sábado, 24 de abril de 2021

Alta Pressão - Capítulo 1

 



ALTA

PRESSÃO

 

A cidade de Viva Paz nunca viveu dias que – diferente do nome que leva – jamais imaginou viver. O crime organizado vem ganhando espaço e a cada dia que passa, não só o grande centro, como a periferia, vem sentido o reflexo desse mal. Não adianta tentar encontrar culpados. Os culpados sabemos muito bem quem são. O momento pede combate e principalmente inteligência. O criminoso do outro lado é esperto, tem sagacidade e o que é mais preocupante, ele não tem nada a perder. Hoje, o maior bandido dessa cidade chama-se Gilmar Dutra, comandante da Liga Vermelha, o maior grupo criminoso que esse país já produziu. Tráfico, roubo de carga, sequestros e morte de policiais. Especula-se de que Dutra tenha envolvimento com os mais poderosos cartéis internacionais e que pretende montar seu império brevemente. Ou seja, Dutra parece zombar das autoridades, não teme a lei e tão pouco liga para as consequências de seus atos. Gilmar hoje é um dos homens mais procurados do país e mal sabe ele que seus dias como ganguester estão contados.

— Quanto temos em caixa? — Gilmar acendeu outro cigarro.

— Próximo de dois milhões. — respondeu seu contador e braço direito.

— Dois milhões? — ergueu o corpo da cadeira. — quanto foi o custo da festa?

Sueco abriu sua agenda e tirou de lá algumas notas fiscais e as entregou ao chefe.

— Veja você mesmo. Eu te avisei.

Dutra conferiu uma por uma das notas.

— Muita bebida cara, comida de gente rica, piranhas de primeira classe além de outras coisas mais.

Gilmar afastou os papéis e sorveu uma boa quantidade de fumaça.

— Essa grana precisa ser reposta, e já. — soltou a fumaça. — manda o pessoal para a estrada e diga que o lance é eletroeletrônico.

— Quantos caminhões, mais ou menos? — guardou as notas e fechou a agenda.

— Quanto mais conseguirem melhor. — relaxou.

— Pode deixar. Vou reunir a galera e pela manhã estaremos na estrada.

 

*

 

Lídia sentiu a mão de Gustavo apalpar seu seio e ela achou que estivesse sonhando. Ao se virar seu marido já a beijava no busto.

— Oi, bom dia, amor. — disse se espreguiçando. — quanto tesão é esse? Fizemos ontem a noite.

— Pois é, hoje eu acordei com muita fome. — deu um beijo em cada seio.

— Nossa, posso fazer um xixi rapidinho?

— Voando, vai.

Lídia passou pelo armário e pegou seu celular. Entrou no banheiro e ocupou o sanitário. No whatsapp dezenas de mensagens, boa parte delas do DPVA.

— Bom dia, Toledo, e a operação, já podemos colocar nossos agentes em atividade?

A mensagem foi enviada há poucos minutos pelo chefe Álvaro. Lídia não sabia o que responder ao seu superior, porém precisava dar um parecer.

— Bom dia, Álvaro, creio que ainda falta ajustar algumas coisas, como por exemplo, o mapeamento de toda cidade, isso deve levar uma semana ou mais.

Gustavo gritou lá do quarto.

— Que xixi mais demorado, hein?

— Já estou indo. — deu descarga e voltou a digitar.

— Assim que eu chegar passo em sua sala.

Lídia saiu do banheiro e abriu os braços.

— Pronto, vem tomar seu café da manhã.

 

*

 

Os dois trabalhadores tem um fuzil apontando na direção de suas cabeças. Ambos estão apavorados observando toda a carga ser saqueada por homens fortemente armados. Televisores, microondas, rádios e celulares. Tudo foi passado para outro caminhão rapidamente. A via foi bloqueada no sentido subida para Viva Paz. Já o lado de descida, os carros davam marcha ré ou simplesmente passavam em alta velocidade.

— Tempo esgotado, rapaziada. — disse Sueco batendo na porta do caminhão. — deixem esses merdas amarrados e vamos embora.

Amarrados, porém aliviados. Os dois funcionários da empresa de eletroeletrônico foram deixados maniatados, um de costas para o outro. O ajudante era o que mais chorava agradecendo aos céus por ainda estar vivo.

— Fica calmo, cara. — falou o motorista. — eles já foram, vamos tentar ficar de pé e pedir ajuda.

