado por natureza, mas que carrega com ele um charme que a atrai. O que ele estaria fazendo agora?


O bar é movimentado, principalmente pelos amantes de jogatina e de comidas não muito saudáveis. O cheiro de fritura impregna todo o ambiente fazendo com que mesas e cadeiras fiquem encardidas pela mistura de poeira e gordura. Carlos Henrique e Juliano, outro policial da equipe de Sônia, conversam sobre a final do campeonato estadual. O time do coração de Carlos irá disputar o título, mas o agente não está muito confiante. Em contra partida o de Juliano foi eliminado, restando somente a agradável tarefa de secar o clube do companheiro de profissão. Do nada o assunto mudou e Sônia ficou em voga.

     - Tem coragem? – começou Juliano.

     - De que, você pode ser mais específico? – engoliu o resto de cerveja.

     - De dar uns “pega” na chefona.

     - Pegar a Sônia? Lógico que não. Vá que essa doença seja contagiosa.

     Juliano soltou uma gargalhada no rosto de Carlos.

     - Você é mesmo uma mula, vitiligo não é contagioso, vacilão. Então, tem coragem de trepar com ela?

     - Hum. Se rolar uma graninha, eu me arrisco.

     Juliano se empolgou e bateu no balcão de mármore dizendo.

     - Feito. Mil reais. Que tal?

     - Meu amigo, por mil reais eu sou capaz de trepar até com você. – riram juntos.


*


A prisão de Alcides Mendonça rendeu a Sônia Gusmão o título de heroína na primeira capa do jornal de maior circulação da cidade. Todo o departamento se encontra em clima de comemoração. A sala da delegada se transformou num salão de festas em tamanho reduzido e com sua chegada às sete da manhã toda sua equipe estava lá para dar os parabéns a chefe.

     - Obrigado galera, se não fosse por vocês garanto que a operação não teria sido o sucesso que foi.

      Bolo, salgados e refrigerantes. Carlos Henrique sentiu que essa seria a hora de começar sua investida rumo aos mil reais. Enquanto o restante do pessoal comia e bebia ele aproveitou para falar com a líder.

      - Meus parabéns, Sônia, nosso DP ganhou muito com você. – apertou a mão dela e discretamente a limpou na calça depois.

      - Ah, que nada, vocês mandaram bem.

      - O que você prefere, bolo de chocolate e refrigerante ou um jantar? – perguntou olhando fixo nos olhos dela.

      Sônia sentiu seu coração congelar. Como assim receber um convite para sair às sete e pouca da manhã e ainda mais vindo de Carlos Henrique?

      - Ah, um jantar? – mexeu nos cabelos.

      - Posso ter a honra de sentar a mesa com a grande delegada Sônia essa noite? – impostou a voz.

      Sônia gostaria que alguém a beliscasse.

      - Si, sim, claro, hoje a noite.

      - Fechado então.

     Se foi difícil trabalhar nesse dia? Claro que foi. Sônia ficou ansiosa pelo término do plantão e não conseguia pensar em outra coisa a não ser o encontro da noite. Carlos Henrique, bruto, ogro, mas de uma virilidade fora do comum e isso a deixa excitada. Para não fazer nenhuma besteira Sônia precisou focar ao máximo nos afazeres e esquecer - pelo menos até a noite – o seu compromisso.

     Carlos Henrique e Juliano conversam no estacionamento do DP animadamente. Cada vez que pensa nos mil reais ele esfrega as mãos provocando o colega.

     - Poxa, mas ela aceitou sair hoje, de boa?

     - Claro. Pelo visto alguém vai perder milzinho pra mim. – bateu no braço de Juliano.

     - Só sair pra comer não vale, você precisa transar com ela e provar.

     Carlos Henrique fez cara de nojo.

     - Nunca comi uma mulher manchada, será uma experiência inédita em minha carreira de pegador. – riram.


*


O restaurante não é possuidor de nenhuma estrela Michelin, mas também não fica atrás de nenhum que a possua. A dupla de agentes assumiram a mesa perto do bar onde a iluminação é um pouco mais forte. Muito sem graça e sem saber qual assunto puxar, Sônia passou a elogiar o estabelecimento até a chegada do menu. Carlos sentiu a timidez da chefe, por isso resolveu quebrar o gelo.

      - Pretende sair da civil e ir para a federal?

