terça-feira, 22 de junho de 2021

Laços e Saudades





Tânia já havia esquecido como era horrível estar em um sepultamento. O último foi o de sua avó materna. Mas agora Tânia se vê diante do caixão lacrado de seu marido. Felipe falecera de maneira estúpida. Estava trabalhando quando um carro desgovernado pôs fim a sua vida deixando viúva uma mulher linda com todo um futuro pela frente. Felipe se foi e Tânia sente que lhe arrancaram um pedaço. Ela o amava. Agora ali, diante do caixão, ela vê sua vida inteira sendo velada também.

Os pais de Felipe, dona Magdalena e seu Cardoso, choram copiosamente. Felipe ainda tem um irmão, Flávio que preferiu não vir. O sofrimento é generalizado. A cada minuto alguém vem a lhe prestar condolências. Agora chegou a vez de Cardoso, pai do finado.

- Quer água? – Tânia não responde, apenas chora. – Você precisa se hidratar minha filha.

- Obrigada seu Cardoso, estou bem.

Chegou o momento. O pior de todos. A hora de deixar o corpo do amado na terra para apodrecer junto com ela. O caixão é levado por amigos e conhecidos. Tânia vem logo atrás sendo amparada por amigos. O percurso é curto, mas para Tânia durou uma eternidade. A cova rasa já aberta a deixa ainda mais sem chão. Sepultando Felipe, quando Tânia imaginaria que um dia assistiria um homem bruto com um par de sandálias gastas jogando ferozes pás de terra em cima de seu marido. O dia é cinzento, nada convidativo para apodrecer. Ele se foi. Nunca mais sentirei seu cheiro. As noites frias se tornarão ociosas, chatas.

O céu nublado dá lugar a um tom negro chuvoso. Logo Felipe que gostava de sentir cada pingo de chuva em seu rosto. Os carros saem da calçada do cemitério. Tânia está no da família de seu falecido marido. Cardoso dirige enquanto a olha pelo espelho interno. Seria Deus justo com ela? Cardoso sempre foi um sujeito religioso, criou os dois filhos nos princípios bíblicos. O certo é certo e o errado para ele não tinha vez. Magdalena, uma mãe dedicada, atenciosa. Sempre gostou do modo como Cardoso educou os meninos. Felipe e Flávio nunca deram desgosto, nunca se envolveram em confusão. Foram garotos trabalhadores. Tudo que tinham conquistaram trabalhando duro.

O carro para na porta do prédio e antes de descer, Tânia é confortada por seus sogros.

- Minha filha, agora que meu filho foi embora não precisamos romper os laços, vamos continuar nos vendo. – diz dona Magdalena.

- Claro que sim dona Magdalena. – limpa as lágrimas. – quem sabe nesse final de semana?

- Isso mesmo, faremos um almoço e você passará o dia lá conosco. – reforça Cardoso. – Tânia olha para o homem de bigode grisalho com ternura. Felipe puxou muito do pai.

- Combinado então. – diz ela descendo do veículo.


***


As nuvens que cobriam o céu desapareceram ao anoitecer. Tânia observa o movimento da cidade da sacada da varanda. Os olhos inchados e vermelhos mostram que a dor ainda é a sua única companheira. Um casal passa e ela pensa, poderia ser Felipe e eu indo ao shopping. Olhando com mais atenção Tânia percebe uma criança no colo da mulher e novamente as lágrimas brotam sem ela sentir. Felipe se foi e não deixou sua semente. Era seu sonho ser pai. A dor de ter evitado a gravidez a corrói por dentro. O casal Tânia e Felipe eram meio loucos, transavam onde desse na telha. Certa vez, eles fizeram amor no banheiro da casa de um amigo dele durante uma festa. Tânia estava irresistível com aquele vestido preto. Felipe a seguiu e entrou junto com ela no banheiro que foi destinado às mulheres.

- Não acredito que você vai querer alguma coisa aqui! – disse enquanto Felipe a beijava.

- Fale baixo.

O romantismo também fazia parte da rotina do casal. Quase que todos os dias Tânia recebia flores, bombons e outros mimos de Felipe. Ela se sentia adorada, amada, feliz. Agora o que sobrou de tudo isso é saudade. Tânia volta de seu devaneio com o toque do celular. Sua melhor amiga ligou querendo saber como ela está. Tudo muito chato, pesado. Se Tânia pudesse sumir, com certeza, não pensaria duas vezes.

Antes de se deitar ela ainda se confere no espelho. O sofrimento não foi capaz de lhe tirar a beleza. Linda mulher com os cabelos cortados na altura dos ombros. Corpo nem tão magro e nem tão cheio, Tânia é a típica mulher Brasileira com seu quadril largo. Não faz sentido se preparar para dormir, Felipe não está lá a sua espera para mais uma noite de amor. O banho é curto, sem frescura. Fã de banho quente, a água fria quem sabe refresque suas ideias, quem sabe a faz esquecer que ela agora é mais uma viúva assim como sua mãe foi, sua tia e entre tantas outras.


***


Como foi combinado, Tânia foi para a casa dos sogros. Infelizmente a casa ainda carrega aquele clima pesado do luto. Flávio visivelmente abalado mal fala. Magdalena envolvida com os preparativos do almoço anda de um lado para outro. Somente Cardoso faz sala para a nora.

- Tem certeza de que não quer passar uns dias aqui conosco minha filha!

- Não seu Cardoso, preciso me acostumar a viver sem o meu marido. Ainda tenho outras coisas para resolver. – toma mais um gole do suco de laranja.

- Vai ficar naquele apartamento sozinha; tem certeza?

- Sim.

Magdalena anuncia o almoço.

Na mesa o silêncio é sepulcral. Flávio só belisca a macarronada.

- Estou sem fome. Se não se incomodam, vou pro meu quarto.

- Tudo bem meu filho. – diz Cardoso.

Flávio e Felipe eram muitos chegados. Saiam juntos para balada, jogavam videogame todo fim de semana. Eram irmãos amigos realmente. Nem o casamento rompeu os laços dos irmãos. Flávio é superamigo de Tânia e Tânia por sua vez retribui o carinho do cunhado.

- Flávio ainda está muito abalado. – comenta Tânia.

- É verdade, eles eram bastante unidos. – diz com tristeza dona Magdalena - cúmplices um do outro. – Dá um longo suspiro. – Alguém vai querer sobremesa? Fiz torta de abacaxi.

Enquanto Magdalena está na cozinha retirando a torta da geladeira, Cardoso faz algumas perguntas à nora.

- Quando vai agilizar a questão da pensão? – Tânia quase que engasga.

- Como?

- Isso, sua pensão.

- O senhor não acha que está muito cedo pra pensar nessas coisas seu Cardoso?

- Não, meu filho é morto e enterrado há uma semana; já está mais que na hora de você resolver isso.

- Sinceramente não sei aonde o senhor quer chegar com essa conversa. – se mostra irritada.

- Minha querida, eu só quero que você tenha seus direitos como viúva, só isso. – Magdalena chega com os pedaços de torta e não nota o clima pesado entre os dois.

O dia passou tranquilo e lá pelas tantas, Tânia pegou o carro e partiu para o silêncio de seu apartamento. Durante o trajeto, ela se sente mal e teve que parar o carro no acostamento. Forçou um pouco e gorfou. Com certeza a macarronada de dona Magdalena não caiu bem. Ao chegar ao apartamento, a sensação horrível de enjoo piorou e ela teve que correr. Por pouco o piso da sala não sofre com uma “tempestade”.

Já refeita, Tânia prepara um chá e pensa no que seu sogro falou, seria mesmo a hora de resolver toda situação? A saudade do marido ainda machuca e ela sequer pensou em dinheiro. Com certeza, ela não transformará o que ouviu de seu sogro em decepção. Depois do chá pronto, ela senta para assistir ao jornal mas seus pensamentos estão longe. Uma notícia importante é anunciada e ela com o olhar perdido. Suas lembranças vagueiam e as lágrimas brotam novamente. Um tédio imenso é o que ela sente. Vai até o quarto. A roupa de dormir favorece seu corpo. Ao abrir o guarda roupa, vê o álbum de fotos, estranhamente um sorriso estampou seu rosto e ela foi conferi-las.

A primeira foto é do noivo entrando na igreja com sua mãe. Como Magdalena estava bonita, nem parecia à mesma pessoa. Felipe um deus grego num meio fraque branco. Era bonito o sujeito. A outra foto mostra seu Cardoso entrando com sua mãe dona Norma. Por mais que esteja velho, Cardoso ainda traz um charme peculiar com ele. Sinceramente Tânia não sabe o que seu sogro viu em Magdalena. O passeio pelo passado recente é interrompido por outra onda de náuseas obrigando a viúva a se levantar as pressas. Antes mesmo de chegar ao banheiro, ela sujou o piso da cozinha.


***


A noite foi péssima. Tânia teve que se levantar diversas vezes para vomitar. Seu estado é dos piores. Ela se levanta cansada, sem fome, tonta, passando muito mal. Pega o celular em cima da cômoda e liga para Michele.

- Oi Mi, vem pra cá, por favor.

- O que tá rolando amiga?

- Sei lá, passei mal a noite toda, acordei mal também, vem logo.

- Tudo bem.

Enquanto aguarda a chegada da amiga desde os tempos de infância, Tânia permanece deitada. Várias coisas passam em sua cabeça. Doente e viúva, só faltava essa agora. Vinte minutos se passaram e lá está Michele, uma negra belíssima verificando se Tânia está com febre.

- Sem febre, estranho. – sacode o termômetro. – será que foi a comida da sua sogra mesmo?

- Só pode, não comi nada depois e nem antes. – diz enquanto Michele se olha no espelho.

- E aí amiga, como vão as coisas?

- Ah, levando, fazer o que, a vida quis assim. – Michele senta na cama e cruza as pernas.

- É, a vida quis assim, e ela continua, viúvo é quem morre.

- Só você mesmo Mi, meu marido ainda nem esfriou debaixo da terra e você já querendo que eu arrume um namorado.

- Não precisa ser hoje não queridinha. – tal comentário faz Tânia rir e voltar a sentir fortes náuseas.


***


Flávio e seu pai conversam sentados na varanda. A amizade entre os dois sempre foi sadia. Felipe e Flávio foram criados da mesma forma, Cardoso fazia questão disso. Felipe era mais velho que Flávio um ano, isso facilitou a educação. Hoje, Flávio é um profissional na área da informática. Ganha muito dinheiro como Web design; é um dos mais solicitados para esse tipo de serviço.

- Duas semanas. – diz Flávio olhando para o nada.

- Pois é. – Cardoso se ajeita na cadeira. – tudo é muito vazio sem ele.

- É, e ele nem deixou um netinho pra você.

Cardoso escutou o comentário do filho caçula e não falou nada. Claro que ele gostaria e muito de segurar seu neto e poder passear com ele. A morte prematura do filho acabou com seus planos. Seus e de sua esposa. Flávio, por ter sido criado nos princípios bíblicos, olha para o céu azul com poucas nuvens e tenta de alguma forma achar seu irmão entre elas.

