terça-feira, 29 de agosto de 2017

João Carlos Taveira




1


O carro para lentamente em frente a casa. Taveira desce do veículo e fecha seu paletó preto. O policial olha para as residências vizinhas e tudo parece calmo. Segunda feira sempre foi o pior dia para um homem com João Carlos. Depois de um final de semana inteiro curtindo com sua garota, o agente da lei tende a enfrentar o trabalho desejando está nos braços de sua amada jogado naquela cama quente. A realidade é dura. Taveira confere o endereço mais uma vez e balbucia algo.
           - Deve ser aqui mesmo.
O bairro é de classe média. A rua é de paralelepípedo e as casas possuem muros baixos. A casa a qual Taveira precisa investigar se encontra bem a sua frente. A pintura branca com detalhes em azul-claro a deixam com aspecto de leveza. João Carlos se aproxima do portão e toca o interfone.
          - Aqui é da polícia, preciso falar com o senhor Vicente, ele se encontra?
           Nada. Nenhuma resposta.
          - Senhor Vicente?
          De repente uma voz metálica soa nervosamente pelo alto-falante.
          - O que você quer, policial?
       - Sou o policial João Carlos Taveira, preciso conversar com o senhor, posso entrar?
A demora faz Taveira ficar irritado. O portão se abre automaticamente. O agente ganha o quintal gramado chegando até a porta da varanda. Alguns segundos se passam e a maçaneta gira. Um homem negro de meia idade com quase dois metros de altura surge intimidando o policial.
          - Pois não?
         - Houve uma denúncia de que aqui estaria sendo uma refinaria de entorpecentes, posso dar uma olhada?
          O gigante olha para o policial e depois para o interior de sua casa.
          - E se eu falar que não pode?
          - Bom, terei que usar de outra estratégia, digamos.
          - Você tem um mandato? - levanta uma das sobrancelhas.
         - Sim, já havia me esquecido. - enfia a mão no bolso interno do paletó. - veja com seus próprios olhos.
          - Tudo bem, você venceu, entre.

2

A casa é bem organizada com moveis claros e quadros com suas pinturas abstratas. A sala é ampla e ventilada. Taveira acompanha o gigante até a cozinha.
           - Café, água ou uma bebida forte?
           - Nada. Posso dar uma olhada no banheiro?
           Vicente abre espaço para o policial passar.
O banheiro cheira a desinfetante. O cheiro é muito forte. Na pia há uma embalagem de preservativo barato e no canto perto do vaso sanitário uma calcinha pende no suporte.
           - Você está acompanhado?
           - Estava, até duas horas atrás. Que garota. - lambe os lábios.
           - Posso ir até o quarto?
           Vicente aperta os olhos.
           - Está um pouco desarrumado.
           - Sem problemas.

O quarto realmente está uma bagunça. Na cama de casal há mais embalagens de preservativo. No teto um espelho.
           - Sabe como é, a garota gosta de se ver transando.
        Taveira continua sua busca e pede para Vicente abrir o armário. Nada de suspeito, apenas roupas, bonés e alguns produtos sexuais.
           - Foi uma aventura e tanto, não foi? - Taveira olha para Vicente.
           - Nossa, aquelas meninas eram demais. - esfrega as mãos.
           - Duas?
           - Sim, duas, porque, cometi algum crime?
           - De forma alguma. Vamos.

Taveira termina a busca depois de meia hora revirando a casa. Nada encontrou. Eles voltam para a sala e vicente mais uma vez oferece bebida.
          - Então, que tal uma cerveja segunda de manhã? - pergunta animado.
          - Acho que vou aceitar.
João Carlos se acomoda no sofá e aguarda a chegada da bebida gelada. Olha mais uma vez para a casa e depois para as almofadas no chão. Uma delas chama sua atenção. Ele a pega. Ela tem um formato de coração e um zíper na lateral. O policial aperta a almofada e sente algo consistente dentro. O zíper é aberto e de dentro sai um controle remoto. O coração de Taveira volta acelerar. Ele analisa o objeto e sente a presença de alguém parado a sua frente.
            - Você é bastante esperto, Taveira.
O bastão de beisebol acerta em cheio o rosto do policial. O estalo na cabeça de Taveira foi grande e por alguns segundos ele tem a visão turva. Um outro forte golpe no ombro o faz urrar de tanta dor. João Carlos vai ao chão.
            - A festa só está começando, vou chamar um amigo para brincar também.
         Vicente pega o controle e o direciona para uma parede. A mesma se abre e de dentro do compartimento secreto sai um outro gigante negro com um bastão de beisebol apoiado no ombro.
          - Um policial almofadinha. - cospe o palito de dente. - vamos ver até onde ele aguenta, maninho.
           - Desculpe minha falta de educação, Taveira, esse é meu irmão Valdecir, ele ama espancar.
         Taveira tenta se levantar mais recebe outro golpe. O sangue começa a escorrer. Pela primeira vez em muito tempo ele vê a vida passar diante de seus olhos. Valdecir ergue seu bastão e o acerta com força nas costas. João Carlos solta um grito gutural e se contorce no piso frio. Vicente acerta outro e Valdecir outro.
           - Nossa, essa doeu em mim. - Valdecir sorrir se preparando para outro golpe.
A respiração de Taveira se torna mais pesada a cada golpe. Maldita hora foi ter aceitado esse mandato de busca, e sozinho. Onde está minha arma? Um dos bastões o acerta na cabeça e ele tem alucinações. Muito sangue, muita dor, muito arrependimento. Seria um bom dia pra morrer? Ele precisa agir rápido, muito rápido.

3

Taveira consegue abrir os olhos e medir a distância entre ele e eles. Ele precisa agir rápido antes que perca os sentidos. João Carlos geme com mais um golpe na perna já ferida. Com a outra ele aplica uma rasteira em Vicente que cai. Taveira rola pra cima do gigante o acertando com uma cotovelada. O nariz de Vicente explode. Vendo seu irmão desacordado, Valdecir amaldiçoa o policial erguendo seu bastão. Taveira olha para ele e puxando forças de onde não há, ele consegue ficar de pé e socá-lo no rosto.
              - Maldito, você vai morrer. - vocifera Valdecir.
O bastão é deixado de lado e ambos trocam violentos socos. Realmente o irmão de Vicente é muito forte. Ele ginga com se fosse um pugilista profissional e golpeia. O soco acerta o nariz de Taveira que sente a alma sair de seu corpo. O gancho quase nocauteia o policial. A visão de Taveira volta ficar turva. “Eu não posso apagar agora, não posso”
         Para sobreviver é preciso apelar. João Carlos Taveira não queria, mas foi obrigado. Entre um golpe e outro que recebe ele mira nas partes baixas do gigante Valdecir e chuta. O homem abre a boca e não emite som. Aos poucos, como uma árvore, homem vai desmoronando. Taveira o chuta no rosto. Valdecir apaga de vez. João Carlos se joga no sofá ofegante e gemendo ao mesmo tempo. Com muita dificuldade ele saca seu celular que teve a tela quebrada.
             - Departamento de polícia, preciso de reforço.

