quarta-feira, 12 de julho de 2023

Máscara da Morte | Capítulo 6

 


Abílio e Zélia. Lado a lado. Unidos materialmente, e só. Os corações encontram-se a quilômetros de distância um do outro. Eles aguardam ansiosos a vídeo chamada do casal de filhos acertada para logo depois do jantar. Claro que o policial enquanto esperava o surgimento dos herdeiros na tela do celular não pode deixar de notar no semblante da esposa o desespero e a tristeza. Ele se compadeceu e desejou no fundo do seu íntimo que toda essa situação desaparecesse instantaneamente. Desde quando chegara do plantão, poucas foram às vezes em que ela dirigir-se a ele. Que clima hostil.

 

— Oi! Pai, oi mãe? — falou Hortência ao lado do irmão.

 

— Oi! Filha, nossa, como você está linda. — declarou Zélia.

 

— Ah, obrigada! E como vocês estão?

 

Os dois se olharam.

 

— Estamos bem, filha. — começou Abílio.

 

— Que bom! — falou Carlos. — Hortência e eu decidimos pedir uma pequena licença aqui na empresa. Em breve faremos uma visitinha aos senhores.

 

— Uma visitinha de uma semana. — bateu palmas e riu Hortência.

 

Tanto Zélia como Abílio engoliram seco não sabendo o que dizer.

 

— E aí, o que acharam? —perguntou Carlos.

 

— Sim, sim, achamos ótimo, filhão. E quando será? — Abílio não consegue controlar sua respiração.

 

— Então! Já conversamos com o nosso supervisor e ele repassou para o chefe que prometeu nos dar a resposta ainda essa semana. — Hortência concluiu.

 

Mais comemorações. A vídeo chamada se estendeu por mais vinte minutos. Ao término, os meninos, as crianças, o orgulho do casal Fontana como eles costumam chamá-los fez com que o clima outrora de animosidade se transformasse em expectativa.

 

— Graças a Deus! Nossos filhos só nos traz alegria. — declarou Abílio voltando a se deitar no sofá.

 

— Verdade. Nós os criamos bem, na medida do possível.

 

— Nunca foi o meu objetivo terminar assim. — dessa vez foi o coração de Abílio quem falou. — sempre quis terminar meus dias a seu lado, ao lado dos meninos, os quatro juntinhos novamente.

 

Zélia segurou o quanto pode, mas não teve jeito. Abílio seguiu os passos da esposa mergulhando fundo nas lágrimas. Ele a segurou pela mão.

 

— Eu te amo, meu amor.

 

A dona de casa chorava de soluçar e mal pode responder à declaração do esposo. Abílio a puxou para junto dele e a abraçou. Ambos choraram muito, porém juntos. Zélia deitou sobre o corpo do marido voltando a sentir o calor, o cheiro e o coração batendo forte.

 

— Eu também te amo, meu amor. — falou entre soluços. — me desculpe por eu ser tão difícil.

 

Abílio Fontana não se sentiu bem com essa declaração. Pelo contrário, seu choro se tornou ainda mais amargo, ainda mais denso e ele sabe muito bem o porquê.

 

*

 

Das outras vezes, tudo o que Rose Maria precisava era que seu alvo chegasse ao prazer para que, de forma tranquila ela o enchesse do líquido mortal, contudo, algo muito estranho aconteceu dessa vez. O desgraçado o qual a possuí tem pegada e não só isso, ele a fez chegar ao clímax antes dele. Fazia algum tempo que ela não se sentia tão mulher e também tão exausta. Uma máquina humana é isso que ele é.

 

— E aí, gostou? — ele a perguntou.

 

Rose Maria não muito certa do que estava fazendo rolou para o lado direito da cama ainda ofegante. Ela olhou para sua bolsa em cima do criado mudo e sentiu que precisava terminar o que fora fazer ali, exatamente na casa do traidor. O sexo foi tão bom que valia a pena um segundo tempo, a máscara e o Cianeto poderiam muito bem esperar.

 

— Você foi ótimo, meu amor. — levantou-se. — ainda não acabou. Vou ao banheiro.

 

— Não demore muito.

 

O jovem rapaz, ainda desfrutando o melhor que essa idade pode proporcionar a aguarda deitado ainda ereto. De repente seus olhos focaram a linda bolsa de couro preto. A curiosidade o faz levantar e conferir o que uma mulher de meia-idade carrega dentro dela.

 

— Que merda é essa? — pegou a máscara de borboleta. — que mulher doida.

