sábado, 8 de dezembro de 2018

Mude Minha História





Há quem diga que veio a esse mundo a passeio, há também quem diga que veio ao mundo para conquistá-lo. No meu caso, eu acho que vim a esse mundo para ser mais uma nessa multidão de pessoas infelizes. As vezes penso se Deus não cometeu um engano me enviando a essa terra. Mas como assim, Gleice? Deus não se engana e nem erra? Oras? Se Ele não se engana e nem erra, então porque permitiu meu nascimento? Porque assiste meu sofrimento e não faz nada?
         Faço essa mesma pergunta a 37 anos e a 37 anos não sou respondida. O jeito é continuar aqui, sentada na varanda, tomando meu chá e olhando as estrelas rindo da minha cara. Será que a resposta está lá, nas estrelas? Ou em outro planeta? Não sei. Sigo vivendo e não aprendendo, levando as piores pancadas da vida. Sigo vivendo.
*
Antes

Gleice está terminando de lavar as louças do jantar. Enquanto esfrega a esponja nos talheres, seus pensamentos variam entre seu casamento com Mário e a criação de seu filho Gustavo. O garoto entrou na pré adolescência tem pouco tempo e já vem causando sérios problemas para os pais.
       Gustavo nos últimos dias vem se mostrando muito agressivo, tanto na escola como dentro de casa. Na escola ele esmurrou o rosto de um colega apenas porque o garoto comemorou a vitória de seu time. Foi preciso a intervenção da professora para tirá-lo de cima do menino.
         Gleice sabe muito bem o porque das alterações no humor de seu filho. Mário, seu marido vem deixando frágil a estrutura da família. Mário é um policial linha dura. Bom profissional, bom pai, porém se esqueceu de ser um bom marido. O ciúme doentio vem minando a relação do casal e Gleice já esgotou todas as tentativas de viver bem com ele. Mário não aceita que sua mulher trabalhe fora e nem frequente reuniões em que ele não esteja presente. Uma verdadeira prisão a domicílio. Gleice não lembra qual foi a ultima vez em que eles ficaram bem, ou que saíram juntos para um cinema ou teatro. Tudo que sua mente se recorda são de brigas, troca de acusações e xingamentos.
       Ela termina de guardar os talheres quando Mário chega. Como de costume ele joga as chaves sobre a mesa de centro. Abre a camisa e anda até a cozinha. Mediano, cabelos bem cortados, branco e sem barba, olhos claros. Mário retira o relógio do pulso e depois desabotoar a manga da camisa.
- Oi. – diz ele.
- Oi. – guarda os pratos. – vai querer jantar?
- Não. Comi algo na rua, qualquer coisa eu tomo um copo de leite. Cadê o Gustavo?
- Está no quarto jogando.
- Ele aprontou alguma hoje? – enterra as mãos nos bolsos.
- Graças a Deus não, hoje foi um dia calmo. – seca a pia. – bom, já que não vai jantar vou tomar um banho e dormir.

Gleice é uma mulher bonita, bonita até demais para um sujeito como Mário. Cabelos negros lisos naturais, rosto fino, não muito magra e uma pele morena sedosa. Após o banho Gleice se torna irresistível envolvida num roupão e cabelos molhados. Mesmo sem maquiagem ela continua linda. Ela se senta na frente do espelho para secar os cabelos quando Mário adentra ao quarto tocando em seus ombros iniciando uma massagem.
       Gleice não é de contar, mas faz vinte dias sem sexo. A última foi quando Mário a surpreendeu na garagem. Eles transaram em meio as bicicletas, pneus velhos e outras ferramentas. Loucura pura.
        Hoje a história será diferente. Gleice não está nenhum pouco a fim de sexo. Mário continua investindo para uma longa noite de prazer enquanto que sua esposa não esboça qualquer reação. As mãos do policial saem dos ombros e vão até os seios médios que são apalpados com delicadeza. A mulher continua a tarefa de secar os cabelos. Mário vai abrindo o roupão deixando os ombros nús.
         Gleice termina. Se levanta. Retira o roupão e coloca sua roupa de dormir. Mário acompanha tudo de longe.
- Apague a luz, por favor. – se deita.
         Inconformado Mário cruza os braços.
- Qual o problema, Gleice?
- Nenhum problema, porque? – se cobre com o Edredom.
- Você só pode estar de brincadeira. – continua de pé de braços cruzados. – quer dizer que você não quer mais nada comigo? Viveremos como bons amigos então?
- Eu acho que nem como amigos conseguiríamos viver, Mário.
- Eu não acredito, você só pode estar me traindo, fala a verdade, você tem outro.
       Gleice se ergue na cama.
- Está vendo? É disso que estou falando, esse seu pré julgamento, esse seu ciúme está destruindo nosso casamento, Mário, será que você não está vendo.
      Mário dá a volta e se deita resmungando. Do outro lado da cama Gleice se cobre por inteira na tentativa de sufocar o choro. Será mais uma noite de pesadelos, uma noite mal dormida onde ambos irão remoer seus sentimentos.

*

Como viver ao lado de uma pessoa que não confia em você? Como conviver num ambiente repleto de hostilidades? Os dias casada com Mário chegaram ao fim. Se doeu? Lógico que sim, ninguém em sã consciência sai de um casamento comemorando, mesmo que o relacionamento não tenha sido um mar de rosas. Gleice tomou coragem e pediu o divórcio. Mário deu um sim relutante e se foi. De repente aquilo que tanto lhe atrapalhou não existe mais, Gleice agora pode alçar vôos mais altos.

*

Época atual

Já passa da meia noite e Gleice ainda está acordada sentada na copa da cozinha diante de seu notebook. A casa está num silêncio sepulcral, Gustavo seu filho agora com 16 anos se encontra no quarto com os fones enterrados nos ouvidos deitado na cama.
        A linda morena refaz as contas, tenta encontrar uma saída, porém a realidade é dura. Desde quando Gleice abriu seu negócio, uma cafeteria, o financeiro vem sofrendo. Há mais saídas do que entradas. Duas lojas, duas dores de cabeça. E agora não tem jeito, a Gleice's Café terá que fechar as portas. Nervosa ela fecha o aparelho e tenta engolir o choro. Não adianta, ela rompe em lágrimas ali, no vazio e no silêncio daquela copa.
        Seria azar ou falta de sorte? Não importa. Gleice entrou numa maré pesada onde os problemas castigam, batem pra valer. Ela permanece debruçada sobre a mesa, com o rosto coberto pelos cabelos mergulhada nas lágrimas até que uma voz a trás de volta.
- Mãe? – Gustavo aparece na cozinha.
         Numa tentativa frustrada de enxugar o rosto com as mãos, Gleice atende seu filho.
- Oi, achei que já estivesse no décimo sono.
- A senhora está chorando? – abre a geladeira.
- Não. Eu só bocejei. O que quer?
- Vim pegar suco. – pega a jarra.
- Isso, beba logo e vá dormir, se eu não me engano você está no período de prova, não é?
        Gustavo revira os olhos e dá de ombros.
- Saco. – enche o copo.
       Desde quando os pais se divorciaram Gustavo mudou bastante. Ele não gosta da ideia de morar com Gleice. O garoto prefere mil vezes morar no apartamento com o pai. Mário tira proveito disso e vive fazendo a cabeça do filho. Na casa da mãe tem regras e tarefas, tudo que um adolescente detesta.
- E acho bom você tirar boas notas mocinho, caso contrário sem vídeo game no final de semana.
- Saco. – desaparece da cozinha.

