quinta-feira, 25 de outubro de 2018

Não Entre Aqui



A noite passada não foi nada agradável. Tudo foi planejado para ser o jantar da reconciliação, mas tudo convergiu para mais uma discussão e clima pesado depois. Cesar está destruído por dentro e quem sabe por fora também. Ter sucesso na profissão não lhe trás alegria já que sua vida conjugal anda mal das pernas. Cesar é um dos melhores vendedores que sua empresa atual já possuiu. No ano passado ele alcançou metas incríveis em meses de casa. Tal façanha lhe rendeu inimigos e também admiradores. Uma delas é simplesmente sua supervisora dona Edna, uma mulher madura, autoritária e que veste realmente a camisa da empresa. Cesar também a admira em todos os sentidos é claro. Edna é antes de tudo uma mulher exuberante dona dos lábios mais suculentos que o vendedor já viu.
          Cesar se encontra sentado em sua mesa colocando e tirando a tampa da caneta com os olhos fixados na tela do notebook. Ele navega pelo site de notícias cansadamente quando sua chefe adentra sua sala.
- Senhor Cesar, bom dia? – Edna segura duas pastas pretas.
- Bom dia, dona Edna. – fecha a página.
- Já falei para deixar as formalidades de lado, Edna já está de bom tamanho.
- Me desculpe. Em que posso ser útil?
            A supervisora está simplesmente espetacular nessa manhã. Terninho cinza e calça colada da mesma cor. Cabelos molhados negros como a noite e batom vermelho vibrante.
- Vamos alcançar mais uma meta?
- Boa ideia. – coloca a mão no queixo.
- Certo. Preciso que vá até a clínica médica Santa Glória, ofereça nossos produtos, eu fiz uma pesquisa e vi que os materiais de lá estão bem precários, faça um precinho camarada, ganhe na quantidade.
- Até ai tudo bem. Só me passe o endereço.
           Edna coloca uma das pastas em cima da mesa.
- Dê uma olhada, principalmente na última, analise direitinho.
- Tudo bem.
           A supervisora se vai e sua cabeça volta a ser preenchida por Ana sua esposa com quem está casado a sete anos. Sete difíceis anos. Viver com Ana tem sido uma experiência bastante complicada, pra falar a verdade eles nunca se entenderam muito bem. Ela é muito agitada, ele nem tanto. Ana quer tudo para ontem, Cesar já gosta de planejar. O casal não passa um dia sequer sem trocar farpas e acusações.
           Cesar vai passando página por página analisando o conteúdo da pasta até que na última ele se vê diante de um bilhete de papel rosa. Curioso ele retira o pedaço de papel e em seu verso há algo escrito. “Me encontre no estacionamento as 10h em ponto”. Cesar consulta seu relógio no pulso. 09:56. Ele olha para os lados e todos estão concentrados em seus afazeres. Ele fecha a página e sai.
         Enquanto se encaminha para o estacionamento, em sua cabeça confusa mil coisas se passam. Afinal, o que Edna pretende comigo no deserto estacionamento da empresa? Cesar passa pela recepção e recebe um curto adeusinho da bonitinha secretária. Lá fora o céu nublado deixa o ar um pouco mais fresco e o dia mais escuro. O vendedor chega ao portão que dá acesso ao estacionamento e o mesmo se encontra apenas encostado.
         Cesar desce a rampa. Passa pelos veículos inclusive o de Edna um Tucson vermelho metálico. De repente um perfume familiar faz com que a imaginação do vendedor voe sem barreiras. O perfume de Edna é algo doce, suave o qual Cesar poderia passar horas sentindo. No final do lugar existe uma porta do quartinho de material de limpeza. A porta está fechada.
- Oi, Edna, você está ai? – dá dois toques.
- Entre. – a voz da supervisora soa firme como se estivesse dando uma ordem.
         Cesar entra. O cheiro do desinfetante se misturou ao perfume doce de Edna. A mesma se encontra em pé, parada olhando para ele.
- Oi? – ela diz.
- Oi. – ele sorrir.
- Cesar, você é o melhor vendedor que temos aqui, graças a você a empresa vem crescendo então andei pensando como que eu, sua chefe poderia lhe retribuir.
- Sim?
- Você fez o melhor pela empresa então você merece o melhor da empresa. – retira o paletó e abre a blusa exibindo a lingerie branca. – vem aqui.
          O convite é irresistível. Não há como negar. Cesar tem diante dele a mulher que todo homem pede a Deus. Edna, uma super morena de lábios quentes. Sua vida íntima com Ana é um desastre. Ana na cama é uma pedra de gelo. Sexo para ele é a cada duas semanas e olhe lá. Não, não há como deixar passar essa oportunidade. Cesar se aproxima de sua chefe e ao sentir sua respiração foi como se ligassem o botão de ligar. Por mais que ele ame sua esposa e tem feito de tudo para ficar bem com ela, Cesar não resiste a tentação e mergulha fundo na aventura sexual naquele quarto apertado. Até que o vendedor é bom amante. Ele consegue fazer Edna transpirar e exalar seus gemidos que são comprimidos por sua mão
         A transa não demorou muito. O medo de serem surpreendidos falou mais alto. Cesar chegou ao ápice respirando aliviado também.
- Uau, sua mulher deve ser a mais feliz desse universo. – Edna recolhe sua blusa.
- Prefiro não tecer nenhum comentário.
          Isso se chama consciência pesada. Cesar agora tem nas costas uma culpa que pesa uma tonelada. Sua chefe percebe no ar o clima em que se encontra seu subordinado, ela sabe que ele pisou na bola. Ela conhece muito bem quando um homem vacila.
- Tudo bem?
- Vou ficar. – abaixa a cabeça.
- Se quiser conversar estarei em minha sala. – coloca o indicador em seu queixo.