 

Mexendo um pouco mais ele encontrou a seringa, cheia do veneno. Nesse momento ouviu-se o barulho da descarga. Rose Maria o surpreendeu.

 

— O que você está fazendo?

 

 Rafael girou nos calcanhares. Na mão esquerda a máscara e na direita a seringa.

 

— Diz você o que significa isso.

 

Rose Maria não viu outra saída a não ser montar uma cena e tentar engana-lo.

 

— Você me pegou. Confesso que preciso me tratar. Sou uma viciada em sexo e não só isso, gosto de fantasias e...

 

— Olha só, vamos parar com essa palhaçada. Sei muito bem o que é isso aqui. Cianeto. Você ia me matar com essa coisa sua vagabunda.

 

— Não, claro que não.

 

— Se der mais um passo, vou arrebentar sua cara. Fique onde está.

 

— Por favor. Acredite em mim, isso aí faz parte das minhas loucuras sexuais...

 

Rafael deixou a máscara e a seringa em cima da bolsa e partiu pra cima de Rose Maria. Ele não poderia deixá-la sair dali livre.

 

— Prometo não contar para ninguém sobre o que rolou aqui hoje, nem mesmo para sua esposa...

 

— Não toque no nome da minha mulher sua bandida. — a atacou com fúria.

 

*

 

Enquanto emprestava seus ouvidos ao que Rafael tinha a dizer, Fausto Maia analisava cada gesto e também o tom de voz imposto do jovem que possuía um curativo grande no lado esquerdo da cabeça. A seu lado, Abílio Fontana tinha diante de si alguns documentos e fotos.

 

— Então ela te acertou com uma garrafa de cerveja. — Maia entrelaçou os dedos.

 

— Sim! Confesso que eu a agredi, mas numa distração minha ela me atingiu na cabeça e apaguei. Quando acordei ela já havia fugido.

 

— E você acha que conseguiria identificá-la, tipo, fotos ou vídeos? — Fontana retirou de um dos envelopes algumas dezenas de fotos. — dê uma olhada nessas aqui.

 

— Cara! Isso vai ser moleza. Aquela vaca tinha uma enorme cicatriz de queimadura no rosto.

 

— Beleza! Então, não tenha pressa. — falou Fausto.

 

Rafael foi passando foto por foto até parar numa e apontar com seu indicador.

 

— É essa.

 

Abílio pegou a foto e depois a passou para o delegado.

 

— Essa mesma, tem certeza? — Abílio guardou o restante dos documentos.

 

— Tenho!

 

Lá estava ela, Rose Maria, com seu olhar penetrante e um leve ar de indiferença na face. E como não poderia faltar: a cicatriz no rosto.

 

— É uma coroa bonita, não acha, Fontana? — indagou Maia.

 

— Tem razão. Farei um levantamento rápido. O senhor está liberado, Rafael e como eu havia prometido, sua esposa não ficará sabendo de nada. Certo?

 

— Valeu, eu agradeço aos senhores. — levantou-se.

 

Assim que o jovem deixou a sala, Fausto esfregou o rosto.

 

— Pois é, pelo visto ele prefere pegar as coroas e quase é morto por causa disso.

 

— Sorte a dele e nossa também. O problema é que, a essa altura ela já deve estar longe.

 

— Sinto que ela ainda está em Paraíso Novo. Acelere o processo e vamos deixar nossos homens em alerta, fechar a cidade se for preciso.

 

Fausto ainda falava quando Fontana puxou do arquivo uma pasta onde casos que não foram cem por cento solucionados são armazenados. Nele continham além de um curto depoimento, havia também uma foto e o que seria o endereço de Rose Maria.

 

— Ora, ora, veja só, delegado. Rose Maria Silva. — lhe mostrou a foto. — são bem parecidas, não acha?

 

— Melhor ainda, Fontana, posso afirmar ser a mesma.

 

*

 

A mala foi aberta às pressas e as roupas jogadas de qualquer maneira dentro dela. Rose Maria Sabe que encontrará dificuldade para fecha-la, mas quem se importa? Tudo o que ela mais quer e dar o fora daquela casa o mais rápido possível. No armário ela pegou cerca de dois mil reais e lamentou por não ter conseguido juntar mais. Com essa quantia ela mal conseguirá chegar em BH, mas fazer o quê? A melhor opção é pegar uma carona na estrada com algum caminhoneiro e sumir do mapa pelo menos até a poeira abaixar.