 

Lídia só deixou sua bolsa em cima de sua mesa e partiu para a sala de Álvaro que terminava de atender uma ligação.

— Bom dia, chefe!

O fone voltou para o gancho. Álvaro olhou para a detetive com aquele olhar que ela já conhece muito bem. O problema de ter um chefe bonito e não só bonito, educado, atraente e terrivelmente sedutor é que um assunto que requer concentração máxima fica comprometido e isso acontece todos os dias, ou todas às vezes em que ela precisa se apresentar em sua sala. Álvaro é dez anos mais velho do que ela, possui entradas não tão agressivas no cabelo e sempre está bem barbeado. Lídia, por ser casada e muito bem casada diga-se de passagem, não quer admitir, mas seu chefe mexe tremendamente com ela e ele sabe disso.

— Bom dia, Toledo, sente-se. Já tomou café?

— Ah, não. — puxou a cadeira.

— Vou preparar um pra você. — deu às costas se virando para a máquina de café de cápsula. — me diga, como vai o boxeador?

— O Gustavo vai bem, acho que ele vai voltar aos ringues.

Álvaro girou nos calcanhares.

— Sério? Ele já não havia pendurado às luvas?

— Pois é, mas sabe como são os lutadores né, sempre arrumam algo para voltar ativa.

— Achei legal. Por favor, quando já tiverem a data da volta, me avise, quero assisti-lo.

— Claro, claro, primeira fila. — Lídia estava nervosa, muito nervosa.

Álvaro lhe serviu o café numa pequena xícara e se sentou. Entrelaçou os dedos e voltou a olhar para ela daquele jeito que faz qualquer iceberg derreter.

— Gilmar Dutra. Temos que pegá-lo. — expirou.

— Sim! — sorveu o café. — Talvez seja esse o caso mais difícil em todo esse tempo em que estou na polícia. O cara é escorregadio demais.

— A ficha dele é extensa e acredite, não para de crescer. — voltou a se levantar. — os crimes de roubo de carga nas principais vias de acesso a cidade aumentou consideravelmente de um mês pra cá, é assombroso. — mexeu em alguns papéis em cima do arquivo.

— Acha que Dutra está envolvido nisso também?

— Acho não, eu tenho certeza. — se virou para ela. — fizemos uma grande apreensão de cocaína mês passado, ele deve estar repondo a grana que perdeu através do roubo de carga. Sugiro que a detetive comece por patrulhar às estradas.

A xícara foi parar na mesa do chefe. Lídia estava em choque com tamanha precisão e o quanto seu superior possui polícia na veia. Isso só fez crescer a admiração e por que não dizer, paixão por Álvaro.

— Faremos assim. Permissão para me retirar, senhor.

— Permissão concedida, agente Toledo.

 

*

 

Ser sparing de um ex pugilista já não é nada fácil, ainda mais quando esse ex pugilista foi o melhor em sua categoria. Gustavo a cada dia intensifica seus treinamentos colocando em dia suas tão famosas técnicas que o levou ao cinturão dos meios pesados em sua época áurea. Hoje, já aposentado, mesmo aos trinta e oito anos,  Gustavo se dedica a ensinar em sua academia que leva seu nome, Gustavo Boxe. É daí que sai o seu sustento e também foi ali que ele foi convidado a voltar para os ringues, para encarar seu antigo rival, Jorge Touro. Gustavo teve a oportunidade de lutar com Touro três vezes e foi nocauteado nas três. O ex campeão nunca engoliu essas três derrotas e para ele, vencer Jorge seria como voltar a erguer o cinturão novamente. O treino acabou. O suor escorre empatando sua camiseta regata.

— Valeu por hoje, campeão, parabéns, tá afiado. — elogiou Terremoto.

— Nossa, é como renascer. — abriu a garrafa de isotônico. — vou tomar um banho e me preparar para às aulas a tarde.

— Vá devagar, não force muito. — pegou sua mochila no canto do ringue. — essa será a luta do século.

— Deus te ouça. Pelo menos a agência está fazendo o papel dela. A promoção nas mídias está bombando.

