ALTA
PRESSÃO
A cidade de Viva Paz nunca viveu dias que – diferente do nome
que leva – jamais imaginou viver. O crime organizado vem ganhando espaço e a
cada dia que passa, não só o grande centro, como a periferia, vem sentido o
reflexo desse mal. Não adianta tentar encontrar culpados. Os culpados sabemos
muito bem quem são. O momento pede combate e principalmente inteligência. O
criminoso do outro lado é esperto, tem sagacidade e o que é mais preocupante,
ele não tem nada a perder. Hoje, o maior bandido dessa cidade chama-se Gilmar
Dutra, comandante da Liga Vermelha, o maior grupo criminoso que esse país já
produziu. Tráfico, roubo de carga, sequestros e morte de policiais. Especula-se
de que Dutra tenha envolvimento com os mais poderosos cartéis internacionais e
que pretende montar seu império brevemente. Ou seja, Dutra parece zombar das
autoridades, não teme a lei e tão pouco liga para as consequências de seus
atos. Gilmar hoje é um dos homens mais procurados do país e mal sabe ele que
seus dias como ganguester estão contados.
— Quanto temos em caixa? — Gilmar acendeu outro cigarro.
— Próximo de dois milhões. — respondeu seu contador e braço
direito.
— Dois milhões? — ergueu o corpo da cadeira. — quanto foi o
custo da festa?
Sueco abriu sua agenda e tirou de lá algumas notas fiscais e
as entregou ao chefe.
— Veja você mesmo. Eu te avisei.
Dutra conferiu uma por uma das notas.
— Muita bebida cara, comida de gente rica, piranhas de
primeira classe além de outras coisas mais.
Gilmar afastou os papéis e sorveu uma boa quantidade de
fumaça.
— Essa grana precisa ser reposta, e já. — soltou a fumaça. —
manda o pessoal para a estrada e diga que o lance é eletroeletrônico.
— Quantos caminhões, mais ou menos? — guardou as notas e
fechou a agenda.
— Quanto mais conseguirem melhor. — relaxou.
— Pode deixar. Vou reunir a galera e pela manhã estaremos na
estrada.
*
Lídia sentiu a mão de Gustavo apalpar seu seio e ela achou
que estivesse sonhando. Ao se virar seu marido já a beijava no busto.
— Oi, bom dia, amor. — disse se espreguiçando. — quanto tesão
é esse? Fizemos ontem a noite.
— Pois é, hoje eu acordei com muita fome. — deu um beijo em
cada seio.
— Nossa, posso fazer um xixi rapidinho?
— Voando, vai.
Lídia passou pelo armário e pegou seu celular. Entrou no
banheiro e ocupou o sanitário. No whatsapp dezenas de mensagens, boa parte
delas do DPVA.
— Bom dia, Toledo, e a operação, já podemos
colocar nossos agentes em atividade?
A mensagem foi enviada há poucos minutos pelo chefe Álvaro. Lídia
não sabia o que responder ao seu superior, porém precisava dar um parecer.
— Bom dia, Álvaro, creio que ainda falta ajustar algumas
coisas, como por exemplo, o mapeamento de toda cidade, isso deve levar uma
semana ou mais.
Gustavo gritou lá do quarto.
— Que xixi mais demorado, hein?
— Já estou indo. — deu descarga e voltou a digitar.
— Assim que eu chegar passo em sua sala.
Lídia saiu do banheiro e abriu os braços.
— Pronto, vem tomar seu café da manhã.
*
Os dois trabalhadores tem um fuzil apontando na direção de
suas cabeças. Ambos estão apavorados observando toda a carga ser saqueada por
homens fortemente armados. Televisores, microondas, rádios e celulares. Tudo
foi passado para outro caminhão rapidamente. A via foi bloqueada no sentido subida
para Viva Paz. Já o lado de descida, os carros davam marcha ré ou simplesmente
passavam em alta velocidade.
— Tempo esgotado, rapaziada. — disse Sueco batendo na porta do
caminhão. — deixem esses merdas amarrados e vamos embora.
Amarrados, porém aliviados. Os dois funcionários da empresa
de eletroeletrônico foram deixados maniatados, um de costas para o outro. O
ajudante era o que mais chorava agradecendo aos céus por ainda estar vivo.
— Fica calmo, cara. — falou o motorista. — eles já foram,
vamos tentar ficar de pé e pedir ajuda.
Lídia só deixou sua bolsa em cima de sua mesa e partiu para a
sala de Álvaro que terminava de atender uma ligação.
— Bom dia, chefe!
O fone voltou para o gancho. Álvaro olhou para a detetive com
aquele olhar que ela já conhece muito bem. O problema de ter um chefe bonito e
não só bonito, educado, atraente e terrivelmente sedutor é que um assunto que
requer concentração máxima fica comprometido e isso acontece todos os dias, ou
todas às vezes em que ela precisa se apresentar em sua sala. Álvaro é dez anos
mais velho do que ela, possui entradas não tão agressivas no cabelo e sempre
está bem barbeado. Lídia, por ser casada e muito bem casada diga-se de passagem,
não quer admitir, mas seu chefe mexe tremendamente com ela e ele sabe disso.