 

*

 

Ao voltar para sala segurando uma generosa caneca de café, Fausto Maia voltou sua atenção para o documento deixado em sua mesa, outrora esquecido no armário. Inúmeras são as ocorrências, digamos que, a cada um minuto alguém infringe a lei fazendo com que o trabalho da polícia se torne ainda mais difícil. Mais verdade seja dita; por mais que os boletins de ocorrência estejam sufocando as gavetas, nenhum jamais deixará de ser pelo menos analisado. O caso de Rose Maria Silva é um bom exemplo. Na época, por falta de provas ele foi deixado a parte, mas não arquivado. Maia sentou-se e beliscando o café releu todo o conteúdo do documento, porém com mais calma agora e descobriu que, por falta de atenção eles deixaram a solta um monstro.

 

— Só pode ser sacanagem. — tirou o telefone do gancho. — Fontana, é o seguinte, essa tal de Rose Maria Silva precisa ser tirada de circulação, essa mulher é extremamente perigosa. Acabe com a festa dela. Copiado?

 

*

 

Abílio desceu do veículo e andou a passos largos calçada afora até o endereço. Ciente de que teria que haver apoio de outros agentes, Fontana tocou duas vezes a campainha olhando para os dois sentidos da rua. Sem obter resposta ele decidiu invadir a casa mesmo sem um mandato. O muro não é tão alto então, qual seria a dificuldade? Inúmeras. Não pela falta do documento em si, mas sim pelos olhares curiosos dos vizinhos. Apesar de ser uma rua não muito movimentada, a chance de haver alguém olhando é enorme. Quando ele já havia decidido chamar um chaveiro, es que surge uma mulher segurando uma vassoura e sacolas de lixo.

 

— Olá, a senhora mora por aqui?

 

— Sim, senhor.

 

Abílio lhe mostrou o distintivo.

 

— Minha nossa senhora. Moço, eu não fiz nada...

 

— Fique calma, senhora. Estou procurando por Rose Maria Silva a conhece?

 

A mulher apertou os lábios.

 

— Acho que já a vi algumas vezes. O rosto dela é marcado...

 

— Vou lhe mostrar uma foto.

 

Cada minuto era precioso e Abílio tinha que dar por encerrada aquela conversa.

 

— Dê uma olhada. — entregou o celular na mão da mulher.

 

— Vish! É ela mesmo. Ela quase não sai de casa e quando sai, fica dias fora e por falar nisso, tem alguns minutos que ela saiu.

 

Mais que merda! Pensou Fontana.

 

— Reparou se ela tinha bolsa ou mala, se pegou táxi ou chamou Uber?

 

— Acho que foi Uber. O carro manobrou e foi nessa direção.

 

A miserável fugiu.

 

Abílio mal agradeceu pela informação. Ele disparou rua a cima já ligando para Fausto.

 

— Ela está fugindo. Envie um alerta para a rodoviária de Paraíso Novo e também para o aeroporto. — abriu a porta do carro.

 

— Farei um comunicado para a polícia rodoviária. Essa mulher não pode desaparecer.

 

— Pode deixar comigo. — acelerou.

 

*

 

A mala pesada faz com que seu corpo envergue-se lhe causando dor e desconforto em sua lombar. A vontade que dar é de parar e descansar por alguns minutos, mas Rose Maria sabe muito bem que, cada segundo é preciso para alguém em fuga. O lugar onde ela está ainda lhe oferece perigo, há casas e comércio por ali e é bem provável a existência de câmeras de segurança. Aeroporto e rodoviária encontram-se fora de cogitação, sua única chance de se safar é seguir pedindo carona. Assim que seus ouvidos captaram a aproximação do ronco de um motor, imediatamente ela ergueu seu braço. A caminhonete branca freou bruscamente. O vidro abaixou revelando o rosto desconfiado de seu condutor.

 

— Está indo para onde, senhora?

 

— Fronteira.

 

— Sério? Coloca sua mala aí atrás. Eu não estava indo pra lá, mas posso te deixar bem perto.

 

— Lhe agradeço.


terça-feira, 4 de julho de 2023

Máscara da Morte | Capítulo 5

 


Zélia despertou muito antes do horário habitual. Abílio roncava feito uma serra elétrica a deixando irritada às sete e quarenta da manhã. No início do casamento ela até que tolerava seus ruídos e chegava a tirar sarro deles, mas com o passar do tempo e também com o aumento das discussões, os roncos e flatulências se tornaram como que heresias no relacionamento. Lógico que não é só isso que vem tirando sua paz, essas pequenas coisas podem e devem ser resolvidas a base de uma boa taça de vinho e sim, uma conversa bastante amistosa. A grande questão é que, Zélia Fontana já suportou coisas demais, cedeu demais, engoliu sapos e pererecas demais, Abílio a fez extrapolar seus limites e agora...

