quarta-feira, 20 de julho de 2016

Guerra no Mundo sem Luz



 Depois de muito correr e flutuar numa fuga frenética por matas e terrenos pedregosos, o vampiro soldado de Conde Prado em fim foi capturado e amarrado no chamado canil dos homens lobo do cruel líder Abrantes. Com suas presas salientes e o rosto totalmente transformado, o noturno tenta de todas as maneiras se livrar das amarradas. Sob vigilância do braço direito de Abrantes, Hugo, um homem com quase dois metros e meio de altura e pesando 150 quilos de puro músculo, observa seu rival se mexendo desde a hora que chegou.
   - Esqueça morceguinho, fui eu quem fez esses nós ai. – diz com ar de riso.
   - Espere só eu poder sair daqui, Hugo, sugarei todo seu sangue de cachorro. – fazendo um rabo de cavalo em suas longas madeixas negras, Hugo se aproxima do rosto do vampiro.
   - É uma pena eu não poder fazer o que eu quero, senão meu querido, você já estaria em pedaços e essa hora. – fala jogando seu hálito natural de lobisomem no rosto jovial do vampiro.
   Nesse momento entra no recinto lúgubre o líder dos homens lobo, Abrantes, ostentando uma bela forma física e seus longos cabelos loiros.
   - Ora, ora o que temos aqui, uma "morceguinha" raivosa. – cumprimenta Hugo com um abraço. – ele falou alguma coisa Hugo?
   - Não senhor, só se mexeu muito. – cruza os braços semelhantes a troncos de árvores.
   - Muito bem, vamos começar então. – Abrantes se acomoda na frente do vampiro e o olha fixamente. – diz ai, o que Prado pretende?
   - Seu monte de lixo, acha mesmo que vou falar?
   - Sim!
   - Como tem tanta certeza?
   - Veja isso. – nesse momento entra outro homem com um jarro com água benta. – senão colaborar vou derramar isso na sua cabeça. – diz sorrindo.
   - Não vou trair meu líder jamais. – vocifera.
   - Tudo bem então. – se levanta e pega o jarro das mãos do assecla. – tem sua ultima chance agora, vai falar ou não? – um clima de pavor e ódio se instala no recinto mal cheiroso.
   - Louvado seja Conde Prado! – grita o vampiro aparentando ter seus 18 anos. Sem hesitar Abrantes derrama a água sagrada no alto da cabeça do noturno que vai derretendo como manteiga.

***

   A mansão é algo monstruoso, uma verdadeira construção colossal feita a mais de 600 anos. Em seu alojamento que se encontra no subsolo da mansão, Conde Prado se delicia beijando o pescoço e seios de Sâmela sua mulher e serviçal.
   - Como sempre deliciosa minha querida. – diz abrindo a blusa justa da vampira que ofegante deixa seus seios ainda mais volumosos.
   - Tudo que meu Conde quiser assim farei.
   Conde Prado é o líder da legião de vampiros do mundo sombrio. Cruel e sanguinário, o vampiro deseja a liderança total do mundo sem luz a qualquer custo. O casal de noturnos se deita na imensa cama com lençóis mais que brancos trocando calorosos beijos e toques nos sexos. O alojamento foi criado para que Prado não seja interrompido em momentos de decisão e principalmente nas horas de diversão, porém o clima lá fora não ajuda e seu fiel escudeiro, Sião, se aproxima com péssimas noticias.
   - O conde se encontra em seu alojamento? – pergunta a um vampiro escalado para montar guarda na gigante porta do alojamento feita de madeira bruta.
   - Sim senhor, e ele está acompanhado pela senhora Sâmela. – o vampiro de meia idade faz uma careta e respira fundo.
   - O assunto requer uma certa urgência. – coloca as mãos na cintura coberta por um cinto grosso de couro marrom.
   - Tenho ordens de não interrompe-lo senhor Sião!
   - Desde quando Prado mordeu essa vagabunda a mais de 200 anos ela vem atrapalhando a administração. – Sião olha ao redor. – vou esperar na sala.