- Felipe com certeza agora mora lá, não é seu Cardoso?

- Podes crer que sim meu filho.

As lembranças machucam, mas o ser humano tem uma atração fantástica pelo sofrimento. Cardoso lembra o dia em que salvou Felipe da morte certa. Em 1998, o ainda adolescente Felipe atravessava distraído uma rua quando seu pai o puxou pela mochila deixando o carro passar em alta velocidade. O abraço em seu pai e agora salvador foi longo e muito representativo. Mas, tempos depois seu pai não estava lá para alertá-lo. A notícia de que um carro desgovernado atropelara um jovem que andava na calçada com seus fones de ouvido, pegou o velho motorista particular de surpresa. Ele dirigia o carro da patroa quando seu celular tocou.

- Oi querida. – do outro lado da linha Magdalena chorava soluçando. – O que foi querida?

- Felipe, o nosso Felipe, morreu, Mário, morreu, me ajude Mário! – Cardoso quase bateu com o carro. Sua patroa por não saber do que se tratava o telefonema ainda lhe passou um sermão que ele não ouviu. Meu filho morreu, como?

No IML, Tânia estava inconsolável. Gritava a plenos pulmões que queria seu marido. Cardoso a abraçou chorando também. Foi um dia que ficou na história dos Cardosos. O caixão lacrado mostrou o estado em que o jovial estudante de administração ficou. Que dia! Dia para se esquecido por todos, mas as lembranças teimam em ferir o coração de cada um que conviveu com Felipe.


***


Michele continua com seu papinho de sempre dizendo que pegou geral na roda de samba do final de semana e que um dia largará essa vida. Tânia escuta a tudo calada, tomando água de coco. O dia é bonito, poucas nuvens e uma brisa corta o lugar onde estão balançando seus cabelos. Um rapaz passa pelas duas sentadas na mesa e anda em direção ao balcão. De lá, ele fica a olhar para Tânia que está irresistível com seu shortinho jeans e blusa curta. Tânia ainda não percebeu que está sendo paquerada, mas Michele sim.

- Tem um gato te comendo com os olhos.

- Para com isso, Mi.

- É verdade, lá no balcão, dá uma sacada só. – Tânia disfarçadamente olha e o rapaz com porte de atleta a olha.

- Mi, ele é mais novo que eu, e além do mais, não quero homem tão cedo em minha vida, eu amava o Felipe e ainda o amo. – Michele olha para o rapaz que muda o foco e passa a olhar para a negra.

- Não estou falando para você arrumar um novo relacionamento agora minha querida, eu só estou querendo dizer que você agora está livre, bonita, gostosa, os homens te devoram com os olhos iguais aquele. – fala sem apontar. – viva, minha querida, viva.

Enquanto está sentada uma nova onda de náuseas a ataca. Sem ao menos disfarçar, Tânia se levanta rapidamente, passa pelo seu paquerador e entra no banheiro. Michele fica e cruza as pernas; sorri dando mole para o suposto atleta. Na volta, já aliviada, Tânia resolve ir embora, mas antes ouve uma recomendação da amiga.

- Vá ao médico, tá bom?

- Farei isso.


***


Normalmente é a noite que a saudade costuma apertar e às vezes machucar. Tânia está sem sono e lê deitada em sua cama, cama onde rolava as mais incríveis loucuras de amor com Felipe. Dias antes de morrer, o estudante de administração surpreendeu sua esposa espalhando pétalas de rosas e segurando taças e uma garrafa de vinho fino.

- Hoje teremos uma noite só de loucuras, meu amor.

- Uau, o que temos pra hoje hein?

Realmente foi uma noite louca. Os dois se amaram como se fosse a última vez. E foi. Ambos não imaginavam que seria o fim. Felipe morreu dois dias depois tragicamente. Agora, sozinha lendo o livro preferido do marido, Tânia viaja na leitura e por uns breves instantes ela esquece a dor, a saudade, os enjoos. Decidida a levantar cedo para se consultar, ela deixa o livro marcado de lado e dorme.


***


- Vou passar alguns exames. – diz o doutor serenamente. – Isso pode ser emocional. A meu ver você está perfeita.

- Pois é. – se entristece. – Perdi meu marido tem pouco tempo.

- Sinto muito.

- Relaxa. Foi um golpe muito forte, ainda estou me adaptando. – consegue sorrir.

- Certo, muito bem, faça os exames e volte aqui, combinado?

- Bom dia, doutor.

- Passar bem, Tânia.

Magdalena corta uma fatia de bolo e a coloca no prato da nora que pensa em dispensar. Apesar de estar em jejum, Tânia não tem fome e apenas olha a guloseima no prato. Em outras épocas aquele seria o primeiro dos muitos pedaços.

- Seu Cardoso onde está?

- Foi ao mercado aproveitar a promoção. Vai ficar pro almoço?

- Não sei, ainda tenho que resolver outras coisas.

- Quer ver uma coisa?

- Que coisa? – Magdalena faz sinal que ela aguarde e volta com um álbum de fotos antigas e o coloca nas mãos da nora. Tânia, ao abri-lo, sorri ao ver Felipe ainda criança andando de bicicleta na praça.

- Ele me pedia para não lhe mostrar essas fotos, mas elas são tão fofas, não são?

- Umas gracinhas, olha o Flávio, não mudou nada. – ela passa.

- Olha o Mário, como era bonito. – comenta dona Magdalena cheia de saudade.

- É mesmo, hoje em dia ele é melhor.

- É mesmo, eu sinceramente me sinto tão feia. – mexe nos cabelos pintados.

- Que isso, a senhora ainda dá um caldo. – ambas caem na gargalhada. O papo continua, Magdalena relembra de fatos recentes de quando Cardoso esfriou na cama com ela. Do quanto ela se sentia culpada por causa disso. Tânia acompanha atentamente o desabafo da sogra. Cardoso chega com as compras e abre um sorriso de orelha a orelha ao ver a nora.

- Tânia, minha filha, que bom que está aqui, veio almoçar conosco?

- Na verdade... Não... É que...

- Sem essa, comprei peixe e sei que você gosta não é?

- Acertou.


***


Com o envelope dos exames na mão, Tânia entra no consultório e aguarda a análise do doutor.

- Nada, viu, você está perfeita – Tânia solta a respiração aliviada. – e vai precisar de mais saúde agora.

- E por quê?

- Parabéns mamãe. – a voz grave do médico ecoa várias vezes. Tânia roda junto com a pequena sala. A palavra mamãe nunca soou tão mal. – Tânia, você está bem?

- Mamãe, eu?

- Sim, pelo que vejo você tem algumas semanas de gravidez, parabéns, quer avisar ao esposo?

- Meu esposo morreu. – o médico murcha.

- Me desculpe eu havia esquecido. – nesse momento Tânia chora. O médico meio sem jeito a consola.

O trajeto do consultório até sua casa nunca demorou tanto. Tânia tenta segurar o pranto, mas não consegue. As pessoas a olham espantadas. O que essa moça tem pra chorar tanto assim? A mão na barriga e o andar lento, quase se arrastando, a deixam ainda mais com aspecto de doente. Grávida! Um filho, outra geração, um bebê. Finalmente ela chega em casa e desaba. Terei um bebê! Ela pega o celular e liga para sua amiga. O que fazer, viúva? e com uma criança. O que será dessa criança, meu Deus? Tirá-la jamais. Michele atende.

- Oi amiga, adivinha com quem estou? Lembra daquele rapaz de outro dia...

- Estou grávida! – silêncio do outro lado da linha. Em menos de vinte minutos Michele já está dentro da casa da amiga.

- Calma, vou fazer um chá.

- Que chá o que, isso pode matar meu bebê. Eu quero é sumir.

- Não fale isso, não é o fim do mundo.

- Meu Deus do céu, porque logo comigo, já não bastou levar o meu marido não.

- Olha o que você está falando. – Michele se irrita. – Deus é justo.

- Agora não sei de mais nada.

- Quem vai gostar são seus sogros; imagine só, eles avós. – Tânia volta a chorar.


***


Madrugada. Casa vazia. Somente os pingos da torneira mal fechada batendo na louça são ouvidos. Tânia se revira na cama angustiada. Levanta e abre a janela. O mundo dorme lá fora. Seminua ela não se importa com quem por um acaso a esteja espiando. De repente a vontade de fumar volta com força total. Logo ela que o abandonou faz meses. Olha o relógio.

- 02h16min, droga. – pega o celular e hesitante ela disca de cabeça um número. Chama e chama, ninguém atende. Disca novamente e no terceiro toque alguém atende.

- Oi!

- Preciso de você.

- Agora? Não dá pra esperar até amanhecer não, minha mulher quase deu um troço quando o telefone tocou.

- Depois do que eu te falar, você vai querer vir aqui.

- Diz logo.

- Estou grávida. – um silêncio incômodo a deixa nervosa. – Você ainda está ai ou desmaiou?

- Por que você fez isso comigo?

- O que? Eu quem pergunto, eu avisei, pedi pra que você usasse camisinha, mas você disse que não que...

- Tudo bem, tudo bem, a culpa foi minha, agora é o seguinte, não se preocupe, vou assumir tudo, passe aqui em casa, vou lhe dar algo para você iniciar o pré-natal e outras coisas que você precisar.

- O nosso acordo ainda está valendo?

- Sim, pelo menos por enquanto nada de encontros tudo bem?

- Tudo bem.

- E outra coisa, evite me ligar durante a madrugada, ela pode suspeitar, entendeu?

- Entendi.


***


Alguns dias depois Tânia dá a notícia de sua gravidez a família de seu finado marido. Festa, muita festa. Magdalena não para de alisar a barriga que ainda não existe de sua nora. Cardoso abre uma bebida e bebe junto com Flávio.

- Meu sobrinho, meu sobrinho, pai.

- Meu neto. – Tânia sorri junto ao ver a felicidade da família. Com certeza tanto Magdalena como Cardoso queriam dar um abraço no papai do ano Felipe.

- Já escolhi os nomes. – diz Tânia em voz alta.

- Mais já. – fala Flávio.

- Sim, se for menina se chamará Maria Eduarda e se for menino Felipe Júnior. – em uníssono todos concordam. A confraternização é intensa, todos querem ficar perto da mulher que trará ao mundo a continuação do filho e irmão querido. A festa é regada à comida e bebida. Tânia se alegra junto, sorri, fala e fala muito. No final do dia, quando o frenesi já não é os da primeira hora, Cardoso olha a nora quieta no canto mexendo na unha e se aproxima.

- Tudo bem?

- Cardoso... Tudo bem.

- Isso é pra você. – ele entrega um envelope. – Faça bom uso.

- Obrigada. – Tânia o abraça. Um abraço fraterno. Cardoso apenas se deixa abraçar.