 

Como uma boa dona de casa e esposa leal, ela faz das tripas coração para manter tudo na mais perfeita ordem, como, por exemplo, preparar o café da manhã. Abílio acordou logo em seguida, louco para esvaziar sua bexiga e quem sabe com muita sorte saciar seu desejo de sexo matinal.

 

— Bom dia, querida. Você já estava dormindo quando cheguei.

 

— Pois é, comecei a ler e... — cruzou os braços aguardando a água ferver.

 

Fontana se aproximou a tocando nas partes íntimas. Zélia tentou agir naturalmente, sem esboçar nenhuma reação que desce sinal verde a investida do marido. Abílio por sua vez, vendo o comportamento indiferente da esposa, a abraçou a fazendo sentir todo o  calor circular pelo corpo. A água entrou em estado de ebulição copiando o clima entre o casal.

 

— Acho que o café pode esperar. — ele desligou o fogo. — que tal voltarmos para a cama?

 

— Não vai chegar atrasado no trabalho?

 

Abílio despia sua mulher com habilidade e rapidez. Zélia ainda se encontrava relutante, mas isso de forma alguma fez com que o policial desanimasse.

 

— Posso inventar uma desculpa. — a beijou no busto.

 

Fontana estava a ponto de possuí-la ali mesmo na cozinha com toda sua virilidade enrijecida, porém, uma fala de Zélia o fez parar.

 

— E porque não inventou uma desculpa quando estávamos de férias? — se cobriu.

 

Abílio se afastou olhando para ela em silêncio. Nocaute! A melhor coisa a ser feita nessas horas é evitar o confronto se retirando do campo de batalha.

 

*

 

Fátima enviou as imagens da câmera de segurança como havia prometido e como prêmio ganhou um novo encontro com o investigador. Por que esperar até o fim de semana se eles podem facilmente encurtar essa espera? Se esforçando ao máximo para se concentrar no trabalho, Abílio não tira os olhos do monitor um segundo sequer, até mesmo para pegar a caneca de café ao lado ele faz uso de seu olhar periférico. Zélia conseguiu destruí-lo. A passagem do tempo não tem feito bem para o casamento deles. O café já havia esfriado na caneca quando finalmente ele viu algo que arrancou sua esposa de seus pensamentos. Fontana pausou o vídeo e deu um zoom. Um sujeito, bastante parecido com a última vítima, abandona sua mesa para fazer companhia a uma mulher com uma cicatriz no rosto.

 

— Seria você a minha assassina? — coçou o queixo.

 

Abílio imprimiu algumas imagens, principalmente do rosto da mulher misteriosa e se orgulhou disso. Ainda vislumbrado com o seu trabalho, Fausto Maia o surpreendeu tocando-lhe nos ombros por trás.

 

— Desculpa se te assustei. O que é isso, a nossa assassina?

 

— Tudo leva a crer que sim.

 

Maia pegou algumas das impressões e analisou.

 

— Agora que temos nossa suspeita, vou atrás do Cianeto e aí...

 

— De volta às férias. — Fausto estalou as falanges.

 

*

 

Cicatrizes são mais que apenas marcas de um fatídico acontecimento. Elas são um registro e lembrete de que você precisa fazer algo para compensa-las e isso Rose Maria Silva tem feito. Ela se transformou num ser cruel, o passaporte dos traidores de suas esposas direto para o inferno. Traidores não merecem piedade e nem compaixão. Enquanto vida ela tiver esses desgraçados não terão vida fácil.

 

Rose Maria deixou a caneca de chá em cima da cadeira na varanda e foi buscar o telefone no quarto. Voltando para a área externa da casa ela pode conferir algumas notícias no Twitter dando de frente com os casos os quais ela está envolvida até o pescoço. A prisão da assassina do Cianeto é uma questão de tempo, segundo a polícia. Todo criminoso sabe que um dia a sua casa irá ruir, um dia irão bater na sua porta e lhe confrontar com os fatos. E aí? O que fazer diante de tudo isso? Rose Maria sentiu tudo rodar ao seu redor a obrigando a se sentar. A partir de agora é preciso ser um pouco mais cautelosa se ainda deseja seguir punindo os desleais.