      - Confesso que já andei pensando nessa possibilidade.

      - Você é uma boa profissional. – jogou charme.

      - Você também.

      A indecisão de Sônia era grande, carne vermelha, carne branca ou massa? Seu colega de trabalho a ajudou.

      - Sugiro o carro-chefe do lugar, uma delícia. Vamos pedir?

      - Sim!

     O jantar foi melhor que do que se esperava. Carlos deixou aflorar seu lado divertido fazendo a delegada esquecer do homem grosso que ele é. Ele contou de suas travessuras quando criança no orfanato. Do encontro inesperado com seus pais biológicos. Do quanto foi difícil se adaptar a nova vida. Sônia pode mergulhar nas histórias, nos dramas vivido por ele e o que é melhor, ela pode ver o quanto Carlos Henrique é humano, o quanto precisa de uma mulher de verdade a seu lado. Seria ela essa mulher?

     O encontro acabou. Uma pena, Sônia queria que durasse a noite toda. Carlos a deixou na portaria do prédio e ali deu seu golpe final.

      - Foi legal? – perguntou ele.

      - Maravilhoso!

      - Podemos repetir a dose, o que acha?

      - Por mim tudo bem. – pararam de andar.

      - Podemos fazer uma coisa mais intimista. – esfregou às mãos. – você tem cara de quem cozinha bem, então, você me convidaria para jantar em seu apartamento. – apontou para o prédio.

      Foi muito assim “direto ao ponto” mas até que ela gostou da ideia.

      - Perfeito! – estendeu a mão. Carlos deu uma rápida olhada nas manchas e retribuiu o gesto.

      - Ótimo. – simulando cavalheirismo, ele a beijou na mão.

      Sônia entrou e rapidamente Carlos Henrique sacou o lenço e limpou a boca.


*


O serviço no despertamento de polícia segue sufocante, mas e daí? O que são 12h de trabalho duro quando se está apaixonada? Uma ocorrência a fez solicitar a presença de Carlos em sua sala. Se revestindo da delegada osso duro, ela o recebeu de um jeito tão formal que até o próprio agente estranhou.

    - Preciso que vá ao bairro vizinho e colha informações sobre o marido foragido que espancou a ex mulher. – lhe passou o papel da denuncia.

    - Sim, senhora, e quem vai comigo?

    Sônia foi rápida no raciocínio.

    - Eu vou!

    Dentro da viatura eles disputavam internamente quem tocaria no assunto sobre o jantar no final de semana no apartamento dela primeiro. Mil reais estão em jogo, melhor acabar de vez com essa besteira, pensou Carlos Henrique ao volante.

     - Amo frango frito com legumes cozidos no vapor.

     - Isso por um acaso foi uma indireta para Sábado? – riu.

     - Fica a minha sugestão. – reduziu e passou no quebra-molas.

     Silêncio. Sônia pensou mil vezes antes de disparar a pergunta.

      - Nunca quis se casar?

      Carlos engoliu seco.

      - Acho que elas nunca se casariam com um sujeito como eu. Tive a quem puxar. Meu pai, que Deus o tenha, era a mesma coisa. Rígido, ignorante, duro. Eu até que sou mais maleável, mas nós somos iguais. Acho que estou na profissão certa.

      - Mas você já se apaixonou alguma vez?

      Sônia abriu às portas. Hora de entrar por elas. Carlos Henrique parou a viatura no início da rua da casa onde eles vão. Olhou para a chefe bastante sério.

       - Acho que estou me apaixonando agora.

      Loucura que é essa vida. Nesse momento a agente se lembrou de quando chegou ao cargo de delegada e teve seu primeiro contato com Carlos Henrique. A impressão deixada por ele não foi das melhores. Machista, foi o que pensou na mesma hora, um machista filho da mãe trabalhando em minha equipe. Hoje, esse mesmo machista está a poucos centímetros de provar seus lábios e é claro, ela estava ansiosa por isso.

      Que beijo!

      Sônia depois de muito tempo sentiu o gosto de um homem. Não durou muito, mas foi o suficiente para reacender a chama. Ela de olhos fechados. Ele de olhos bem abertos. Suas pernas ficaram bambas e querendo mais.

      - Aí, meu Deus, me desculpa, chefe, fui longe demais.

      - Não se culpe, eu gostei. – olhou pelo retrovisor. – quer mais?

      - Pior que eu quero.