*

Cesar coloca de qualquer maneira seus pertences dentro da mochila inclusive a pasta deixada por Edna. Seu celular toca e no visor o último nome que ele gostaria de ver.
- Oi, Ana?
- Está podendo falar?
- Estou de saída, mas pode falar. – fecha a mochila usando somente uma das mãos.
- Aonde você passou a noite?
- Fui para um hotel. – Coloca a mochila nas costas.
- Você não tinha o direito de me deixar sozinha e sair no meio da noite, Cesar.
- Ana, não havia como eu ficar e dormir na mesma cama com você, não depois do que você me disse.
- Você dormiu com alguém?
- Só me faltava essa, eu, Cesar dormir com alguém numa cama de hotel de quinta, faça-me o favor, Ana.
- Vocês homens agem dessa forma, preferem fugir a resolver a situação.
- Ana, fala logo o que você quer, estou saindo a serviço. – fecha a porta de sua sala.
- Quero saber se você vem para casa a noite?
             A vontade de dizer Não é forte. Cesar poderia dar um fim a tudo ali, saindo da firma, porém sua resposta sai diferente e quando dar por sim ele já estava disposto a se sentar a mesa com Ana e terminar o que começou na noite passada. Um otário mesmo pensou.
- Tudo bem.
-  Vou lhe esperar.

*

Do que adianta ser um baita de um vendedor e não conseguir ser um marido dos sonhos, o amor da vida de alguém? Cesar passou por alguns relacionamentos e dá pra contar nos dedos de uma mão os quais ele foi feliz. Sim, ele sabe que o problema está nele, sempre esteve. Se casar com alguém como ele foi uma falha gravíssima. Agora está ali, dirigindo para obter mais um sucesso em sua profissão. Com certeza ele conseguirá vender os produtos e no final do mês seu salário triplicará. Porém nada disso é capaz de fazê-lo sorrir de se sentir bem.
            No GPS mostra que ele precisa dobrar a direita e seguir em frente. O que ele consegue ver é uma estrada de barro com mato em volta. Não há acostamento e nem sinalização. Cesar olha pelo retrovisor e não há ninguém atrás. Seria mesmo esse o caminho?
            Cesar para o carro e pega a pasta. Vai passando página por página até encontrar o endereço.
- Clínica Santa Glória. Bom, estou no caminho certo.
        Ele pisa no acelerador indo mais adiante. Mato e estrada de barro e as vezes cascalhos barulhentos. As nuvens negras se juntam anunciando um pé d'agua daqueles.
- Só faltava essa. – resmunga.
          O vendedor liga o rádio. Não há sinal algum. Nenhuma estação está sintonizando. Ele gira o seletor e nada. Pega o celular. Também não há sinal.
- Onde eu estou?
          Os primeiros pingos de chuva começam a golpear a lataria do carro quando por fim Cesar avista uma construção no meio do nada. Aliviado ele estaciona perto do portão de entrada. O lugar é cercado por grades enferrujadas. Sim é esse o lugar. Ele olha para a placa fixada no alto da construção.
- Clínica Santa Glória.
          Ele desce do carro. Um trovão corta o céu fazendo seu coração acelerar. O portão da garagem está muito bem fechado com corrente grossa e um cadeado maior ainda. Cesar tenta outra entrada. O portão pequeno está somente encostado. Ao lado um interfone com seu material plástico já rachado e sem cor. Ele pressiona o botão algumas vezes e não há resposta, pra falar a verdade o aparelho parece não funcionar há anos. O jeito é entrar e explorar o lugar. Mais uma vez um trovão clareia o céu assustando ao vendedor que aperta o passo até a singela Varandinha da clínica. A chuva começa forte. Cesar bate na porta de entrada mas ela está trancada.
           De repente um aviso escrito no alto da porta chama atenção de Cesar. Uma pequena placa feita de madeira fina e com letras irregulares em vermelho vivo. “Não entre aqui” o esposo de Ana analisa o aviso e depois olha para a janela onde seria a recepção da clínica. A janela é baixa e obriga a Cesar a se inclinar.
- Olá, alguém aqui?
           Nada, só o silêncio. A chuva estiou, hora de olhar outros cantos desse lugar estranho. Do lado esquerdo há uma porta de vidro e grade. César gira a maçaneta e ela cede. Tudo escuro, silencioso e um cheiro forte de éter.
- Olá? – coloca um pé. – sou o vendedor César Araújo tem alguém que possa me atender?
          Por fim César está dentro da clínica. Logo de cara um corredor estreito onde parte das lâmpadas estão apagadas e outras com mal contato. O vendedor começa a ter diversas sensações. Ele nunca foi de ter medo sua criação não permite isso. César teve um pai bastante rígido e machista. Para seu Araújo homem que é homem não chora e nem sente medo. Talvez seja esse um dos fatores que venham contribuindo para os fracassos em seus relacionamentos.
         César bate na primeira porta onde há escrito medicação. Não obtendo resposta ele resolve abri-la. Nada. Apenas uma mesa, cadeira e um precário armário com meia dúzia de caixas. Ele deixa a sala e parte para outra em frente. Dentista. Coisa que César sempre odiou. Ele entra. A sala é uma sujeira só. O equipamento parece ser do início do outro século e para o espanto total do vendedor, na bandeja há algodão com sangue e dentes. O estômago de César sempre foi muito resistente, porém hoje ele se mostrou frágil como o de uma donzela. Antes de sair daquele espetáculo de horror ele ainda repara no encardimento das paredes. Há manchas do que parece ser vômitos e até marcas de sangue passado com dedos. Cesar fecha a porta bem devagar.
          De volta ao corredor onde uma lâmpada acende e apaga incessantemente, o vendedor consegue ver uma outra porta entreaberta e do interior da sala vaza uma luz fraca. César anda preguiçosamente mas com o coração a mil.
- Oi?
         Não há nada que identifique. A luz está acessa porém vazia. Há uma maca com estofamento que um dia foi branco. Uma mesa e logo atrás um pequeno armário com alguns papéis em cima. Cesar entra. O que parece é que o lugar está abandonado a séculos.
- Pois não?
        A voz ainda ecoa nos ouvidos do esposo de Ana quando o som da porta se fechando o faz virar imediatamente.