***

   Com os cabelos empapados de suor, a serviçal e amante se deixa ser penetrada com fúria por seu homem que ao chegar ao clímax tem o rosto que outrora delicado, transformado num demônio furioso com dentes pontiagudos. Ela grita ao sentir o líquido denso e ardente a inundando por dentro.
   - Oh Sâmela minha diva fique mais um pouco em meus braços ainda lhe desejo ardentemente. – a mulher se envolve nos braços longos do vampiro e o indaga.
   - Jura que só há Sâmela em sua vida?
   - Sim minha rainha, somente ti. – responde ofegante. – por que?
   - Ouvi rumores de que você se deitou com outra aqui mesmo nesse leito. – Conde Prado franze o cenho.
   - Quem foi capaz de levantar tal calunia contra mim? Fale? – a segura pelo braço com truculência.
   - Joaquim!  - diz com pavor nos olhos.
   - O garoto Joaquim?
   - Sim meu Conde.
   - Vou matá-lo. – gira o pescoço. – guarda. – grita. A porta do aposento é aberta imediatamente e o jovem vampiro treme ao ver Sâmela nua e olha diretamente para o Conde.
  - Sim senhor!
  - Mande chamar Joaquim aqui. – nesse momento Sião adentra ao alojamento anunciando.
  - Joaquim foi capturado por Abrantes meu senhor. – Prado se veste com seu roupão e Sâmela se envolve nos lençóis.
  - Quando foi isso Sião?
  - Há algumas horas senhor. – engole seco.
  - E por que sou avisado só agora Sião? – Sião entrelaça os dedos e responde hesitante.
  - Perdoe-me Conde, o senhor estava ocupado com a Condessa senhora Sâmela. – a vampira olha para Sião furibunda.
  - Tudo bem, tudo bem, Sâmela, saia, vá tomar um banho, Sião, me espere na sala.

***

  Na enorme sala onde a mobília reflete a grandeza do império de Prado, Sião aguarda seu líder em pé ao lado da mesa de centro. Vestido com um lustroso sobretudo preto Conde Prado surge na porta que dá acesso a sala.
   - Então o nosso menino de ouro foi capturado por aquele cão raivoso do Abrantes?
   - Sim e se eu estiver certo a essa hora ele já deve estar morto ou coisa pior. – Prado levanta uma das sobrancelhas.
   - Há coisa pior que a morte?
   - Sim senhor, esses lobisomens são cruéis demais e se de repente resolveram tortura-lo?
   - Tem razão meu caro Sião, vamos montar uma equipe de busca.  – faz uma pausa e depois de se servir de um vinho o Conde pergunta. – soube dos rumores que rondaram o meu império?
   - Que rumores senhor? – diz Sião dissimulando.
   - De que eu me deitei com outra!
   - Não estou sabendo de nada senhor. – abaixa a cabeça. – devo montar a equipe senhor?
   - Imediatamente!

***

   Hugo montado num tordilho branco galopa com o corpo disforme de Joaquim no lombo do animal. Ele passa a todo vapor na frente da mansão do Conde e o joga com violência sem parar. O barulho do corpo ao entrar em contato com o solo produz um som estrondoso chamando atenção dos guardas. O situação em que se encontra o rosto e mãos do vampiro deixa todos com um único desejo; vingança. Prado chama todo seu exército na sala da cúpula faiscando pelos olhos.
   - Temos que agir logo e com força contra esses vira latas malditos. – soca a mesa.
   - Apoiado senhor. – bajula Sião.  – quando começaremos a retaliação?
   - Agora mesmo! – diz Prado com ímpeto.

***

   Abrantes e seu amigo Hugo olham de dentro do canil todo o movimento do mundo sem luz. Hugo percebe a preocupação no rosto fino de seu líder e se volta para os homens reunidos ao redor do lugar.
  - Abrantes? Peço aos soldados que se transformem?
  - Sim, Prado já deve está a caminho com seus morcegos malditos.
  Com uma ordem todos os homens se transformam em criaturas horrendas com pêlos por todo o corpo. O cheiro é de causar engulhos em qualquer um. Eles uivam numa melodia sinistra. Lobisomens furiosos desejosos por carne fresca. Abrantes e Hugo permanecem em suas formas humanas no alto do canil. O vento morno do final de tarde deixa os cabelos loiros do chefe esvoaçante lhe tapando a visão do exército de noturnos se aproximando.
   - A guerra vai começar.