Assim que voltou a ficar sozinho, Gustavo deu uma longa olhada em toda a extensão de seu negócio e um filme bastante triste se passou em sua mente. De menino pobre, quase um delinquente a campeão dos meio pesados e agora empresário bem sucedido. Gustavo, no início não tinha estudos, mal havia completado o ensino fundamental. Para ajudar em casa ele precisava engraxar sapatos na estação de trem ou simplesmente furtar carteiras dos transeuntes. O boxe aconteceu em sua vida quase que por um acaso. Ele trabalhava de boy numa empresa quando era adolescente e precisava levar um documento numa academia. Chegando lá ele só queria entregar os documentos e sair fora. Foi quando um dos frequentadores lhe pediu um favor.

— Pode segurar o saco de bater pra mim, por favor? É que estão todos ocupados.

— Tá beleza.

Podemos dizer que foi paixão a primeira vista. Gustavo na outra semana se matriculou e em menos de dois anos ele já era destaque vencendo torneiros internos e pequenas competições entre academias. Quem era capaz de imaginar que aquele garoto tímido alcançaria o topo? Agora ele está ali, olhando tudo que conquistou, fama e dinheiro, prestígio e reconhecimento. Gustavo, mãos de rocha.

 

*

 

Outra vez Lídia foi chamada para comparecer a sala do chefe e dessa vez Álvaro não está nenhum pouco atraente. Tudo isso tem um grande motivo. A chegada de uma nova denuncia sobre roubo de carga conseguiu estragar o que já estava ruim. Álvaro não só convocou Toledo, como também outros agentes. Sua sala ficou pequena.

— Não podemos mais esperar. — declarou Álvaro assim que Lídia ocupou o único espaço existente. — mais um caminhão com cerca de duzentos mil em eletroeletrônicos foi roubado, isso já virou rotina em Viva Paz e nós estamos assistindo de braços cruzados.

Lídia engoliu seco.

— Toledo, preciso que sua equipe entre em ação agora mesmo. Vamos para às ruas. Precisamos marcar presença, mostrar que o estado está presente.

— Sim, senhor.

Dez viaturas deixaram o pátio do DPVP sentido grande centro. A operação para reprimir o roubo de carga ainda não foi deflagrada, mas, como foi dito por Álvaro, essa ação servirá de sinal aos marginais de que a polícia está em alerta. Assim que alcançaram um determinado ponto onde há uma bifurcação, Lídia chamou atenção pelo rádio.

— Eu seguirei para estrada com mais quatro viaturas. Quero que o restante patrulhe a periferia. Nos encontramos aqui em três horas. Copiado?

Lídia Toledo é uma líder nata. Sempre foi. Ninguém jamais a olhou com reprovação isso porque os seus números são invejáveis. Com essa será sua décima quinta operação, tirando às consideradas de menor expressão. Todas elas sob sua liderança bem alinhada com seus parceiros de farda. Para Lídia, o lugar de toda mulher é aonde ela se sente bem e principalmente respeitada. Muitos já perguntaram por que ela optou em seguir arriscando a vida mesmo casada com um homem rico e famoso? Ela poderia muito bem viver feito uma dondoca recebendo os mimos e os reflexos da fama do esposo. Sim, Lídia até se viu tentada a viver na sombra do marido, porém algo falou mais alto. Não foi nada fácil chegar onde ela chegou. Foram dias, meses e anos se abdicando de prazeres e curtições aos finais de semana. Lídia deu seu sangue para o seu ingresso na profissão e não seria qualquer soma em dinheiro ou qualquer outra forma de vida que a faria desistir.

Todos entenderam o comando. Toledo fez questão de conduzir um dos carros mesmo não sendo uma excelente motorista.

— Vamos checar os pontos vistos no mapa. Temos que sufocar esses merdas até eles saírem dos buracos.

 

*

O sorriso que Gilmar exibe ante aos produtos roubados é semelhante ao de uma criança que acabou de ganhar um presente tão esperado durante um ano inteiro. Vendo seus comparsas realizando o duro trabalho que é descarregar todo o material, por dentro o bandido vibra e já faz planos para novas ações. Desde sempre Dutra foi assim, impetuoso, ansioso e ganancioso. Nada era o bastante. Quando pobre, em sua adolescência, ele nunca se conformava com o pouco que seus pais conseguiam dar a ele. Nem mesmo as inúmeras surras que levou de seu pai deram jeito. Enquanto apanhava, ele jurava e prometia para ele mesmo que quando tivesse a oportunidade, ficaria rico e que não pararia por aí.

O serviço terminou. Todo o lugar reservado para armazenar o material não cabe nem mais um rádio portátil. Sueco organizou uma fila e efetuou os pagamentos aos ajudantes que na sua maioria são pessoas necessitadas moradoras da comunidade.