*

Ana Araújo. Mulher linda de longos cabelos lisos e negros. Olhos claros e nariz arrebitado. Trabalhou por muito tempo numa agência bancária e agora desfruta de viver do seu próprio negócio. Ela conheceu César durante um evento e se apaixonou por ele logo de cara. Bonito. Esbelto, elegante. Cabelos ondulados e sempre bem barbeado, César fez o coração da futura empresária explodir de amor.
        Eles namoraram por pouco tempo e quando viram já estavam dividindo o mesmo teto. A relação foi do céu ao inferno com uma rapidez que mal deu pra sentir. Nessa guerra quem mais se desgasta é César que odeia intrigas e discussões. Ele paga se for necessário para não entrar numa DR.
          Verdade é que o casamento vai mal, muito mal. Eles não se entendem nem mesmo na cama. O sexo deixou de ser aquilo que era antes onde ambos transpiravam molhando os lençóis. Nada disso acontece mais. Aonde os dois erraram? Ana prepara o jantar. Ela quer impressioná-lo. Ela está disposta a reconstruir seu casamento ao lado do homem que ama.
           Ana se distrai pensando no como seria sua vida sem César. Sem a sua lentidão e calmaria. Não. Isso jamais pode acontecer. O cheiro do assado já passando a faz voltar. Mais rápido do que nunca ela confere o forno e o frango está lá, passando do dourado.
- Até nisso o Cesar me atrapalha. – resmunga.

*

César odeia tomar susto. Para ele nada disso deveria existir como filmes e livros de terror. Ele gira nos calcanhares e dá de frente com uma mulher vestida de branco segurado uma prancheta.
- Posso ajudar? – ela diz.
- Oi, sim, sou o vendedor César Araújo vim trazer o catálogo de nosso material hospitalar. Qual o seu nome?
- Terezinha, sou a técnica de enfermagem.
- Posso falar com o responsável pela clínica?
- Sim, claro, seu Cosme, sua sala fica no final do corredor.
- Obrigado. – César sai da sala
          A porta é fechada bloqueando a luz fraca. O silêncio volta a falar mais alto restando apenas o som dos sapatos do vendedor em contato com o piso. Um pouco mais tranquilo César passa por uma porta de onde é possível ouvir o som de muitas vozes. Ele para. Olha para trás. A luz que piscava agora parou de vez. As vozes continuam. Tremendo ele coloca a mão na maçaneta e a gira. A mesma se abre e instantaneamente as vozes se calam. Uma sala com  muitas cadeiras empilhadas cobertas por poeira. No teto um ventilador girando ruidosamente. Uma energia exala daquele lugar. Uma energia nenhum pouco boa. César faz questão de sair logo dali.
         Finalmente a sala do responsável pela clínica. Não há identificação na porta, apenas tintura se desfazendo. Dois toques. Nada acontece. Mais dois toques e César invade a sala mal cheirosa.
- Meu Deus. – tapa o nariz.
          Na mesa alguns papéis, envelopes, canetas e uma xícara de café vazia. Abafada, mal iluminada e sem vida. No canto outra porta. O banheiro supõe-se. César resolve entrar. Sim, um banheiro. O lugar fede bastante. Parece que nenhuma faxineira sequer chegou perto daquele local. A torneira, por falta de uso está com sua rosca enferrujada. César precisou fazer uma pequena força. Nada.
- Mais que droga.
- Algum problema? – diz Cosme logo atrás.
         Num salto o vendedor se volta para o velho calvo de jaleco branco. Cosme tem o rosto coberto por rugas profundas.
- Me desculpe invadir sua sala desse jeito. Sou o vendedor César Araújo, prazer. – estende a mão.
- Cosme.
          A mão do velho é mole e úmida.
- O que trouxe para mim?
- Sim, catálogo do nosso material.
          César cai em si. Na correria ele acabou deixando todo o material no carro.
- O senhor me aguarda um minuto, eu... – vai passando por Cosme que o segura pelo braço.
- Onde pensa que vai?
- Acabei de me lembrar, eu deixei meu material no carro.
- Esqueça o material. A chuva está mais forte, sente-se e espere passar.