— Bom dia, Toledo, sente-se. Já tomou café?
— Ah, não. — puxou a cadeira.
— Vou preparar um pra você. — deu às costas se virando para a
máquina de café de cápsula. — me diga, como vai o boxeador?
— O Gustavo vai bem, acho que ele vai voltar aos ringues.
Álvaro girou nos calcanhares.
— Sério? Ele já não havia pendurado às luvas?
— Pois é, mas sabe como são os lutadores né, sempre arrumam
algo para voltar ativa.
— Achei legal. Por favor, quando já tiverem a data da volta,
me avise, quero assisti-lo.
— Claro, claro, primeira fila. — Lídia estava nervosa, muito
nervosa.
Álvaro lhe serviu o café numa pequena xícara e se sentou.
Entrelaçou os dedos e voltou a olhar para ela daquele jeito que faz qualquer
iceberg derreter.
— Gilmar Dutra. Temos que pegá-lo. — expirou.
— Sim! — sorveu o café. — Talvez seja esse o caso mais
difícil em todo esse tempo em que estou na polícia. O cara é escorregadio
demais.
— A ficha dele é extensa e acredite, não para de crescer. —
voltou a se levantar. — os crimes de roubo de carga nas principais vias de
acesso a cidade aumentou consideravelmente de um mês pra cá, é assombroso. —
mexeu em alguns papéis em cima do arquivo.
— Acha que Dutra está envolvido nisso também?
— Acho não, eu tenho certeza. — se virou para ela. — fizemos
uma grande apreensão de cocaína mês passado, ele deve estar repondo a grana que
perdeu através do roubo de carga. Sugiro que a detetive comece por patrulhar às
estradas.
A xícara foi parar na mesa do chefe. Lídia estava em choque
com tamanha precisão e o quanto seu superior possui polícia na veia. Isso só fez
crescer a admiração e por que não dizer, paixão por Álvaro.
— Faremos assim. Permissão para me retirar, senhor.
— Permissão concedida, agente Toledo.
*
Ser sparing de um ex pugilista já não é nada fácil, ainda
mais quando esse ex pugilista foi o melhor em sua categoria. Gustavo a cada dia
intensifica seus treinamentos colocando em dia suas tão famosas técnicas que o levou
ao cinturão dos meios pesados em sua época áurea. Hoje, já aposentado, mesmo
aos trinta e oito anos, Gustavo se
dedica a ensinar em sua academia que leva seu nome, Gustavo Boxe. É daí que sai
o seu sustento e também foi ali que ele foi convidado a voltar para os ringues,
para encarar seu antigo rival, Jorge Touro. Gustavo teve a oportunidade de
lutar com Touro três vezes e foi nocauteado nas três. O ex campeão nunca
engoliu essas três derrotas e para ele, vencer Jorge seria como voltar a erguer
o cinturão novamente. O treino acabou. O suor escorre empatando sua camiseta
regata.
— Valeu por hoje, campeão, parabéns, tá afiado. — elogiou
Terremoto.
— Nossa, é como renascer. — abriu a garrafa de isotônico. —
vou tomar um banho e me preparar para às aulas a tarde.
— Vá devagar, não force muito. — pegou sua mochila no canto
do ringue. — essa será a luta do século.
— Deus te ouça. Pelo menos a agência está fazendo o papel
dela. A promoção nas mídias está bombando.
Assim que voltou a ficar sozinho, Gustavo deu uma longa
olhada em toda a extensão de seu negócio e um filme bastante triste se passou
em sua mente. De menino pobre, quase um delinquente a campeão dos meio pesados e
agora empresário bem sucedido. Gustavo, no início não tinha estudos, mal havia completado
o ensino fundamental. Para ajudar em casa ele precisava engraxar sapatos na
estação de trem ou simplesmente furtar carteiras dos transeuntes. O boxe
aconteceu em sua vida quase que por um acaso. Ele trabalhava de boy numa
empresa quando era adolescente e precisava levar um documento numa academia.
Chegando lá ele só queria entregar os documentos e sair fora. Foi quando um dos
frequentadores lhe pediu um favor.
— Pode segurar o saco de bater pra mim, por favor? É que
estão todos ocupados.
— Tá beleza.
Podemos dizer que foi paixão a primeira vista. Gustavo na
outra semana se matriculou e em menos de dois anos ele já era destaque vencendo
torneiros internos e pequenas competições entre academias. Quem era capaz de
imaginar que aquele garoto tímido alcançaria o topo? Agora ele está ali,
olhando tudo que conquistou, fama e dinheiro, prestígio e reconhecimento.