- Magdalena e Flávio não sabem, mas eu sei, Felipe contou apenas pra mim, ele jamais poderia engravidar uma mulher, não é verdade?

- Sim.

- Então finja que é uma mulher digna e jamais fale que essa criança não é do Felipe, tudo bem.

- Tudo bem.

- Quer que eu te leve em casa?

- Pode ser.

Tânia se despede da família enquanto Cardoso espera no carro. Durante o percurso eles não se falam. O silêncio é quebrado na porta da casa.

- Alguma pergunta? – pergunta Cardoso.

- Por enquanto não.

- Ótimo, vá em paz.

Cardoso dá a partida no carro quando Tânia ainda caminhava para o portão. Com o envelope na mão ela olha ao redor e resolve abri-lo ali mesmo. Dentro há um cartão de crédito e um bilhete.

- Oi, como vão as coisas? Saiba que você é uma mulher maravilhosa, esse cartão vai garantir o pré-natal do bebê e todas as outras despesas. Fique firme. E como falei, evite me ligar, vamos manter isso até o final de nossas vidas. Te amo. – Tânia sorri e entra.


Fim




 

quarta-feira, 9 de junho de 2021

Linha Policial — Parte três (Série completa)

 


LINHA POLICIAL

Parte três

Completo

 

Linha Policial 3

 

Dentro do depósito, exatamente no interior da van, Romão não faz ideia do que acontece lá fora, tudo o que consegue ouvir são os disparos. Nada passa pela sua cabeça a não ser o fato de conseguir sair vivo dessa, mais nada. Olhando para fora ele sente vontade de abandonar o barco. Agora é cada um por si, o caldo entornou realmente. Assim que ele vê um de seus soldados ser baleado no peito e depois na cabeça ao lado do portão, Félix teve a confirmação de que já não há motivo para ficar ali. Enquanto isso, cabo Almeida e Araújo seguem inutilizados acompanhando tudo com olhos esperançosos. Essa é a força que os move.

Lá fora o segundo grupo entrou pelo fundos. Dez polícias portando fuzis, capacete e coletes. Um marginal tentou impedi-los de seguir com a invasão atirando da parte alta do depósito onde eram colocadas madeiras. Essa é a vantagem de ser preparado. Tudo que um policial quer é saber sua localização e isso ele consegue quando o oponente atira. Imediatamente o vagabundo foi abatido por vários.

- Agente Alves, estamos dentro e aguardando ordens. – falou o líder do segundo grupo pelo rádio.

- Positivo zero um, siga avante.

Damião Ramos trocou de arma. Vestiu o colete e se apressou caminhando pela lateral do depósito. A montanha gigante adora esse tipo de operação, o faz sentir vivo, útil. Apesar dos quase cento e cinquenta quilos, até que ele se movimenta bem e rápido. Elemento surpresa, é o que ele gosta de ser. Assim que alcançou a metade do caminho ele sentiu a necessidade de pular o muro e lamentou o fato de estar a cima do peso.

- Merda!

Não vendo alternativa, o chefe de polícia de Luzia andou em direção aos fundos segurando firma sua calibre doze. Ao dar dois passos, um bandido saltou de dentro para fora, fugindo do confronto.

- Parado! – gritou Ramos.

O sujeito também é alto e durante a fuga ele deixou sua arma cair. Temendo ir para cadeia ele partiu pra cima do agente com socos e chutes. Fazia tempo que Damião não participava de uma boa briga. Ele adorou isso. Dois monstros trocando violentos golpes no meio do mato. Ramos foi atingido no nariz e boca, mas não caiu. Enfurecido, o bandido tentou finalizar a luta aplicando um gancho que passou no vazio. Com isso o sujeito baixou a guarda. Um oportunidade de ouro para o policial que desferiu um cruzado de direita que fez a mandíbula de seu oponente deslocar. O homem já estava fora de combate, porém o chefe o finalizou de vez o chutando no rosto. Pronto, apagado.

 

*

 

Outra onda de vontade de colocar tudo pra fora, mas Janaína segurou as pontas. O mais incrível nessa história toda é que o mal estar e até mesmo o enjôo vem diminuindo gradativamente. Muito estranho. Ela segue acompanhando os acontecimentos na operação de resgate aos agentes sequestrados que a todo instante as emissoras locais interrompem a programação para exibir as informações. Quanto a gravidez, bom, ela gostaria muito que não fosse verdade. Ser mãe agora não seria uma boa ideia. Janaína sabe que com passar do tempo as coisas irão mudar e que com certeza ela criaria um laço com a criança, porém, até isso acontecer, muitas outras coisas desagradáveis estariam na frente. E se de fato ela tiver grávida, qual sexo a jornalista gostaria que fosse? Um garoto, arteiro, parecido com o pai? Lógico que não. Lopes sempre teve preferência por uma menina. Segundo os mais velhos, menina é mais calma que menino. Se isso é verdade ela não sabe, visto que ela mesma foi uma garota hiper, mega agitada na infância. Todos esses pensamentos se foram quando mais uma vez o plantão de notícias entrou no ar ao vivo.

- A polícia acabou de prender mais um do bando de Romão Félix. Podemos ver nas imagens o chefe de polícia, Damião Ramos conduzindo um bandido.

Janaína sentiu os músculos se retesarem.

- E agora podemos ouvir mais disparos vindos lá de dentro do depósito. – a voz do repórter é alta e trêmula. – e acaba de chegar a informação de que os policiais entraram e estão efetuando mais prisões.

Paulo está lá dentro, pensou ela. Não há como ligar para ele agora. Janaína se pegou apertando os braços de sua cadeira tamanho a sua apreensão. Só lhe resta somente torcer para que seu namorado volte para casa hoje.

 

*

 

Paulo e mais dois PMs buscam pelos amigos dentro daquela imensidão. Romão ainda os mantém em cativeiro dentro da van. Aos poucos o lugar vai sendo tomado por força policial. Damião voltou para o combate disposto a por um ponto final nessa história. A troca de tiros cessou, pelo menos por enquanto. O chefe se juntou ao grupo de Alves.

- Algum progresso?

- Lá trás o pau tá comendo, Félix não vai conseguir resistir por muito tempo. – Paulo falou abaixado.

- Recebi informação de que lá trás há vários veículos parados, acho que estão planejando uma fuga. O apoio aéreo já está chegando.

- Almeida e Araújo estão lá, eles correm perigo.

Enquanto conversavam, o helicóptero despontou  a uma altura abaixo do norma. Isso deu um novo gás na tropa e deixou os marginais apavorados. Romão, ao ver a aeronave, ligou o motor da van. Xingando absurdos ele se virou para os agentes.

- Vamos dar uma voltinha.

Araújo olhou para Almeida. Ambos trabalham juntos a muito tempo. Tempo o suficiente para saber o que o outro está pensando apenas com o olhar. Romão saia com o carro quando um ficou de costas para o outro. Almeida foi afrouxando às cordas que apertam os pulsos de seu soldado. A ferida arde, mas Araújo não se importa. Almeida está nervoso, apreensivo, quer livra-lo logo antes que Félix saia de vez os levando sabe-se lá para onde. O sangue atrapalha, faz com que seus dedos fiquem escorregadios. Pela primeira vez em dias, Araújo sente o sangue circular pelos seus pulso e isso o deixou aliviado. Ele fez uma pouco mais de força e pronto, estava livre das cordas. Existe uma guerra lá fora e ele é um soldado. Lugar de soldado é na guerra.

A van aos poucos vai se movimentando, meio sem rumo, isso por causa de seu condutor que se encontra com os nervos a flor da pele e nem percebe que seus dois prisioneiros já se encontram em liberdade. Pelo alto o helicóptero da polícia deu um rasante assustando até mesmo seus companheiros. Paulo é chamado no rádio.

- Alves na escuta!

- Identificamos uma van, prata, em movimento, senhor. Ela se encontra lado esquerdo, temos que agir rápido.

- Copiado.

Damião ao olhar para Paulo entendeu o recado. Seus homens estão nessa van e Romão pensa em levá-los. A ação pede urgência. Os familiares dos agentes não podem mais sofrer com essa situação. Paulo reorganizou o grupo. Instruções foram passadas. Todos entenderam. Vamos em frente.

 

O plano de Araújo é usar às cordas para enforcar o inimigo. Almeida ainda segue tentando desatar os nós das cordas que prendem seus pés. Eles voltam a se comunicar com os olhos. Cabo Almeida apertou os lábios. Esse ato pode ser arriscado, mas, é preciso fazer alguma coisa. Araújo agora está livre. Sente algum dor, mas consegue entrar na briga. Romão olhou no espelho interno e viu o policial enrolando a corda nas mãos.

- Mais que merda é essa?

Girou o pescoço ao mesmo tempo em que o agente o atacou. A van ficou desgovernada. Outro rasante do helicóptero. A corda grossa fez com que a pele do pescoço do bandido ficasse enrugada.

- Morre, desgraçado! – gritou Araújo.

Os olhos de Félix estão totalmente abertos, parecendo duas lamparinas acesas. Ele arca, tosse e se debate. Ele sente que seu fim está próximo, por isso resolveu apelar. Romão não está disposto a morrer sozinho. Seu pé esmagou o acelerador. O veículo atravessou todo o depósito passando por cima de madeiras, resto de pedras e até mesmo comparsas. Almeida conseguiu se livrar das amarras e em auxílio ao soldado começou a socar o rosto já avermelhado do marginal. Nesse curto espaço a van alcançou uma velocidade acima dos setenta por hora indo de encontro ao murro. Félix, sendo asfixiado, ainda tentou pegar sua arma, mas sem sucesso. Lá fora um PMs foi arremessado pela van em alta velocidade contra um monte de tijolos ficando gravemente ferido. Fim da linha. Almeida, Araújo e Romão Félix, ambos gritam de desespero ao verem que irão colidir fortemente. A pancada foi tão violenta, que a van atravessou o muro, arrastou outras viaturas e se chocou contra uma árvore.

 

*

 

Janaína está boquiaberta. Tudo foi transmitido ao vivo. Imagens impressionantes. Um dos moradores flagrou o exato instante que o corpo do motorista da van foi lançado pelo para-brisas se arrebentando contra o tronco da árvore. Como fogo em palheiro, o vídeo já circula por toda Luzia. A namorada de Paulo Alves também assistiu o chefe Damião auxiliando na retirada dos feridos da van junto com ele, seu quase pai de seu filho. A emissora de maior audiência conseguiu uma entrevista exclusiva com Alves perto das ambulâncias.

- Detetive, nos dê seu parecer quanto essa operação, por favor.

- A operação foi sucesso. – Paulo parece nervoso.

- Alguns disseram que a operação foi desastrosa. O que o senhor tem a dizer sobre isso?

- O que eu tenho a dizer é que hoje, duas famílias irão dormir em paz, sabendo que o pai, o filho, foi tirado das mãos de um maníaco. Romão Félix havia comprado três toneladas de cocaína pura para vender para os nossos jovens e graças a essa operação desastrosa, essa droga estará fora de circulação.

