sábado, 16 de setembro de 2023

O Perturbador Quadro das Crianças Mortas

 


O Perturbador Quadro das Crianças Mortas

 

 

 

Eu me lembro ser horrível estar naquele lugar, naquela cidade. Como jornalista sem relevância alguma, eu precisava alavancar meu trabalho, às pessoas tinham que ter credibilidade em meu ofício, por isso me sacrifiquei em pegar às quatro horas de estrada e ir até o inferno. Fui sozinho. Ninguém mais levava fé nos acontecimentos macabros daquele lugar esquecido. Quando parei meu carro coberto de poeira vermelha até o teto em frente ao que chamavam portão da cidade, a hora já era avançada. Fome, cansado, louco por um banho e o que era pior, sem ânimo algum. Não havia ninguém ali para abrir o portão, então lá fui eu ter que realizar a dura tarefa. Merda.

 

Segui mais vinte minutos numa rua onde o pouco asfalto e o cascalho convivia em perfeita harmonia. Meu estômago reclamou outra vez, eu precisava com urgência comer algo. Vi logo a frente luzes, eu havia chegado finalmente em Padre Antônio. Eu não estava acreditando. Que cidadezinha feia, mal cuidada, casas paupérrimas e ruas esburacadas oferecendo risco até mesmo aos transeuntes. A noite o clima ruim daquele lugar se intensificava ainda mais. Parei numa espelunca que possuía uma luz amarelada, fraca e o semblante do proprietário me fazia lembrar das máscaras de borracha que os foliões usam no carnaval Carioca.

 

— Boa noite. — me aproximei do balcão.

 

— Boa! — a voz do idoso era baixa e pastosa, igual a de Ariano Suassuna.

 

— O que tem para comer aqui?

 

O velho apontou para os pacotes de Fofura, Torcida e peles com sachês de “ketchup” nas embalagens. O desânimo voltou a bater forte.

 

— Só isso?

 

Ele deu de ombros.

 

— Tudo bem. Vou levar algumas dessas merdas. E para beber?

 

Apontou para o encarte de um refrigerante que sinceramente eu nunca havia visto em meus quarenta anos de vida.

 

— Vou levar essa bosta também.

 

Deixei o boteco quase chorando, eu daria tudo por um Big MC ou uma generosa porção da famigerada batata frita de Marechal Hermes. Loucura. Só faltava não encontrar um hotel agora. Duas ruas depois do bar minha sorte começara a mudar. Uma placa pintada mal e porcamente com os dizeres Hotel Tia Selma me fez sorrir pela primeira vez em cinco horas. Parei meu carro. Peguei meu material e entrei. A dona do lugar me recebeu com um sorriso de poucos dentes e uma magreza que dava dó.

 

— Quantas noites ficará?

 

— Se Deus quiser, só essa. Quanto custa?

 

Paguei a estádia e tia Selma me passou a chave do quarto. Graças a Deus! havia chuveiro quente e o quarto estava bem arrumadinho. Tomei meu banho e me joguei na cama. Eu ainda tinha fome, então fui novamente a luta. Apelei para dona Selma que me trouxe um super prato de macarrão com salsicha do almoço. Não estava gostoso, mas era o que tinha. Comi e dormi.

 

*

 

Quando acordei demorei segundos para me situar. Olhei para a porta e ainda sonolento acreditei que, a qualquer momento minha mãe entraria gritando me alertando quanto ao horário de chegar no trabalho. Não, eu não estava em minha casa, muito menos em meu quarto. Aonde diabos eu estava?

 

— Droga de vida. — falei aos bocejos.

 

Pela primeira vez em anos acordei sem fome alguma, porém estava louco por um café puro, forte e bem doce. Vesti-me e saí de modo a saciar meu vício. Dona Selma encontravam-se justamente na cozinha terminando de passar aquela bebida dos deuses.

 

— Bom dia, meu querido. Vai um café fresco?

 

— Ô se quero. — ocupei uma mesa.

 

— Que mal lhe pergunte, o que veio fazer nesse fim de mundo?

 

— Sou jornalista e vim investigar os boatos dos casos que...

 

A expressão de dona Selma se tornou pesada, como se uma nuvem negra encobrisse seu rosto sulcado.

 

— Não são boatos. Tudo o que aconteceu foi real, eu mesma vi com meus próprios olhos. Foi horrível.

 

Eu esfreguei o rosto e depois aguardei que ela me servisse o café.

 

— E mesmo depois de tudo isso ninguém chamou a polícia ou...

 

— A polícia nesses casos seria inútil. Para se combater as forças do mal, somente um exorcista.

 

Finalmente o aroma da bebida mais consumida no mundo inteiro invadiu-me as narinas. Meu dia acabara de começar.

 

— E o que o exorcista fez, conseguiu expulsar o demônio? – tomei um gole.

 

— Também foi devorado. – fez o sinal da cruz algumas vezes.

 

Aquela conversa abriu meu apetite, por isso pedi que fizesse um pão na chapa e ovos mexidos. Ao terminar de comer voltei para o quarto e arrumei minhas coisas. Despedi-me de dona Selma e sai. Ela veio atrás de mim.

 

— Meu filho, siga o meu conselho, vá embora! esse lugar não é seguro.

 

— Como assim, dona Selma? Eu preciso voltar com material, é importante para mim...

 

— Não vá até lá, é perigoso, você pode ser atacado.