O chefe do departamento se aproxima de Taveira com seu mal humor de sempre.
            - O que você fez foi burrice, você sabe disso, não sabe?
            - Sim! - geme sendo conduzindo por um médico até a ambulância.
          - Vir sozinho para uma busca como essa foi demais, esses caras são perigosos, são assassinos, eles tinham uma refinaria de cocaína secretamente.
            - Um muito obrigado serve. - se deita na maca.
            - Tudo bem, tudo bem, você fez um ótimo trabalho devo admitir.
Mais dois bandidos fora de circulação. Taveira é levado para o hospital. Enquanto vida tiver, Taveira continuará fazendo seu trabalho. Servir e proteger. FIM

segunda-feira, 28 de agosto de 2017

A Maldição Da Lua Cheia



       A chuva cessou, mas o frio continua batendo forte. O andarilho com seu agasalho do exército e calças surradas caminha pela estrada a passos largos. A mais ou menos quatro horas que ele anda sem parar e até agora veículo algum passou. Uma carona, é tudo que ele deseja no momento. Vez por outra o andarilho olha para trás na esperança de avistar um carro. Nada. A noite logo chegará e seu estômago já começa a roncar. O frio aperta e suas mãos congelam. Ele as enfia no bolso do casaco. A mochila pesa em suas costas. Suas pernas começam a vacilar e seus passos que outrora eram rápidos e firmes, agora estão oscilantes.
           Mais a frente uma cabana. Na fachada uma placa escrita de forma rudimentar informa, cantina. Pela primeira vez em horas ele sorrir. O andarilho retira a mochila das costas e do bolso lateral ele pega sua carteira. Confere se há alguma grana.
           - Droga de vida, dez reais. – resmunga.
           Mesmo assim ele entra. Lá dentro o fedor de tabaco e suor se misturam. Pelo menos está quente. Os frequentadores do lugar são, andarilhos como ele, prostitutas, bandidos e bêbados. O dono da cantina, um italiano gorducho e bigodudo se aproxima limpando as mãos num pano mais sujo que o agasalho do andarilho.
           - Vens de onde seu moço?
           - Do sul, o que temos por dez reais?
           - Dez reais? Bom, sopa de quiabo. – continua a limpar as mãos.
           - Sopa de quiabo, com o que?
           - Galinha caipira.
           - Vou querer um prato, onde posso me sentar, acho que todas as mesas estão ocupadas.
           - Venha comigo, vou tirar aquela piranha dali.
           A piranha a qual o italiano se refere é Zuleica, famosa por sua garganta profunda.
           - Se incomoda de ceder o lugar para o...
           - Miro, me chamo, Miro.
           Zuleica olha para Miro com cara de nojo.
           - Vai querer meus serviços depois que jantar, gostosão?
           - Acho que vou deixar para uma próxima oportunidade.
           Lorenzo trás o prato fumegante. Dois sérios problemas com a sopa de quiabo; falta sal e quiabo. Miro releva, afinal a fome é maior. Em cinco minutos ele termina a sopa. Paga e quando vai saindo Lorenzo o chama.
           - Tem onde passar a noite?
           - Não!
           - Não quer passar a noite no quarto da Zuleica, é apertado, mas dá para o gasto.
           - Fica pra próxima, preciso ir.
           - Tem certeza? É noite de lua cheia.
           - O que tem isso?
           Lorenzo o puxa para um canto e cochicha.
           - Há uma criatura rondando por ai, faminta por carne fresca, só aparece em noites de lua cheia.
           Miro franze a testa.
           - Lobisomem?
           - Exatamente, por isso acho melhor passar a noite aqui.
           - Agradeço a preocupação seu Lorenzo, mas tenho ir mesmo.
           - Deus lhe proteja. – dá de ombros.
          Miro ganha mais uma vez a estrada escura. A chuva é intensa e atrapalha a visão. Ele levanta a gola do casaco e aperta o passo. O barulho de um motor chama atenção. Logo seu corpo é iluminado por faróis altíssimos. Miro estica o braço e levanta o polegar pedindo carona. A Rural passa em alta velocidade obrigando Miro a se jogar no acostamento.
          - Desgraçado! – vocifera.
          Ainda com raiva Miro segue seu rumo. De repente um uivo o faz parar. A chuva estia. Mais um uivo e o medo gela sua espinha. Será que o maldito velho tinha razão? Miro então saca seu trinta e oito e espera. O uivo vem do meio das árvores. Seu coração dá fortes galopes parecendo querer sair do peito. A chuva volta. Miro correr. Sua respiração é irregular, correr de barriga cheia não dá. Cansado ele para. Se apoia nos joelhos. O uivo está cada vez mais perto, Mais que merda, por que não aceitei dormir com aquela piranha fedendo a suor. Miro volta a correr. Algo ou alguém o segue, ele sente isso. O mato na lateral da estrada mexe. Miro atira. Nada acontece. Seu estômago dá um nó e mesmo correndo ele vomita toda a sopa de quiabo. Atira mais uma vez. Quando se recupera, Miro consegue ver uma criatura enorme que ele não sabe distinguir direito, será um cachorro, uma onça ou um lobo. Ele confere a arma, quatro balas.
           Volta a correr. A criatura rosna e uiva. Uma lágrima escorre no canto do olho esquerdo de Miro. A criatura sai do meio do mato e avança pra cima do andarilho. Miro grita, chama por Deus, Jesus, sei lá o que. Atira acertando o bicho peludo. O lobo gigante salta com suas patas ferindo Miro no ombro. O andarilho cai aguardando ser devorado quando outros disparos acertam o animal que cai morto.
           - Você está bem moço? – pergunta Lorenzo ao lado de outro velho.
           - Estou, acho que estou. – diz se levantando.
           - Foi ferido? – pergunta o outro velho de chapéu de palha.
           - Não.
           - Não falei que era para você ficar na cantina com a Zuleica, sorte tua eu ter lhe seguido.
           - Eu lhe agradeço, seu Lorenzo.
           - Vamos, passe a noite lá na cantina, amanhã pela manhã você pega a estrada.
           - Ótimo.
         