         Os olhos de Cosme estão mais vivos, mais ameaçadores e isso deixa o vendedor ainda mais assustado. Mesmo contra a vontade Cesar acata ao pedido do idoso. Ele volta para dentro da sala que estranhamente se tornou um pouco mais fria. Olhando ao redor ele não vê ar refrigerado ou exaustor.
- Vamos meu rapaz, sente-se. – puxa uma cadeira.
- Obrigado.
            Cosme realmente é uma figura estranha. De baixa estatura e encurvado o velho diretor da clínica  usa passos lentos porém precisos. Ele dá a volta até se acomodar em sua cadeira ficando frente a frente com César.
- Você prestou atenção na placa lá fora?
- Sim, mas não liguei muito. Por que?
- Ela informava algo, não informava? – se inclina.
- “Não entre aqui”. – César cruza as pernas.
- E você entrou. Ignorou o aviso. Isso significa que você está disposto a tudo. Não é mesmo?
- Como o que?
           O olhar de Cosme é penetrante, Cesar se sente intimidado. Ele cruza e descruza as pernas.
- Você conheceu a Terezinha, minha técnica em enfermagem? – Cosme esboço um sorriso.
- Sim.
- O que achou?
- Muito prestativa. – gesticula.
- Não estou falando disso meu caro. Estou perguntando como ela é como mulher.
            Aonde esse velhote quer chegar com essa conversa? Cesar passa a mão nos cabelos antes de responder.
- Não prestei atenção.
- Tem certeza? – sorrir.
          Irritado César resolve se levantar colocando um ponto final na conversa.
- Com licença, vou buscar o catálogo.
- Você não vai a lugar algum.
           Os pés de César ficam pesados. Ele olha para Cosme que sorrir para ele. A expressão agora transmite satisfação. O vendedor tenta dar mais um passo. Não consegue.
- Já traiu sua esposa senhor Cesar?
- O que?
             Que dura realidade. Se Cosme perguntasse a mais ou menos três horas atrás ele diria com todo gosto que não. Com um esforço sobrehumano ele consegue mover o pé na direção da porta.
- Já dormiu com alguém que não seja sua esposa? – se levanta.
           Seria valido responder que ele já transou com sua chefe num cubículo? Ou que já desejou fazer loucuras com sua cunhada? A sensação é terrível. De repente o estômago de César começa a se revirar. Ele gofa.
- O senhor está bem senhor Cesar? – pergunta olhando para o vômito no chão.
- Me desculpe, eu limpo.
- Então, já traiu sua esposa?
- Sim. – responde de maneira soturna.
           Nesse momento o peso que sentia nos pés se dissipa. Até mesmo o enjôo repetindo o deixa. Mais aliviado o vendedor volta a se sentar. A cada minuto que passa aquele lugar se torna ainda mais assombroso. Tudo o que César gostaria de fazer é mostrar o catálogo, oferecer os produtos e dar o fora dali mais o rápido possível.
- Senhor César. – entrelaça os dedos. – gosta de vender?
- Digamos que sim.
- Você se venderia? – aquele sorriso perturbador volta a ficar estampado no rosto do velho.
- Veja bem, senhor Cosme, o intuito da minha vinda aqui é...
        Cosme fecha a mão e bate na mesa. O susto foi tão grande que César foi obrigado a conter o grito.
- Responda a pergunta. – arregala os olhos.
- Não sei. – a voz sai um pouco mais alto que o esperado.
- Essa pergunta é muito fácil de responder. O ser humano se deixa levar por qualquer coisa, principalmente pelo dinheiro. Por causa do dinheiro muito sangue foi derramado, muitas vidas foram tiradas e amizades desfeitas. Uma maldição. Porém tudo o que precisariam dizer era NÃO. Agora responda, você se venderia?
           César volta a se deixar intimidar pelo olhar do idoso. Um terrível mal estar toma conta de seu corpo a ponto de fazê-lo transpirar. A visão fica embaçada.
- Algo errado, César? – sorrir.
- Não me sinto bem, preciso ir embora.
          A camisa de manga azul começa a grudar na pele por causa do suor forte. César perde o controle da saliva e tudo gira. Gira bastante até que a escuridão assola aquele lugar. O vencedor cai da cadeira.