***

   A revoada dos noturnos aos olhos de quem vê parece como nuvens de chuva que antecedem uma torrencial tempestade. A frente do funesto exército, está o terrível Conde Prado com seu rosto transformado num demônio com suas garras e dentes pontiagudos sedentos por sangue quente. Sião aos gritos coordena a massa de vampiros que rosnam e salivam. O mundo sem luz está preste a ver a mais terrível e sangrenta das batalhas. Vampiros vs lobisomens, uma guerra entre o mal, entre o inferno.
   Abrantes permite que seu rosto jovem e longilíneo se transforme numa terrível criatura uivante. A seu lado Hugo com seus enormes braços musculosos também segue o exemplo do líder e se torna num ser gigante com pêlos. Os uivos dos homens lobo ecoam nos montes além chegando aos ouvidos de Prado que escarneia.
   - Os cachorros estão a nossa espera. Vamos – vocifera.
   O primeiro ataque foi algo inesperado, pelo menos para o vampiro da extremidade. O salto digno de um atleta do lobisomem deixou o noturno com parte do pescoço dilacerado. O sangue pútrido do vampiro jorra e ele aos poucos vai se tornando uma bola de cinzas incandescente. Conde não gosta do que vê e pede mais atenção a seus soldados.
   - Sião, oriente seus homens.
   - Sim senhor.
   O pouso forçado dos vampiros foi algo desastroso e barulhento causando irritação em Sião.
   - Seus idiotas, ataquem.
   A ordem foi dada e no mesmo instante uma carnificina geral foi iniciada. Os lobos gigantes mordem pra valer rasgando a carne fazendo os vampiros gritarem. O sangue vivo espirra e derrama no chão rústico do mundo sombrio. Um lobisomem se distrai e tem uma das orelhas arrancada, como um cão ele choraminga de dor e rodopia para alivia-la. Outro vampiro aproveitando-se de sua vulnerabilidade o morde com voracidade. A morte do lobisomem acontece em segundos.
   O ruído da batalha é uma mistura de rosnados, grunhidos, gritos e até de brados. Em cada extremidade os lideres se encaram, o confronto final entre eles é inevitável, Conde Prado deseja sugar o sangue de Lobisomem até o seu final, já Abrantes quer despedaça-lo, deixa-lo em migalhas. Sião, o vampiro braço direito de Prado usa de sua habilidade e agilidade para atacar dois, três, quatro lobos de uma só vez. Hugo o maior dos lobisomens é feroz e um guerreiro fora do comum. Ele segura um noturno pelo pescoço e o esmaga com suas patas enormes, o seu lema é matar, isso o nutre.
   O mundo sem luz é palco de uma guerra inédita e inescrupulosa onde não há mocinhos e nem bandidos, todos são terríveis criaturas, todos pertencem ao mundo das chamas. Prado, enquanto mata mais um lobo, olha friamente para seu adversário e isso faz acender um ódio quase tangível.
  - Abrantes. – vocifera. – você é meu! – salta com suas unhas afiadas e prontas para fatiarem a carne fresca do cão raivoso.
  Abrantes sente que o perigo se aproxima, gira e o acerta no rosto com suas patas traseiras. O vampiro rei voa em alta velocidade com o rosto queimando devido ao forte golpe.
  - Maldito! – esbraveja Prado.
  Prado pousa e fica frente a frente com Abrantes que uiva. O sangue escorre do ferimento no rosto. O vampiro ainda meio tonto ensaia uma dança e uma canção, em seguida ele se transforma numa criatura com asas de morcego e cabeça similar a de um dragão. Estupefato, Abrantes trata logo de se defender, a briga a partir de agora é coisa de gente grande, muito grande.
   Sião e Hugo também se enfrentam e o bajulador de Prado leva a pior. Com uma dentada o braço esquerdo do vampiro é quase amputado a sangue frio. O vampiro ainda tenta correr mais a fúria do lobisomem é maior, Hugo experimenta da carne e gosta de seu gosto. Enquanto é devorado, Sião amaldiçoa toda a geração do lobo a plenos pulmões.

***

   Conde Prado e Abrantes, vampiro e lobisomem. Por um instante Prado volta a sua forma natural.
    - Há mais de 600 anos anseio por esse dia, quero um combate limpo e sinceramente, que vença o melhor. – Abrantes por sua vez volta a ser aquele homem atraente de face serena.
   - Patético! – imediatamente Abrantes se transforma do terrível lobisomem e parte pra cima do noturno.
   Mordidas, dentadas violentas, socos, arranhões profundos e muito sangue, esse é o quadro do combate entre os dois poderosos lideres do mundo sem luz. O lobo gigante se mostra mais prejudicado e de seu focinho desce uma mistura de saliva com sangue. O vampiro tem parte de suas asas quebradas e uma enorme ferida no tórax. As respirações são fortes e irregulares. Abrantes salta meio que desastrosamente e é mordido no pescoço por Prado que mais uma vez toma de seu sangue. O uivo de dor do cão é penoso. Hugo pensa em interferir, mas, hesita. Prado continua ali sugando, se alimentando da morte de seu rival. As forças do lobo se esvaindo. Aos poucos o corpo peludo de Abrantes vai tocando o chão. Os outros lobos uivam sentindo a derrota do líder. A ultima gota de sangue deixa Prado excitado. Ele deixa que o corpo já sem vida de seu adversário caia e seus olhos ficam flamejantes.
   - Eu venci. – grita seguido por seu exército.
   Hugo volta a sua forma de homem e se volta para seus companheiros.
   - Bater em retirada. – de repente a voz do Conde é ouvida.
   - Não precisam fugir com o rabo entre as pernas, o império dos vampiros permitirá que vocês caminhem rumo a outro mundo. – faz uma pausa e volta a ser o belo homem de pele pálida. – nós vampiros provamos que somos superiores aos lobos, por isso, eu como o senhor supremo desse mundo maldito lanço meu primeiro decreto; os lobisomens, devido a sua derrota, estão proibidos de se apresentarem aos quatro cantos, já tenho dito. – com uma gargalhada repugnante, Prado levanta vôo rumo a seu castelo.