           De volta a cantina, enquanto Lorenzo esquenta a sopa de quiabo, Miro toma banho. Ele termina a ducha e se olha no espelho. A ferida no ombro é superficial, mais queima feito brasa viva.
           A cantina fechou. Lorenzo, Chico e Miro comem e jogam conversa fora. Chico faz uma observação.
            - Dizem que quem é ferido pelo lobisomem, mesmo de leve, na próxima lua cheia ele se transformará na criatura uivante.
            Miro engole seco.
            - Mais tudo acabou bem, matamos o bicho e salvamos a vida do nosso amigo aqui.
            Todos riem, menos Miro sentindo a ferida arder.

Fim




A Maldição da lua cheia 2

            Miro acorda depois de uma longa noite de frio e pesadelos. Seu corpo dói por inteiro e seus olhos parecem ter areia dentro. Alguém toca a porta.
            - Já vai! – boceja e abre.
            - Como passou a noite gostosão? – Zuleica pergunta com bafo de cigarro fazendo o estômago de Miro revirar.
            - Passei mal a noite toda.
            - Por que não me chamou, eu faço uma massagem que relaxa bastante.
            - Quem sabe hoje, agora se me dá licença preciso arrumar minhas coisas.

***

            Lorenzo coloca a mesa do café regada a pão fresco e ovos mexidos. Chico varre o salão da cantina.
            - Então Miro, o que achou do quarto da Zuleica, abafado né? – pergunta Lorenzo.
            - Um pouco, ela trabalha pra você?
            - Às vezes, ela tem poucos clientes, e os que são fiéis só estão com ela pelo sexo oral maravilhoso que faz, eu se fosse você experimentaria.
            Chico solta uma gargalhada enquanto varre.
            - To fora! – come os ovos. – quanto devo?
            - Cortesia da casa meu jovem.

***

            Miro se despede dos dois homens com um nó na garganta e ganha a estrada.
            Mais uma vez ele anda sem parar. Olha para o céu de onde vem trovoadas. Aperta o passo. Logo logo vai escurecer. Uma buzina. Ele corre até o acostamento e faz sinal pedindo carona. A Brasília 1978 branca freia e um sujeito barbudo e obeso fala com sua voz grave e rouca.
            - Indo para onde meu caro?
            - Para o sul.
            - Posso te deixar lá, entre.
            - Obrigado!
            Miro se acomoda no veículo que cheira a doce.
            - Qual o seu nome filho?
            - Altamiro, mas pode me chamar de Miro mesmo.
            - Trabalha com o que?
            - Sou caldeireiro, mas no momento estou desempregado.
            - Que pena, vai tentar a sorte lá no sul?
            - Queira Deus que eu consiga.
            O gordo abre o porta luvas e pega um serenata de amor.
            - Quer um? – joga inteiro na boca.
            - É o seu ultimo?
            - Não, ai dentro tem muito mais, pode pegar. – fala com a boca cheia.
            A Brasília para num cruzamento. Miro desce e o gordo dá as coordenadas.
            - Segue sem parar, você chegará à cidade, certo?
            - Muito obrigado seu Arnaldo.

***

            Miro mais uma vez está na estrada. Falta pouco para a noite chegar. Ele olha para o céu e teme pela lua cheia. Acelera o passo. As nuvens descobrem a lua. De repente Miro sente uma forte queimação no corpo inteiro.
            - Meu Deus, não é possível, será que Chico estava certo?
            Muito calor. Um calor insuportável. Ele arranca a mochila das costas e tira o casaco do exército? Seu corpo parece que vai pegar fogo. Ele geme, grita e rola no asfalto. Pede socorro. Rola até o mato. Miro tira a calça e os sapatos. Seus músculos crescem e esticam assim como os ossos. Mais gritos. Por fim, pelos negros e grossos crescem nas costas e tórax. Sua boca começa a se transformar num focinho e seus dentes se tornam em pontiagudas presas. Miro rosna e depois uiva. A saliva escorre quente pelos cantos do focinho. Ele fica de quatro, um homem lobo, um lobisomem. Mais uivos. Como um cão selvagem ele corre em direção a cidade a procura de comida.