*
Não há nada mais revigorante que um banho quente. A água escorre morna pelas costas de Ana que fecha os olhos tentando imaginar seu esposo ali com ela. César. Por quer fomos deixar que a rotina entrasse em nossa vida? Por que se afastou de mim?
           O sabonete desliza pelo corpo e ainda de olhos fechados Ana se recorda da primeira vez em que ela dividiu o banho com César. Foi muito prazeroso. Ele a tocava forte. Ela sentia como se uma corrente elétrica saísse dele direto para suas terminações nervosas. Com a água quente escorrendo, Ana chegou ao prazer antes mesmo de ser penetrada.
         Hoje isso pode voltar a ser uma realidade. Tudo vai depender dela. Quanto menos chata melhor, quanto menos orgulhosa melhor. Ana fecha o chuveiro. Lá fora a chuva não dá trégua. Na cozinha tudo preparado para a chegada do marido. Sim. Nada pode sair errado, caso contrário o divórcio será a única saída.

*
O calor, o cheiro e as alucinações vão fazendo com que o vendedor vá recobrando a consciência. Ele abre os olhos. No teto o azulejo encardido com sinais de infiltração. O mal estar ainda lhe faz companhia e só então César percebe que se encontra deitado numa maca fria. Ao tentar se erguer sua cabeça lateja e ele volta a posição inicial. Não há ventilação, a sala está vazia. A porta abre bruscamente e Terezinha adentra segurando uma bandeja com material médico como seringa, algodão e alguns comprimidos dentro de um copinho de café.
- Que bom que acordou, vamos tomar um remedinho?
- Cadê o senhor Cosme?
- Resolvendo algumas questões, agora sente-se por favor.
           Mesmo contra sua vontade César não pode deixar de notar na técnica de enfermagem. Ela é uma mulher madura, porém muito interessante. O jaleco branco, o estetoscópio e os cabelos loiros amarrados num perfeito rabo de cavalo, Terezinha consegue despertar algo no esposo de Ana.
- Eu preciso mesmo tomar isso? – César se ergue.
- Vai aliviar a dor na cabeça.
- Como sabe que estou com dor de cabeça?
         Terezinha olha de maneira sedutora para o vendedor. César é praticamente hipnotizado por ela.
- Sei exatamente o sente no momento, César. – toca com o dedo indicador os lábios do homem.
          Ela vai aproximando o seu rosto do dele. César vai fechando os olhos aguardando o suculento beijo. Terezinha permite que seu hálito o invada antes do toque final. Pronto. O beijo acontece. A língua da mulher parece viva. Ela vai entrando forçando o vômito do vendedor. Cesar se afasta buscando ar. Ao ver que não se trata de uma língua humana, mas sim de uma serpente, César pula da maca.
- Quem é você?
- Fique calmo, eu apenas concedi o desejo do seu coração.
- Deixe-me ir, por favor.
          Terezinha mostra a porta para ele. César passa por ela em alta velocidade. O corredor extenso na penumbra o paralisa. Sua respiração se torna pesada. Ele aperta o passo. Anda até a metade do corredor quando mais uma vez as vozes ecoam. Elas estão mais altas e há gritos também. César tampa os ouvidos e tranca os dentes. Peso nas duas pernas, essa é a sensação. César vai perdendo as forças e se ajoelha. As vozes continuam a deixá-lo a beira da loucura. Ele aperta as mãos contra os ouvidos e fecha os olhos. Gritos e mais gritos. De repente todo o barulho cessa. Ele abre os olhos e olha os redor. Ele se vê no meio de uma multidão de zumbis.
           César levanta devagar. Os mortos vivos olham para ele desejando sua carne. São homens, mulheres e crianças.
- Me deixem em paz.
           Uma menininha zumbi o morde na mão sem ele ver.
- Argh.
          Nessa hora todos atacam ao mesmo tempo com mordidas e arranhões. César grita desesperadamente de dor e pavor. Enquanto é mordido e luta por sua vida ele se recorda que ainda precisa sair dali e se encontrar com sua esposa. Ele precisa deixar aquele lugar miserável. Assim ele vai tirando forças de onde não há. Abrindo caminho entre os mortos murmuradores.
         Faltando pouco para se livrar de vez daquele inferno um dos mortos o segura pelo pé. O tombo é feio. O som do corpo do vendedor é algo surdo. Ele arfa enfurecido.
- Maldito, me deixe em paz.
         César resolve entrar na briga. Socos, chutes e empurrões. O rapaz consegue sair correndo até o fim do corredor. As roupas de Cesar estão piores que um pano de chão. Sangue misturado com sujeira e suor. Seu corpo já começa a sentir o peso da pressão. Ele precisa sair daquele lugar ou será morto. No fim do corredor não há iluminação e o frio faz sua pele trincar.
- Me ajude Deus.
         Uma onda de náuseas repentina o faz parar. Outra vez aquele mal estar dos infernos. Cosme com certeza se encontra nessa escuridão. A voz maligna do velho invade os ouvidos do esposo de Ana. “você ignorou o aviso César, por isso está sendo punido, não por mim, mas sim por suas escolhas”. O vômito sai sem César fazer força. Após o vômito uma dor alucinante no estômago. Parece que algo quer sair de dentro dele. César emite urros quando algo se move em seu estômago.
- Me mate de vez, seu velho nojento. – Grita.
         Cosme aparece ao lado do vendedor. Mais uma vez aquele sorriso sinistro no rosto. César cai se contorcendo segurando a barriga.
- Qual a sensação de saber que nada poderá salvá-lo, César?
          Tremendo, suando e com o rosto praticamente desfigurado Cesar abre a boca. Uma cabeça surge de dentro. Um bebê de aspecto macabro. Finalmente a criatura sai por completo de César. Cosme o recolhe do chão.
- Vem com o vovô.
         Cuspindo uma gosma acinzentada Cesar se levanta e se apoia nos joelhos.
- Agora você já pode ir. – diz ninando o bebê.
- Como assim?
- Vai ignorar outra ordem, César?
         César olha para a criança que a cada minuto cresce. No momento ele é uma criança de cinco anos.
- Esse é você. Inocente, vulnerável, precisando de cuidados. – Cosme faz uma pausa. – o que você gostaria que ele fizesse quando tiver sua idade?
- Eu, eu, não sei o que dizer.
          Agora César é um adolescente, bonito, esperto e cheio de saúde. Cosme afaga os cabelos do garoto olhando para o outro César.
- Siga o meu conselho, lá fora há uma sepultura, aberta, fique lá até saber o que falar para ele.
          César e César. Um de frente para outro. O velho César abre a porta dá saída com a noite o aguardando. Ele caminha com dificuldades até chegar perto da sepultura. Dentro da cova um caixão de madeira bruta. Antes de se deitar ele olha para a saída da clínica. Ao lado do novo César está Terezinha que acena para ele. Com a voz de Cosme ela diz.
- Vá descansar. O novo César cuidará de tudo.
          Melhor não ignorar outra ordem. César se deita. A chuva cessou. O novo César usando as mesmas roupas sai da clínica assim que o velho César fecha os olhos. Ele entra no carro. Dá a partida e desaparece estrada afora.