*

O carro de Gleice já saiu de linha, mas ainda funciona muito bem. Como todo carro velho ele apresenta um defeito aqui e outro ali, mas nada que um mecânico de confiança não resolva. Ela para enfrente ao colégio e se despede do filho.
- Não fique andando por ai depois da aula, vá direto para casa, estamos entendidos?
- A senhora sempre fala isso. – abre a porta.
- E você sempre me desobedece. Boa prova.
         Gustavo cresceu muito, está igualzinho ao pai. Tirando o jeito de olhar, o resto é todo Mário. Ela espera até que ele passe pelo portão e sai. Hora de encarar a realidade de perto. Seu destino é a Gleice's café que fica dentro de um dos melhores shoppings da região. Como notificar os dois rapazes que a partir de hoje eles terão que arrumar outro emprego? Como?
        Mesmo vivendo a falência de seu negócio uma proprietária não deve transparecer o luto, pelo contrário, Gleice nessa manhã vestiu sua melhor roupa, se maquiou e partiu para a luta.
        Ela chega na loja e a vontade que tem é de chorar ou de sair correndo. Lá estão os funcionários, dedicados como sempre, uniformizados, educados e atenciosos. Ela passa pelo balcão desejando um bom dia aos poucos clientes ali presentes e em seguida chama um por um para uma rápida conversa.
        Foi mais doloroso do que ela imaginou. Nenhuma conversa foi igual a outra. Como uma boa patroa, Gleice fez questão de dizer que honrará todos os direitos. Nada ficará em falta. O dia será pesado. Eles voltam para a loja, querem trabalhar todo esse último dia com maestria. Gleice permanece no escritório, engolindo cada pranto. O que estaria acontecendo de fato em sua vida? Uma maldição? Alguém lançou uma praga?

Antes

Alguns anos depois de se divorciar de Mário Gleice conheceu o professor de inglês Henrique Ribeiro. A empresária já havia decidido a não mais se relacionar com alguém, porém aquele homem alto, de rosto sereno e fala tranquila a conquistou desde o primeiro dia. Foi no Gleice's café. Um dos funcionários precisou faltar e a chefe encarou o balcão.
        Henrique chegou ao estabelecimento e ocupou um dos bancos. Calça jeans e camisa de manga comprida branca e uma pasta executiva.
- Boa tarde senhor, o que vai pedir? – Gleice aparece com seu sorriso radiante.
- Sim, boa tarde, café puro e uma porção de pão de queijo, por favor.
       A partir desse dia Gleice achou que havia encontrado o amor de sua vida. Sim, ela acreditou piamente. Foram meses de pura curtição, teatro, cinema, finais de semana em hotéis fazenda entre outros lazeres. Foi bem legal no início. Gustavo como sempre dando trabalho, mas nada que Gleice não pudesse resolver.

Gleice abre os olhos devagar. Olha para o relógio digital em cima do criado mudo do hotel. Dez para cinco da tarde. Depois de bocejar ela percebe que Henrique não se encontra a seu lado na cama. Foi um início de tarde muito louco. Depois do almoço os dois resolveram se deitar e acabaram transando. Ambos caíram no sono. Ela se levanta enrolada no lençol e anda até o banheiro onde surpreende seu namorado cheirando uma carreira de cocaína considerável.
- Pode me explicar o que se significa isso?
        Foi uma bomba, Gleice jamais imaginou que aquele homem bonito e educado fosse um adicto. Henrique se levanta do vaso sanitário, limpa as pressas o nariz e sem argumento algum tenta explicar o que não tem explicação.
- Calma, amor, eu vou explicar.
         Henrique falou bastante. Contou que se viciou em cocaína no início de sua juventude. Ele cursava a faculdade quando conheceu uma menina a qual lhe apresentou a droga. Daí em diante ele não conseguiu mais deixar o pó da morte. Gleice não prestou atenção em nada do que seu namorado disse. Sua cabeça estava a mil anos luz daquele quarto de hotel. Tudo o que ela queria era sair daquele lugar o mais rápido possível.
       Henrique jurou que pararia, porém a empresária sabia dos desafios que viriam, um viciado não consegue se livrar assim tão fácil. Mesmo assim ela resolveu dar um crédito. No fim do domingo eles saíram do hotel onde estavam desde a sexta rumo a mais uma semana de trabalho duro.

Uma semana depois de ser surpreendido por Gleice lá estava o professor Henrique Ribeiro cheirando seu pó escondido dentro do carro. Da janela do quarto ela lamenta o fato de um homem como ele se destruindo aos poucos. Ele sai do carro. Seus olhos estão arregalados. Gleice espera até que ele entre em casa para dar seu veredicto final.
- Henrique, eu não sei se tenho disposição de viver ao lado de um viciado, me perdoe, não posso deixar que meu filho corra esse risco.
- Você está acabando tudo comigo, é isso?
        Ela ajeita os cabelos atrás das orelhas e limpa as lágrimas.
- Sim.
         O sim saiu incisivo, até mais do que ela esperava. Henrique se viu diante de uma mulher forte, de pulso firme, pelo menos demonstrou isso nesse momento.
- Tudo bem, já que é assim. – passa por ela se dirigindo ao quarto.
       Assim que Henrique dobrou a esquina desaparecendo de vez da vida de Gleice, a mesma foi tomada por uma crise de choro. Ela ainda não conseguiu se acertar sentimentalmente na vida. Não mesmo. A empresária se joga na cama, enfia a cabeça entre os travesseiros e chora, chora muito.

Época atual

Gleice não é de beber, mas hoje o dia foi tão complicado, tão doído que ela fez questão de parar num bar e pedir um Martini. Uma dose apenas, somente para tentar relaxar. Até mesmo uma mulher bonita como Gleice tem direito de deixar o álcool limpar suas mazelas. O lugar é até legalzinho. A música não está tão alta e graça a Deus as pessoas estão falando num volume normal. Ela pede outro Martini. Consulta o horário no celular e termina de tomar o restinho da bebida. Hora de ir.

Gustavo chegou antes de sua mãe. A adolescência chegou para ele da pior forma possível. Na escola ele tem andado com uma turminha barra pesada que vem deixando os estudos em último plano. O negócio é beber até vomitar e se drogar até as veias explodirem. Gustavo por enquanto vem resistindo aos constantes convites, tem levado a sério os conselhos de sua mãe.
       O líder da turma na saída da escola exigiu que ele levasse algumas gramas de pó caso ele se decidisse. Mais uma vez houve resistência, porém por ser mais velho e fama de espancador, o líder “conseguiu” convencer o colega de classe. Agora o otário do Gustavo está ali, sentado na cama segurado um pequeno frasco com cocaína dentro sem saber o que fará com aquilo. Do quarto ele escuta o barulho do carro de sua mãe parando em frente ao portão. Imediatamente o garoto enfia a droga dentro da mochila e a joga no canto perto da cama.
       Gleice entra em casa um pouco alterada devido as duas doses de Martini, mas não está embriagada. Retira os sapatos aliviando os dedos. Coloca a bolsa no sofá e caminha até a cozinha.
- Gustavo, vai jantar? – grita. Aguarda a resposta que vem em seguida.
- Já é.
         Resmungando algo sobre a resposta do filho ela entra na cozinha e toma um susto ao ver algumas louças ainda por lavar.
- Vamos nessa senhora Mota.