Fim






domingo, 20 de agosto de 2017

João Carlos Taveira - Série completa




         - Por favor, uma xícara de café, e bem forte por favor. - pede Taveira ao garçom.
        O dia começou péssimo para João Carlos. Além de chegar tarde à cena do crime, ele foi hostilizado pelos colegas que lá estavam. Foi preciso a interversão dos outros companheiros para não haver uma briga. Tudo por que a bebedeira de ontem o deixou de ressaca hoje. Quando recebeu o telefonema do departamento policial, Taveira ainda dormia no sofá. Quando finalmente chegou na casa onde ocorreu o crime, outro agente já havia assumido o caso.
         - Droga, logo ele, o sujeito mais nojento do departamento.
        O café chega saindo fumaça de tão quente. João Carlos confere a hora no relógio.
        - Sete e quinze. - Olha para o estabelecimento já repleto de clientes. - vou querer um pão na chapa, por favor.
        - Muita, ou pouca manteiga senhor?
        - Pouca.
     Enquanto aguarda a chegada do pedido, Taveira saca o celular para conferir as últimas notícias em seu site preferido. Ele resmunga em saber do resultado do jogo de ontem. Mais uma vez seu time perdeu. O pão na chapa chega. A ressaca é forte. Ele toma mais um gole de café forte e olha para a porta da padaria. Nesse momento dois caras entram e se dirigem ao balcão. Dois jovens bem-vestidos. De onde Taveira está é possível ouvir a conversa.
        - Dois cafés e dois pães com ovos, por favor.
        João Carlos relaxa, são apenas clientes assim como ele. Seu telefone toca.
        - Oi. - diz ele.
        - E ai, como foi a noite. - diz uma voz feminina.
        - Uma merda. - come o pão.
        - Nossa, foi tão ruim assim, eu fiz tudo o que você pediu.
       - Certo, eu digo depois que você foi embora, sabe aquela garrafa de uísque? Então, bebi a metade, estou péssimo, cheguei tarde no trabalho. - Taveira volta a olhar para os rapazes no balcão.
        - E ai, vamos nos encontrar hoje?
        - Não sei, gata, vou te ligar mais tarde, certo?
        - Vou ficar esperando, tá bom? Beijo.
        - Beijo!
       Ele coloca o celular no bolso do paletó olhando para um dos rapazes, o mais alto. Taveira suspeita de alguma coisa por baixo da camisa e resolve conferir de perto.
       - Com licença, posso ver os documentos dos rapazes?
    Os dois olham para o homem alto de terno azul-escuro e gravata branca com estranheza.
      - Você quem é? - pergunta o mais baixo.
      - João Carlos Taveira, investigador de polícia, quero os documentos agora.
     Os caras se olham e um deles dá um passo para trás. Taveira saca seu trinta e oito quando o rapaz também saca sua arma, uma pistola.
      - Solte a arma, você está preso. - vocifera João Carlos.
     As outras pessoas começam a correr. Os marginais estão assustados e Taveira não para de dar voz de prisão. As armas são apontadas. Os corações se aceleram. É preciso pensar rápido.
      - Solte a arma. - grita.
      - Qual foi cara, nos deixe ir embora. - fala o mais baixo.
      - Vocês vão sair daqui sim, mas comigo e algemados.
     Os minutos parecem horas até que o investigador tem uma ideia. Negociar.
     - Tudo bem, vou abaixar a minha arma, ok?
     - Está tentando nos enrolar? - diz o que segura a pistola.
     - Não, só não quero morrer e acho que nem vocês querem morrer, não é?
    Silêncio. O dono da padaria e os funcionários estão nervosos espremidos num canto atrás do balcão. As armas continuam apontadas. O marginal treme e não tira os olhos do policial.
     - Vamos abaixar nossas armas? - propõe Taveira mais uma vez.
      - Isso está fora de questão.
    A tensão só aumenta. Taveira usa toda sua experiência em negociação e aguarda uma oportunidade. Mesmo sem tirar os olhos do bandido ele consegue ver ao redor. Caso aconteça uma troca de tiro ele só terá o balcão para se proteger. O marginal volta a tremer e numa fração de segundos ele tira o dedo do gatilho. É agora ou nunca. Taveira fica frio feito uma pedra de gelo e atira acertando o ombro do homem. O comparsa tenta correr mais é alvejado na perna.
        - Eu avisei. - João Carlos Taveira pega as algemas.
      Todos aplaudem a atitude do investigador. Pelo celular ele chama reforços. Ainda com dor de cabeça ele é elogiado pelo dono da padaria.
        - Senhor João, muito obrigado, o café e o pão na chapa fica por conta da casa.
        - Valeu Joaquim.
    O reforço vem e com muita preguiça Taveira se levanta. Hora de ir para o departamento. Encarar a quarta feira será algo quase impossível. Taveira não vê a hora de terminar o plantão e cair nos braços de Dora. FIM


João Carlos
Taveira

       Taveira estaciona mal e porcamente seu carro na vaga do estabelecimento. Seu humor anda a baixo do nível e por isso ele bate a porta do veículo com força. A noite não foi nada boa com Dora. Depois de resolver um perigoso caso de roubo de carga e de trocar tiros com dois bandidos ao mesmo tempo, o investigador precisa urgente de uma garrafa de uísque e uma carteira de cigarros. Seu terno azul-escuro está a amassado e na manga esquerda há uma mancha de sangue. O dono do bar já o conhece de longa data.
        - Taveira, como tem passado?
        - Boa noite, Jaime, quero o de sempre e rápido.
        - Opa, você quem manda meu chefe.
      Nesse meio tempo uma menina de mais ou menos vinte anos entra no bar com o pânico estampado no rosto. Ela olha para Taveira e depois para Jaime.
       - Com licença, posso usar o banheiro?
       - Você precisa consumir algo antes, tudo bem?
        - Sério?
        - Muito sério. - entrega o uísque e os cigarros a Taveira.
        - É que preciso trocar meu absorvente.
        Tanto Jaime como Taveira engolem seco.
        - Ok, vai lá, nos fundos a esquerda.

        Taveira se despede de Jaime quando dois caras entram.
       - Aquela vagabunda entrou aqui, não foi? - pergunta um com uma pistola. Jaime fica paralisado e olhando para Taveira.
        - Ei pessoal, vamos com calma. - diz o investigador.
        - Quem é você otário, cadê a garota?
        - Calma, abaixe sua arma…
        O rapaz aplica um forte soco em Taveira que deixa a garrafa de uísque cair.
      - Vamos procurar, revirem essa espelunca. - mais dois caras armados entram no bar.

     Eles se espalham. João Carlos se levanta sangrando pelo nariz. Sua fúria quase incinera seu corpo. Ele olha para a direção do corredor onde ficam os banheiros. Um dos bandidos vai para trás do balcão. Distraído ele não vê o policial atrás dele.
       - Pode deixar que eu procuro pra você. - acerta um forte soco apagando o homem de vez.
       O trinta e oito é sacado. Jaime ainda se encontra paralisado.
       - Jaime, se esconda, vamos, rápido.
      Dois caras saem de trás das máquinas de fliperama apontando suas armas. Taveira se abriga e atira. Um deles é alvejado no ombro. O outro volta para trás da máquina. Mais tiros. As bebidas que estão no mostruário são atingidas. Taveira revida protegendo Jaime. O outro bandido vai atirar mais a arma falha. João aproveita para deixá-lo fora de combate. O tiro o acertou no peito. Taveira sai de trás do balcão e atira na perna do vagabundo que segurava seu ombro ferido.
       - Argh!
     O investigador corre em direção ao corredor onde estão mais dois marginais. Um deles com quase dois metros de altura e dois de largura pula pra cima do investigador. Dois fortes socos deixam Taveira sem rumo. Outro soco e a visão de João começa a falhar. Ele é jogado contra a porta do depósito que se quebra. Como um animal feroz ele avança socando o rosto do policial. Taveira cai sobre as caixas de cerveja. A dor nas costas o faz contorcer. O investigador é torturado, moído pelo gigante. João volta a ser arremessado contra as caixas de cerveja e depois disso silêncio.
     O homem enorme dá as costas e sai do depósito. O outro se encontra dentro do banheiro feminino segurando a garota pelo pescoço.
       - Cadê minha grana sua vagabunda, hein, cadê?
       O rosto da menina já se encontra roxo e ela sente a morte de perto. Seus olhos estão virados quando o gigante solta um grito gutural e depois outro. Taveira crava mais uma vez uma metade de uma garrafa quebrada nas costas do marginal que vai desabando até cair de vez.
       - Solte a garota, você está preso.
       - Quem é você, imbecil? - solta a menina que desmaia e saca sua faca.
       - Taveira. - avança contra o bandido segurado o pedaço de garrafa.
     Os dois brigam feio dentro do banheiro. Trocam socos e João é cortado no braço.     Quando vai aplicar outro golpe, Taveira o chuta no rosto arrebentando seu nariz. O pedaço de vidro é enterrado no peito do bandido. Taveira consegue desarmá-lo.
       - Você está preso, seu merda!
      Depois de tudo Taveira sai do corredor puxando o vagabundo pelo pé e segurando a menina. Jaime sai de trás do balcão.
       - Quer que eu chame a polícia?
       - Jaime, eu sou a polícia. FIM