Fim
       




   

quarta-feira, 3 de outubro de 2018

TEMPESTADE de LOBOS - SÉRIE COMPLETA

Tempestade de Lobos


         A primeira fera foi abatida e agoniza no chão buscando ar. A outra se prepara para o ataque mostrando seus dentes pontiagudos e sujos de  sangue. A sua frente um sujeito parado segurando sua arma mais afiada do que qualquer outra lâmina. Se ele está com medo? Sim, claro que ele está com medo. Ficar frente a frente com uma criatura rosnando e desejando lhe devorar até os ossos e de fazer qualquer um tremer nas bases.
          O lobo mexe com as patas maiores que duas mãos humanas juntas. Abre os olhos e a boca de onde escorre uma saliva densa e escura. O ataque é rápido, certeiro e mortal. O sujeito ergue a espada a fazendo descer com força no dorso do bicho. Enlouquecido o lobo volta ainda mais feroz deixando vazar seu sangue pelo chão.
           Mais um ataque e dessa vez a criatura tenta cravar suas presas no braço do homem que se antecipa ao animal do inferno. A espada entra até a metade na região do tórax. O grunhido sai alto e piora quando o sujeito retira a espada e decepa sua cauda. Sentindo fortes dores o bicho fica a rodopiar na tentativa de lamber o ferimento. O sujeito saca o revólver e atira duas vezes contra a cabeça do animal. Dois a menos nessa terra amaldiçoada.
            Antes de ir embora ele aguarda que as criaturas voltem ao seu estado normal. Dois homens fortes. Dois seres humanos que infelizmente tiveram suas vidas mudadas devido a uma maldição. Ele lamenta, mas algo precisava ser feito. Um dos homens ainda se mexe.
            - Me ajude. – sussurra.
            Diante daquele quadro agonizante o sujeito não vê outra saída a não ser lhe ajudar com a morte.
            - Atire em mim, por favor. – implora.
            Um disparo na cabeça e tudo acabado. Lá se foi uma história, sonhos e quem sabe planos. O matador coloca sua espada na bainha e seu revólver no coldre. Ele desaparece floresta a dentro ao ouvir um estrondoso uivo vindo em sua direção.

Tempestade de Lobos - Parte dois

              O velho Arnaldo cai de repente deixando cair sua caneca de chá. Naquele chão rústico o idoso se contorce sentindo sua pele queimar. Arnaldo tenta ficar em pé, mas a dor e desconforto são maiores que sua força, por isso ele volta a cair e dessa vez ele grita pedindo ajuda. O velho mora sozinho, isolado dentro de uma cabana distante da grande cidade.
              Não suportando a queimação por todo o corpo, Arnaldo praticamente arranca suas roupas rolando pelo chão.
             - Me ajudem. – clama.
             Nu, machucado e transpirando muito, o velho fica de quatro quando os pelos começam a crescer. Em seguida suas mãos de pele enrugada também começam a crescer e a tomar forma de patas. Arnaldo volta a gritar.
            - De novo não, por favor, Deus.
           Minutos depois o velho Arnaldo dá lugar a uma criatura furiosa com pelos negros e cauda que dispara porta afora uivando em busca de comida.

*

              A vítima é um jovem. Ele está cansado e sangrando muito. A criatura lhe arrancou a mão quando o mesmo tentou enfrentá-lo. O garoto corre, mas sente que seu fim está mais próximo. Edu consegue ver uma árvore onde pretende se abrigar. O ferimento dói muito, lateja, uma dor estranha. Logo atrás o lobo vem com seu olhos assustadores e garras afiadas.
             Edu consegue se camuflar entre as raízes expostas da árvore. O pavor é incontrolável, sua respiração é pesada e a dor pior ainda.
             - Meu Deus, me ajude.
             O monstro do inferno para farejando algo no ar. O bicho sente o cheiro do sangue, percebe o medo. Edu fecha os olhos chorando e quando os abre o lobo ainda está ali parado, rosnado e como focinho no chão. Qualquer ruído será a sentença de morte. Edu olha para o que sobrou de sua mão quando sente uma forte pontada que o fez gemer alto. O lobo o localiza e pula pra cima da presa. O garoto se desespera quando tem o braço mordido. Edu ainda tenta se defender chutando a fera, mas recebe outras mordidas violentas. O sangue jorra manchando o focinho do animal das trevas.
              - Socorro, alguém me ajuda. – grita a plenos pulmões.
Edu tem parte do rosto arrancado. O reflexo da mordida foi tão profundo que é possível ver os ossos. Edu já não tem forças e não reage mais. Ele sente cada mordida, cada parte de seu corpo mastigado pelo lobo quando o mesmo solta um grunhido alucinante. Ainda com um pouco de consciência ele consegue ver um sujeito com uma espada cravada no lombo do bicho. Por fim Edu perde os sentidos e apaga.
                Agora a fera se volta contra o matador que se afasta. Ainda com pedaços de Edu na boca o lobo tenta morder o matador, mas tudo o que consegue é outro golpe que arranca sua orelha fora.
O uivo de dor do animal é alto e medonho. Ele mais uma vez investe contra o sujeito que se prepara para lhe aplicar outro e definitivo golpe. O lobo salta com suas patas já na posição de cravá-las no peito do homem.  Com medo, porém calmo, o matador enterra a espada no peito do bicho até aparecer a lâmina do outro lado. Com o peso ambos vão parar no chão
               O lobo cai voltando a ser humano. Em questão de segundos o velho Arnaldo está de volta, sangrando e ainda grunhido. O matador puxa a espada e o velho arfa cuspindo sangue. Ele corre para socorrer Edu, mas é tarde, o garoto veio a óbito.
               - Deus tenha piedade de sua alma. – diz fazendo o sinal da cruz.
               Arnaldo geme pois sabe que seu fim está próximo. O matador saca seu revólver e anda na direção do velho.
              - Eu, eu sinto muito, fui amaldiçoado, eu não tenho culpa, por favor.
              - Não posso permitir que você fique vivo, na próxima noite você matará mais alguém, me perdoe.
             - Não, por favor...
            O matador dispara contra a cabeça de Arnaldo. Ele lamenta profundamente não ter evitado a morte de mais um inocente. Até quando isso vai durar? Até quando pessoas serão devoradas?