Sempre quando chega em casa, a primeira coisa a fazer é tirar os sapatos e friccionar os dedos dos pés no tapete. Hoje esse ritual foi esquecido. Carlos entrou e foi direto para o banheiro. Ele permitiu que a água fria diminuísse o tesão.

      - O que aconteceu dentro daquela viatura, meu Deus? – falou cuspindo água.

      Após o banho, só de toalha, o policial se deitou na cama sentindo ainda o gosto do beijo. Outros relacionamentos não foram capazes de deixá-lo tão atordoado assim, o que Sônia tem de especial? Um beijo, um único beijo jogou o ogro na lona. Era para ser só uma brincadeira, um faz de conta para no final de tudo receber seu prêmio de mil reais. Algo aconteceu e ele ainda não conseguiu distinguir o que é. O certo a fazer é esperar o dia do próximo encontro, tentar tirar a limpo. Carlos Henrique teme algo. Teme estar se apaixonando de verdade por Sônia. Ridículo se isso se concretizar, pensou.


A quilômetros dali existe alguém que, diferente de Carlos, está perdidamente apaixonada. Sônia é a cópia fiel da alegria. Momentos como esse deveriam durar eternamente, pensou procurando o que assistir na Netflix. Foram poucos os relacionamentos, todos os homens que tiveram coragem de se aproximar dela conseguiram o que queriam. Sexo, nada além disso. Esses acontecimentos deixaram marcas profundas na alma. Palavras, olhares, risos, tudo isso cansa – gente, vitiligo não pega – Sônia perdeu as contas de quantas vezes preciso falar isso. O que é o vitiligo na frente do carinho? Da amizade? Do amor?

    Filme escolhido. Na penumbra, quase sem roupa, uma boa trama, como ela gostaria que Carlos Henrique estivesse ali. Seria cedo demais imaginar o ogro a possuindo? Que se dane. A vida é curta demais para ficar se auto censurando. O filme chegou em sua metade e Sônia nem se deu conta.


*


Carlos Henrique e Juliano entraram na loja de eletrônicos afim de comprar um carregador e um fone para a filha do agente baixinho de olhos claros. Juliano escolheu o modelo dos fones conforme orientou a menina. Carlos, ainda digerindo os últimos acontecimentos, permaneceu parado na entrada da loja. Na outra calçada, do outro lado da rua um motoqueiro sentado no veículo com o motor ligado. Juliano foi para o balcão e a atendente, visivelmente nervosa tirou o pedido.

     - Tudo bem? – perguntou o agente.

     - Sim!

     Carlos notou que com a boca ela disse uma coisa e com o olhar disse outra. Tem merda aí, pensou.

      - Vamos embora logo Juliano. – falou.

      - Relaxa cara.

      Tudo terminado. Juliano andou até o companheiro segurando a sacola e viu quando o mesmo sacou a pistola.

      - Fique de olho naquela motoqueiro.

      Carlos deu a volta indo para trás do balcão.

      - Ele está armado com uma faca. – sussurrou a atendente se acocorando.

      - Pode deixar com a gente, moça.

      Atrás do balcão há uma porta, o estoque. Carlos tocou duas vezes.

      - Perdeu jogador, vamos saindo, é a polícia. – sem resposta. – tudo bem, você vai me obrigar a contar então. Lá vai! Um, dois, três...

      A porta se abriu e um rapaz magérrimo e mal vestido saiu com as mãos para cima e chorando. Lá fora Juliano já havia abordado o motoqueiro que obedecendo as ordens do policial se deitou no asfalto quente. Ambos foram algemados e conduzidos ao DP. Dentro da viatura Juliano enalteceu o colega pela sacada, pelo bom faro policial.

      - Eu preciso andar mais com você, Carlos, preciso mesmo.

      - Um bom agente não pode achar tudo normal sempre, principalmente nas ruas. – se recostou no banco do carona.

      - E aí? Vai ganhar mil reais ou não?

      Pois é, isso que Carlos Henrique chama de incômodo. Agora ele se encontra numa encruzilhada. Os mil reais ou o coração de Sônia? Não, isso não pode estar acontecendo, não com ele, foi apenas um beijo.

      - Preciso de um celular novo.

      - É assim que se fala meu mano. - Socou o braço do parceiro.