 

*

 

Abílio desligou o motor do carro e depois olhou para as coxas de Fátima. Ela por sua vez se manteve em silêncio.

 

— Devo lembrar que sua ajuda fez com que minha investigação desce um salto. Muito obrigado.

 

— Fico feliz em saber que pude contribuir de alguma forma. — ela olhou ao redor. — eu nunca estive aqui, que lugar é esse?

 

— Aqui é o lugar onde nossos antepassados tiveram a inspiração ao dar o nome para a cidade.

 

— Paraíso Novo. — declarou Fátima encantada com a paisagem. — é lindo, uma pena que poucos saibam disso.

 

— Uma pena mesmo. E sabe porque eu lhe trouxe aqui? Você e o lugar combina perfeitamente.

 

A atendente ruborizou na mesma hora.

 

— Meu Deus do céu, jura?

 

— É sério! Olha só quanto verde, olha o número de árvores, pássaros, só falta uma coisa.

 

Fátima começou a transpirar.

 

— Faltam as flores, por isso eu lhe trouxe aqui.

 

Eles ficaram um certo tempo em silêncio. Abílio Fontana não tinha a menor ideia do que falar, muito menos Fátima, porém foi ela quem deu o primeiro passo. O beijo era para ser somente um selinho, mas o detetive queria muito mais do que apenas um aperitivo. Eles se beijaram para valer.

 

— Nossa! — ela disse. — preciso voltar.

 

— Quer que eu te deixe aonde?

 

— Ah! Pode ser no bar mesmo.

 

— Seu expediente já não havia terminado?

 

— Sim, mas acabei de lembrar que deixei meu uniforme sujo lá.

 

— Certo! Mas, eu acho que vou querer mais um beijo desse.

 

— Aí, meu Deus.

 

*

 

Fontana ficou na vontade, ele bem que gostaria de mais um beijo antes que ela desembarcasse, mas Fátima evitou contato o prometendo que o recompensaria mais tarde. Abílio achou melhor não forçar a barra.

 

— Te ligo mais tarde?

 

— Sim! — ela respondeu.

 

O detetive aguardou que Fátima entrasse no bar e só depois deu a partida. Pelo visto não é a primeira vez que ele faz isso e m será a última. Abílio Fontana consegue se envolver com amantes sem deixar que o coração se iluda, ele jamais se apaixonou por nenhuma delas. Fátima infelizmente será mais uma que entrará para sua coleção.

 

Certa ocasião, quando estava a frente de um caso onde foi preciso marcar presença na casa de uma testemunha por longos quinze dias, Abílio deixou-se envolver pela mulher ameaçada ao ponto de quase engravida-la. Ninguém, além dos dois, ficaram sabendo disso, nem mesmo Fausto que, sempre se mantinha por perto desconfiou. Assim que Fontana conseguiu prender o bandido a mulher pode deixar a cidade. Ela se apaixonou por ele, mas ele não, não mesmo.

 

*

 

Carlos e Hortência Fontana moram juntos fora de Paraíso Novo. Decidiram seguir suas vidas sozinhos independentes dos pais numa cidade considerada a maior metrópole do país. Sempre foram bons filhos, obedientes e principalmente, nunca e em tempo algum meteram o bedelho no relacionamento dos pais. Quando atingiram a idade adulta, em comum acordo, decidiram deixar a barra da saia da mãe e do pai para seguirem seus caminhos. Hoje eles são profissionais de respeito e graças a Deus muito bem remunerados por isso.

 

— O que acha de chegarmos lá de surpresa. — propôs Carlos parando o carro na vaga exclusiva para funcionários.

 

— Seria até legal, mas eu acredito que não é uma boa hora. — Hortência recolheu os pertences no banco de trás. — papai e mamãe não estão vivendo uma fase legal.

 

— Verdade. Melhor deixar que se resolvam primeiro.

 

— Quando terminarmos aqui faremos uma chamada de vídeo para os dois, vai ser boa uma reunião em família, tem muito tempo que não fazemos isso, não é? — Hortência abriu a porta.

 

— Legal. Gostei da ideia.

 

*

 

Isso aconteceu faz algum tempo e para falar a verdade, Rose Maria não faz questão alguma de saber com exatidão quando ocorreu. Doeu muito. Ela sofreu demais, tanto por dentro como por fora. Paulo Augusto a humilhou ao ponto dela ficar dias sem dormir e sem comer direito.