Janaína vibrou sozinha.

- Dá-lhe, amor!

Assim que se afastou dos jornalistas, Paulo foi abordado por Ramos.

- Araújo sofreu ferimentos leves e algumas escoriações, terá que ficar em observação. – colocou às mãos na cintura.

- E Almeida?

- Quebrou uma perna e alguns dentes, luchou o ombro também. Vai ficar bem. – fez uma pausa. – e você, está bem?

- Sim, estou sim. E o Romão? – Olhou para a árvore com a mancha do sangue.

- Já era. – expirou. – a pancada foi forte na cabeça, houve perda de massa e...

- CPF cancelado. – sorriso enviesado.

- É, isso mesmo. Menos um vagabundo fora de circulação. Luzia é a minha cidade, a nossa cidade. Fizemos um juramento, Alves. Servir e proteger. Eu levo esse juramento muito a sério e agradeço a Deus por colocar homens como você que honram a farda que vestem, o distintivo que carregam e a bandeira do nosso estado. Parabéns, detetive Paulo Alves, fez um ótimo trabalho. – estendeu a mão.

Foi mais que um aperto de mão. Segurar a enorme mão do chefe Ramos foi estabelecer uma aliança contra o crime organizado. Luzia tem heróis, protetores, soldados prontos para defender sua terra. Paulo Alves e Damião Ramos. Eles podem não conseguir mudar o mundo, mas, se esse mundo for o lugar onde vivem, há, isso eles tentarão fazer. Paulo foi para casa feliz ao quadrado. Ele estava louco para ver sua mulher, sua pretinha – como costuma chamá-la. Janaína pode estar grávida de um filho ou filha dele. Paulo está radiante. O policial não gosta de deixar o carro na calçada, sempre preferiu guardá-lo na garagem, mas hoje o dia é especial.

Janaína estava na sala segurando um teste de gravidez cabisbaixa. Ela olhou para o namorado com olhos úmidos.

- O que houve, mamãe do ano? – a beijou na testa.

- Veja você mesmo. – o entregou.

Paulo ficou olhando o objeto como se tivesse hipnotizado.

- Acho que o título de mamãe do ano terá que ficar para uma próxima vez.

- É. – deixou o teste sobre a mesa. – negativo. Mas, o que houve com você na verdade? – se sentou no braço do sofá.

- Intoxicação alimentar, eu acho. Horrível, não gosto nem de lembrar.

- Foi ao médico? – cruzou os braços.

- Não. Nada que um bom chá não resolva.

Alves abaixou a cabeça. Janaína se levantou e o abraçou.

- Termos um bebê, em breve, seja paciência. – o beijou na boca.

- Te amo, pretinha.

- Também te amo, herói de Luzia. Agora me conte tudo o que aconteceu na operação.

- Há, foi complicado, mas no final deu tudo certo. – se levantou. – vamos pro quarto, te conto com mais detalhes lá.

- Ah, sim, conheço esse truque. – riu. FIM.

 

 

LINHA POLICIAL 3

Paulo Alves

 

 

O sonho de toda mulher é a maternidade. De repente esse sonho pode não estar em primeiro plano, mas de qualquer forma ele sempre se faz presente na vida de todo ser do sexo feminino. No caso de Janaína, a maternidade se encontra fora de seus projetos – pelo menos por enquanto. Só em pensar que há uma grande possibilidade dela daqui há nove meses ter nem seus braços um bebê exigindo dela todo o seu tempo, a jornalista entra em crise.

   - Não, isso não pode ser verdade, é apenas um mal estar passageiro. – falou sentada em sua mesa na redação.

   Quem ficará feliz em saber será Paulo que já declarou que gostaria de construir uma família com ela. Casar, morar juntos e dividir às contas, até aí tudo bem, mas ser mãe agora já é demais.

    - Como pude dar um mole desse? – sacudiu a cabeça.

    Um simples e barato teste de farmácia acabaria com essa dúvida, porém o que a maltrata é justamente o processo de sair e ir até a drogaria. Serão momentos torturantes, angustiantes esses poucos metros até lá. Como trabalhar com a cabeça girando a mil por hora? Seria viável ligar para Paulo e deixá-lo a par disso? Depois de refletir um pouco Janaína achou melhor não atrapalha-lo em sua missão. Ela até tentou voltar a trabalhar digitando sua matéria, mas a ansiedade foi mais forte e ela correu para a farmácia.

 

*

 

Paulo Alves voltou para o ponto de observação, um prédio modesto que fica em frente ao prédio onde Romão mora. Tudo o que ele conseguiu obter de informação até agora foi saber que Félix adora farra com prostitutas e que diariamente ele pede comida pelo aplicativo. Alves sabe que para prender um sujeito feito Félix é preciso mais do que ficar ali, pendurado na janela observando suas movimentações. É preciso descer e agir. As vezes a vontade é de ir até lá, tocar o interfone e algema-lo, mas isso não seria inteligente, esse ato faria com que o efeito surpresa fosse por água a baixo. Paulo Alves tem um lema que ele faz questão de lembrar quando está a ponto de cometer uma idiotice. Quem troca tiro com vagabundo é policial burro. Por essas e outras razões que ele permanece ali, sentado, aguardando uma oportunidade para dar o bote certo.

     Quem espera sempre alcança, ou morre esperando, e às vezes consegue êxito. Por volta das dez da manhã Romão Félix recebeu em seu apartamento um sujeito esquisito, alto e sem muito jeito para andar. Não se passaram cinco minutos e logo ele deixou o prédio. O policial deixou seu equipamento e desceu de dois em dois degraus chegando na calçada ainda pouco movimentada devido ao horário. Paulo estava quase correndo quando faltava poucos metros até o esquisito.

     - Amigão! – disse Alves.

     O cara era ainda mais estranho de perto.

     - Diga?

     - Sou sobrinho do Romão.

     O homem apertou os olhos.

     - Acabei de sair de lá e ele estava sozinho. – retrucou.

     - Eu estava no banheiro. – falou rapidamente. – eu não pude deixar de ouvir e, é isso mesmo?

     O rapaz deu dois passos para trás.

     - Isso o que?

     - É que eu estou afim de fazer parte, só que meu tio prefere que eu vá estudar na exterior e você sabe como é.

     O bandido mediu Paulo com os olhos da cabeça aos pés.

     - Verdade, seu tio tem razão, você não tem perfil de traficante.

     Alves se sentiu um jogador que acabará de fazer um golaço.

     - Poxa, você poderia convencê-lo a me aceitar. – fez cara e voz de pena.

     - Moleque, são duas toneladas de cocaína pura, um plano brutal, seu tio não precisa de você, ele precisa de caras como eu e outros. Vá estudar, vai ser bom pra você. Agora me deixe em paz. Fui!

     Outro golaço e dessa vez olímpico. Assim que o marginal se distanciou Alves balbuciou.

     - Te deixar em paz? Claro que vou, lá na prisão.

 

*

 

Paulo Alves é a pura personalização do que chamamos de empolgação. Fazia tempo que ele não se sentia assim. Ele passou por sua mesa e foi direto para a sala de Damião Ramos que no momento se despedia de dois representantes do governador. Ao vê-lo, Ramos quase pediu pelo amor de Deus que ele se aproximasse em forma de gestos. Alves entendeu a urgência e colou nele.

    - E aí, novidades? – falou bem alto.

    - Sim. Precisamos agir imediatamente, senhor.

    - Ótimo. – se voltou para os dois homens de terno e gravata. – bom, senhores, diga ao governador que o DP segue firme no combate ao crime. Agora, se me dão licença, preciso trabalhar. – empurrou Alves para dentro da sala praticamente.

    Lá dentro, Ramos deixou seus ombros caírem.

    - O que o governador queria?

    - O mesmo de sempre. – apertou os olhos com os dedos. – ele tem a pretensão da reeleição, por isso cobra da polícia mais eficácia. Entendeu?

    - Saquei.

   Damião bocejou e em seguida alongou sua lombar.

    - O que temos do Romão Félix?

    - Ele comprou duas toneladas de cocaína pura. Resta saber quando e onde ele receberá a mercadoria.

    - Putz! Duas toneladas. Ele quer mesmo ser o rei de Luzia. – andou até onde fica a cafeteira. – o que vai fazer agora?

    - Continuarei observando, ou de repente um trabalho disfarçado resolveria parte da operação.

    Damião serviu dois copinhos de café fresco.

    - Lhe aconselho a continuar observando. Se infiltrar seria perda de tempo e perigoso. Vá devagar. Félix é um indivíduo de altíssima periculosidade.

    - Sim, senhor.

 

*

 

Janaína deixou a farmácia segurando a sacolinha contendo o teste. Ela sentiu uma enorme vontade de chorar ou talvez de sair correndo pela rua até ficar exausta. O pior que ela gosta de criança, sempre que pode ela liga para sua irmã que mora fora da cidade para falar com suas sobrinhas. Mas agora, ser mãe é outro papo. Ela não se ver mãe, trocando frauda, dando de mamar. Não, isso não. Um bebê a essa altura faria com que ela voltasse a estaca zero e isso seria o fim para ela. Outra vez o enjôo. A mistura de vários cheiros a fez parar e respirar fundo desacelerando os passos.

- Moça, a senhora está bem? – perguntou um vendedor ambulante.

- Só um pouco enjoada, mas já já passa. Obrigado.

Quando conseguiu chegar na redação sem vomitar em ninguém, Janaína quase comemorou. Ela estava apertada para ir ao banheiro. Antes de ocupar o sanitário a namorada de Alves ainda pensou em colher sua urina e acabar de vez com o sofrimento, mas se acovardou. Xixi feito e descarga dada. Melhor voltar ao trabalho.

 

*

 

Quando um trabalho é bem executado, não há como sair errado. Alves ouviu isso de seu finado pai e guardou para si. No trabalho da polícia às coisas precisam dar certo e todo bom policial conta ainda com a ajuda da sorte. De repente para muitos, ficar ali horas, dias e talvez meses seja perda de tempo, mas desde o início, Paulo Alves sabia que ele seria bem sucedido nessa missão. Entre um bocejo e outro ele abriu os olhos no momento exato onde Romão Félix deixava o prédio. Quarenta e sete anos, mas nem parece, pensou o detetive o observando pelo binóculo. Na calçada o bandido terminou seu cigarro e o apagou na sola de seu sapato. Um carro com os vidros pretos para e sem ver de quem se tratava ele entrou e ocupou o banco do passageiro. Paulo memorizou a placa, mas é bem provável que seja uma dessas placas clonadas. Não faz mal. Ver é melhor do que não ver, assim declarou Damião Ramos um dia. O veículo manobrou de maneira precisa e seguiu sentido saída para o porto de Luzia.

- Duas toneladas de cocaína pura. – pensou alto. – será hoje o dia da entrega.