Tempestade de Lobos – Parte três

              A sociedade cobra das autoridades uma solução imediata. Ninguém mais circula pelas ruas tranquilo. Todos estão assustados com esse inferno em que se transformou a terra. O presidente convocou os principais líderes militares para combater as feras assassinas. A sala presidencial está movimentada e com homens fardados de verde Oliva.
            - Senhor presidente, meus homens estão preparados para essa intervenção, tenho certeza que com essa motivação iremos limpar o país dessa casta. – disse o general.
            - Disso eu não tenho dúvida general Braga, conto com seus homens e espero que os resultados sejam satisfatórios.
            - Vou entrar com a linha de frente, minha infantaria dará o início.
            Um forte aperto de mão e a reunião está encerrada. O exército assumirá o combate aos lobos utilizando armamento pesado. Ao saber da entrada das forças armadas a população voltou a respirar e também a crer que dias melhores virão. As ruas se transformaram em quartéis generais com jipes, blindados e outros veículos contendo homens fortemente armados. Ao meio dia começaram as patrulhas e as buscas pelas feras.
             Um dos jipes com uma ponto  cinquenta adentra a mata seguido por um grupo de dez soldados a pé. De repente um forte rosnado. Todos param ante a ordem do sargento.
            - Alto. – ergue o braço. – há mais de um naquele direção.
           Sim. O oficial está certo. Há na verdade cinco feras vindo em busca de carne fresca. Cinco monstros gigantes com seus dentes ameaçadores. Os soldados aguardam os animais apontando seus fuzis na direção indicada.
            Um dos lobos aparece correndo e rosnando. Ele salta e é alvejado pela ponto cinquenta. O poder dos disparos são tão fortes que quase divide em duas partes o bicho. Aos poucos o animal vai dando lugar a um homem negro que buscar o ar desesperadamente até morrer.
             Dois lobos surgem saltando alto e um deles surpreende um soldado com sua rapidez. O militar tem o braço mordido quase lacerado. Os fuzis são disparados levando o animal a morte. O soldado ferido é recolhido quando outros lobos atacam o pelotão.
            - Eles são muitos, atirem. – grita o sargento.
           A batalha contra as criaturas uivantes se torna intensa, sangrenta, um espetáculo de disparos e rosnados. A ponto cinquenta não para um minuto sequer. Aos poucos os bichos já abatidos vão voltando ao estado normal de ser humano.
           - Cessar fogo, cessar fogo. – ordena o líder.
          A imagem que se vê a frente é triste. Muitos homens mortos com perfurações e parte dos corpos arrancados. O soldado ferido geme sentindo a ferida queimar.
          - Senhor, o que faremos, logo logo ele vai se transformar.
          Cabisbaixo o sargento se aproxima de seu homem lhe tocando o ombro.
          - Lamento, mas o serviço deve ser feito.
          - Senhor, faça o que tende fazer, só diga a minha mãe que eu fui um soldado corajoso. – chora.
          - Claro, você foi um guerreiro nessa campanha.
          Vendo que pelos começam a crescer o sargento saca sua pistola e atira contra a cabeça do soldado.

Tempestade de Lobos – Parte quatro

             Andar por aquela região é algo bastante complicado para um homem como ele. Antes de tudo começar ele possuía uma família a qual conquistou com muito custo. Ele sempre foi um sujeito difícil, mal humorado e desconfiado. Sua esposa vivia as duras penas um casamento cercado de discussões, desconfiança e até mesmo abandono. Ela se sentia uma peça descartável ao lado dele.
Tudo mudou quando seu filho veio ao mundo. Foi algo extraordinário jamais vivido por ele. Aquela criança foi capaz de frear o furacão que era a vida de seus pais. Ele mudou e ela ficou feliz, ambos eram felizes. O menino cresceu num lar onde o amor e compreensão imperavam. Respeito um pelo outro, esse era o quadro de sua família.
             Ele agora caminha sozinho tendo uma espada e um revólver como amigos. Jogada nas costas uma capa de couro marrom e na cabeça um boné. O matador. Ele executa quem executou toda sua família. Toda sua família. Meu Deus, onde erramos?
             O matador olha para onde costumava ser o seu lar. Um prédio de dez andares situado no centro de uma pequena cidade. O prédio ainda está lá, mas as pessoas não. Não sobrou ninguém. Foi horrível. Os lobos invadiram o local e foi como uma chacina, uma carnificina generalizada. Ele ainda tentou salvar as pessoas, porém os lobos estavam em maior número. Todos foram devorados. Ele engole o nó formado em sua garganta.
               Ele continua caminhando arrastando suas botas, observando o caos. Olhando para o céu as nuvens de chuva começam a se juntar. Hora de procurar abrigo. Mais adiante ele vê uma casa com os vidros das janelas quebrados. O portão está aberto. Ele saca sua arma e passa pelo portão. O silêncio incomoda. Ele não gosta desse tipo de situação. Ele olha para o interior da casa e tudo o que consegue ver são móveis, um quadro e um ventilador no teto. Seria ideal para passar a noite? Ele entra.
Lá dentro o ar é pesado, carregado e lá fora a chuva começa a molhar o chão. Em tempo recorde a chuva toma maiores proporções. O matador olha para o sofá e sem hesitar ele se joga e relaxa. Fecha os olhos e de repente ele volta a um passado recente. Sua linda esposa massageando seus ombros. Que delícia. Isso era todas as noites assim que ele chegava do trabalho. Maravilhoso.
              - Oi?
              Ele não responde, está muito bom para voltar a realidade.
             - Ei, cara.
             Não. Essa não é a voz do meu bem, ela jamais me chamaria de cara. Se não é ela, quem será? Ele abre os olhos e contempla uma mulher de cabelos curtos, olhos verdes, alta segurando uma pistola.
             - Quem é você? – ela dá um passo para trás.
             - Calma, eu só entrei para me proteger da chuva, eu já vou indo. – tenta se levantar.
             - Você não vai a lugar algum, fique sentadinho aí.
             - Moça, eu...
             - Fique quieto e me passe sua arma.
             - Sim, claro. – tira o revólver do coldre e o joga no chão.
             - O que é isso pendurado nas costas? – chuta a arma para longe.
             - Uma espada. – engole seco.
             - Quantos animais você já matou?
             Ele franze a testa.
             - O que perguntou?
             - Você ouviu muito bem, quantos lobos já matou. Responda, ou eu te mato.
             - Não sei, trinta talvez.
             - Me passe a espada.
            O matador não pensa duas vezes. A mulher segura a espada impressionada com seu peso e designer. Ele não esboça reação, apenas olha para ela.
             - Perfeita. O fio está danificado, mas nada que uma boa amolada não resolva. – olha para ele. – sou Dandara e você?
            - Castro.
            - Eu também estou de passagem, entrei aqui só para tentar esquentar minha comida. Você tem comida?
            - Não.
            - Consegui algumas frutas, legumes e um pouco de feijão, posso dividir se quiser.
            - Você poderia me devolver as minhas coisas, já estou caindo fora.
            - A chuva ainda não passou. – lhe entrega a espada. – fique e coma alguma coisa.
            - Tudo bem.
            Eles vão até a cozinha onde há uma mesa com os pertences de Dandara. Uma mochila surrada e um porrete. Na pia as frutas e legumes. No fogão o feijão.
            - Procurei por talheres e pratos e tudo que encontrei foram potes, nada mal. Você estava indo para onde?
            - A lugar algum.
            - Também perdeu sua família?
            Família, uma palavra que lhe assusta. Em todo esse tempo ninguém havia lhe perguntado sobre sua família.
            - Sim.
            - Eu sinto muito. Melhor parar de fazer perguntas.
            - Tudo bem
            Minutos depois lá estão eles comendo na mesa da cozinha que já pertenceu a alguém. Castro e Dandara mal se olham. Lá fora a chuva cessou. Um uivo. Muito próximo. Castro se levanta e vai até a janela. Dandara também se prepara.
           - Me parece ser só um, pode deixar comigo. – diz ele.
           - Lhe darei cobertura.
           - Certo, vou sair.