*

Mãe e filho jantam em silêncio. Gleice quer iniciar uma conversa, mas precisa saber como. Gustavo come feito um mendigo faminto, em menos de quinze minutos o bife com fritas desapareceu do prato. Diga-se de passagem, Gleice é uma cozinheira de mão cheia.
- Vou fechar o Gleice's café. – junta os talheres.
- Como assim, vai fechar? – garfa o último pedaço do bife.
- Contraímos muitas dividas, o nosso governo nesses casos é implacável.
- Parece que tudo aquilo que o pai disse está acontecendo.
- Você deveria estar do meu lado. – franze a testa.
- Mãe, o pai falou que...
- Seu pai só falou merda sobre mim, não vê que ele está jogando, não adianta, Gustavo, você não vai morar com Mário, isso jamais e ponto final. – tom de voz alterado.
- Eu tenho direito de escolher.
- Você tem o direito de estudar, só isso, sou sua mãe e aqui na minha casa tem regras.
- Mais que droga. – se levanta. – vou para o meu quarto.
        Família. Desde quando isso deixou de existir no lar dos Mota? Nem de longe lembra uma. Não foi com isso que Gleice sonhou. Enquanto termina de empurrar os últimos grãos de arroz para o canto do prato ela relembra o que seu ex marido disse sobre o Gleice's café, “isso não passa de um sonho sem fundamento, é preciso muito mais que vontade para manter um negócio”. Estaria aquele traste certo? Sou mesmo o fracasso?
        Na realidade a fase que a ex empresária vem atravessando não é das melhores. Sua vida sentimental é um desastre, sua vida profissional é uma catástrofe e a familiar nem se fala. O que se faz nessas horas? Chorar ou tenta se reerguer? Difícil, bem difícil essa vida.

*
Qual seria a válvula de escape para um garoto como Gustavo que vem assistindo uma verdadeira guerra entre seus pais? Antes de ligar para o pai ele abre a mochila e procura pela droga. Lá está ela, no fundo da bolsa. Ele sabe que se experimentar nunca mais conseguirá deixá-la. Nunca mais mesmo. Não, melhor não. A droga volta para o fundo da mochila cedendo o lugar para o celular.
- Oi, pai.
- Fala filho, o que mandas?
- Minha mãe, enchendo meu saco, só isso.
- Quer que eu fale com ela?
- Sim. Temos uma novidade.
- Qual seria?
- O Gleice's café fechou.
- Putz, sério? Gleice é uma incompetente mesmo, eu bem que avisei.
- A situação está bem complicada aqui.
- Pode deixar comigo, seu pai vai resolver tudo.

*

O clima não é de festa, mas depois de viver a falência de seu negócio e por estar atravessando uma crise familiar complicada, Gleice decidiu ir até a festa de sua amiga Helena. Mais uma vez Gustavo se negou a acompanhá-la. O garoto tem se tornado um anti social de primeira. Gleice colocou seu melhor vestido, se maquiou sem exageros, quanto aos cabelos preferiu ir com eles soltos. Perfeita.
         Gleice chegou ao salão perto das vinte horas. Foi recepcionada pela própria anfitriã que já segurava uma lata de cerveja.
- Nossa, você está linda.
         Gleice ruboriza.
- Feliz aniversário, querida, comprei uma lembrancinha. – se beijam.
         O salão está cheio. Porém a música é agradável, sucesso dos anos 70 tocados no piano. Gleice ocupa uma mesa perto de onde vem a música. Um pianista desliza seus dedos pelas teclas deixando o ambiente riquíssimo. O garçom lhe serve alguns quitutes e cerveja. A música termina e todos reclamam. O pianista justifica ao microfone.
- Em dez minutos sucessos dos anos 80.
        Os convidados vão a loucura, inclusive Gleice. Agora ela pode perceber o quanto o pianista é bonito. Ele deixa o instrumento e se vira para Gleice. Os olhares se cruzam. Ela evita o contato visual, ele não. Pega um copo com água servida pelo garçom e caminha até a aniversariante. Ambos conversam sorridentes. Gleice presta bastante atenção no andar, no jeito de se portar, de ficar em pé. Tudo naquele homem parece nobre. Talvez por causa do blazer cinza que está usando.
        Helena vai ao microfone anunciar a volta do pianista com os sucessos dos anos oitenta.
- Ele está de volta, Silvano Lima.
        O instrumentista é ovacionado. Assim que solta seus primeiros acordes a galera vibra. Gleice acompanha sentada o povo saltando a voz ao som das canções da Legião Urbana. Vez por outra eles trocam olhares. Silvano tem os cabelos compridos e negros passando um pouco dos ombros.
       Foram tocadas no total vinte músicas até que os parabéns foi anunciado sob aplausos. Silvano mais uma vez deixou o piano ficando numa posição favorável para encarar a mulher linda a sua frente. Gleice tenta, mais é algo magnético, ele a atrai. Seu coração machucado insiste em encontrar forças para mais uma aventura, porém a razão tem voz forte. Gleice já passou por poucas e boas e pra ser sincera, ela não está nenhum pouco disposta em investir em um novo amor.
        Fim de festa. Gleice se despede de sua amiga aniversariante da noite. Sai do salão que por sinal foi muito bem ornamentado com balões de cores leves do tipo branco e dourado, uma exigência da anfitriã. A noite já é alta e o local não é dos mais seguros. Ela chega em seu veículo e antes de entrar Gleice vê Silvano parado no ponto de táxi vazio. O coração volta a palpitar – seria legal perguntar para onde vai? De repente os olhares se chocam. Num gesto de puro ímpeto a ex empresária pergunta se ele quer carona.
- Acho que nesse horário os táxis não trabalham de forma circular. – ela diz.
- Pois é, estou aqui a vinte minutos e até agora nada.
- Venha, lhe deixo num ponto mais movimentado.
         De uma coisa Gleice sabe agora, Silvano cheira muito bem. Ele afivela o cinto e se ajeita no banco. Ela sai com o carro pegando uma saída que a deixará na estrada principal.
- Me diga, você ganha a vida tocando ou tem outro emprego?
- Sou músico em tempo integral, faço isso a vinte anos, graças a Deus tem dado certo.
       Silêncio. Isso incômoda a ambos. Silvano pigarreia algumas vezes. Estar sentado ao lado de uma bela mulher dirigindo, exibindo um lindo par de coxas de pelos finos dourados desperta nele o homem viril que é. Gleice por sua vez está adorando o fato de ter a seu lado e dentro de seu veículo um homem cabeludo, bonito e que cheira maravilhosamente bem.
- Farei melhor. – pega outra entrada. – vou te deixar em casa, a essa hora não podemos facilitar.
- Tem certeza? – Silvano evita olhar para as coxas dela, mas é algo quase impossível.
- Sim, é só me dizer onde você mora.

Dez minutos depois o carro da mãe de Gustavo está parado numa rua um pouco mais movimentada em frente o prédio onde o músico reside. Nada mal.
- Gleice, muito obrigado pela carona. – estende a mão.
- Que nada.
         Silvano desce do veículo e se inclina na janela.
- Posso pegar seu número?
         Como assim, pegar meu número? Corajoso esse tal de Silvano Lima.
- Gostaria de saber se você chegou bem em casa. – justifica.
- Tudo bem, anote.
       Gleice dirige no automático. A paisagem noturna vai passando e deixando borrões para trás. Em cinco minutos ela está guardando o carro na garagem ainda com a mente ocupada pelo pianista. Ela não quer se apaixonar, não quer sofrer. Dar outra chance ao coração está fora de cogitação.
        Minutos depois ela está deitada ainda com o vestido da festa. Ela não quer admitir mas está ansiosa pela ligação de Silvano. Enquanto isso não acontece ela atualiza suas redes sócias até que o telefone vibra. Ela espera o terceiro toque, não quer se mostrar afogada.
- Oi.
- Oi, chegou bem?
- Sim.
- Que ótimo, bom, mais uma vez foi um prazer conhecê-la.
       Ele vai desligar e simplesmente nunca mais nos veremos. Isso é bom ou ruim? Melhor continuar me fazendo de durona.
- O prazer foi todo meu.
- Veja bem, no próximo sábado irei tocar num barzinho, quer ir comigo?
        Ela demora a responder. Está acontecendo de novo. Um convite, uma curtição, um envolvimento e pronto, outra decepção.
- Posso lhe dar a resposta depois?
- Tudo bem é só me ligar.
- Obrigado.
- Boa noite.
        Pode parecer fácil, mas só quem já passou por dois relacionamentos que foram um fracasso sabe o quanto é complicado. A figura masculina se tornou para Gleice sinônimo de problema. Ela vai para o banho, quem sabe a água fria não congele esse sentimento.
*