 

Bufei e depois deixei a velha falando sozinha. Entrei no carro e parti. Dirigi durante vinte minutos até encontrar a tal chácara abandonada e amaldiçoada. Realmente o lugar era de causar arrepios. Bati palmas. Chamei e ninguém me atendeu então resolvi invadir. Pulei o portão de madeira com uma certa facilidade até. As horas na academia estão me fazendo muito bem. De mochila nas costas subi pelo caminho de barro até a velha casa caindo aos pedaços no alto da chácara.

 

— Jesus, mas que lugarzinho terrível. – falei contemplando a vista.

 

Bati algumas vezes na porta e aguardei. De repente uma voz soou lá de dentro. Uma voz masculina.

 

— Bom dia, sou Jair Mendonça, sou jornalista, podemos conversar?

 

— Só um minuto.

 

A porta se abriu e dela surgiu um sujeito gordo, flácido, pálido, mal vestido e com um mal hálito de bosta de vaca. Seus olhos caídos se fixaram em mim. Senti-me mal.

 

— Olá, podemos conversar?

 

— Entre. – deu-me às costas.

 

— Como se chama? – perguntei receoso.

 

— Alex. – me respondeu entre os dentes.

 

A casa era o reflexo do seu dono, um lixo. O sofá rasgado, manchado e quebrado me aguardava no canto. As paredes com marcas de infiltrações de milênios conduziam o show de horrores. Tudo, absolutamente tudo naquele lugar me causava um terrível mal-estar.

 

— Quer beber algo? – ao falar o sujeito exibiu uma arcada dentária tão nojenta que meu estômago quase falou.

 

— Não, obrigado. Podemos começar?

 

— Fique a vontade.

 

Finalmente eu iria iniciar a entrevista que mudaria de vez a minha carreira como jornalista.

 

— Você sempre morou em Padre Antônio, Alex?

 

— Acredito que sim. Meus pais nunca comentaram nada sobre isso.

 

— Tem conhecimento dos últimos acontecimentos nessa região?

 

Ele não tirava os olhos caídos de mim um só instante.

 

— Sim, mas posso lhe assegurar que tudo não passa de crendices dessa gente ignorante.

 

Ele não tinha expressão alguma.

 

— E como você explicaria os ataques?

 

— Bichos, animais, há espécies selvagens que ainda não foram descobertas pelo homem. Animais que devoram e se alimentam de carne humana.

 

Putz! Eu quase soltei uma gargalhada na cara do gordo.

 

— Chegou ao meu conhecimento que num dos ataques não sobrou nada da vítima, comeram os ossos também. Você pode confirmar essa informação?

 

— Não sei lhe responder.

 

Senti que aquela conversa não me levaria a lugar algum por isso decidi fazer algumas imagens. Percorri por cada cômodo da casa até chegar ao quarto. Nossa. A visão do inferno. Se o inferno tivesse cheiro, talvez fosse semelhante aquele. Algo curioso me chamou a atenção. Um quadro, antigo, já amarelado, com três crianças esquisitas. Eu não sabia dizer se estavam sorrindo ou chorando. Eram feinhas, tadinhas.

 

— Quem são?

 

— Meus irmãos trigêmeos. Flora, Ronaldo e Flávio.

 

— E onde eles estão?

 

O gordo flácido me olhou com seu semblante lúgubre fazendo me sentir mal outra vez.

 

— Estão mortos, senhor.

 

Meu coração deu uma congelada. Voltei a olhar para o quadro e eu já não o via com os mesmos olhos, às crianças agora pareciam ainda mais tristes e animalescas. Jesus. Era perturbador. Eu precisava sair daquele lugar o mais rápido possível.

 

— Acho que eles sim, nasceram aqui em Padre Antônio. Morreram ainda crianças.

 

— Faleceram de que? – eu não conseguia tirar os olhos do quadro.

 

— Não sei, senhor.

 

Eu estava passando mal, muito mal, comecei a transpirar, a ter ânsia de vômito e a tremer. O gordo a meu lado ficou agitado coçando a cabeça.

 

— Aí, meu Deus. – ele disse.

 

— O que foi? – minha respiração era ofegante.

 

De repente ouviram-se algumas batidas na porta do outro quarto e não só isso, grunhidos também. O gordo sacudiu os braços desesperadamente.

 

— Moço, saia daqui pelo amor de Deus.

 

— O que foi?

 

Ele arrastou seu peso até a porta e olhou o corredor, às batidas na porta se tornaram ainda mais fortes.

 

— Não vai dar tempo, eles vão sair, fuja, moço eles sentiram o seu cheiro.

 

Corri até a sala. Peguei minhas coisas e saí ainda ouvindo o sujeito gritando para eu ser mais rápido. Tropeçando nos buracos e cascalhos cheguei até meu carro ouvindo os rosnados, grunhidos e os gritos do gordo pedindo calma para sei lá quem. Pisei no acelerador com meu peito apertando. Olhei pelo retrovisor e vi algo na varanda da casa que até hoje me aterroriza. Só de pensar já me sinto as mesmas coisas. O que era aquilo, meu Senhor?

 

*

 

A minha matéria rodou o país inteiro, Padre Antônio ficou conhecida como a cidade maldita e eu, finalmente me tornei um profissional relevante no meio. Hoje trabalho em uma grande emissora de TV, tenho família e vivo bem, graças ao meu bom, Deus. Quanto aos trigêmeos do quadro, a última notícia que tive sobre elas foi: os pais morreram e elas foram criadas pelo irmão mais novo. Ele as mantinham presas no quarto e os liberava ocasionalmente para se alimentar e com isso, tragédias aconteciam. FIM.