Gustavo, mãos de rocha.
*
Outra vez Lídia foi chamada para comparecer a sala do chefe e
dessa vez Álvaro não está nenhum pouco atraente. Tudo isso tem um grande
motivo. A chegada de uma nova denuncia sobre roubo de carga conseguiu estragar
o que já estava ruim. Álvaro não só convocou Toledo, como também outros
agentes. Sua sala ficou pequena.
— Não podemos mais esperar. — declarou Álvaro assim que Lídia
ocupou o único espaço existente. — mais um caminhão com cerca de duzentos mil
em eletroeletrônicos foi roubado, isso já virou rotina em Viva Paz e nós
estamos assistindo de braços cruzados.
Lídia engoliu seco.
— Toledo, preciso que sua equipe entre em ação agora mesmo.
Vamos para às ruas. Precisamos marcar presença, mostrar que o estado está
presente.
— Sim, senhor.
Dez viaturas deixaram o pátio do DPVP sentido grande centro. A
operação para reprimir o roubo de carga ainda não foi deflagrada, mas, como foi
dito por Álvaro, essa ação servirá de sinal aos marginais de que a polícia está
em alerta. Assim que alcançaram um determinado ponto onde há uma bifurcação,
Lídia chamou atenção pelo rádio.
— Eu seguirei para estrada com mais quatro viaturas. Quero
que o restante patrulhe a periferia. Nos encontramos aqui em três horas.
Copiado?
Lídia Toledo é uma líder nata. Sempre foi. Ninguém jamais a
olhou com reprovação isso porque os seus números são invejáveis. Com essa será
sua décima quinta operação, tirando às consideradas de menor expressão. Todas
elas sob sua liderança bem alinhada com seus parceiros de farda. Para Lídia, o lugar
de toda mulher é aonde ela se sente bem e principalmente respeitada. Muitos já perguntaram
por que ela optou em seguir arriscando a vida mesmo casada com um homem rico e
famoso? Ela poderia muito bem viver feito uma dondoca recebendo os mimos e os
reflexos da fama do esposo. Sim, Lídia até se viu tentada a viver na sombra do
marido, porém algo falou mais alto. Não foi nada fácil chegar onde ela chegou.
Foram dias, meses e anos se abdicando de prazeres e curtições aos finais de
semana. Lídia deu seu sangue para o seu ingresso na profissão e não seria
qualquer soma em dinheiro ou qualquer outra forma de vida que a faria desistir.
Todos entenderam o comando. Toledo fez questão de conduzir um
dos carros mesmo não sendo uma excelente motorista.
— Vamos checar os pontos vistos no mapa. Temos que sufocar
esses merdas até eles saírem dos buracos.
*
O sorriso que Gilmar exibe ante aos produtos roubados é
semelhante ao de uma criança que acabou de ganhar um presente tão esperado
durante um ano inteiro. Vendo seus comparsas realizando o duro trabalho que é
descarregar todo o material, por dentro o bandido vibra e já faz planos para
novas ações. Desde sempre Dutra foi assim, impetuoso, ansioso e ganancioso. Nada
era o bastante. Quando pobre, em sua adolescência, ele nunca se conformava com
o pouco que seus pais conseguiam dar a ele. Nem mesmo as inúmeras surras que levou
de seu pai deram jeito. Enquanto apanhava, ele jurava e prometia para ele mesmo
que quando tivesse a oportunidade, ficaria rico e que não pararia por aí.
O serviço terminou. Todo o lugar reservado para armazenar o
material não cabe nem mais um rádio portátil. Sueco organizou uma fila e
efetuou os pagamentos aos ajudantes que na sua maioria são pessoas necessitadas
moradoras da comunidade.
— Tá beleza, pessoal, na próxima semana tem mais.
Dutra interveio.
— Na próxima semana não, ainda hoje teremos um novo
carregamento.
Sueco arqueou às sobrancelhas.
— Como assim, ainda hoje, não tem nem mais espaço aqui e além
do mais, a essa altura a polícia já deve estar em nosso encalço. — Sueco
dispensou os ajudantes.
— Esse é o trabalho da polícia meu caro, estranho seria se
eles não tivessem em nosso encalço. — cruzou os braços. — preciso de pelo menos
dois milhões em produtos até o fim do dia. Prepare os homens.
Manda quem pode, obedece quem tem juízo. Sueco sempre
discordou desse jeito quase infantil de seu chefe, mas sempre acaba por fazer
suas vontades. As ações as quais eles estão empenhados agora não são nada
fáceis e diferente de traficar drogas, o roubo de carga é algo gritante,
notório, que ganha repercussão muito rápido. Por isso é preciso pensar, se
preparar antes de agir.
— Eu não faria isso se estivesse em seu lugar.
— É por isso que você está aí e eu sou o chefe. Faça. — bateu
no ombro do parceiro.