 

Rose Maria assistia ao seu programa semanal predileto na TV quando ele chegou embriagado, destilando seu veneno pelos cantos da boca. Paulo Augusto havia passado o dia inteiro fora de casa e quando voltou, trouxe com ele o ódio e a vontade de destruir o coração de quem não merecia.

 

— E aí, piranha, acabou com a minha cerveja? — perguntou com voz pastosa.

 

— Você sabe muito bem que eu não bebo. — seguiu com os olhos na programação.

 

— Eu comprei um engradado no início da semana e agora não há uma lata sequer na geladeira. Você bebeu todas.

 

— Paulo, por favor, será que você pode me deixar em paz pelo menos hoje?

 

O covarde fechou os punhos e sem pensar nas consequências partiu para cima da própria esposa deferindo-lhe socos e pontapés em sequência. Rose Maria tentava desesperadamente se desvencilhar dos golpes pedindo por ajuda. Um dos murros a acertou em cheio na têmpora a deixando fora do ar sabe-se lá por quanto tempo. Porém, ele a despertou com algo que a deixaria marcada pelo resto da vida.

 

— Seu maldito, você vai pagar caro por isso. — gritou sentindo e ouvindo o pedaço de seu rosto fritando no ferro de passar.

 

O riso de Paulo enquanto ela tremia de dor e raiva só ajudou a alimentar o que já pulsava dentro dela. Nada como uma boa e velha vingança, ele não perdia por esperar. Finalmente, após anos de humilhação e agressões, Rose Maria Silva abriu a boca e não foi para chorar ou questionar a atitude do marido.

 

— Eu vou te matar.

 

Paulo Augusto colocou a mão atrás da orelha desdenhando.

 

— Como é que é? Eu não ouvi direito.

 

— Eu vou te matar. Pode não ser hoje ou amanhã, mas, cedo ou tarde eu vou te mandar pro inferno. — falou bem devagar, remoendo cada palavra.

 

O ferro ainda fritando o pedaço de carne foi deixado no chão. Paulo Augusto não dormiu em casa naquela noite. Rose Maria permaneceu sentada no sofá se nutrindo de cada sentimento ruim que lhe era acometida. Ela até pensou em procurar um hospital, mas decidiu se tratar em casa mesmo. Ligou para uma farmácia e enquanto aguardava a chegada dos medicamentos ela se propôs a chorar.

 

*

 

Fátima bem que gostaria de parar e recuperar o fôlego, mas o desejo de se entregar é maior que ela. Abílio consegue sentir na pele todo o poder e sedução da mulher sentada em seu colo. O lugar é apertado e a todo instante a buzina do carro é acionada tirando deliciosas gargalhadas da mulher.

 

— Está vendo? Esse é o mal de ser grandona. — falou se ajeitando.

 

— Não vejo mal nenhum, fartura nunca é demais. — apertou suas nádegas. — e aí, o que achou do velhinho aqui?

 

— Ah! Eu nunca duvidei do seu potencial. — voltou a ocupar o banco do carona.

 

— Para onde quer ir agora?

 

— Pode me deixar lá no condomínio.

 

Em silêncio, o investigador subiu o zíper e apertou o cinto. Feito isso ele olhou nos olhos dela e a surpreendeu com uma pergunta.

 

— Seu marido já desconfiou de algo?

 

Fátima se sentiu num beco sem saída e mesmo assim ela ainda tentou escapar do confronto.

 

— Meu marido, que marido?

 

— Por favor, não tente me enganar, tá na cara que você é casada, sou policial esqueceu?

 

— Andou investigando minha vida? — cruzou os braços visivelmente aborrecida.

 

— Não foi preciso.

 

— Como assim? — Fátima estava ofegante.

 

— Você não mora naquele condomínio, na verdade, você não quer que eu saiba onde você mora de fato.

 

— Meu Deus! — riu de nervoso.

 

— Já que estamos tendo essa conversa vou lhe confessar algo. Eu também sou casado. E agora, o que você me diz?

 

— Não sei o que dizer. Estamos cometendo um erro gravíssimo. O certo era pararmos aqui e fingir que isso nunca aconteceu.

 

— É isso mesmo o que quer? — Abílio segurou em suas mãos.

 

Fátima não o respondeu. A paixão a pegou e agora ela não consegue mais pensar em outra coisa. Seu relacionamento com o marido é algo complicado, do tipo que existe tudo ali menos amor e cumplicidade.

 

— Tudo bem. Vou levá-la para casa. Ou melhor, na porta do condomínio. — girou a chave.