***

  Deitado no meio de cinco vampiras, Conde Prado se delicia beijando uma por uma e tomado seu vinho. Do lado de fora Sâmela se amofina olhando pela janela a eterna noite do mundo sem luz. Com a morte de Sião, o vampiro escalado para o lugar é Arthur, um sujeito perigoso e fiel.
   - Senhora Condessa. – a reverencia. – me desculpe a intransigência, mas, posso sabe o que há?
   - Eu o odeio Arthur, o odeio com todas as minhas forças.
   - Senhora Condessa, me desculpe mais uma vez, mais a senhora sabia que o Conde agora é o supremo de todo esse mundo, é natural que todas sejam dele. – Sâmela se vira e olha os lustrosos olhos verdes de Arthur.
  - Logo eu sou dona de todos não é, Arthur? – o vampiro engole seco.
  - Naturalmente senhora.
  - Muito bem, vou para meus aposentos. – sorrir. – apresente-se lá em meia hora. – se afasta e depois gira os calcanhares. – isso é uma ordem.
  - Sim senhora. – responde com ar de riso.

***

  O canil está repleto de homens feridos e com os semblantes decaídos. Alguns tentam se manter de pé mais a dor os deixa no chão. Hugo olha para o céu vermelho igual a sangue e um dos súditos se aproxima.
  - Senhor, o que pensas? – Hugo olha friamente e responde.
  - Contra ataque!!
FIM

sábado, 9 de julho de 2016

O aprimorado - Série completa


Ele passa despercebido por todos. Para os adultos ele é apenas mais um adolescente normal em busca de aventura e rebeldia. Salomão, esse é o seu nome. Enquanto caminha pela calçada, ele vai se protegendo da chuva com seu capuz cobrindo sua cabeça. Nas costas sua velha mochila de lona. A aula não foi boa, aliás, suas notas não estão lá essas coisas. Seu pai já lhe prometeu uma surra caso ele não passe de ano. Ele parece não se importar muito com isso. Em matemática ele tirou a pior nota da classe. Agora ele volta para casa com a folha do teste dobrada dentro do caderno.
          Antes de dobrar a esquina que dá acesso sua rua, Salomão para na padaria e compra chicletes. Seu hálito anda meio sinistro pra variar. Bom, agora que ele está munido de seu artifício para falar com as garotas, ele se dirige para sua casa com o estômago falando mais alto de fome. Já no portão de sua singela casa ele contempla Alice. Seu coração se desmancha como manteiga na frigideira quente. Seria a melhor imagem do dia se não fosse à pessoa de mão dada com ela, Joel, ou melhor, Fox.
          - Grande Saloma. – debocha Fox.
          - Fala, Joel.
          O garoto alto, branco e um pouco acima do peso deixa sua namoradinha de lado e se volta contra Salomão.
          - Como me chamou? – o segura pelo colarinho.
          - Gente, vocês não vão começar uma briga aqui na rua né, pelo amor de Deus. – Alice olha para os dois.
          - Mais respeito seu otário, meu nome é Fox, entendeu?
          - Tudo bem, já pode me colocar no chão.
          Fox e Alice deixam o pequeno Salomão parado no portão. Ele nada pode fazer contra o gigante ruivo. Fox é maior e mais forte. Ele é apenas um adolescente magro, moreno e baixo. Alice é seu sonho de consumo faz algum tempo. Tudo o que ele mais quer é provar de sua boca. Chega de sonhos impossíveis, hora de voltar para a realidade chamada Samuel, seu pai.