Chegou o momento de Alves reunir a tropa e dar o bote. Ele desceu as escadas falando ao celular com um de seus homens.

- Preciso que convoque o restante do pessoal, Romão Félix vai receber a carga no porto de Luzia hoje, temos que dar o flagrante.

- Como sabe que será hoje, e onde? Não podemos deslocar o pessoal para algo incerto, investigador.

- Vai por mim, quando foi que te coloquei numa furada, Gilmar?

- Tá beleza, nos encontramos lá.

Paulo entrou em seu Sandero grafite e partiu para o local.

 

*

 

Porto de Luzia. O sol já se escondia deixando no céu tons de laranja mais belos que se pode imaginar. Entre contêineres, resto de embarcações, latões empilhados e maquinário enferrujado, Romão Félix e todo o seu exército reunido discutindo suas funções dentro da organização. Encostado, pé apoiado e jogando fumaça no ar, o líder aguarda com paciência a conclusão da conversa de seus asseclas. A conclusão não vem, por isso Félix foi obrigado a intervir.

- Vocês estão discutindo por coisas idiotas. Ninguém aqui terá um posto maior que do outro. Todos vocês serão meus soldados, farão o que eu mandar, entenderam?

Todos assentiram.

- Quem não se sentir a vontade e quiser dar o fora, a hora é agora. – apontou a saída.

Não houve manifestação.

- Ótimo, então se preparem para trabalhar. – andou em direção a balsa.

Pois é, a última palavra é sempre a do patrão, o cara que resolve as coisas. Todos ali tem a plena convicção de que estão a serviço do sujeito mais perigoso de Luzia e que também não podem jamais falhar com ele. Romão Félix intimida bastante. Apenas um olhar dele já é o suficiente para que todos entendam o recado. Na cintura uma arma e na mente inúmeras ideias de como se tornar o maior vendedor de entorpecentes que Luzia já teve. Parado, olhando para o mar calmo ele avistou as luzes de uma embarcação de longe chegando e deduziu que fosse sua encomenda.

- Atenção, rapaziada, o pó está vindo ali, todos em suas posições.

Félix e seu grupo não estão sozinhos naquele porto. Espalhados e posicionados estrategicamente os agentes aguardam ordens de Paulo Alves para efetuarem suas prisões. Paciência é virtude e sem ela, tudo o que foi planejado pode se desmoronar em questão de segundos e o é pior, mortes desnecessárias podem ocorrer. Por isso Alves espera agachado em outra parte do porto entre latões e outras sucatas.

O barco ancorou. Tudo foi muito rápido. Romão friamente cumprimentou o sujeito que em seguida deu a ordem para que seus homens descarregassem a cocaína. O pessoal de Félix também ajudou no trabalho braçal levando os tabletes para dentro de um caminhão. Tudo aconteceu num espaço de dez minutos cravados. Feito isso, os chefes se cumprimentaram novamente.

- Confira o dinheiro. – disse o colombiano.

- Não precisa. – retrucou Félix. – está tudo aí.

- Tem certeza?

- Meu acordo foi com o seu chefe. Agora, se você acha viável perder tempo contando toda a grana. – tirou do bolso o telefone. – ligue pra ele.

Eles ficaram se encarando por um tempo e depois disso a expressão fechada do colombiano foi desfeita por um largo sorriso.

- Tudo bem. – fechou a maleta. – vamos embora pessoal.

Romão Félix jogou o cigarro no mar e estalou as falanges. Um carro parou ao lado do caminhão carregado com drogas. Félix entrou no veículo e deu novas ordens.

- Vou na frente. Levem o caminhão para o lugar combinado.

- Sim, senhor.

Gilmar ao ver Romão indo embora passou um rádio para Alves.

- Félix está indo embora, vamos pegá-lo?

- Não, ainda não, vamos abordar o caminhão.

O caminhão e mais um carro de passeio estavam deixando o porto quando viaturas atravessaram o caminho e agentes com seus fuzis apontados fizeram com que os motoristas pisassem abruptamente nos freios.

- Sem resistência, vocês estão cercados. Desçam agora. – gritou um PM.

- Merda! – vociferou o motorista do caminhão esmurrando o volante.

A bandidagem se encontra em desvantagem, Paulo Alves convocou praticamente um exército e qualquer meliante que ousasse esboçar o mínimo de reação seria fuzilado. Eles foram colocados algemados nas viaturas enquanto que Alves e Gilmar conferiam o baú.

- Que prejuízo, hein? – Zombou Gilmar.

- Histórico. – colocou às mãos na cintura. – vamos nessa.

 

*

 

Receber aplausos é bom, mas, receber aplausos de Damião Ramos e todo o departamento é algo inexplicável. Foi essa a sensação sentida por Paulo Alves e seu grupo ao chegarem da operação. Alves achou tudo aquilo o máximo, porém o que ele queria de verdade era estar com sua pretinha, comemorando na cama.

- Duas toneladas de cocaína fora de circulação, isso indica, menos jovens se drogando nas ruas. – Ramos apertou o ombro de Paulo enquanto falava. – parabéns rapazes. – próximo passo é a prisão de Félix.

- Obrigado a todos. – Alves estava ruborizado.

 

Longe dali Alguém não estava nada feliz. Pelo contrário, Romão tingia a parede com seu sangue a cada murro desferido. Ele não sabia se chorava ou se grunhia de ódio.

- Maldição, maldição, vão pagar caro. – voltou a socar a parede.

Félix correu até o banheiro, abriu a torneira e deixou que a água fria lavasse o sangue do punho direito enquanto ele pensava num jeito de ter de volta o seu carregamento.

- Vamos seu idiota, pense, pense.

O sangue foi estancado e a mão enfaixada por bandagens. Espumando de raiva Romão ainda parou na frente da TV e assistiu a coletiva dada por Alves na chegada ao DP.

- Então foi você seu filho da mãe.

Ao som da voz do investigador respondendo as perguntas Romão fez uma ligação rápida para outro comparsa.

- Me encontre no café em dez minutos, leve sua arma.

 

 

Linha Policial

Paulo Alves

 

Alves tinha em mente de que quando chegasse em sua casa encontraria sua amada feliz, bem disposta, mas tudo que encontrou foi uma Janaína prostrada, derramada na cama ainda com as roupas que usou durante o dia inteiro. Depois de passar pela cozinha e se surpreender com o fogão fechado, o policial caminhou até o quarto ainda tentando entender o que havia acontecido.

- Minha pretinha, o que aconteceu nessa casa?

Janaína estava encolhida no canto da cama com dois travesseiros em cima da cabeça.

- Ei, você está bem? – acariciou suas nádegas.

- Me deixa, Paulo. – a voz saiu abafada.

- Eita, calma, podemos conversar? Tire isso da cara. – puxou um dos travesseiros.

- Eu quero ficar quietinha, só isso, será que eu posso? – tomou o travesseiro do namorado.

Quase perdendo a paciência, Paulo se levantou. Colocou uma mão na cintura e a outra ele coçou a nuca.

- Está de TPM?

Como uma menina carente ela tirou os travesseiros da cabeça e olhou para o detetive com olhos úmidos.

- Quem dera.

A mente de Paulo Alves entrou em colapso.

- Me explica isso, meu anjo. – voltou a se sentar.

Relutante, a jornalista se encostou na cabeceira da cama e encolheu às pernas deixando os joelhos perto do rosto. Ela permaneceu um certo tempo em silêncio fazendo o cérebro do namorado entrar em ebulição. Depois de fungar o nariz algumas vezes, Janaína resolveu abrir a boca. Mas não saiu nada.

- Sim?

Não está sendo fácil começar esse papo, por isso ela decidiu ir direto ao ponto.

- Acho que estou grávida.

A voz de Janaína ainda pairava dentro do quarto quando Alves sentiu seu espírito sair. Só Janaína pode contemplar a expressão no rosto do futuro pai de seu filho ou filha. Isso não ajudou nem um pouco, pelo contrário.

- Paulo. – ela o cutucou. – meu Deus, você está em choque?

- Sério? – ele abriu os braços e perguntou bem alto assustando-a.

- Sim, passei mal o dia todo, vomitei algumas vezes e cheguei a comprar o teste de farmácia, mas...

- E? – Paulo estava embasbacado.

- Não tive coragem de fazer. Joguei fora. – abaixou a cabeça.

A adrenalina diminuiu e Paulo voltou para a razão.

- Não entendo porque você está tão triste. Você sabe que esse é o meu sonho, e quero acreditar que seja o seu também.

Quando Janaína achou que às coisas poderiam piorar, elas se tornaram insustentáveis.

- Paulinho, meu amor. Claro que é o meu sonho também, mas eu ainda não realizei os que vinham antes desse, entende? Eu preciso crescer na profissão, estudar mais e ser mãe agora atrapalharia.

Depois de expirar, Alves se levantou.

- Sim. E se você estiver grávida, o que pensa em fazer? – cruzou os braços.

Janaína não teve coragem de continuar olhando para Paulo. Realmente ela não cogita essa possibilidade. Ele aguardava a resposta enquanto ela olhava para a janela aberta revelando uma noite clara.

- Eu não estou, grávida, é apenas um mal estar passageiro.

- Certo. – pegou o celular no bolso. – vou pedir um teste.

Janaína engoliu seco.

- Aproveita e peça uma pizza de frango.

Mesmo irritado o policial não deixou escapar a piada.

- Viu, você já está até com desejo.

- Hum, sério?

- Sim, você não gosta de pizza de frango.

 

*

 

Uma van atravessou os portões de uma antiga fábrica de tijolos que há anos se encontra desativada. No aguardo do veículo, Romão e mais meia dúzia de homens armados. Assim que parou, a porta foi aberta e um sujeito alto segurando uma metralhadora desceu acenando para o chefe. Félix se aproximou e olhou para o interior da van onde haviam três homens com as mãos amarradas para trás, olhos vendados e amordaçados.

- Deu trabalho, mas conseguimos. – disse o motorista.

Os homens também usavam fardas da polícia e estavam agitados. Romão socou o da ponta no rosto.

- Vamos levá-los para dentro.

Foi perigoso e ousado e por que não dizer desafiador. Sequestrar três policias. Nem quando ainda era um ladrãozinho mequetrefe ele ousou tanto. Fato é; Félix quer sua carga de volta e nada mais insano do que pedir resgate usando agentes. Os três são levados aos empurrões e murros para dentro da fábrica. Lá dentro o ar é pesado, sufocante, isso porque há muita poeira orbitando por ali. Eles passam por máquinas, empilhadeiras mal estacionadas, montes de correntes e chegam aonde seria o almoxarifado.

- Que tal um pouco de diversão, rapazes? – sugeriu Romão.

Todos os quinze bandidos se armaram com pedaços de madeiras. Sob o olhar frio do chefe, os agentes sofreram as piores torturas, um deles chegou a perder os sentidos e foi acordado com um balde de água. Félix retirou a venda de um deles, o segurou com força pelos cabelos e o forçou a olhar nos olhos.