— Tá beleza, pessoal, na próxima semana tem mais.

Dutra interveio.

— Na próxima semana não, ainda hoje teremos um novo carregamento.

Sueco arqueou às sobrancelhas.

— Como assim, ainda hoje, não tem nem mais espaço aqui e além do mais, a essa altura a polícia já deve estar em nosso encalço. — Sueco dispensou os ajudantes.

— Esse é o trabalho da polícia meu caro, estranho seria se eles não tivessem em nosso encalço. — cruzou os braços. — preciso de pelo menos dois milhões em produtos até o fim do dia. Prepare os homens.

Manda quem pode, obedece quem tem juízo. Sueco sempre discordou desse jeito quase infantil de seu chefe, mas sempre acaba por fazer suas vontades. As ações as quais eles estão empenhados agora não são nada fáceis e diferente de traficar drogas, o roubo de carga é algo gritante, notório, que ganha repercussão muito rápido. Por isso é preciso pensar, se preparar antes de agir.

— Eu não faria isso se estivesse em seu lugar.

— É por isso que você está aí e eu sou o chefe. Faça. — bateu no ombro do parceiro.

 


sexta-feira, 16 de abril de 2021

O Bote da Cascavel

 


O Bote da Cascavel

 

Ele nasceu de sete meses, assim dizem às más línguas, porém é o pouco que se sabe sobre Januário. Marcos Januário. Quando ele surgiu nas redondezas poucas eram às pessoas que se importavam com ele. Um assaltante de residências, ladrão de galinhas. Não fazia mal a uma mosca. Foi preso uma meia dúzia de vezes, sofreu na cadeia e não aprendeu. Aliás, ele aprendeu sim. Aprendeu que viver de roubo não o levaria a lugar algum, continuaria a frequentar o xadrez pelo menos umas cinco vezes no ano. Marcos Januário passou para o outro nível do crime, morte por encomenda, esse sim lhe deu dinheiro e fama. Para esconder sua identidade, Marcos cobre seu rosto com um pano onde só os seus olhos cor de mar ficam expostos. Em seu primeiro “trabalho” como matador, ele desenhou em sua máscara um nariz e uma boca e contornou os olhos com o sangue quente da vítima. Seu aspecto ficou infernal. Desde então Januário passou a ser o inimigo número um daquela região deixando para trás malfeitores perigosos como Dimas.

Januário armou pra cima de Dimas e o mesmo acabou sendo morto. Dimas se deleitava em cima da prostituta Dorinha quando Marcos invadiu o quarto apontando sua Winchester.

— Mas o que é isso?

— Aproveita que essa será sua última gozada, seu porco.

Dorinha fechou às pernas e se cobriu com o cobertor.

— Nada disso, quero que ele termine o serviço, vamos. — enterrou o cano da arma na testa do sujeito. — eu espero.

Dorinha voltou a abrir às pernas e lentamente Dimas foi se enfiando entre elas reiniciando o sexo. Claro que demorou, demorou muito, Marcos Januário até se sentou.

— Vamos logo cabra. — balbuciou.

Cansado, com cãibras, suado, Dimas chegou ao clímax. Na verdade, Januário quase o matou sem gastar uma bala. Ele mandou a piranha embora, mas a pagou pelo serviço antes disso. Ordenou que seu rival ajoelhasse e explodiu seu crânio. Januário deixou aquele motel andando, palpitando os dentes. Vestiu sua máscara medonha, montou seu cavalo e disparou portão afora da cidade. A notícia da morte de Dimas espalhou feito fogo em palha seca e é claro chegou aos ouvidos da autoridade máxima, o xerife.

— Um tiro na cabeça? — Pereira esmurrou sua mesa.

— Exatamente, senhor. — afirmou cabo Flávio.

— Esse Januário já extrapolou todos os limites. Temos que montar uma força tarefa e prendê-lo.

— Concordo, senhor. — pegou seu chapéu em cima da mesa. — vou reunir os homens, avisarei quando estivermos prontos.

Pensa que Marcos Januário ficou receoso em voltar para a cidade? Não mesmo. Em menos de vinte quatro horas ele estava de volta e a trabalho. Ele foi contratado por um rico fazendeiro para eliminar um jovem que lhe devia dinheiro a meses. Januário o encontrou consertando a cerca ao lado da mulher grávida e os dois filhos ainda pequenos.