João Carlos
TAVEIRA


      O traficante olha mais uma vez para o relógio em seu pulso e cospe o cigarro. O lugar é deserto e com grandes árvores que fazem sombra por toda a parte. Local perfeito para uma transação. De repente uma van vem cortando o asfalto irregular e breca quase atropelando o bandido.
        - Mas que merda é essa? - se levanta.
      - Me desculpe chefe. - diz o motorista. - esse carro está com problema sério de freio.
         - Tá bom, agora me diga, trouxe o que eu lhe pedi?
         - Sim senhor. - desce da van e se dirige a parte de trás do veículo.
         - Quantas armas trouxe? - acende outro cigarro.
         - Quinze, pra começar.
      O traficante olha para os comparsas e depois para aquele sujeito desengonçado vestido com macacão de empresa de limpeza. O mesmo abre as portas traseiras da van e mostra a encomenda.
        - Pistolas, fuzis e doze, tá bom ou quer mais?
        - Bom não está, mas, vamos negociar, eu pago cem mil.
        O sujeito dentuço e de olhar penetrante solta uma gargalhada alta.
        - Meu amigo, só a doze custa 300 mil.
        - Tá de sacanagem, tudo isso?
      - Pois é meu chapa, tudo subiu de preço. - olha para o alto. - então, é pegar ou largar?
        O bandido coça a cabeça. Olha para o restante do grupo e depois para o fornecedor maluco. Saca o celular e abre a calculadora. Depois de alguns minutos ele diz.
            - 400 mil e não se fala mais nisso.
             - Tem certeza?
             - Sim, claro.
             - Negócio fechado. Mas antes quero fazer uma contra proposta.
             - Merda, fala logo, isso já está demorando muito.
             - Seus homens estão armados? - fala olhando para cada um deles.
             - Claro que sim.
             - Quero comprar as armas. O que vocês tem ai?
             - Pistolas e uma metralhadora. - diz um dos asseclas.
             - Ótimo, quero todas, ofereço 600 mil em todas, o que acha?
             Um momento de silêncio e olhares desconfiados.
            - Fechado! - diz o chefe.
            - Muito bom, me entreguem por favor.
           O dentuço recolhe todas as armas e se volta para o traficante líder.
            - Foi bom fazer negócio com você, vou pegar a mala com o dinheiro.
      Ele se encaminha para a van e abre a porta lateral de onde desce agentes uniformizados e armados com fuzis e dando voz de prisão.
            - Todos no chão, vamos, vamos.
        O dentuço e desengonçado retira o disfarce revelando o inspetor João Carlos Taveira. O capitão se volta para ele.
            - Bom trabalho inspetor.
            - Fizemos um bom trabalho. FIM                

terça-feira, 1 de agosto de 2017

Um Amor para Kelly



1


     Oi, permita-me me apresentar, sou Kelly Dantas, sou uma jovem de 20 anos, cristã evangélica e estou no segundo período em pedagogia. Tanto na igreja como na faculdade sou motivo de piadinhas por ser virgem e por nunca ter tido um namorado. Eu finjo que não ligo, mas por dentro meu coração desmorona de tanta tristeza e dor. Vivo com minha mãe num apartamento pequeno na zona oeste. Meu pai morreu há dois anos e graças a Deus ele nos deixou bem. Minha mãe passa boa parte do tempo cozinhando quitutes para vender e eu me divido entre estudar e igreja.
    Minha única diversão são os livros de ficção. Adoro romances de mistério. Meu quarto é uma verdadeira biblioteca onde há livros até quase no teto. Se sou uma jovem bonita? Não sei, me considero uma menina comum usando óculos e roupas decentes. Gosto de cantar, não em público. As vezes sou chamada para pregar em programações de juventude ou reuniões. Tudo isso é bom, eu gosto, mas, no fundo, me falta uma pessoa para dividir os bons momentos, poder passar o fim de semana coladinho, ir ao cinema, teatro, culto, sei lá, seria bom demais. Bom. Enquanto esse dia não chega, sigo a vida estudando, ajudando minha mãe e servindo ao Senhor o melhor que posso.

2

    Antes do culto começar vou ao bebedouro e me esbarro com Renata, a menina que canta no louvor. Renata é popular na igreja e já namora a algum tempo com Fernando, tecladista.
    - Oi, Kelly?
    - Oi, Renata.
   Renata é linda, uma loira alta que possui uma voz potente, mas que não tem prudência ao se vestir. Ela já namorou todos os garotos da igreja e de outras também. Eu não acho isso certo, mas quem sou eu para achar alguma coisa.
     - Como vai na faculdade?
     - Sufoco, tenho estudado muito. E você? - termino de encher meu copo.
     - Você sabe, gerenciar um estabelecimento não é nada fácil. Lidar com funcionários e o público é algo cansativo.
     - Imagino.

    Durante o louvor fico boquiaberta ao ver Renata cantando. Realmente ela é boa no que faz. Ela ministra muito bem. Olho para Fernando tocando e me imagino no lugar de Renata. Não basta ser linda e boa cantora, ela precisa ter um namorado bonito e bom instrumentista. Que droga. Por que comigo as coisas não acontecem? Vida que segue.
     Quando o culto acabou eu fico sentada no banco do lado de fora aguardando minha mãe quando fui surpreendida por Eliezer, sujeitinho safado e sem noção.
     - Fala tu, Kelinha.
     - Oi. - Sou seca. Eu não gosto do Eliezer. Deus me perdoe.
     - Sozinha, outra vez?
     - Parece. - abro a bíblia e finjo lê-la.
     - Vai pra casa ou vai passar em outro lugar? - ele fala tão perto que é possível sentir seu hálito azedado.
     - Vou direto para casa.
     - Poxa, não quer comer alguma coisa comigo lá na lanchonete nova?
     - Obrigado, preciso levar minha mãe embora. - me levanto. - fique na paz, Eliezer.
     - Valeu.