***

          Samuel está ao celular vociferando. Desde quando resolveu trabalhar em casa administrando sua empresa o cotidiano da família Braga mudou muito. Salomão tenta passar sem que ele perceba. Em vão.
           - Salomão, espere. – a voz de seu pai fez sua espinha congelar. – sente-se, por favor.
           - Oi, pai. – se joga na cadeira acolchoada.
           - Quero ver seu caderno.
           - Qual foi pai?
           - Que vocabulário é esse Salomão? – retira os óculos. – me passa o caderno, fez algum teste hoje?
           A vontade era de mentir, porém seria pior, seu pai acabaria descobrindo de uma forma ou de outra.
           - Ta legal, fiz e tomei pau. – confessa abrindo a mochila.
           - Poxa, Salomão, o que anda acontecendo com você? – vocifera.
           - Dei mole mesmo, pai, me perdoa. – entrega a folha do teste.
           - Eu não tenho que lhe perdoar, você é quem deve se perdoar. – analisa o teste. – veja só, coisa mole de se resolver.
           - O senhor saca de matemática? – coloca as pernas cruzadas como chinês.
           - Sou administrador, preciso entender de números.
           - Duvido o senhor fazer esse teste.
           Samuel estreita o olhar para o filho e topa o desafio.
           - Ótimo, isso será melhor que o castigo que lhe prometi. – pega no porta canetas um lápis e começa a rabiscar a folha. Cinco minutos depois ele entrega a folha para o filho. – mais alguma coisa?
           Boquiaberto e ao mesmo tempo orgulhoso, Salomão olha fixamente para o teste e para seu pai que disfarça o sorriso.
           - Vou falar e espero que seja a ultima vez, para ser alguém na vida tem que cair pra dentro dos livros, consegue entender isso? – Salomão meneia a cabeça.
           - Estou de castigo?
           - Acho que tudo isso já bastou. – volta ao celular. – vá almoçar.

***

           Fox beija Alice encostado no muro. O clima já passa dos cem graus quando o garoto tenta tocar os seios de sua namorada.
           - Você precisa realmente fazer isso? – diz a Alice.
           - O que? – Fox cora as bochechas.
           - Isso mesmo, você precisa realmente pegar nos meus seios?
           - Que mico Alice. – abaixa a cabeça.
           - Veja bem, Joel...
           - Não me chame de Joel, eu odeio esse nome. – a empurra.
           - Tudo bem, Fox. Se quiser ficar comigo terá que controlar essas suas mãozinhas.
           - Droga. – chuta uma minúscula pedra. – certo.

***

           O inverno sempre foi à estação preferida de Salomão. O calor o deixa de mau humor além de outros problemas. Salomão nunca foi chegado num desodorante. Ele ama sentir o vento gelado no rosto e de tomar chocolate quente debaixo das cobertas. O verão é seu inimigo número dois, pois o número um chama-se Fox. Salomão odeia praia, odeia aglomerações, odeia sol. Depois do almoço ele vai para o quarto e faz o que seu pai falou. Pela primeira vez ele vai repassar toda aula para o caderno de rascunho. Seu Samuel lhe deu uma surra realmente, uma surra psicológica. O medo que ele tinha do pai se transformou em admiração. Mais do que nunca ele quer ser igual ao coroa ou melhor.
          Faz frio, mas o quarto está abafado. Deitado e lendo, Salomão não quer se levantar. Ele deixa o livro de lado. Olha para a janela. Estende seu braço e abre a mão. Com truculência e fazendo um barulho surdo a janela se abre.

CONTINUA

O APRIMORADO – “MAIS PRÓXIMO”


          Antes de chegar à escola Salomão confere se tudo está em ordem em sua mochila. Canetas, lápis, borrachas, cadernos e é claro os chicletes. Passa por uma lanchonete e sente seu estômago pedir um sanduíche recheado. Saca a carteira. O dinheiro não será suficiente nem para um pastel. Fazer o que?  É o preço que se paga por ser um adolescente de 17 anos que não trabalha ainda. Passando pelo estabelecimento ele topa com Alice.
         - Salomão, não é?
         - Alice! – gagueja.
         - Pelo visto não sou só eu que estou atrasada não é?
         - Pra você vê. – o garoto olha para todos os lados. – onde está o Joel?
         - Brigamos ontem, ele ficou com raivinha e não quis me pegar em casa.
         - Sinto muito. – ajeita a mochila nas costas. – vamos indo?
         - Vamos.
         Enquanto caminha ao lado da menina que tira o seu sono, Salomão tenta imaginar o que Fox faria com ele se visse os dois lado a lado. Falta pouco para chegarem ao colégio e até agora ele não disse nada de interessante. Alice tem a mesma idade, porém está na frente um ano. Ainda na portaria eles se despedem. O beijo tão esperado não veio e sim um frio “até logo”.