Toda adolescência é confusa. E para um adolescente que infelizmente perdeu a referência de uma figura paterna a situação fica ainda mais difícil. Gustavo tem um furacão ao invés de um cérebro. Ele consegue complicar tudo, coisas fáceis de se resolver ele faz disso um fardo.
        Ele chega na escola e a primeira pessoa com quem ele tem contato é o rapaz que lhe deu a droga.
- E ai, gostou?
- Pô, Guto, não sei se quero isso pra mim.
- Não estou te entendendo, menor, aquela parada vai te dar a melhor brisa, se liga cara.
        Augusto, ou melhor, Guto, como é chamado, se viciou em drogas porque não suportava a ideia de ter pais separados. Hoje em dia sua aparência não lembra em nado o garoto saudável que já foi.
- Toma, melhor ficar com você. – tira a mochila das costas.
- Sem essa, menor, fica com você.
- Mas...
- Nada de mas, vai ficar com você e pronto.
        Diante da pressão imposta por Guto, não lhe resta outra alternativa a não ser permanecer com aquela porcaria branca.  Esse traficante de merda não o deixará em paz enquanto não o ver no fundo do poço aonde ele se encontra também.

*

Gleice está ocupada terminado de acertar os documentos de sua falida empresa quando uma buzina chama sua atenção. Um pouco a vontade mas nada muito exagerado na roupa de ficar em casa, Gleice faz questão de colocar outro shorts um pouco mais longo e ajeitar o rabo de cavalo.
       Ela olha pela janela e tudo o que ela não queria ver nessa manhã está logo ali, parado perto do portão. Mário. É incrível como a presença desse homem tem a capacidade de piorar o ambiente a sua volta. Respirando fundo e hesitante ela abre a porta e caminha até o portão.
- Bom dia, não vai me convidar para entrar? – tom de sarcasmo.
- Por que eu faria isso? – se debruça na grade.
- Você é uma mulher educada.
- Fala logo o que você quer, Mário.
- O que você tem feito com o meu filho?
          A mulher se ergue.
- O que?
- Isso mesmo que ouviu, ele me ligou dizendo que você vem pegando muito no pé dele. Gleice, ele é jovem, está descobrindo as coisas, você não pode privá-lo disso.
- Ele é um jovem que por enquanto está sob meus cuidados, meu filho, estou cuidando do nosso filho.
- E quanto a qualidade de vida? Pelo que sei você faliu, não é mesmo.
        Um baita soco no estômago.
- Ah, ele também lhe contou isso também?
- Sim, eu lhe avisei, sua empresa sobreviveu até agora aos trancos e barrancos, uma hora isso não iria suportar. Saiba de uma coisa, vou lutar pela guarda do Gustavo. – abre a porta do carro.
         Uma guerra declarada. O que estava ruim ficou ainda pior. Destruída emocionalmente, sentimentalmente, profissionalmente. Quando deu por si, lá estava ela deitada de bruços em sua cama chorando. De onde tirar forças para reagir? Falida, em todos os sentidos.

*

O funk pesado rola solto nos fones de ouvido de Gustavo que de olhos fechados não vê a chegada da mãe em seu quarto. Gleice olha para o garoto de espinhas no rosto e a vontade que dá é de arrebentar a cara.
- Quero falar com você. – cutuca a perna do filho.
- Fala, mãe. – continua a ouvir a música profana.
         Sem paciência e com truculência ela puxa os fones.
- Que saco mãe. Me machucou.
- Machucou? Você ainda não viu nada. Você ligou para o seu pai reclamando de mim?
- Mãe...
- Veja bem, garoto, eu não devo satisfação da minha vida a ninguém, principalmente a seu pai, se eu fali isso é um problema muito meu.
- Você sabe da minha preferência pelo meu pai, eu nunca escondi isso. – altera o tom de voz.
- Sim, não há regras com seu pai, lá você vai poder fazer o que bem entender, mas saiba de uma coisa, eu não vou abrir mão de você, não deixarei que o relapso do seu pai te estrague.
        Gleice deixa o quarto. Gustavo esmurra o colchão diversas vezes. Ele olha para a mochila. Lá dentro há o que pode lhe ajudar a fugir da realidade. Resistir é preciso. Ele se levanta, vai até a porta e se certifica se a barra está limpa. Gustavo apenas a encosta e abre a mochila. A cocaína está lá convidativa como sempre. Ele sabe que é um caminho sem volta, será um eterno dependente em uma vida inteira pela frente, porém arruinada. Mais uma vez a droga volta para o funda da mochila.

*

Pois é, a vida como empresária não deu certo. Hora de recolher o que quebrou e aprender com os erros, superar as decepções. Enquanto a água do chá esquenta, Gleice ainda remoi suas frustrações e tenta encontrar uma única razão para sua vida estar seguindo esse curso. Nada. Ela não encontra absolutamente nada. O celular que ficou na sala toca. Quem será? Sem vontade alguma ela anda até o cômodo vazio e escuro. O número ela não reconhece, mas atende assim mesmo.
- Alô?
- Gleice, sou eu Silvano.
- Ah, sim, oi, Silvano, trocou de número?
- Não?
       Só agora Gleice lembrou que ainda não havia registrado nos contatos.
- Me perdoe, minha vida anda uma loucura.
- Então, pensou em meu convite?
- Será no sábado, não é?
- Exatamente, vamos?
         O que há de errado em aceitar o convite de um cara exageradamente bonito e simpático? Quem sabe uma boa noite ouvindo músicas de qualidade não desentoxica seu corpo desse mal que está vivendo?
- Certo, vamos.
- Que bom, lhe pego as 19h.
- Combinado.
         Eles se despedem e agora é torcer para que a semana passe rápido.