Tempestade de Lobos – Parte cinco

            Do lado de fora da casa com a noite já despontando no céu o caçador tem os olhos atentos na criatura que caminha farejando algo no ar. Castro olha para Dandara que parece assustada com o tamanho do animal. O bicho para de repente e coça a orelha, uiva e depois desiste de seguir em frente. O lobo dobra uma rua que dará acesso a outro bairro.
          - Não podemos deixá-lo ir, há pessoas lá. – diz Dandara.
          - Venha comigo.
          A dupla persegue a criatura que está parada revirando latas de lixo. Por sorte conseguiu encontrar algumas frutas podres. Para quem está faminto qualquer coisa vale. Castro saca seu revólver e Dandara segura firme o porrete.
           - Quando eu dar o sinal acerte-o na cabeça com toda força.
           - Saquei.
           Castro vai para o meio da rua chamando atenção do lobo que ao vê-lo exibe seus dentes poderosos. O matador dá um passo para trás a fim de se apoiar melhor. O bicho vem vindo com velocidade quando a mulher lhe acerta em cheio. O animal desmorona e aos poucos vai dando lugar a um sujeito alto e forte.
             - Morreu? – pergunta Dandara.
             - Não, só desmaiou. Ei, amigo? – bate com o pé nas costelas.
            O homem vai recobrando a consciência abrindo os olhos.
            - O que aconteceu?
            - Qual o seu nome, de onde vem? – Castro coloca a arma na testa do sujeito.
            - Eu me chamo Sérgio, venho do bairro que fica atrás dos edifícios conhece?
            - Sim, você foi amaldiçoado, Sérgio, infelizmente terei que te matar.
            - Meu Deus. – chora. – e minha família, minhas filhas?
           Castro abaixa a arma e olha nos olhos de Sérgio.
           - É bem provável que você as tenha devorado. Sinto muito.
           Dandara se segura para não chorar. Ela sabe que nada poderá ser feito por ele. Ela  irá presenciar o adiamento de mais uma vida. Não há outro jeito. Castro volta a colocar a arma na testa de Sérgio quando o mesmo começa a se transformar. O disparo espalhou o cérebro no asfalto. Dandara explode em prantos e Castro se mantém firme.
             - Venha, vamos voltar para a casa.

            Enquanto monta guarda na janela, Castro pensa em tudo o que já passou desde quando o mundo foi amaldiçoado. Ele já perdeu as contas de quantos lobos já matou. Um assassino, foi nisso que ele se transformou. Para sobreviver nesse novo mundo foi preciso se tornar num homem sem coração. Dandara se aproxima.
            - Vá descansar, seu turno acabou.
            - Não se preocupe, posso ficar mais duas horas, você parece cansada. Amanhã partirei.
            A mulher se surpreende.
            - Como assim? Achei que faríamos uma dupla.
            - Aquele mundo não existe mais. Hoje é cada um por si.
            - Eu já penso diferente. Acho que agora devemos nos unir e reconstruir o mundo destruído.
            Ela não está errada e ele sabe disso. Por mais que o mundo antigo não fosse o ideal ele merece ser reerguido. Mas a pergunta que se faz é quem com coragem o suficiente daria o ponta pé inicial? Quem se arriscaria em desafiar esse mundo selvagem em prol de uma nova nação livre dos lobos? Quem? FIM