***

          O intervalo finalmente acontece. Sozinho, Salomão aguarda a chegada de seu misto quente que será pago no fim do mês. De repente ele sente sua cabeça arder. Ele gira o pescoço e dá de cara com a barriga de Fox.
          - Quer dizer que o seu negócio é cantar a mulher dos outros?
          - Como é que é?
          - Não se faça de idiota. – começa a alisar o punho. – por falar nisso, sua cabeça é dura em meu chapa.
          - Eu não cantei a mulher de ninguém.
          - Está chamando o Bil de mentiroso?
          - Bil?
          Do meio de uma roda de jovens sai um garoto negro idêntico a Mike Tyson. Salomão sente sua alma o abandonar.
          - Se liga Bil, esse pirralho te chamou de mentiroso.
          Como um touro furioso Bil olha para Salomão que só vê a montanha negra crescer a sua frente.
          - Mentiroso? Eu? Tem certeza?
          - Cara, veja bem, eu...
          - Chega de papo furado meu irmão, vou treinar meu boxe em você, hoje, depois da saída, pode ser?
          Pra lá de animado Fox anuncia a plenos pulmões o confronto desigual.
          - Vai ter briga! – a galera fica ovacionada. – e depois do Bil é a minha vez de encher esse rostinho cheio de espinhas de soco, tudo bem?
          A fome passou. O misto quente tão esperado foi guardado na mochila. Ao voltar para a classe Salomão não para de olhar para o relógio. Realmente a hora não passou. Por mais que ele quisesse se concentrar na aula ele não conseguiria. A imagem de Bil o socando até a morte martelava sua cabeça. Duas horas depois o sinal toca. O corredor da morte. Salomão se arrasta até o portão principal. Lá fora dois brutamontes o aguarda. Bil não para de socar a palma da mão e Fox sorrir exibindo seu aparelho dentário.
          - Fala, vida louca. – começa Bil. – chegou à hora.
          - Cara, por favor...
          - Ninguém vai te salvar. – diz Fox.
          Alice aparece gritando por Fox que não lhe dá ouvidos.
          - Preparado? – pergunta Bil.
          - Calma cara.
          Como um pugilista profissional, Bil desfere um cruzado. Salomão vê seu golpe em câmera lenta e consegue se esquivar.
           - Duvido segurar essa. – aplica um gancho que passa em branco. A galera grita o nome de Bil.
           - Qual foi Bil, vai dar mole para esse moleque?
           Um cruzado e logo em seguida um direto que passam no vento. Bil começa a ficar cansado.
           - Mais que droga, não consigo acertá-lo.
           Mais uma vez o gigante musculoso tenta encaixar um gancho e nada. Salomão desvia de todos os golpes com uma rapidez fantástica. Infelizmente ele se distrai com Alice falando o nome dele. Bil aplica um direto que acerta em cheio o nariz do garoto que vai ao chão. A galera vibra. Salomão não levanta.
           - Vamos. – fala gingando. – levante para morrer.
           - Agora é a minha vez. – diz Fox.
           - Se você encostar a mão nele eu termino com você de vez. – grita Alice do meio da galera. Fox olha para Salomão nocauteado no chão e depois para sua namorada.
           - Que se dane. – chuta o pé de Salomão.

***

           Depois que todos se foram Salomão se levanta. Não há sangue ou hematoma. Ele olha para os lados e sorrir. Ajeita a mochila nas costas e vai embora.

            Na lanchonete sentados na mesa estão Fox, Alice e Bil que não para de sacudir a mão. Fox se irrita.
            - Pare com isso cara.
            - Minha mão não para de doer. – fala com voz de choro.
            - Quer ir ao hospital? – pergunta Alice.
            - Ah, não foi nada, pior deve estar à cara daquele idiota. – debocha Fox.
            Bil levanta a mão e ela está totalmente inchada assustando ao casal.
            - Bil, vamos ao pronto socorro agora. – ordena Alice.

“Descobrindo”

            Salomão passa pelo escritório do pai com um sorriso que vai de uma orelha a outra. Estranhando o comportamento do filho, Samuel o chama para uma conversa.
            - Sim, pai?
            - Como foi hoje?
            - Foi maneiro! – joga a mochila na cadeira.
            - Quer conversar um pouco, quer dizer, faz tempo que a gente não faz isso. – diz constrangido.
            - Tem de ser agora?
            - Não necessariamente, podemos marcar um cinema, o que você acha?
            - Pode ser.

***

            A doutora examina a mão de Bil que faz altas caretas a cada movimento.
           - Você disse que é um boxeador?
           - Sim, e dos bons. – mais careta.
           - E por ser bom, você acha que é necessário socar concreto?
           - Como assim? – Bil arregala os olhos.
           - Há uma fissura no dedo médio e outras lesões.
           - Quer dizer que vou ter que ficar sem treinar?
           - Um bom tempo. – diz séria, igual a uma pedra de gelo.