— Boa tarde, você é o Zé Pinheiro?

O rapaz ao vê-lo ainda tentou negociar.

— Por favor, o que ele lhe pagou eu te pago em dobro.

Tarde demais, Januário já havia puxado o gatilho e metido uma bala no peito do pobre coitado. Os filhos correram e abraçaram o corpo do pai enquanto que a mulher berrava pedindo ajuda. A espora entrou no lombo do animal levando o matador para longe dali. A notícia logo se espalhou alimentando o ódio de xerife Pereira. Agora virou guerra. Pereira e seus homens estão por toda parte na caça ao assassino de aluguel.

— Não vou descansar enquanto não puser às mãos nele. — entrou na picape e a acelerou. — vamos nessa.

 

 

Marcos Januário contava o dinheiro bem devagar sentado na escadaria da igreja. De longe, cabo Flávio o observava acompanhado por mais dois homens.

— Cabo, vamos esperar o xerife? — perguntou o soldado.

— Nada disso, só temos uma chance e a quero aproveitar bem. Vamos nos dividir. — sacou o trinta e oito.

Um soldado pela esquerda, outro pela direita e Flávio no meio. Marcos terminava a contagem quando ouviu a voz de prisão.

— Parado, mãos ao alto. — berrou o cabo.

Januário guardou a grana em sua bolsa capanga de couro marrom. Pegou sua Winchester. Abaixou a máscara e desceu os degraus.

— Está surdo? Eu mandei levantar às mãos. — Flávio mirou na testa do bandido.

— E se eu não quiser?

Eles se encararam durante um tempo e depois disso Marcos puxou o gatilho. O disparo explodiu o peito do cabo que caiu sentado. O soldado da esquerda atirou e acertou de raspão o antebraço de Januário que correu para se proteger atrás do corrimão da escadaria. O soldado da direita atirou, mas errou e acabou sendo atingido na barriga. Cabo Flávio se arrastava segurando o ferimento no peito implorando por socorro.

— O xerife, chamem o xerife Pereira. — disse gemendo.

O tiroteio se intensificou e o soldado da direita não resistiu ao ferimento na barriga e acabou morrendo ali mesmo no local. O da esquerda disparou mais uma vez e correu para ajudar o cabo.

— Como o senhor está?

— Não vou conseguir, não vou... — morreu de olhos abertos.

— Droga! — vociferou.

Januário mirou e atirou acertando a coxa do agente do xerife. O mesmo rolou gritando de dor. Marcos atirou novamente e dessa vez acertou as costas do sujeito.

— Oh Deus! Não consigo mexer minhas pernas.

Fora de combate, totalmente fora de combate. Marcos Januário deixou seu abrigo ainda empunhando sua arma e caminhou até o soldado.

— Você decide, largue a arma e vive, mesmo paralítico, ou atira e morre. Você escolhe.

Rosnando o policial ergueu seu braço trêmulo. A mão ensanguentada também treme bastante dificultando-lhe um disparo certeiro. Januário permaneceu no mesmo lugar, sabia que seu adversário já não lhe oferecia perigo. O tiro passou bem longe de sua cabeça.

— Eu avisei! — atirou duas vezes no peito do militar.

 

Dentro da picape que voava praticamente, Pereira foi notificado sobre a morte de seus homens. Socando o volante e salivando pelos cantos da boca o xerife decidiu jogar pesado. A lei manda prender quem burla, quem quebra a regra, porém Januário já quebrou todas as regras possíveis e precisa ser tirado de circulação para o bem estar de um povoado. Todo xerife é a lei e Pereira fará uso dessa prerrogativa. No banco do carona sua submetralhadora o aguarda, será com ela que ele irá mandar Marcos perturbar o diabo pessoalmente.

O xerife chegou ao local e já havia dezenas de curiosos ao redor dos corpos, todos foram cobertos por panos brancos e os mais religiosos faziam o sinal da cruz insistentemente. Pereira pediu passagem e se acocorou ao lado de um dos corpos. Era Cabo Flávio. Xingando o xerife fechou os olhos de seu homem de confiança e lamentou demais sua partida. Flávio deixa mulher e filhas.

— Alguém aqui viu para onde Januário foi? — se levantou batendo a poeira da calça.

Um homem quase sem todos os dentes se aproximou do policial.

— No tiroteio ele foi atingido, xerife, acredito eu que ele tenha ido se limpar no rio.