*

Um banho demorado. A melhor lingerie, o melhor vestido e é claro uma maquiagem de fazer qualquer avenida parar. Gleice está um espetáculo andante. Aos 37 anos a ex empresária deixa qualquer garota de vinte no chinelo. O perfume suave vai ajudar a tornar a noite ainda mais agradável. Enquanto se olha no espelho admirando o corpão que possui, uma buzina berra lá fora. Sobressaltada ela pega sua bolsa e vai até o quarto de Gustavo que assiste vídeos em seu celular.
- Estou saindo, não fique acordado até tarde, ouviu?
- Vai aonde? – pergunta sem tirar os olhos do aparelho.
- Depois conversamos. Beijo.
          Lá fora, aguardando a chegada de Gleice, Silvano confere na pasta se todas as músicas do repertório estão lá. Seu carro já saiu de linha, mas mesmo assim é um bom carro. Gleice aparece na janela do carona exibindo um decote pra lá de provocante.
- Boa noite? – ela diz.
- Ah, oi, boa noite, estava distraído. – desce do carro para abrir a porta para a dama.
         Homens como Silvano já não existem mais. Gleice se sente mulher com esse gesto e não só mulher, uma mulher especial. De onde saiu esse sujeito encantador?
        Durante o percurso o papo não poderia ser outro a não ser de onde Silvano veio, se já foi comprometido, porque a música como profissão entre outras coisas. O pianista se mostrou paciente e respondeu uma por uma das perguntas.
- Então você é do interior?
- Sim, me lembro até hoje do meu velho pai carregando sacas e mais sacas de batatas.
- Daí você veio tentar a sorte na cidade grande?
- Sim, eu já tocava piano, porém não de maneira profissional, foi aqui que me estabeleci músico.
        A conversa seguiu até a chegada ao evento. O lugar é glamouroso com pessoas da alta. Gleice deu graças a Deus por ter colocado sua melhor roupa. Eles entram ao salão e quase todos reconhecem o músico.
- Grande Silvano Lima. – diz um sujeito já meio embriagado. – quem é essa, sua namorada?
        Gleice ruboriza com o comentário.
- Ela é uma amiga, agora com licença.
        Eles vão abrindo caminho e é claro, foi preciso dar a mão para ele até chegarem no escritório do contratante.
- Que bom que chegou. – diz um sujeito bem vestido com pinta de arrogante. – veja bem, sucessos dos anos 70, 80 e 90, tudo bem pra você?
- Por mim tudo bem. Deixe-me lhe apresentar, essa é Gleice, minha convidada.
        O rapaz beija a mão da ex empresária.
- Tenho um lugar especial para ela. Vamos.
        Foram cinco horas de evento. Silvano mais uma vez contribuiu para o sucesso do trabalho. Gleice curtiu muito e pelo menos por cinco horas ela pode esquecer de suas mazelas, de suas angústias. Silvano tem feito muito bem a ela.
         Voltando para casa, com as baterias recarregadas, Gleice agora desfruta de uma conversa saudável e bastante edificante com o músico. Ao lado dele ela se sente preenchida, as coisas parecem mais leves, mais vistosas.
- Eu amo essa palavra, chance, todos querem e merecem uma chance, ninguém erra querendo errar. Pense bem, se o proporcionar chance a outro é satisfatório, imagina lhe proporcionar mais uma chance, magnífico.
- Todos merecem? – Gleice olha para ele ao volante.
- Sim, todos.
         O carro para na calçada da casa de Gleice.
- A noite foi maravilhosa, muito obrigado.
- Obrigado você por aceitar meu convite.
       Os olhos de Silvano brilham e Gleice não consegue parar de olhar para ele. Magnetismo, é exatamente isso que ela sente no momento, uma força atraente.
- Eu preciso me dar essa chance? – ela pergunta.
- Deveria.
- Sou uma mulher que perdeu a esperança no homem, passei por dois relacionamentos, ambos sem sucesso. O pai do meu filho era um boçal, relapso, vive me cercando até hoje querendo a guarda do Gustavo. Já o segundo transformou o que já estava ruim num inferno. Henrique era viciado em drogas, quase me destruiu e para piorar, minha empresa veio a falência, ou seja, sou uma mulher sem carinho, sem afeto e sem dinheiro.
         Silvano consegue mais uma vez fazer com que a mulher a seu lado fique de olhos nele. Ele segura nas mãos dela e ela sente uma leve descarga elétrica passar por todo o seu corpo.
- Você não se conhece mesmo. Você é mais forte do que você imagina, Gleice. Se dê essa chance, você merece, Verbalize isso.
- Como sabe disso? Como sabe que sou forte? – ainda olhando para ele.
- Eu consigo ver isso em seus olhos.
        Os rostos vão se aproximando. As respirações vão se misturando e quando Gleice dá por si ela já está o beijando. Fazia tempo que ela não sentia lábios tão mornos. Silvano despeja nela todo seu poder de um homem conquistador. A vontade é de não parar, fazer com que esse momento fique para sempre. O beijo cessa. Eles se olham. Ela parece envergonhada. Ele não.
- Então? – ele começa. – vai se dar uma chance? – segura no queixo dela.
- Sim, vou sim.
- Então vem aqui.
         Silvano a puxa para junto dele tornando a beijá-la e dessa vez com mais paixão. Gleice está totalmente dopada, entregue nos braços do pianista. Ele sabe como conduzir esse momento como ninguém. A noite vai ficando cada vez mais alta e do lado de dentro do carro o casal vive momentos de pura emoção.

*

Uma chance, apenas uma chance de ser feliz. Que palavra tão mágica. Sabendo aproveitar essa tal chance você pode conquistar coisas, fazer coisas que jamais imaginou que poderia fazer. Se a felicidade era uma utopia, para Gleice, ela hoje faz parte de sua realidade. Se o seu relacionamento com Silvano vai dar certo ela não sabe, porém ela prefere viver e fazer valer a pena cada segundo ao lado dele.
        Cada dia da semana ao ouvir a voz do músico mesmo pelo celular é um renovo. Mesmo em meio a turbulência de fechar uma empresa, e tentar restabelecer o ambiente familiar, ouvir as palavras que acalentam o coração lhe faz muito bem.
- Então, quando podemos nos ver? – Gleice mexe o molho de tomate.
- Quando você quiser.
- Gosta de macarrão ao molho de tomate?
- Adoro.
- Estou terminando de preparar, quer vir?
- Adoraria.
- Certo, vou te esperar então.
        Ela vai até seu quarto. Escolhe uma roupa um pouco mais modesta. Corre até o banheiro e toma um banho relâmpago. Se enrola na toalha, se perfuma, solta os cabelos, passa apenas um batom e pronto, agora é só esperar por ele.
         Vinte minutos depois Silvano está no portão da casa de Gleice um pouco mais informal que o habitual. Camisa de algodão azul, calça jeans e tênis. Eles se olham. Ela volta a sentir aquela força possuindo seu corpo.
- Oi. – ela não consegue completar frases diante dele.
- Oi. – dá um selinho. – quer dizer que hoje provarei de sua especialidade?
- Ai, espero que goste.
- É claro que vou gostar.
         Ele a segura pelo rosto e a beija. Gleice se afoga, perde o fôlego. Silvano beija muito bem. Por alguns segundos ela esquece que está no quintal de sua casa e sente com se estivesse voando entre astros, estrelas e planetas. O beijo termina e ela permanece de boca aberta.
- Oi? – ele estala as falanges.
       Gleice volta do nirvana piscando várias veze.
- Sim?
- Podemos provar do seu macarrão ao molho de tomate? – brinca.
        O almoço estava sensacional. Uma das muitas coisas que herdou de sua finada mãe foi a boa cozinha. Dona Virna cozinha bem e para toda a família. Ela fez questão que todos os filhos aprendessem a cozinhar, inclusive as meninas.
- Gleice, esse seu tempero é magnífico. – limpa a boca com o guardanapo.
- Ah, você está dizendo isso só para me agradar.
- Sério. – toma mais vinho. – e seu filho?
- Foi para casa de um amigo. – expira. – Gustavo vem me tirando do sério.
- Gostaria de conhecê-lo.
- Gustavo é anti social, é bem difícil de se lidar, você pode até tentar uma aproximação, mas.
- Não custa tentar. – sorrir.
          Depois do almoço Silvano aguarda sentado no sofá sua namorada chegar com o café. Enquanto isso ele se distrai olhando a bela casa com seus móveis e eletros. Realmente ela é uma mulher forte. Mesmo passando por dificuldades e até quem sabe por humilhações ela segue em frente criando um filho e enfrentando as pedradas que a vida dá.
         Ela vem segurando duas canecas. Ele volta a olhar para ele daquele mesmo jeito que a fez se apaixonar.
- Você é um mistério, sabia? – se acomoda ao lado dele.
- Como assim, um mistério? – pega a caneca e cruza as pernas.
- Seu olhar, seu jeito, parece algo sobrehumano.
        Silvano solta uma gargalhada.
- Sério?
- Sim.
- Você é quem é especial, uma mulher incrível, não é somente um rosto e corpo bonito, um ser sem igual.
        Mais uma vez Gleice se vê envolvida por ele. Agora não há como adiar algo que está na cara. O ponta pé inicial é dado por ela. Silvano apenas aguarda as surpresas que virão. Gleice monta no colo do pianista o sufocando de beijos. Aos poucos ela vai se despindo e se deixando se despir.
*