***

           Marina e Samuel almoçam juntos pela primeira vez em duas semanas. Isso por que a demanda da empresa tem ocupado todo o tempo do chefe da família Braga a ponto de impedir que ele se reúna com seus familiares. Salomão já havia subido quando Samuel contou a novidade para sua esposa.
           - O convidei para sair. – fala limpando a boca.
           - Nossa, que bom, e vocês vão aonde?
           - Ao cinema.
           - Poxa, queria ir, mas entendo que você quer ficar mais próximo dele, parabéns meu amor. – segura na mão do marido.
           - Pois é, em breve ele será maior de idade, preciso que ele saiba que ele tem um pai amigo e não um sargento dentro de casa.
           - Se todos os pais fizessem isso, não haveria tantos filhos revoltados e fugindo de casa. – enrola a salada com o garfo.
           - Agora, quanto a você, pensei em um jantar naquele restaurante da nossa lua de mel, lembra?
           - Te amo!

***

          Alice, Fox e Bil conversam sobre a briga. O rapaz está com sua mão imobilizada e lamentando não poder treinar por alguns dias. E com certeza terá que fazer fisioterapia.
          - Nossa, queria ver o rosto do Salomão. – Alice balança a cabeça.
          - Pô, - diz Bil. – e eu acho que não bati tão forte assim.
          - Bil, você nocauteou o cara, você venceu a briga, você é o melhor. – o exalta Fox.
          - Bom galera, eu já vou indo, vejo vocês amanhã. – com apertos de mão um tanto quanto estranho Bil se despede do casal.
          Fox percebe que sua namorada está estranha, já não o abraça mais como antes e quase não o olha no olho.
          - Alice. – começa. – sei que ultimamente eu tenho sido grosso com você e que tenho preferido andar com meus amigos, mas, saiba que sou louco por você. – Alice continua a andar. – você está me ouvindo?
          - Estou!
          Alice está cada vez distante, cada vez mais fria, o que estaria acontecendo? Fox falou durante meia hora até chegarem ao prédio onde sua namorada mora. Para a triste surpresa do garoto ela não o convidou para entrar.
          - Até amanhã, Fox!
          - Como assim, não vai me convidar para entrar? – abre os braços.
          - Tenho que ajudar minha mãe com a arrumação da casa. Amanhã a gente se ver.
         - Não vai me dar um beijo?
         Mesmo contra a vontade a menina foi obrigada a beijá-lo.
         - Thau, Fox.

***

         Duas horas depois, lá estão pai e filho saindo do shopping sorridentes. O filme foi legal, porém a companhia do pai foi melhor ainda. Salomão está encantado com o papo cabeça de seu coroa. Samuel quer ser o melhor amigo de seu filho. Vale a pena “perder” um tempinho para investir no filho. Nada é mais importante do que esse momento. Na realidade quem está aprendendo uma lição é Samuel.
         - E ai carinha, gostou do passeio? – passa a mão na cabeça do filho.
         - Adorei!
         - Se você quiser podemos fazer isso todo mês, o que você acha?
         - Legal!

         A mãe se distrai e solta a mão da menina. A garota passa pela calçada e ganha a rua. Os carros passam em alta velocidade deixando poeira para trás. Sem a menor consciência do perigo a menina caminha em direção a morte certa. A mãe ao ver seu bebê no meio da estrada, grita chamando atenção de todos, inclusive de Salomão e Samuel. No ímpeto Salomão abandona seu pai.
         - Salomão. – vocifera.
         Samuel apenas ver um rastro de luz deixado por seu filho quando ele ganha a rua numa velocidade incrível. O carro que iria atropelar a pequena, passa buzinando loucamente. Do outro lado da calçada Salomão acalma a menina em seu colo.
          - Está á salvo agora criança.
          A mãe da menina quando abre os olhos e vê seu bebê são e salva, chora compulsivamente e agradece ao mesmo tempo. Todos aplaudem a atitude heroica do adolescente, menos Samuel que está boquiaberto com o que viu.
          - Salomão, meu filho. – retira os óculos.

“Quem sou eu?”

          Samuel e Marina conversam tomando café na mesa da copa. Ainda impressionado com o ato do filho na noite passada, o administrador adoça o líquido fumegante sem ao menos olhar para a xícara.
          - Tinha que vê, Marina, era como se fosse um raio.
          - Tem certeza, Samuel, você achou que viu.
          - Eu estava a centímetros dele, mulher, vi quando ele saiu correndo e deixando para trás um rastro luminoso. – assopra o café e o toma. – o carro com certeza iria atropelar a pobre bebezinha e o nosso filho a salvou.
          - Quem mais viu isso?
          - Só eu, acho!
          Marina se serve mais do café.
          - Vamos observá-lo.