- Sua vida agora pertence a mim. Melhor dizendo, pertence ao canalha do Paulo Alves. Se ele fizer tudo o que eu pedir você e os outros voltarão para suas famílias, mas, se por um acaso ele não fizer, vocês voltarão também, porém em pedaços.

Romão o vendou novamente e cedeu espaço para o comparsa seguir com a seção de espancamento. A pancadaria foi brutal. Gritos abafados, ossos sendo quebrados, muito sangue e gemidos de dor. Satisfeito, o líder afastou seus asseclas e sacou um aparelho celular do bolso. Félix fez um curto vídeo dos policiais esparramados no chão. Na gravação ele apenas disse que às coisas podem ficar ainda piores para os pobres homens. Antes de encerrar o vídeo ele virou a câmera para ele.

- Paulo Alves, sei que a minha cocaína está com você. Eu a quero de volta. – encerrou o vídeo.

 

*

 

Naquela mesma madrugada o vídeo viralizou e chocou ao mesmo tempo. A imagem de três agentes da polícia amarrados com marcas de agressões deixou Luzia agitada, principalmente às autoridades. O DP enlouqueceu dentro e também fora dele. A imprensa cercou às ruas em torno, todos queriam ouvir da boca do chefe Ramos qual seria a atitude da polícia. Damião não saiu de sua sala. Gravata afrouxada. Mangas da camisa dobradas até os cotovelos e muito suor escorrendo da careca. Damião Ramos assistia pela milésima vez o vídeo quando Paulo chegou.

- Mais que droga Alves, onde estava? – gritou esmurrando a mesa.

- Em casa. – gaguejou.

- Eu estou com três homens em poder de um assassino de policiais e você em casa? Já assistiu ao vídeo?

- Calma, chefe!

- Não me peça para ter calma, garoto. Eu quero que você resgate meus homens e mate o Félix agora. – berrou. – o governador já me ligou trocentas vezes.

Alguém precisa pensar em meio a essa crise, mas antes disso, alguém precisa controlar Damião Ramos também. Nos corredores é possível ouvir seus berros e socos na mesa. Paulo Alves se sente um menino indefeso diante de um gigante furioso. De repente, Alves se vê com a responsabilidade de ter que dá uma resposta a altura ao bandido. Querendo ou não a sociedade cobra isso dele. Enquanto seu chefe assistia ao vídeo mais uma vez, ele foi até a janela. Abaixando a persiana ele pode ver a movimentação dos jornalistas lá fora em meio a madrugada. Luzia precisa de um herói. Paulo deixou a sala de Ramos e correu até a frente do DP.  Como moscas os profissionais de imprensa rodearam o detetive.

- Como representante da lei dessa cidade, declaro que daremos uma resposta. Os familiares dos agentes podem ficar tranquilos. A polícia de Luzia resgatará nossos companheiros.

Feito isso, Paulo Alves voltou para o interior do departamento e correu para sua mesa. Ao passar pela sala do chefe o mesmo tentou bloquear sua passagem.

- O que pensa que está fazendo? – vociferou.

Alves engoliu o medo.

- Uns choram, outros gritam, esmurram mesa e se escondem. Eu prefiro agir. Com licença, senhor.

- Eles são meus homens e...

- São meus homens. Vou buscá-los.

Paulo Alves pegou sua arma, seu colete e a chave da viatura.

 

Linha Policial 3

 

Romão Félix acordou inspirado naquela manhã. Antes do café ele conferiu se os reféns estavam bem de uma certa forma. Lá estavam eles. Sentados no chão, mãos para trás, bem amarrados por cordas grossas e vendados. Somente um deles se mexia, os outros dois pareciam desacordados. Romão chutou a costela do que estava com as pernas esticados. O homem arfou trancando os dentes.

- Seu saco de bosta. – berrou.

- Desculpa, pensei que estivesse dormindo. Soldado Samuel.

- Você será morto, cara. – falou cabo Almeida sangrando pelo nariz.

- Duvido muito. Na verdade eu terei de volta minha encomenda que o seu chefe roubou.

- Você não conhece o Alves, a essa hora ele já deve estar em sua caça, você vai preferir morrer. – disse Araújo quase gritando.

- Deixa de história. Se a polícia de Luzia tem o seu exército, Romão Félix também tem o seu. Mais tarde vocês verão quem está na vantagem.

Sim, Romão se encontra com uma boa vantagem com relação a polícia, porém ele também sabe que sua cabeça está a prêmio. Três agentes sequestrados. É preciso ter uma mente doentia para pensar e executar tamanha loucura. Mas agora é um pouco tarde para voltar atrás. Félix entrou num jogo muito perigoso para simplesmente abandona-lo assim, sem falar de sua reputação como fora da lei. O jeito é colocar a cabeça pra pensar e seguir com o plano.

 

*

 

A cidade de Luzia acordou como aquela mãe preocupada que não viu o filho voltar da curtição. A todo momento os telejornais informam a população sobre o andamento das investigações sobre o sequestro dos três policiais. Desde as primeiras horas dessa manhã ensolarada a foto do cabo Almeida e dos soldados Araújo e Samuel estampam as telas dos televisores com repórteres fazendo coberturas ao vivo. Janaína é uma das milhares de pessoas interessadas no caso. Mesmo enfrentando alguns problemas como uma possível gravidez indesejada, ela prepara seu desjejum assistindo ao noticiário matutino.

- A polícia segue com as buscas desde a madrugada. O chefe de polícia, Damião Ramos, em sua coletiva, disse que trazer Samuel, Araújo e Almeida de volta é uma questão de honra para a corporação e que confia na liderança da operação. Como todos sabem, quem lidera a operação é o detetive Paulo Alves. Voltamos aos estúdios.

Janaína Lopes se pegou alisando a barriga ainda inexistente. Ao perceber tal ato ela o parou imediatamente. A jornalista desligou a TV e se lembrou que não havia ligado para o amor de sua vida desde quando ele saiu correndo de casa assim que soube do sequestro dos amigos. Ela fechou a garrafa térmica e pegou o celular em cima da mureta que divide a copa da cozinha.

- Oi, querido, como estão as coisas por aí?

- Complicadas, não temos pistas, estamos agindo no escuro. E você, como está, dormiu bem?

- Sim, na medida do possível.

- Eu vou resgata-los, nem que para isso eu tenha que mandar fechar Luzia inteira.

- Calma, pense. Ramos está do seu lado. Melhor. A cidade está do lado da polícia. Faça o que sempre fez. Trabalhe com inteligência.

- Obrigado, amor, eu precisava mesmo ouvir isso. Te amo.

- Também te amo.

 

*

 

Paulo voltou para o DP por volta das dez da manhã. Abatido, barba crescida e com uma leve dor de cabeça louco por um café forte. Antes de entrar ele foi abordado por jornalistas de plantão na entrada.

- Detetive Alves, uma declaração por favor.

- Sim? – Paulo controlou a vontade de bocejar.

- O nome de Romão Félix aparece na linha de investigação, o senhor pode confirmar isso?

- Por enquanto eu não confirmo nada. O que eu no momento posso afirmar é que estamos fazendo o nosso dever. E mais, quero que os familiares dos agentes se tranquilizem, eu irei busca-los.

Paulo entrou e em questão de minutos sua curta entrevista rodou a cidade. Sem paciência, ele andou até o banheiro. Urinou. Lavou as mãos e aproveitou para lavar o rosto também, tentar despertar uma pouco. Sua mente não para de girar. Não bastasse o fato de sua namorada estar suspeitando de uma gravidez – coisa que ele adoraria que se confirmasse, Paulo sabe que terá pela frente um chefe enfurecido, louco, disposto a colocar todo o seu pessoal nas ruas em prol dos companheiros sequestrados. Isso seria péssimo. O jeito é mostrar serviço. Ele saiu do banheiro. Ao ganhar o corredor ele deu de frente com Damião. Braços cruzados, pernas semiabertas, o sujeito fica ainda maior.

- Posso falar com você? – voz moderada.

Expirou Paulo.

- Sim, chefe. – deixou os ombros caírem.

- Lhe devo desculpas. Perdi o controle. Sabe como é, apesar do cargo que ocupo hoje, carrego dentro de mim o policial que um dia fui. Devo admitir, eu me vejo em você, tudo que eu tinha você tem, autocontrole, garra, polícia na veia e principalmente, sede de justiça.

- Obrigado, senhor.

- Precisamos tirar nossos homens das mãos de Félix e já me coloco a sua disposição para isso.

Alves sentiu como se uma tonelada fosse retirada de suas costas. O alívio foi tão significativo que ele não conseguiu disfarçar o sorriso.

- Vou organizar uma operação de busca. Me encontre em meia hora no estacionamento, por favor.

 

*

 

Romão assistiu a entrevista do detetive Alves e se sentiu desafiado. Afinal, que raios de bandido é esse que tem a vantagem e não sabe aproveita-la? A polícia não está levando isso a sério, só pode, pensou desligando a TV. Félix agora possui homens a seu serviço, sua fama o trouxe até aqui.

- Pense, idiota, pense! – falou saindo do quarto.

Ele convocou dois de seus asseclas e foram até onde os agentes se encontram presos.

- Patrão, o senhor tem certeza? – perguntou um sujeito alto de rosto marcado por espinhas.

- Não me questione. Pegue o da ponta.

Soldado Samuel, um jovem policial que ingressou na polícia há três anos. Apesar da pouca idade, Samuel possui família, sua esposa aguarda a segunda menina. Ele é colocado sentado de qualquer jeito numa cadeira. Vendado e amordaçado. Braços amarrados para trás do corpo. Ele já não oferece resistência, está fraco e com fome. O bandido inicia o vídeo quando Romão enterra o cano da arma na têmpora esquerda de Samuel.

- Detetive Paulo Alves infelizmente o seu ímpeto vai custar a vida do agente Samuel.

Sem cerimônia o gatilho foi puxado. O tiro a queima roupa assustou até os comparsas que tiveram que assistir a chuva de massa encefálica cobrindo a câmera do celular. Tremendo o bandido a limpou com o dedo.

- A culpa é toda sua, Alves. E digo mais, se eu não tiver as minhas duas toneladas de droga de volta, postarei outro vídeo matando o policial Araújo. Entregue meu material até às onze da manhã de amanhã no porto de Luzia. Deixe lá e vá embora.

Vídeo encerrado.

*

 

O que é o mundo informatizado. A informação chega no lar de cada um numa velocidade assustadora. Boas ou ruins, as notícias vão se acumulando nos aparelhos deixando seus usuários assoberbados. O vídeo da execução do policial Samuel rodou o país e em questão de minutos Damião Ramos se encontrava com os olhos marejados o assistindo. Alves foi chamado e obrigado a acelerar o processo do resgate. Assim que o investigador se apresentou, o telefone em cima da mesa do chefe soou o deixando ainda mais furioso.

- Chefe Ramos, pode falar, governador.