3

   Segunda-feira chego na faculdade e vou direto para a sala de leitura. Preciso terminar de ler meu livro para fazer meu trabalho. Levo algum tempo procurando. Quando finalmente o encontro faltam apenas quinze minutos para a primeira aula. Melhor que nada. Me sento e ouço a porta da sala abrir e quem entra. Vagner, um negro maravilhoso, inteligente e comportado. O cheiro de seu perfume invade a sala mexendo comigo. Ele pega seu livro e se senta na ponta da mesa. Vez por outra ele me olha e eu me faço de desentendida. Fico sem jeito e perco totalmente a concentração. Ele tosse e volta a me olhar.
     O sinal toca e Vagner não se levanta. Eu sim. Dei uma rápida olhada e lá estava ele me olhando. Deixo a sala com as pernas tremendo. Imagina, eu, uma menina simples ao lado de Vagner. Seria demais. Chego em minha sala e ocupo o mesmo lugar de sempre. Perto da mesa do professor e ao lado de Maria, a nerd.
   Fim de aula. Sou a última a descer. Concentrada no caderno não percebo a aproximação de Vagner. Quase que o atropelo.
      - Me desculpe. - digo sem jeito.
      - Nada!
    Meu coração vem a boca. Quase infarto quando ouço sua voz grave dizendo meu nome.
     - É Kelly, não é?
     - Sim, sim.
    - Poxa, hoje de manhã eu queria falar com você, mas tive vergonha de interromper sua leitura. Quando podemos conversar?
     - Sobre? - arqueio a sobrancelha.
     - Sua religião.
     Engulo seco e olho nos olhos dele.
     - Minha religião?
     - Sim, pelo que sei você é evangélica, não é?
     - Sim, claro.
     - Está indo embora agora? - o sorriso de Vagner é quase sobrenatural.
     - Sim.
   - Se puder me esperar, eu estou de carro hoje, podemos comer alguma coisa e conversar, o que acha?
      - Tudo bem, te espero lá embaixo.
      - Ótimo, vou só pegar minhas coisas e já desço.


4

     Vagner me leva para um pequeno restaurante. O lugar cheira bem e é bastante aconchegante. Ele pediu a especialidade da casa.
        - Sempre que venho aqui peço esse prato. Não quer experimentar?
        - Bom, já que insiste.
       O garçom anota tudo e nos deixa a sós.
     - Bom, Kelly, a muito tempo venho te observando e vejo em você uma moça educada, discreta e…
       - Hum?
       - Bom, um pouco destacada.
     Mais que droga. Por um instante achei que ele fosse dizer, educada, discreta e linda, quer namorar comigo? Mas não, ele queria apenas saber um pouco mais sobre o mundo evangélico. Expliquei tudo a ele e no final recebi uma bomba nas mãos.
      - Sou Umbandista.
      - O que?
     - Isso mesmo, quase ninguém lá na faculdade sabe e espero que você guarde isso pra você.
       - Pode deixar, seu segredo está mantido.
     Vagner me deixa na portaria do meu prédio desnorteada com a notícia. Nunca daria certo um relacionamento entre uma Cristã e um umbandista. Vida que segue. Subo preguiçosa até meu apartamento. Passo o restante do dia pensando em Vagner. Minha mãe continua na cozinha e eu no quarto escrevendo e louca para ligar para Vagner e sei lá.
      Será que eu nunca vou experimentar o que é andar de mãos dadas com alguém? Será que terei que passar minha vida nessa mesmice? Nunca terei a chance de provar o que é ter ciúmes? Tiro os óculos e vou ate o espelho. Me olho. Não sou de se jogar fora, então onde está o problema? Volto para o computador e abro minha rede social. Muitos amigo e amigas e ninguém disponível no momento. Eliezer entra no bate papo. Droga, não podia ser Vagner. “oi, Kelinha?”. Não respondo de imediato. “Diga!”. “Tá fazendo o que?”. Respiro fundo para não respondê-lo mal. “Estudando e mexendo no Facebook, por que?”. “Você vai no encontro da juventude no sábado?” “Devo ir sim” “Legal” “Mais alguma coisa?” “nos vemos lá então”

5

     Por fim chegou o tal encontro da juventude. A igreja está repleta de jovens de outras igrejas. São garotos e garotas se acotovelando e falando bastante. Antes da programação começar, vou para a parte externa, na quadra polivalente e dou de frente com casais abraçados e dando alguns amassos em pontos cegos. Para que notem minha presença tenho que tossir e pigarrear. Nunca vi tanto fogo em tão pouco espaço. Ando até a cantina e comprei um lanche. Converso com alguns irmãos e volto para dentro do templo. De longe vejo Eliezer mexendo nos microfones. Ele não me viu, ainda bem. Ele é muito chato, inconveniente e sem noção. Fujo para a galeria e permaneço lá durante toda a programação. A mensagem foi até boa, edificante, mas a minha cabeça estava em Vagner. Como evitar isso?
     O encontro terminou e quando eu já estou indo embora, Eliezer me alcança com aquele sorrizinho cínico que me irrita.
     - Kelinha, eu não te vi no culto.
     - Pois é, fiquei escondida. - continuo a andar.
     - Escondida de mim? - continua sorrindo.
     - Se toca Eliezer.
     - Posso te levar em casa? - ele coloca a minha frente.
     - Me dá licença.
     - Posso te levar em casa?
     - Eliezer, quando você vai crescer? - quase lhe dei um empurrão.
     - Tudo bem, não precisa ficar nervosa, thau.
    Realmente Eliezer é um pé no saco. Nunca vi igual. Agora sei por que ele nunca apareceu com garotas na igreja. Não suportamos meninos chatos. Vou andando e meus pensamentos variando entre a faculdade e Vagner. O que ele deve está fazendo agora? Saco meu celular e me vejo tentada a ligar para ele. Seria bom fazer isso? E se ele atender o que vou dizer, “senti saudade e resolvi ligar”. Isso seria patético. Chego em meu prédio e resolvo subir de elevador. Chego em meu apartamento e consulto o relógio. Dez em ponto. Ainda cedo para uma noite de sábado fresca, convidativa para um belo relacionamento.
      - Oi, filha, você já chegou, fiz pipoca para assistirmos aquele filme.
    Minha mãe é dez, mas nesse exato momento não era bem a senhora que eu queria como companhia para assistir a um filme. Que tal alguém alto, negro, bonito e que cheira bem? Vagner.
      - Tudo bem, só vou tomar um banho. - falo desanimada.