***

          Fox espera a chegada de sua namorada na praça da cidade. Bastante preocupado com os últimos acontecimentos quanto ao seu namoro, ele trouxe uma caixa de bombons caros. Alice aparece no meio dos balanços com uma expressão séria, quase gélida. Notando que o clima não é nada favorável, Fox resolve manter a seriedade do momento.
        - Trouxe chocolate. – estende a caixa muito bem embalada.
        - Obrigado, estou de dieta. – agora o clima pesou de vez.
        - Poxa, Alice, até quando você vai ficar me dando gelo?
        - E até quando você será esse cara bruto e grosso? – ele não responde, apenas abaixa a cabeça. – cara, você viu o que você fez com aquele pobre garoto, promoveu uma briga desleal.
        - Ele mereceu, quem manda dar em cima da mulher dos outros.
        - Eu não sou tua mulher, pra começar. – se senta no banco de concreto. – eu não quero ficar conhecida como a namorada do Fox, o cara mais durão do bairro.
        - Tudo bem, tudo bem, o que devo fazer para me redimir e ter minha gatinha de volta?
        - Prometa que não vai mais implicar com o Salomão?
        - Prometo!
        - Ótimo. – se levanta. – me passe essa caixa de bombons pra cá. – Fox sorrir. – quer me ajudar a comer?
        - Achei que não iria me convidar.

***

        Salomão está deitado na cama observando o céu com suas nuvens pela janela. Como será lá em cima? Como vivem os anjos? E Deus, onde estaria nesse momento.Um vento fresco entra pela janela balançando as cortinas chegando até seu rosto com acnes. Ainda lembrando de seu gesto da noite passada, Salomão tem na cabeça uma interrogação enorme, quase do seu tamanho. Quem sou eu? De onde vim? Do que sou capaz de fazer? Seria isso um dom dado pelo Senhor do universo? Ele se levante e se olha no espelho. Perde algum tempo se olhando e não gosta nada do que vê. Claro que Alice não tem olhos para ele. Fox é bem mais bonito e forte.
        Debruçado na janela ele visualiza um pássaro sobrevoando na altura das nuvens e se imagina lá, junto ao pássaro. Como seria ver o mundo lá de cima? Seu coração acelera. Ele abre os braços e fecha os olhos. Sente novamente o vento fresco minar seu rosto quando seu pai invade o quarto.
        - Salomão, tudo bem com você?
        - Oi coroa!
        - Podemos conversar? Posso voltar mais tarde se tiver muito ocupado. – coça a cabeça.
        - Que nada pai, senta ai.
        - Filho, acho até que você já sabe qual o assunto, não é mesmo?
        - É, acho que sei. – se acomoda ao lado do pai.
        - Desde quando você faz essas coisas?
        - Não sei, certo dia acordei e tudo começou.
        - E o que você sente quando está em ação? – Samuel apóia os cotovelos no joelho e entrelaça os dedos.
        - Sinto que sou invencível, que eu posso fazer tudo, até...
        - Até?
        - Voar, quem sabe.
        - E você já tentou?
        Salomão não responde de imediato. As palavras de seu pai ainda pairam no cômodo. Voar. Que absurdo. Deus não daria tal poder a um ser humano, ou daria?
        - Ainda não.
        - Quer tentar?
        - Pai. – o garoto se levanta. – o senhor faria isso mesmo, por mim?
        - Filho, o que eu vi você fazer, foi muito forte. – se levanta e coloca a mão no ombro do filho. – saiba que eu estou do seu lado.

***

         Mesmo incrédula marina topou ir com seu marido e filho até no alto de um monte perto da casa. Salomão vai à frente com seu olhar perdido. Atrás, seu pai e sua mãe de mãos dadas esperam algo surpreendente do único filho. Ele olha para trás e sorrir. O céu é de um azul extraordinário.
          - Acho que aqui ninguém nos verá. – diz Salomão.
          - Pois é. – Samuel olha para Marida que dá de ombros.
          - Bom, lá vou eu.
          - Isso é loucura, vamos sair daqui. – Marina dá as costas.
          - Veja com seus próprios olhos meu amor. – Fala Samuel apontando para o alto com um olhar profundo. Marina olha ainda a tempo de ver seu filho subindo cortando as nuvens. Ela abre a boca e deixa uma lágrima escorrer. Eles se abraçam e choram juntos. Salomão some entre as nuvens. FIM