Paulo Alves estava na metade do caminho, entre o corredor e a sala fria de seu superior que gesticulou para que ele entrasse logo. Damião tentou de todas formas se manter calmo ao falar com o executivo, mas, houve momentos em que a voz grave da montanha ecoava nas paredes. A conversa durou apenas dois minutos, porém foi bastante intensa, ao final Ramos tinha a testa molhada.

- Alves, precisamos sair agora e pegar o Romão.

- Já reuni os homens, senhor, partiremos em cinco minutos.

- Que merda foi essa, meu Deus do Céu. – colocou as duas mãos na cabeça.

- Ele quer a droga. Não darei a ele. Agora virou guerra.

- Concordo com você. – abriu a gaveta e pegou uma Taurus. – simbora.

A imprensa marrom chegou primeiro na residência do soldado Samuel e presenciou momentos de desespero por parte dos parentes e principalmente da viúva grávida de sete meses. Assim como foi o vídeo da execução, a reportagem circulou Luzia causando uma comoção generalizada e aborrecendo as autoridades polícias. Janaína assistiu a cobertura e ficou envergonhada por ser jornalista e não concordar com esse tipo de sensacionalismo barato. Por outro lado, ela se sensibilizou com a esposa do agente. Grávida, sem marido, terá que se virar para cuidar das duas crianças sozinha. Janaína se colocou no lugar dela por um instante. E se eu estiver grávida?, Pensou. Outro vez ela se pegou acariciando sua barriga e mais uma vez a namorada de Paulo espantou o pensamento fechando o vídeo. A redação está movimentada e mesmo em meio ao furdunço ela correu até o banheiro e ligou para o detetive.

- Oi, Paulo. Onde você está?

- Meio ocupado, agora. Fique na linha. – houve uma pausa. Janaína supôs que chefe Damião estivesse por perto. – oi, pronto, Damião estava no estacionamento a meu lado. Estamos saindo agora para mais uma busca. Você viu o vídeo?

- Vi!

- Ele me desafiou, Janaína, ele me desafiou, dá pra acreditar?

- Você é um bom policial. Luzia está em boas mãos. Vá, faça o seu trabalho. Pegue o canalha do Félix.

- Pode deixar comigo.

Assim que guardou o celular no bolso, Paulo Alves gesticulou para sua equipe e isso incluindo seu chefe direto.

- Vamos!

 LINHA POLICIAL 3

 

Os corações batem acelerados. Para quem se encontra na linha de frente a pressão é ainda pior. Não adianta. Por mais que você já saiba que o mundo irá desmoronar em cima de sua cabeça, você jamais poderá prever de ante mão a sua reação. Paulo Alves, enquanto dirige a viatura, tendo a seu lado nada mais, nada menos que Damião Ramos, começa a sentir os efeitos dessa pressão, “ o que eu estou fazendo aqui? Sou jovem, tenho apenas 26 anos, ainda posso tentar encontrar outro caminho para a minha vida”. De repente a voz do chefe atravessou seus pensamentos como uma flecha.

- Sei o que está pensando.

- O que? – Paulo encolheu os ombros. – como assim, agora você lê pensamentos, é isso? – riu.

- Mais ou menos isso. – olhou para fora , para a paisagem passando deixando borrões. – quando eu tinha três anos de polícia, me foi dado um caso. Complicado demais. Eu não soube lidar com ele a princípio. Sem pistas. Sem nomes. Sem uma linha de investigação elaborada.

- Trocando em miúdos, o senhor não tinha nada. – acrescentou Paulo reduzindo.

- Perfeitamente. Eu não tinha nada mesmo. – abaixou a cabeça. – foi quando eu pensei em desistir. Não só do caso, mais da carreira policial.

Paulo engoliu seco.

- Naquela noite eu cheguei em casa derrotado e com uma tremenda dor de cabeça. Abracei minha mulher e minhas filhas. Falei com elas sobre o caso e da possibilidade da minha saída e... – Damião engoliu o nó formado na garganta. – foi quando a minha filha caçula falou, “ papai, eu só vou me sentir segura se o senhor estiver na polícia”

Alves socou de leve o ombro do chefe.

- Entende agora a nossa importância, filho?

- Entendo!

 

*

 

Seria mentir para si mesmo dizer que não está com medo. Romão se encontra desesperado, tentando encontrar uma saída para o circo que ele mesmo criou. Os homens na parte de baixo aguardam suas ordens, mas eles também não estão muito seguros. Félix desce do escritório olhando nos olhos de cada um de seus soldados. Um deles se aproxima.

- Romão, os caras estão com medo, querem ir embora. Fale com eles.

Romão enterrou às mãos nos bolsos da calça e caminhou entre eles.

- A polícia não vai devolver a droga. – houve murmúrios. – fiquem quietos. Ouçam. Paulo Alves não vai devolver a droga e o jeito é irmos lá e tomar das mãos dele. Vamos executar os outros dois agentes e deixar os corpos na frente do DP de Luzia. Precisamos retomar nossa vantagem. Quem está comigo?

Hesitantes, mas confiantes. Todos levantaram as armas.

- Ótimo. Todos ao trabalho, vamos.

Mais um plano suicida. Só na cabeça de alguém como Romão Félix para invadir o galpão da polícia para pegar duas toneladas de cocaína. Loucura. Mais é aquele caso. Félix faz disso o seu ovo de Colombo. Todo mundo pensa, mas não faz. Com ele às coisas são pensadas e realizadas. Ele voltou para o escritório ainda tentando montar o próprio quebra-cabeça. Seria maluquice demais? Estou surtando? É preciso colocar tantas vidas em risco? Estou mexendo num vespeiro? “ que se dane, o crime tem dessas coisas”. Chega de pensar muito. Pensar demais quase sempre é prejudicial. Hora de agir.

 

*

 

Até hoje não se sabe por que o serviço de asfaltamento não chegou aquela rua. Seus poucos moradores até já se acostumaram a penar em dias de chuva. Aquele lugar se torna intransitável. Lama, buracos e muito entulho espalhado por moradores na inútil tentativa de amenizar o caos. Em dias de sol, a cada veículo que passa é uma nuvem de poeira que sobe repousando nos móveis das casas. Para o vendedor de verduras, pedalar naquele trecho é como estar malhando numa academia. Geraldo tem evitado passar por ali, mas como é o caminho mais breve até sua casa, hoje ele resolveu seguir por ali.

- Olha a verdura fresquinha.

Um enorme portão de ferro foi aberto. Geraldo diminuiu às pedaladas e olhou. O homem que abria o portão tinha na cintura duas pistolas. O verdureiro sempre achou que aquele lugar se tratava de um depósito de material de construção, por isso nunca suspeitou de nada. Cagando nas calças, o velho Geraldo passou de cabeça baixa e assim que passou em frente ao portão, de maneira discreta ele deu outra olhada. Lá dentro outros homens armados, vários carros. O vendedor de verduras sentiu cheiro de sujeira no ar.

- Minha nossa Senhora. – pedalou forte.

 

Damião Ramos foi o primeiro a descer da viatura. Logo em seguida Paulo portando seu fuzil. As ruas daquele bairro são largas e bastante movimentas. Os transeuntes observam com curiosidade a chegada de tantos carros do DP e se espantam.

- Atenção todos os carros, vamos interromper o trânsito. – disse Alves pelo rádio.

Ramos puxou sua pistola do coldre e olhou para seu subordinado.

- Aquele prédio me chamou atenção, senhor. – justificou Alves protegendo os olhos do sol.

- Lá de cima deve haver uma ótima visão da cidade. Vamos.

A rua foi fechada. Paulo, Damião e mais cinco polícias entraram no prédio. Houve um princípio de correria, mas o chefe os impediu imediatamente.

- Ninguém corre. – gritou Ramos.

O sujeito com pinta de playboy parou no primeiro degrau da escada com às mãos para o alto.

- O que anda acontecendo aqui? Conhece Romão Félix?

- Ah?

- Por que correu? – Alves o segurou abaixando seus braços e os colocando para trás.

- Eu juro, era só para ganhar uma grana extra. – gemeu o rapaz.

- Responda a pergunta, o que anda acontecendo aqui, cadê o Romão? – Paulo o algemou.

- Eu não sei do que os senhores estão falando, eu não conheço esse cara.

Damião por fim teve a paciência esgotada.

- Nos leva até seu apartamento. – empurrou-o.

Alves tocou a campainha. Uma voz pastosa respondeu do outro lado.

- Juca?

Damião o cutucou.

- Sim, sou eu, abra.

A porta não havia sido totalmente aberta e Paulo colocou o cano do fuzil na cara do outro sujeito tatuado, só de cueca.

- Mas que merda é essa? – caiu sentado.

- Polícia de Luzia. Cadê o Romão Félix? – Damião pisou em seu tórax.

Do quarto para a sala brotaram duas meninas com idades entre quinze e dezesseis anos, seminuas.

- Mais que merda. – Paulo balbuciou. – vocês, meninas, fiquem no sofá. Há mais alguém no quarto?

Ambas disseram que sim com a cabeça.

Alves invadiu o cômodo. Havia um homem gordo bem mais velho se vestindo e com o nariz sujo de pó.

- Eu não fiz nada.

- Você está preso. Saia!

Já na rua, encostados na viatura, Ramos e Alves riem de toda situação.

- Miramos numa coisa e acertamos noutra. – falou Damião. – que faro é esse?

- A polícia precisa contar com a sorte de vez em quando, não acha?

- Um ponto de prostituição infantil, bem aqui.

O rádio chamou.

- Alves na escuta.

- Uma denuncia anônima. Suspeitos fortemente armados num depósito no canto da cidade.

- Copiado. – olhou para o chefe. – acho que encontraram o Félix. Vamos.

 

*

 

Janaína deixou o banheiro ainda se sentindo enjoada, apesar de ter acabado de vomitar. Suas pernas estão fracas e trêmulas, além de um mal estar alucinante. Será mesmo assim a vida de uma grávida? Um pequeno ser tem esse poder de destruição? Ela até cogitou a possibilidade de pedir dispensa e tirar a parte da tarde de folga, mas o trabalho na redação não cessa hora alguma e muita coisa depende dela. Lopes não se sentou, mas se jogou em sua cadeira. Tudo o que ela mais queria era sua cama, dormir, de preferência com Paulo a seu lado. Que realidade absurda. Seu namorado nesse momento se encontra na captura de um maníaco homicida e ela se consumindo com uma gravidez indesejada. Dá pra acreditar, eu grávida, pensou ajeitando o mouse e o teclado. Esse é o resultado de ser uma louca por loucuras sexuais. Paulo e ela até que se previnem. Ela não se recorda quando foi que se descuidaram. Fazer o que? Quando a cabeça não pensa o corpo padece, literalmente.