*


Louças colocadas de qualquer maneira dentro da pia. A mesa do jantar bagunçada. Na TV o noticiário reprisa tudo que já foi mostrado e comentado durante o dia. Iluminados pela luz fantasmagórica do aparelho de TV, Sônia e Carlos Henrique transam como loucos no sofá. O inevitável aconteceu. O policial foi mais uma vez fisgado pelo encanto da delegada e agora não consegue mais se livrar dela. Enquanto sente a temperatura subir, ele fica a pensar o quão idiota ele foi, Sônia é uma baita amante, sabe como dar prazer a um homem. Por outro lado, temos uma mulher que descarrega nele todo o desejo guardado, todas as suas fantasias encubadas. Uma só noite será pouco.

     Carlos praticamente fez do sofá uma cama. Uma avalanche de pensamentos invade sua cabeça e isso o faz se sentir mal. A aposta. A sacanagem com Sônia. Como será daqui pra frente? O que Juliano vai pensar? O que é pior, o que o DP inteiro vai pensar? “ menosprezou a mulher e agora caiu nos braços dela” ou então, “ foi pra cama com a manchada”. Terrível. Dualidade implacável, Carlos Henrique está realmente apaixonado por ela e também sendo consumido pelos futuros comentários maldosos. Os pensamentos se foram quando Sônia voltou do banheiro enrolada na toalha.

       - Assim vai ficar difícil. – disse ele.

       - O que foi?

       - Estou me animando de novo, o que você pode fazer por mim?

       - Posso fazer muitas coisas, mas antes você precisa tomar um banho. Vai, estou te esperando no quarto.


Com sono e casado devido a noite e também a manhã de sexo intenso, Carlos olha a foto que bateu de Sônia deitada na cama dormindo. Sacanagem! Por causa de míseros mil reais ele pode estar perdendo a mulher de sua vida. Ele deu a partida no carro sentindo uma forte tristeza cortar o peito.

       - Merda! – gritou. – o que fez comigo, Sônia Gusmão? – ganhou a avenida.


Sônia toma café tranquilamente na copa. Cabelos molhados, roupa de dormir e lindos sentimentos abrigados na alma. A delegada esticou os dois braços. Elas estão lá, as manchas. Uma gargalhada vinda do coração seguida de um choro contido.

      - Vocês até conseguiram me derrubar, mas, eu me levantei e estou mais forte.

*


Nunca foi tão bom trabalhar. Nunca foi tão suave e agradável ocupar aquela sala outrora sem brilho sem vida e imaginar que o seu novo amor se encontra no mesmo ambiente. Assim foi a manhã de Sônia ao chegar no departamento. O sorriso mudou e até o jeito de andar. Quando se sentou, a primeira coisa a fazer foi enviar uma mensagem para Carlos que não estava online.

     Vamos fazer no chuveiro? Bom dia!

     Depois que a mensagem foi enviada, a policial ficou a rir dela mesma, como se fosse uma adolescente. O que vale é tirar o atraso. Bom, já chega desse conto de fadas da vida real, o trabalho a espera e muito trabalho diga-se de passagem. A pior parte de ser uma policial é a conferência de relatórios e a releitura de depoimentos, isso sim é um pé no saco. Sônia saiu de sua sala para buscar as pilhas de documentos. Entrou no setor de arquivos e meio que instantaneamente suas narinas detectaram o ar empoeirado.

     - Nossa, não sei como você consegue trabalhar aqui. – falou com a funcionária responsável.

      - Já me habituei. – segue digitando.

     Enquanto procurava os documentos, Sônia puxava conversar com Elisa, conhecida no departamento como a língua solta. Tudo o que acontece dentro ou fora dali, chega aos seus ouvidos e ela as dissemina sem medo de ser feliz.

      - Delegada Sônia, eu sei que não é da minha conta, mas, como tem sido com Carlos Henrique?

      Não crendo no que acabou de ouvir, a agente ergueu o corpo junto com o documento encontrado.

      - Me desculpa, é que essas coisas se espalham feito fogo em palha e...

      - Quem lhe falou isso? Diga logo. – usou toda sua imponência.

      - Não posso...

      - Elisa, você sabe que, com apenas um telefonema meu, sua transferência para outro DP é aceita, não sabe?

      Elisa fechou os olhos e abriu o verbo.

      - Houve uma aposta entre Carlos Henrique e Juliano...