— Vou atrás desse miserável. — correu até a viatura.

 

*

 

Foi como o homem havia informado ao xerife. Januário limpava o ferimento com às águas frias e claras de um rio usado seu lenço de bolso. A ferida foi superficial, mas dói pra valer. Enquanto lava o sangue, o matador olha ao redor para não ser surpreendido pela chegada do xerife. Quando se levantou ele viu a picape vindo em alta velocidade.

— Pereira! — balbuciou.

Sim, claro que era o chefe da lei, dirigindo feito um louco, segurando o volante só com uma mão pois a outra se encontra ocupada com a submetralhadora.

— Você é meu, Marcos Januário.

O matador de aluguel só teve tempo de girar o corpo e sair da linha de tiro. A rajada de balas passou muito perto, tão perto que ele pode sentir o calor delas. Correndo e sentido a morte cada vez mais próxima, Januário atirou também, mas nada acertou.

— Renda-se, Januário. Vamos. — disparou mais uma vez.

Às balas feriram às águas cristalinas do rio a mais ou menos um metro de distância do bandido. Marcos está cercado, não há para onde fugir, o jeito é se render. Por isso ele parou e ergueu os dois braços segurando a Winchester com às duas mãos. Ao ver o gesto do fora da lei Pereira viu nisso uma oportunidade. Não há mais ninguém ali. Uma preciosa chance de criva-lo de balas e encerrar de vez a maldita trajetória de Marcos Januário. O xerife pisou no breque. Desceu da viatura. Apontou a submetralhadora e deu voz de prisão. Januário teve a ligeira impressão de já ter ouvido isso, porém não era hora de tentar adivinhar quando nem aonde. Fato é que tudo que ele mais queria nesse momento era poder desaparecer dali e nunca mais voltar, ele nunca esteve em tão grande desvantagem.

— Eu juro, se der mais um passo eu atiro, Marcos Januário. — berrou Pereira.

É! Realmente o bandido se encontra em más lençóis como dizia os antigos, porém somente uma coisa ainda lhe resta. Sua Winchester está carregada e se ele for rápido e certeiro o bastante poderá sair dessa ileso. Como foi falado no início, Januário foi uma criança prematura, nem mesmo a placenta foi capaz de segura-lo dentro de sua mãe, ele nasceu para ser livre e não enjaulado feito um animal. Não será um xerife bigodudo que o colocará trancafiado numa sela gelada. Marcos abaixou os braços e atirou. Do ombro esquerdo do policial subiu uma poeira rosada. Pereira tomou um trampo mas não se intimidou, largou o dedo pra cima do marginal. Januário foi atingido diversas vezes desde a perna direita até o peito caindo bem próximo do rio.

— Mais que merda! — sacou o rádio no bolso da jaqueta. — xerife Pereira falando, preciso de uma ambulância no rio doce.

A dor no ombro maltrata, mas o trabalho ainda não acabou. Pereira caminhou até seu inimigo que ainda se mexia, segurando sua submetralhadora com dificuldade. Ele se apossou da Winchester e cutucou a perna de Marcos.

— Aguenta firme, o socorro já está vindo.

— Me mata logo. — disse entre tosses.

— Que te matar que nada, você é um troféu. Vai mofar na cadeia.

A ambulância chegou, demorou, mas chegou e Januário foi socorrido. Ele foi levado para a casa de saúde onde passou por cirurgia e não corria mais risco de morrer. Assim que teve alta ele foi levado para o instituto penal e se juntou aos homens mais perigosos. Em seu primeiro dia naquele lugar ele precisou provar que merecia estar ali.

— Vamos ver se você é mesmo como dizem por aí. — falou o dono da cela. — terá que enfrentar todos nós de uma vez só.

Lógico que mais uma vez Januário tomou a pior. Foi espancado por cerca de vinte homens e esperou por socorro quase que o dia inteiro. Quando finalmente foi ser socorrido o pobre já havia batido às botas. Como Marcos Januário não tinha nenhum documento ou parente que corresse atrás para que o mesmo tivesse um enterro digno de todo o ser humano, o bandido foi sepultado como indigente num cemitério fora da cidade. Xerife Pereira foi premiado por bravura, se tornou mais conhecido de que nota de dois reais e também por ter colocado ordem naquele povoado, nenhum fora da lei se atrevia a sequer pisar naquelas terras. FIM.