6

     Na escola dominical enquanto dou aula para o grupo de jovens e noto os olhares de Eliezer para mim. Por incrível que pareça ele não se manifestou durante a aula, se comportou como um homem e não fez nenhuma piada sem graça. Quando dou por encerrada a aula ele sai e se junta ao grupo no corredor. Eu passo esperando que ele vá me chamar e nada. Melhor assim.
   Cultuei. Conversei, resolvi algumas questões sem ser perturbada. Renata e eu colocamos a fofoca em dia e voltei para casa e vi quando Eliezer subiu em sua moto. Ele passa por mim sem tomar conhecimento. Será que fui grossa demais? Ou só mais algumas de suas idiotices?
Esse será mais um domingo parecido com os outros vinte anos. Almoçarei com minha mãe e depois vou para o quarto dá uma passada na matéria de amanhã na faculdade. Um marasmo total. Como deve ser a vida de uma garota que namora? Deve ter seus pôs e contra. Mas eu tenho certeza que os beijos, as juras de amor e o tempo juntos compensam qualquer outro contratempo. Enquanto esse dia não chega pra mim, sigo mergulhando em meu mundo de suspiros pelos cantos. Em fim, é o que me resta.

    Durante o almoço minha mãe iniciou uma conversa um tanto quanto desconfortável pra mim.
    - Então Kelinha, quando virá o seu varão valoroso?
   Vendo a demora da resposta, minha mãe se antecipa pegando um pouco mais de feijão.
     - Você já está com vinte anos minha filha.
     - Mãe, pra ser sincera, não estou nem um pouco preocupada com isso. No momento o que ocupa minha mente são os trabalhos da universidade, e só.
     - Tem certeza? - olha pra mim com ar de riso.
    - Sim, tenho. - limpo a boca com o guardanapo.
    - Tenho ouvido seus suspiros pelos cantos, acho que tem alguém mexendo com o seu coração.
   - Mãe, fique tranquila, quando eu me apaixonar por alguém a senhora ficará sabendo. - me levanto levando minha louça.

     Na cozinha, lavando minha louça fico pensando como ela sabe das coisas. Claro que ela sabe. É uma mulher vivada, experiente e já se apaixonou várias vezes durante a vida. Bem que eu queria ter a coragem de lhe dizer a verdade. Dizer que estou gostando de alguém. Porém esse alguém não professa a mesma fé que a nossa. Isso seria uma catástrofe para ela. Vagner não sai da cabeça nenhum segundo.

7

    É como um ritual. Chego na faculdade e vou direto para a sala de leitura. Vagner está sentado concentrado lendo seu livro. Ele olha para mim e meu coração vem a boca. Aceno pra ele e ele me devolve aquele sorriso iluminado. Imagino diversas coisas em questão de segundos. Será que ele vai me convidar para comer outra vez? Será que ele vai querer conversar hoje? Meu Deus, que sensação estranha.
     Quinze minutos se passaram e nada. Vagner permanece lendo e eu na outra ponta da mesa aguardando pelo menos um contato visual. Nada. O som do sinal alertando para o início das aulas soa e com ele a frustração. Vagner não me olhou, não falou comigo, não me notou. Algo está errado. Antes de subir para a sala dou uma passada no banheiro. Aguardo a saída da moça da limpeza e entro. Fico me olhando no espelho procurando o que há de errado em mim. Tiro os óculos. Observando melhor percebo que tenho um olho mais aberto que o outro. Testo o hálito e ele está suportável. Não sou uma mulher feia, então o que está havendo? Tenho tudo o que os homens gostam no lugar. Sinceramente não estou entendendo.
      Vou para a sala e demoro a me concentrar na aula. É uma aula muito importante, mas infelizmente minha mente não consegue focar. Para não ficar perdida pego meu celular e gravo a palestra eme desligo. Penso em Vagner durante os 50 minutos de aula. Que droga. Mulher gamada é mesmo um saco. E se Vagner me chamar para sair, qual será o futuro dessa relação sendo ele umbandista e eu evangélica? Não vejo futuro algum, apenas tribulação e desespero por parte de minha mãe. Acho melhor desistir da ideia e enterrar Vagner para sempre.

      No intervalo converso com algumas meninas da minha sala quando Vagner passa de braço dado com uma morena exageradamente linda. Até que os dois fazem um belo par. Logico que meu coração se parte em milhares de pedaços. Agora entendi o por que dele não me dar mais confiança. Ele tem uma namorada. Como fui burra de acreditar que um homem bonito como ele estaria disponível. Kelly, você merece o papel de idiota. Vida que segue.

8

    Meu mundo caiu. Cheguei ao vinte anos sem saber o que é ter um namorado, sem saber o que é beijar na boca, sem sentir o aperto de um braço masculino. Essas são as minhas condições no momento, velha, virgem e cuidando da mamãe. Não foi isso que escolhi para mim.
    Odeio me fazer de coitadinha. Não sou coitadinha. Sou uma mulher linda, inteligente. Dane-se Vagner. Abro meu estojo de maquiagem e me produzo com jamais me produzi. Solto o cabelo e resolvo colocar a calça jeans que a meses venho relutando para não vesti-la. Aqui estou eu, incrível, poderosa, vestida para matar. Hora do show.

    A primeira a notar foi Renata. Ao me ver ela ficou boquiaberta e assobiou. Ruborizei na mesma hora.
     - Nossa, é aquela Kelly com jeito de beata de igreja que eu conheço.
     - Ai meu Deus, eu sabia.
    - Menina o que deu em você, que corpão. - dá um leve tapa em minha bunda. - olha essa comissão de frente. - aponta para os meus peitos.
     - Ah, resolvi mudar, gostou?
     - Incrível, você está ótima.
    Acho que chamei muito atenção. Eu realmente estava um espetáculo a céu aberto. Notei vários olhares que outrora não existiam. Eliezer passou por mim várias vezes e em todas elas ele me devorava com os olhos. Não houve da parte dele piadinha, ou cantadas ridículas. Estaria ele mudando? Dentro do templo me sentei no lugar habitual.    Louvei, orei e adorei a Deus. Quando o culto terminou lá estava eu saindo das dependências da igreja, sozinha, acho que de nada adiantou toda essa produção. Estou mais uma vez voltando para casa sozinha. Para no ponto de ônibus e aguardo. Meus pensamentos variam. De repente noto a aproximação de alguém. Eliezer.
     - Oi, Kelly?
     Resolvo ser simpática com ele.
     - Oi, Eliezer.
     - Quer carona? Está tarde, é perigoso ficar aqui sozinha.
     Ele tem razão.
     - Tenho medo de andar de moto.
     - Prometo ir bem devagar.
     Não penso muito e aceito.
     - Tudo bem.