O caminho das drogas é espaçoso, curto e prazeroso. Uma vez nas drogas ela lhe transforma num ser fragilizado e sem dignidade alguma. Gustavo sabe muito bem disso. De um lado a dura realidade de ter que conviver solitário debaixo da autoridade de sua mãe. Não que ele não a ame, muito pelo contrário, Gustavo admira Gleice. Ele prefere seu pai e isso ele faz questão de deixar bem claro.
        A cocaína está dentro de sua mochila. Na rua ele procura um lugar mais escondido para experimentá-la. Gustavo anda apressado pela calçada movimentada até encontrar uma passagem de nível. Ali quase ninguém passa. Ainda muito nervoso ele confere a entrada e a saída. Ninguém. Hora de fazer com que o pó branco da morte entre em seu corpo para quem sabe aliviá-lo da dor que é existir.
          As luzes foram acessas. O mundo não é tão cinza como ele costumava achar. Ele tem cores, cheiros, estrelas e o sol brilha em cada vida. Gustavo caminha voltando para casa e sua fisionomia mostra um jovem mergulhado num mundo perfeito. Perfeito? Sim, perfeito, pelo menos nesse momento ele é. Se ele soubesse que tudo mudaria instantaneamente ele já teria experimentado a muito tempo. Caminho sem volta.

*

Foi simplesmente fantástico. Passar a tarde ao lado de um homem como Silvano foi de perder o fôlego. Ele foi embora a vinte minutos, porém sua essência permanece naquela sala afogando Gleice em prazer extremo. Como amante o pianista a fez chorar e explodir durante o clímax. Dois relacionamentos e nenhum foi capaz de fazê-la se deleitar dessa forma. Silvano acertou em cheio.
        Gleice não está sozinha, ela sente isso, Silvano ainda está ali. Não, ela não está louca, mas sim apaixonada. Com certeza ela toparia transar outra vez se Silvano voltasse. Para ajudar a apagar o fogo um banho ajudar. Água fria que escorre pelo corpo inteiro levando embora todo o tesão. Enrolada na toalha ela se deita na cama e adormece. Um sono estranho, repentino, quase um desmaio.

Próximo das 18h ela acorda com o celular chamando. Foram três horas de sono ou algo parecido. Por incrível que pareça ela acorda bem, muito bem por sinal, diferente de outros dias. Ainda enrolada na toalha ela se levanta correndo pensando em se tratar de Silvano ligando, porém é Mário do outro lado da linha.
- Boa noite, Gleice?
- O que você quer? – prende o aparelho no ouvido com o ombro.
- Nossa, quanto rancor, isso vai lhe fazer mal.
- Fala logo o que você quer. – abre o armário e pega uma calcinha.
- Meu filho. Estou entrando com uma ação para ter a tutela do Gustavo.
- Você é sujo mesmo, você alegou o que?
- Aleguei que você não tem a mínima condição de criá-lo, você faliu, lembra, comigo ele estará bem melhor.
        Raiva, um combustível altamente inflamável.
- Seu, seu cafajeste, miserável.
- Olha o coração, Gleice. Bom, eu só liguei para te informar. Beijo. – desliga.
        Se fosse em outra época Gleice desabaria em pratos, mais hoje o caso é diferente. Ela está mais forte, mais disposta. Se for preciso entrar numa briga para ter Gustavo perto dela isso ela fará. Ao terminar de se vestir ela vai até o quarto do menino que dança como um alucinado.
- Gustavo? – ele não escuta. – Gustavo, você está me ouvindo?
       Finalmente ele se vira para sua mãe com os olhos vidrados.
- Diga, dona Gleice Mota.
- O que está havendo com você?
- Estou dançando, não está vendo?
         Ela entra por completa dentro do quarto. Uma mãe sabe quando as coisas estão saindo dos trilhos. Esse não é o filho que criou.
- Dançando sem música? Você nunca foi de dançar, Gustavo.
- Dona Gleice, a partir de hoje as coisas vão mudar aqui nessa casa.
         Mudança, palavra que assusta. A mãe continua parada olhando cada movimento que o filho faz com o corpo até que seu coração informa o que realmente está acontecendo.
- Seu irresponsável, você está usando drogas, não é? – o puxa pelo braço. – fale.
       Com truculência o rapaz se livra das garras da mãe já pegando sua mochila.
- Estou caindo fora.
- Aonde pensa que vai? – volta a segurá-lo pelo braço.
- Me larga, mais que droga, o que foi, agora vai me manter em cárcere privado?
       Gustavo dispara porta afora deixando sua mãe desnorteada, prendendo o choro. Gleice passa as mãos nos cabelos tentando encontrar uma forma de neutralizar esse terrível mal estar. Não pode ser. Meu filho um drogado, a história com Henrique volta a se repetir. Não. Isso não pode estar acontecendo. Me ajude, Deus.

*

Depois de se encontrar com Guto, Gustavo está voltando para casa ou talvez para o apartamento do pai tendo dentro da mochila duas trouxinhas de pó. Passos acelerados, respiração descontrolada e olhos arregalados. No meio do caminho ele tem uma ideia, afinal, pra que esperar?
        Ele sai do bairro onde Guto mora e atravessa a avenida aproveitando o espaço entre um carro e outro. Ainda beirando a estrada ele entra num terreno baldio onde há lixo e mato alto. Cansado ele se esconde atrás de um monte de entulhos de construção. Se senta no chão e abre sua mochila e ao ver as trouxinhas ele se alegra, gosta do que vê. Hora de embarcar em outra dimensão.
        Uma mão delicada lhe toca o ombro. Gustavo gira o pescoço. Por incrível que pareça ele não se assustou.
- Gustavo, filho de Gleice Mota, acertei?
- Quem é você? – esconde o pó no bolso da bermuda jeans.
- Silvano Lima, prazer. – estende a mão, mas Gustavo não o cumprimenta. – bem que sua mãe falou que você é um cara difícil de se lidar.
- Então você conhece dona Gleice? – se levanta.
- Sim, sou o namorado dela.
       Gustavo o encara feio. O olha de cima embaixo. Um almofadinha com pinta de intelectual.
- Namorado da minha mãe. – coloca a mochila nas costas. – você me seguiu até aqui?
- O que você iria fazer? – cruza os braços.
- Não te interessa. – passa por Silvano.
- Aonde pensa que vai?
- Qual é a tua cara? Você está pegando minha mãe, me seguiu até aqui e agora quer saber onde vou. Sai fora, você não é meu pai.
- Volte aqui. – autoridade na voz.
      Gustavo analisa o rosto de Silvano.
- Eu não acredito nisso. – volta. – fala logo o que você quer?
- O que pensa que está fazendo da vida, garoto, você só tem 16 anos, não viveu nada ainda.
- Quem você pensa que é pra falar desse jeito comigo? – encara Silvano.
- Vá até um prédio e pule de lá, só assim sua vida terminará mais rápido. Não fique ai usando essas porcarias, se quer se matar pule do alto de um prédio, vai, faça isso.
        O rosto de Gustavo ruboriza e ele tenta ir pra cima de Silvano que vai bloqueando as tentativas de golpes.
- Agora você está se comportando como uma criança.
- Vou fazer você engolir cada palavra, seu otário.
        Silvano desvia de um soco certeiro e assim que tem oportunidade ele coloca as duas mãos na cabeça do jovem que se acalma instantaneamente.
- Fique calmo meu garoto.
         Gustavo se afasta.
- O que fez comigo? – voz embargada e olhos marejados.
- Nada. Agora jogue fora a droga, vamos.
- Mas...
- Veja bem, eu estou atrasado, preciso ir, a decisão é sua.
         Silvano vai embora. Gustavo continua ali parado refletindo em tudo o que aconteceu. Sou mesmo um suicida? Seria mesmo melhor me jogar de um prédio? O que esse cara fez comigo? Ele limpa as lágrimas, retira a mochila das costas, pensa mais um pouco e decide ficar com o pó.