      - Juliano, um homem casado, mas que come funcionária responsável pelo setor de arquivos, acertei?

       Mesmo de olhos fechados, Elisa deixou as lágrimas descerem.

      - Então, dona Sônia, houve uma aposta entre esses caras. O Juliano perdeu.

      - De quanto era a aposta?

      - Mil reais. A aposta era se Carlos Henrique iria conseguir dormir com a senhora e...

       Quando abriu os olhos Sônia já não estava lá.

      E agora, como administrar dois sentimentos? Raiva e frustração, ou seria tristeza e dor? Sônia foi machucada, mais uma vez. Que sina será essa? Por que se divertem com meus sentimentos? Pensou. Toda aquela vontade de trabalhar se dissipou. Sônia voltou para sua sala derrotada, na lona mesmo. Chorou muito ao ponto de soluçar descontroladamente. Foi ao banheiro lavar o rosto e retocar o batom. Ao voltar para mesa o telefone vibrou, mensagem de Carlos respondendo a pergunta de minutos atrás. Uma figurinha segurando um coração.

      - Filho da mãe, você me paga. Quer dizer que eu estou valendo mil reais. – a voz saiu mais alta do que o esperado.

      Sônia respondeu com outra figurinha. Um coração pulsante. Pensou um pouco e digitou.

      Se quiser posso te liberar mais cedo hoje. O que acha?

       Carlos Henrique está digitando...

       Acho ótimo, preciso mesmo falar com você.

       Certo. Me espera na portaria do prédio. Beijos!

       O aplicativo foi fechado assim como a vontade de chorar. Uma policial de verdade. A madrasta má. Hora de enquadrar esse canalha.


*


A mais ou menos dois anos Carlos abandonou o fumo, mas hoje a ansiedade o fez sentir o gosto da nicotina descer por sua garganta novamente. Ele resistiu. Pra falar a verdade tudo se foi quando Sônia apareceu na portaria. Ela está diferente, com uma expressão petrificada, talvez pelo longo dia de trabalho.

      - Oi? – disse ele. – podemos subir?

      - Não! Vamos direto ao assunto. Cadê os mil reais?

      O pomo de Adão de Carlos Henrique subia e descia várias vezes.

      - Calma, Sônia, vamos devagar, eu...

      - Eu estou calma, Carlos e já sei de tudo, eu só quero que seja homem de verdade e me mostre o dinheiro. – voz moderada.

      - Eu, eu não peguei o dinheiro. – abaixou a cabeça. – pode ligar para o Juliano. Eu não aceitei a grana. – voltou a olhar para ela.

      Agora foi a vez de Sônia engolir seco.

      - E por que?

      - Desde quando nos beijamos dentro da viatura eu fui tomado por um sentimento e desde então não consigo ficar um minuto sem pensar em você. Houve uma aposta? Sim houve. Havia grana envolvida? Sim, mas eu não consegui pegar, sabe por que?

      A delegada sentiu as pernas ficarem fracas.

      - Eu me apaixonei de verdade por você, Sônia. Que se dane o que vão pensar de mim, eu estou gostando de você. – os olhos do ogro ficaram marejados.

       Silêncio. Ambos não conseguiam falar. Sônia fungou o nariz e respirou fundo. Ajeitou a alça da bolsa no ombro e balançou as chaves.

       - Cadê a foto?

       - Foto?

       - Sim, me falaram que você bateu uma foto minha enquanto eu dormia, para provar que você havia me comido. Cadê a foto?

       Ruborizado, Carlos pegou o celular no bolso e abriu a galeria. Tocou na imagem.

       - Uau! Você é um bom fotógrafo. Estou bonita e gostosa, não estou, agente?

       - Sim, sim, está. – gaguejou.

       - Legal. Não apague. Guarde de lembrança. Está dispensado policial Carlos Henrique.

       O estômago do ogro doeu ao ouvir Sônia falar de maneira tão formal e rude.

      - Posso te pedir uma coisa? – perguntou ainda com a voz trêmula.

      - A vontade oficial? – andou até perto do portão.

      - A senhora poderia me transferir para outro DP?

      Enfim o sorriso libertador.

      - Eu já fiz isso e não só a sua como a do Juliano e da amante dele. Adeus policial Carlos Henrique.


Nota do autor: Dedico essa obra a todos que sofrem ou não com o vitiligo. Marcelli Mendonça e Marcos Andrade. Força!