   Bom, aqui estou eu agarrada ao cara mais chato da igreja. Como ele mesmo prometeu, ele vai devagar e me deixa na portaria do meu prédio.
     - Viu, está em casa sã e salva.
     - Obrigado. - desço da moto. - tenha uma boa noite.
     - Kelly.
     - Sim? - me volto para ele.
     - Você está maravilhosa, com todo o respeito, é claro. - engole seco.
     - Obrigado.
     - Kelly, você aceitaria sair comigo?
     Olho para Eliezer e vejo um rapaz simples, de olhar profundo e sincero. Ele não é a oitava maravilha do mundo. É um rapaz trabalhador. Outro dia, fiquei sabendo que ele gerencia a padaria de seu pai. Eliezer seria um bom namorado? Vendo que eu demoro para responder ele meio que desiste da proposta.
     - Esquece, deixa pra lá. - vira a chave da moto.
     - Onde você quer me levar?
     - Num restaurante que abriu a pouco tempo, mas se você não quer deixa pra lá.
     - Eu quero sim, vamos, qual dia?
     - Que tal no sábado as vinte horas, eu te pego aqui.
     - Legal, vamos, tá marcado.

9

    Passo a semana esperando o sábado para me encontrar com o Eliezer. Por incrível que pareça estou ansiosa. Quem diria, Eliezer, o carinha mias chato de minha congregação me fez esquecer Vagner e outros mais. Vou para a faculdade, me esbarro com ele e já não sinto aquela sensação me sufocando. Consigo me concentrar nos estudos e estou mais falante. Me estranho em certos momentos.
     Sábado. Finalmente ele chegou. É um dia de sol e poucas nuvens. O vento está fresco onde aproveito para cuidar das flores do jardim. Minha mãe me observa cantando ajoelhada no meio do colorido. Canto canções de amor quando a sombra de minha mãe esconde o sol.
      - Não vai me dizer o que aconteceu? - diz ela enxugando as mãos no avental.
      - Não aconteceu nada. - continuo limpando o jardim.
   - Claro que aconteceu, você nunca canta ou limpa esse jardim, me fale o que aconteceu.
      Me levanto prendendo a respiração.
      - Dona Tereza, não aconteceu nada, eu só estou feliz, só isso.
      - Sei, tem algum motivo toda essa felicidade? - sorrir.
      - Sim, Jesus é a nossa alegria, dona Tereza.

    Fim de tarde quase noite. Começo a maratona. Tomo um banho demorado. Me maquio. Escolho a roupa. Me perfumo. Minha mãe só me observa por trás de seus óculos de leitura. Passo pela sala e ela não se aguenta de curiosidade.
      - Vai sair?
      - Sim!
     Ela espera que eu vá dizer com quem, mas permaneço calada. Por fim termino de me arrumar. Estou simplesmente bela. Pronta para ganhar a noite de brisa fresca. Escuto o som do motor da moto de Eliezer e me animo.
     - Mãe, já vou, não precisa me esperar.
     - Vá com Deus.
    Eliezer esta muito bem. Blusa de manga comprida azul e calça preta e cabelos bem cortados e penteados. Quando o vejo quase não o reconheço. Seu cheiro também é bom.
     - Boa noite, Kelly. - ele diz me comendo com os olhos.
     - Boa noite.
    Percebi que ele queria me elogiar, mas se conteve. Preferiu não arriscar em levar um fora. Mal sabe ele que essa noite eu estou de bom humor. Subo na moto e logo Eliezer ganha a estrada. O vento deixa meu cabelo esvoaçante e me agarro na cintura de meu pretendente. Coisa boa é poder sentir o vento da liberdade. A alegria pulsa em minhas veias. Quando dou por mim já estamos diante do restaurante. Um lugar bonito com portas e janelas enormes. Na entrada o som do violão invade meus ouvidos indicando que a noite será boa.
      Somos conduzidos até nossa mesa. O lugar está cheio. As pessoas conversam baixo, educadamente. Eliezer puxa a cadeira para mim. Jamais esperei isso dele.
       - Por favor! - diz ele me olhando.
    O garçom aguarda e quando nos acomodamos, ele com sua voz de ceda nos pergunta o que vamos querer para beber.
       - Vinho, suco, refrigerante ou alguns drinks?
       Eliezer e eu nos olhamos e parecia que ele já sabia a resposta.
       - Suco, abacaxi e outro de melancia, por favor.
     Eliezer parece um verdadeiro cavalheiro fazendo os pedidos. Pela primeira vez vi um homem nele. Depois que o garçom nos deixa a sós, o meu irmão em Cristo começa a puxar assuntos interessantes os quais eu faço questão de confabular. Os pedidos demoraram um pouco para chegar e enquanto isso a conversa continua. O papo variou um pouco, igreja, política, casa e…
     - Então, Kelly, qual o seu conceito de família? - ele quase segura minha mão.
    - Bom. Um homem, uma mulher, filhos, juntos na hora do almoço e jantar, férias e longos finais de semana.
     - Legal, também penso assim.
   De repente o silêncio. Ficamos nos olhando por alguns segundos. Os corações batendo em sintonia. O nosso pedido chega e não nos damos conta. Logo a conversa reinicia. Comemos, bebemos e nos divertimos. Faltando pouco para as onze saímos do restaurante. Eliezer me conduziu em paz e segurança até meu prédio. Amei a noite. Amei tudo o que aconteceu.
     - Bom, chegamos. - diz ele.
    - Boa noite. - pego as chaves.
    Vou caminhando em direção ao portão. Olho para trás e Eliezer ainda está lá, me olhando.
     - Você quer dizer alguma coisa? - eu pergunto.
    Ele desce da moto. Vem em minha direção.
     - Você sabe que eu te curto, não é?
    Eu não respondo.
   - Eu sei que fui um idiota, um bobo, mas, quero que saiba, adoraria tê-la como namorada. - ele segura o meu rosto e eu estranhamente permito. - quando quiser, estarei esperando. - ele me beija no rosto.

10

     Eliezer vai embora. Fico ali parada ainda sob o efeito de seu encanto. Se devo dar uma chance a ele? Talvez sim. Meu coração está aberto. Tudo está acontecendo muito rápido e eu sei disso. Eliezer, quem diria. O cara que eu queria distância. São coisas que a vida nos dá de presente.
      Agora, já em meu quarto, me deito ouvindo as palavras, “Adoraria tê-la como minha namorada”. Meu coração é acalentado cada vez que lembro delas. Devo dar essa chance a Eliezer? Devo ligar para ele agora? Olho para o celular. Hesito em esticar o braço e pegá-lo. Volto a pensar em suas palavras. Bom, acho que já estou bem crescidinha para isso. Sei bem o que quero de minha vida.
        - Oi, Eliezer. FIM