*

Gleice e Silvano já estão se beijando a algum tempo sentados no sofá da casa dela. O filme que escolheram continua empolgante porém o casal de telespectadores não está interessado no desfecho da trama.
       De repente ela se afasta dos lábios de Silvano. Gustavo veio forte em sua mente além de sua vida financeira.
- Preocupada. – toca com o dedo na ponta do nariz dela.
- E como.
- Você vai recuperar tudo o que perdeu, basta evidenciar isso, planeje, estude, trace metas. – se levanta. – vem comigo.
         De mãos dadas eles andam até o quintal. Lá fora apenas som dos grilos e a brisa fresca.
- Olhe para o céu, consegue me dizer quantas estrelas há?
- Não.
- Consegue contá-las?
- Posso tentar.
       Silvano cruza os braços e aguarda. Gleice perde as contas várias vezes e depois olha para o namorado.
- Desisto.
- Viu. Mesmo sabendo que seria impossível contar você tentou. Você é ousada, Gleice, não desiste tão fácil, tenho certeza, você vai reconstruir sua vida.
- E você está disposto a fazer parte dessa reconstrução? – o abraça.
- Claro.
          Voltam a se beijar. Ela obre os olhos e olha para a janela do quarto de Gustavo.
- Gustavo tem problema. Preciso ajudá-lo.
- Ele já está bem encaminhado.
- Como assim... – Silvano coloca o indicador na boca de Gleice.
- Fique em paz.

*

Gustavo volta ao bairro onde Guto mora. Ele sabe do perigo que corre ao andar por aquelas ruas desertas. Ele passa por uma birosca onde os viciados em cachaça balbuciam um com os outros de baixo da fraca luz do estabelecimento caindo aos pedaços. Depois passa por um beco onde dentro de um casebre duas pessoas se xingam e uma criança chora desesperadamente. Mais alguns passos e ele estará na casa de Guto.
         Guto se encontra no meio de outros cinco moleques fumando baseado embaixo de um poste sem iluminação.
- Guto. – o chama.
- Fala franguinho, veio buscar mais?
- Cara, na verdade eu vim lhe devolver. – abre a mochila.
- Mais como assim, você disse que havia gostado.
- Pois é, cara, mas eu resolvi cuidar melhor da minha vida. Toma.
        Guto encara Gustavo. A vontade que tem é de socá-lo, porém só fica na vontade.
- Some daqui, rala.
- Fui.

*

Gleice passou por mais uma experiência ao fazer amor com Silvano. Uma experiência única onde qualquer ser humano jamais imaginou. O que esse cara tem dentro dele? Que energia brutal é essa? Quem é Silvano Lima? Cada palavra dita, cada toque e sem falar do olhar. Que olhar misterioso. Ele foi embora, mas sua essência continua presente. Quem é você?
      Renovada, Gleice vai até o quarto de Gustavo que escuta música nos fones de ouvido e mexe no computador. Disposta a resolver a questão pendente ela entra no quarto e olha para ele. Seu semblante parece melhor que o normal.
- Oi, podemos conversar?
        Pela primeira vez ele não gemeu ao responder e nem agiu de má vontade. Gustavo retira os fones e se volta para sua mãe.
- Sei que nos últimos tempos nós nos estranhamos muito, eu reconheço. Reconheço também a sua preferência por morar com seu pai. Quero que saiba que você é livre para decidir.
- Mãe...
         Gleice faz sinal de espera com a mão.
- Eu só não admito que um filho meu se envolva com drogas.
- Mãe, eu não uso mais drogas, não quero mais.
       A respiração de Gleice acelera e a presença de Silvano é mais forte nesse momento.
- Está falando sério filho? – as lágrimas brotam.
- Sim, o seu namorado...
- Espere, como assim, “meu namorado”?
- Isso mesmo, eu não sei direito o que aconteceu, eu só sei que algo aconteceu de muito estranho.
         Gleice se sente um pouco tonta e se apoia no armário. Gustavo explica como tudo aconteceu deixando sua mãe boquiaberta. Ao final de tudo Gleice está ainda mais impressionada com o relato.
- Mãe, a senhora está bem?
- Sim, sim, estou ótima. – ajeita os cabelos para trás. – certo, decida se você vai ficar com seu pai ou comigo.
- Mãe. – segura a mão da mãe antes dela sair. – me dá um abraço.
         Foi mais que um abraço. O que aconteceu naquele quarto foi grandioso demais para se resumir num simples gesto. Mais uma vez Silvano foi sentido. Gleice abraçada ao filho abre os olhos buscando seu namorado naquele lugar. Não. Silvano não está lá.

*

Duas semanas depois o cheiro do cozido preparado por Gleice faz Gustavo e Silvano salivarem aguardando o almoço. Eles estão sentados a mesa e conversam sobre jogos e música. O adolescente está mais dócil, mais a sociável. Até mesmo no modo de falar mudou, Gustavo agora fala mais pausado, sua dicção se tornou perfeita. Na cozinha Gleice comemora e ao mesmo tempo se questiona. Bastou Silvano ingressar na família Mota para tudo que estava entulhado ser colocado em seus devidos lugares. Quem é esse cara?
- Cozido pronto. – anuncia cantando.
         Os rapazes na sala comemoram com palmas e assovios. Um baita de um almoço. Todos comem muito bem.
- Eu gostaria de propor um brinde. – diz Silvano.
- Brinde, com refrigerante? – Gleice sorrir.
- Sim, um brinde a felicidade. – ergue o copo.
- Amor. – Gleice limpa a boca. – eu também quero falar algumas coisas.
         Gleice tem atenção de todos.
- Decidi reabrir o Gleice’s café.
         Mais aplausos.
- Maravilhoso, querida.
- Parabéns, mãe.
- Um brinde a felicidade. E também, eu gostaria de propor uma viagem.
- Uau, uma viagem, legal.
- Quero que conheçam uma região da cidade onde o contato com a natureza é inevitável.

Aquela tarde foi marcada pela união. Foram horas onde nada foi capaz de lhes tirar a paz. Gustavo depois do belo almoço foi para seu quarto dormir. Gleice arrastou seu namorado para a cozinha onde puderam acertar detalhes da viagem e depois fizeram amor longamente. Mais uma vez aquela energia foi sentida e Gleice sorria e chorava ao mesmo tempo.

*

A direção de Silvano é prudente. Abaixo da velocidade permitida. Naquela estrada eles podem desfrutar da linda paisagem onde o verde domina a maior parte do tempo.
- Estão gostando?
- Amando. – Gleice coloca a cabeça no ombro do namorado.
- Diz ai Gustavo, porque decidiu ficar com sua mãe?
- Ah, sei lá, preferi ficar ao lado de uma guerreira, só isso.
        Gleice olha para o filho no banco de trás emocionada. Ela estende a mão e ele retribui o gesto. Silvano acompanha tudo pelo espelho e quando volta sua atenção para a estrada um caminhão no sentido contrário em alta velocidade o faz perder o controle do veículo. Ele roda na pista e capota várias vezes até parar. Dentro do carro nenhum movimento.

A vista arde. A cabeça dói, assim como todo o resto do corpo. Gleice gira o pescoço para a direita onde consegue ver uma aste com soro. Gira a cabeça para a esquerda e vê a janela fechada com algumas flores no jarro. Demorou um pouco para ela entender que está deitada num leito de hospital.
- Meu Deus.
          Uma enfermeira negra baixinha e atarracada entra segurando uma prancheta.
- Olá? – anota algo na placa de identificação do paciente. – como se sente?
- Moída.
- O acidente foi feio. – confere o soro.
- Acidente, que acidente?
- Vocês sofreram um acidente na auto estrada, o carro ficou de ponta cabeça.
- Ai, meu Deus, Gustavo, e meu namorado, como eles estão.
- Seu filho quebrou o braço e teve alguns machucados, agora, seu namorado...
       Gleice preferiu estar surda ao ouvir tal notícia. As lágrimas brotaram com uma rapidez impressionante.
- Seu namorado parecia estava fora do carro, ele não sofreu um arranhão sequer.
- Silvano estava dirigindo o carro.
- Então minha querida, houve um milagre, seu bofe está inteirinho. Ele já até veio lhe ver.
        A enfermeira termina de fazer os procedimentos e deixa o quarto. Gleice tenta de todas as maneiras entender o que aconteceu naquela estrada. Ela está cansada demais para pensar, porém se questiona, Silvano foi o único que não se feriu. Nada faz sentido, nenhuma peça se encaixa. A melhor coisa a se fazer é dormir. Os olhos vão ficando pesados e aos poucos ela vai se rendendo ao sono profundo.

Foi como um desmaio. Gleice não lembra do que aconteceu depois. O corpo e a cabeça já não doem tanto. A seu lado Silvano sorrir sentado segurando um ramalhete de orquídeas. Como a enfermeira falou ele está inteiro.
- Oi. – ele se levanta.
- Oi.
        Silvano beija a testa suavemente.
- Você parece assustada, algum problema? – coloca as flores no canto da cama.
- Você, você não é real. – Gleice tem a voz fraca.
- Como assim, não sou real? – ar de riso.
- Falo sério. Você é diferente de todos os homens.
- Talvez porque eu seja Silvano e não Mário e nem Henrique...
- Não estou falando dos homens que convivi, estou falando em termos gerais, você é diferente.
       Silvano se sente desconfortado e se levanta.
- Amor, você está cansada, tente dormir.
- Eu já dormi, Silvano, e não adianta tentar mudar de assunto. – ergue o tronco. – eu posso parecer uma pessoa desligada, mas, só pareço, eu consigo perceber as coisas ao meu redor.
        Silvano fixa seus olhos em Gleice e o brilho continua lá ofuscando os da mulher.
- Viu, há um brilho em seus olhos e não falo metaforicamente, seus olhos brilham dependendo da situação.
       O pianista levanta a mão em sua defesa.
- Querida, tenha calma, você...
- Das vezes em que fizemos amor, quando estamos juntos, você mexeu com a mente do meu filho e ele mudou da água para o vinho e agora esse acidente, você foi o único que não se machucou. Quem é você, Silvano Lima?
      O silêncio entre eles acontece fazendo do momento algo incômodo. Gleice aguarda uma resposta. Silvano anda até a janela onde a noite estampa o céu. Ele olha o movimento da cidade. Ele levanta a cabeça buscando a resposta. Girando os calcanhares ele se volta para Gleice.
- Sou Narsis.
- O que? – aperta os olhos.
- Me chamo na realidade Narsis, sou um sentinela do socorro.
- Calma, vamos com calma. – diz com a mão espalmada.
- Você acertou, não sou um homem, melhor dizendo, não sou um ser humano.
- Por favor, Silvano, não me trate como uma demente.
- Não estou lhe tratando como uma idiota. Você me cobrou a verdade e eu a estou dizendo. Sou de outro planeta. – sorrir.
        Gleice olha para ele e aquele vínculo amoroso, erótico já não existe mais. Tudo o que sobrou foram a desconfiança e a perplexidade.
- Narsis?
- Isso mesmo. – se aproxima dela e segura sua mão. As duas, unidas se tornam translúcidas fazendo com que as dores restantes desapareçam. – viu, sentiu?
      O queixo da empresária cai e ela volta a se deitar.
- Sentinela do socorro?
- Exatamente, faço parte desse grupo enviado a terra para socorrer e cuidar de pessoas como você. Nada foi por acaso.
- Você é um anjo?
- Não. Sou um sentinela. Fui enviado por uma ordem a cem anos e...
- Cem anos? – arregala os olhos.
- Sim, a cem anos ando por esse planeta ajudando quem precisa. Perdi as contas de quantos humanos ajudei. Nossa, foram muitos, na área sentimental, emocional, motivacional, familiar entre outros. Nós...
- Espere. – fecha os olhos. – a outros como você?
- Sim, estamos espalhados por esse mundo azul. Somos feitos de outra essência, somos praticamente imortais e temos a capacidade de nos regenerar.
        Gleice coloca as mãos na cabeça. Tudo isso foi informação demais.
- Estou impressionado como vocês. Os terráqueos se adaptam ao clima, situações e até ao caos. – os olhos de Narsis brilham mais forte. – durma. Amanhã será outro dia.

*

Gleice aguarda Silvano voltar da cozinha com as  xícaras de café. Com alguns curativos e arranhões no rosto a empresária termina de reunir os documentos para a reabertura da Gleice's café. Silvano aparece na sala segurado com a habilidade de um garçom a bandeja com as duas xícaras.
- Se tem uma coisa que aprendi a fazer bem foi café, que bebida magnífica.
- Você tem mesmo que partir?
- Sim, minha missão por aqui se encerrou, voltarei para o meu planeta natal.
         Gleice prova do café e o elogia. Ela olha para aquele homem bonito, agradável e especial e custa a acreditar que estar diante de um alienígena.
- Promete voltar? – encosta a cabeça em seu ombro.
- Não posso prometer nada, só quem sabe é a ordem maior. Estou aqui a cem anos, acho que minha cota terminou definitivamente.
         Gustavo aparece na porta da sala ainda com braço enfaixado. Ele se junta aos dois e lamenta muito a partida do amigo.
- Fique só mais um pouco. – o garoto implora.
- Vocês ficarão bem, eu tenho certeza. Estou em paz, sei que fiz um bom trabalho. Vocês dois foram ótimos também.
- Virá uma nave te buscar? – Gustavo brinca.
- Não. – sorrir. – nós os sentinelas do socorro podemos pedir o teletransporte a ordem maior.
- Legal.
         Silvano termina de tomar o café e se levanta. Olha para mãe e filho e abre os braços.
- O mais importante disso tudo, a lição que aprendemos é que sempre podemos nos dar uma chance. Com esse nova chance podemos mudar o quadro, o rumo de nossa história. Que vocês dois mude o quadro da vida de alguém. Sejam sentinelas do socorro na causa de alguém. Certo?
         Mãe e filho dizem que sim com um gesto de cabeça.
- Ótimo. Agora durmam.
       Gleice tomba para esquerda e Gustavo para direita. Um sono profundo. Um sono reparador. Os dois permanecem nesse estado por algumas horas. Gustavo é o primeiro a despertar. O garoto olha ao redor e depois acorda sua mãe.
- Ele se foi. – Gustavo anuncia.
- Sim. Vida que segue.

O Gleice’s café foi reaberto. A vida profissional começou a engrenar. Gustavo passou a se dedicar aos estudos e decidiu fazer faculdade. Gleice finalmente assumiu o papel a qual Silvano lhe propôs, uma mulher forte. Ela decidiu que dali em diante ela se dará a chance e também proporcionará chance a quem precisar.
           Toda noite antes de dormir ela vai até a varanda, se senta tomando chá  olhando para o céu estrelado. Literalmente sua ajuda veio das estrelas. Mudou sua vida, mudou sua história. Hora de mudar a vida de alguém. FIM.