 

*

 

Araújo e cabo Almeida foram praticamente jogados dentro da van. Ambos tem os pés e mãos pés amarrados, além de estarem amordaçados. Lá dentro eles ainda sofrem com torturas e xingamentos. Pior que a tortura física é a psicológica e Romão Félix sabe como ninguém fazer isso. Por isso, ele faz questão de fazer companhia aos reféns. Agente Araújo é o que mais sofre. Um policial preparado como ele foi jamais aceitará que seu adversário ganhe essa batalha com facilidade. Para a surpresa de seu superior ele tentou resistir as agressões se colocando de pé, mesmo sem muita mobilidade.

- Do que adianta lutar, seu desgraçado. – Romão o empurrou pra cima de Almeida. – vocês já estão mortos.

O primeiro carro saiu. Dentro dele quatro marginais armados. Assim que o motorista pisa no acelerador três viaturas entram no campo de visão dos bandidos.

- Droga. O que faremos? – perguntou o motorista.

- Temos que seguir com o plano. Acelere, passe por cima deles. – gritou o carona.

Os policiais desceram dos carros atirando contra o para-brisa. A troca de tiros foi intensa e terminou com dois meliantes mortos e um agente ferido no braço.

- Temos que avisar o chefe Damião, eles estão com artilharia pesada. – alertou um PM.

De dentro do depósito mais disparos que explodiram os vidros e pneus das viaturas. Um bandido apareceu no portão mirando seu fuzil, mas foi alvejado na cabeça. Dentro da van Romão Félix tem um ataque de fúria.

- Como nos encontraram, como? – chutou o rosto de cabo Almeida. – quero que matem todos, atirem pra matar.

Mais tiros e mais um corpo que vai ao chão, infelizmente de um policial. O tiro o acertou no peito. O carro da polícia trazendo Ramos e Alves entra na rua deixando a corporação um pouco mais aliviada.

- Cadê o Félix? – gritou Paulo passando a bandoleira pelo pescoço.

- Ele está lá dentro, senhor. – informou o sargento.

- Certo. Quero quatro grupos. Dois irão cobrir a rua de trás do depósito. Vou organizar uma invasão. Precisamos tirar nossos companheiros de lá já.

- Mas, detetive, eles tem um armamento pesado e já temos um homem ferido e outro morto.

- Agente Alves. – Damião Ramos foi até sua viatura. – vou solicitar o apoio aéreo, é o jeito.

- Ótimo! Grupo um, todos comigo. Chefe, nos dê cobertura. – Alves correu com seu grupo.

O grupo de Alves conta com o apoio de sete PMs que enfileirados organizam uma formação, prontos para o confronto. Mais tiros são disparados contra eles. Paulo Alves sabe que é arriscado uma invasão e também sabe que a vida de seus companheiros está em risco. Romão Félix ainda segue com a vantagem e fará disso sua arma mais poderosa. Mas, algo precisa ser feito e rápido, de preferência. Cada segundo é importante. Além de ter que salvar a vida dos parceiros sequestrados, Alves ainda precisa se preocupar com as dos companheiros que estão a seu lado nessa batalha. Mesmo sob uma chuva de balas, os PMs continuam no mesmo ritmo, sem recuar um centímetro sequer.

- Atenção, rapaziada, quando eu der o sinal, vocês entrem atirando. Só temos uma missão; resgatar nossos amigos, Araújo e Almeida. – disse Paulo se abrigando entre às árvores.

Mais é claro que o outro lado cederá assim, tão fácil, afinal de contas eles estão em uma guerra. Aquela rua sem asfalto e esburacada nunca foi tão movimentada e seus moradores não estiveram tão assustados. É muito tiro, gritos e sirenes enlouquecidas. Agora o grupo de Alves se encontra diante do portão e o segundo acabou de chegar do outro lado. A hora é agora.

- Vamos! – ordenou Paulo.

Linha Policial 3

 

Dentro do depósito, exatamente no interior da van, Romão não faz ideia do que acontece lá fora, tudo o que consegue ouvir são os disparos. Nada passa pela sua cabeça a não ser o fato de conseguir sair vivo dessa, mais nada. Olhando para fora ele sente vontade de abandonar o barco. Agora é cada um por si, o caldo entornou realmente. Assim que ele vê um de seus soldados ser baleado no peito e depois na cabeça ao lado do portão, Félix teve a confirmação de que já não há motivo para ficar ali. Enquanto isso, cabo Almeida e Araújo seguem inutilizados acompanhando tudo com olhos esperançosos. Essa é a força que os move.

Lá fora o segundo grupo entrou pelo fundos. Dez polícias portando fuzis, capacete e coletes. Um marginal tentou impedi-los de seguir com a invasão atirando da parte alta do depósito onde eram colocadas madeiras. Essa é a vantagem de ser preparado. Tudo que um policial quer é saber sua localização e isso ele consegue quando o oponente atira. Imediatamente o vagabundo foi abatido por vários.

- Agente Alves, estamos dentro e aguardando ordens. – falou o líder do segundo grupo pelo rádio.

- Positivo zero um, siga avante.

Damião Ramos trocou de arma. Vestiu o colete e se apressou caminhando pela lateral do depósito. A montanha gigante adora esse tipo de operação, o faz sentir vivo, útil. Apesar dos quase cento e cinquenta quilos, até que ele se movimenta bem e rápido. Elemento surpresa, é o que ele gosta de ser. Assim que alcançou a metade do caminho ele sentiu a necessidade de pular o muro e lamentou o fato de estar a cima do peso.

- Merda!

Não vendo alternativa, o chefe de polícia de Luzia andou em direção aos fundos segurando firma sua calibre doze. Ao dar dois passos, um bandido saltou de dentro para fora, fugindo do confronto.

- Parado! – gritou Ramos.

O sujeito também é alto e durante a fuga ele deixou sua arma cair. Temendo ir para cadeia ele partiu pra cima do agente com socos e chutes. Fazia tempo que Damião não participava de uma boa briga. Ele adorou isso. Dois monstros trocando violentos golpes no meio do mato. Ramos foi atingido no nariz e boca, mas não caiu. Enfurecido, o bandido tentou finalizar a luta aplicando um gancho que passou no vazio. Com isso o sujeito baixou a guarda. Um oportunidade de ouro para o policial que desferiu um cruzado de direita que fez a mandíbula de seu oponente deslocar. O homem já estava fora de combate, porém o chefe o finalizou de vez o chutando no rosto. Pronto, apagado.

 

*

 

Outra onda de vontade de colocar tudo pra fora, mas Janaína segurou as pontas. O mais incrível nessa história toda é que o mal estar e até mesmo o enjôo vem diminuindo gradativamente. Muito estranho. Ela segue acompanhando os acontecimentos na operação de resgate aos agentes sequestrados que a todo instante as emissoras locais interrompem a programação para exibir as informações. Quanto a gravidez, bom, ela gostaria muito que não fosse verdade. Ser mãe agora não seria uma boa ideia. Janaína sabe que com passar do tempo as coisas irão mudar e que com certeza ela criaria um laço com a criança, porém, até isso acontecer, muitas outras coisas desagradáveis estariam na frente. E se de fato ela tiver grávida, qual sexo a jornalista gostaria que fosse? Um garoto, arteiro, parecido com o pai? Lógico que não. Lopes sempre teve preferência por uma menina. Segundo os mais velhos, menina é mais calma que menino. Se isso é verdade ela não sabe, visto que ela mesma foi uma garota hiper, mega agitada na infância. Todos esses pensamentos se foram quando mais uma vez o plantão de notícias entrou no ar ao vivo.

- A polícia acabou de prender mais um do bando de Romão Félix. Podemos ver nas imagens o chefe de polícia, Damião Ramos conduzindo um bandido.

Janaína sentiu os músculos se retesarem.

- E agora podemos ouvir mais disparos vindos lá de dentro do depósito. – a voz do repórter é alta e trêmula. – e acaba de chegar a informação de que os policiais entraram e estão efetuando mais prisões.

Paulo está lá dentro, pensou ela. Não há como ligar para ele agora. Janaína se pegou apertando os braços de sua cadeira tamanho a sua apreensão. Só lhe resta somente torcer para que seu namorado volte para casa hoje.

 

*

 

Paulo e mais dois PMs buscam pelos amigos dentro daquela imensidão. Romão ainda os mantém em cativeiro dentro da van. Aos poucos o lugar vai sendo tomado por força policial. Damião voltou para o combate disposto a por um ponto final nessa história. A troca de tiros cessou, pelo menos por enquanto. O chefe se juntou ao grupo de Alves.

- Algum progresso?

- Lá trás o pau tá comendo, Félix não vai conseguir resistir por muito tempo. – Paulo falou abaixado.

- Recebi informação de que lá trás há vários veículos parados, acho que estão planejando uma fuga. O apoio aéreo já está chegando.

- Almeida e Araújo estão lá, eles correm perigo.

Enquanto conversavam, o helicóptero despontou  a uma altura abaixo do norma. Isso deu um novo gás na tropa e deixou os marginais apavorados. Romão, ao ver a aeronave, ligou o motor da van. Xingando absurdos ele se virou para os agentes.

- Vamos dar uma voltinha.

Araújo olhou para Almeida. Ambos trabalham juntos a muito tempo. Tempo o suficiente para saber o que o outro está pensando apenas com o olhar. Romão saia com o carro quando um ficou de costas para o outro. Almeida foi afrouxando às cordas que apertam os pulsos de seu soldado. A ferida arde, mas Araújo não se importa. Almeida está nervoso, apreensivo, quer livra-lo logo antes que Félix saia de vez os levando sabe-se lá para onde. O sangue atrapalha, faz com que seus dedos fiquem escorregadios. Pela primeira vez em dias, Araújo sente o sangue circular pelos seus pulso e isso o deixou aliviado. Ele fez uma pouco mais de força e pronto, estava livre das cordas. Existe uma guerra lá fora e ele é um soldado. Lugar de soldado é na guerra.

A van aos poucos vai se movimentando, meio sem rumo, isso por causa de seu condutor que se encontra com os nervos a flor da pele e nem percebe que seus dois prisioneiros já se encontram em liberdade. Pelo alto o helicóptero da polícia deu um rasante assustando até mesmo seus companheiros. Paulo é chamado no rádio.

- Alves na escuta!

- Identificamos uma van, prata, em movimento, senhor. Ela se encontra lado esquerdo, temos que agir rápido.

- Copiado.

Damião ao olhar para Paulo entendeu o recado. Seus homens estão nessa van e Romão pensa em levá-los. A ação pede urgência. Os familiares dos agentes não podem mais sofrer com essa situação. Paulo reorganizou o grupo. Instruções foram passadas. Todos entenderam. Vamos em frente.

 

O plano de Araújo é usar às cordas para enforcar o inimigo. Almeida ainda segue tentando desatar os nós das cordas que prendem seus pés. Eles voltam a se comunicar com os olhos. Cabo Almeida apertou os lábios. Esse ato pode ser arriscado, mas, é preciso fazer alguma coisa. Araújo agora está livre. Sente algum dor, mas consegue entrar na briga. Romão olhou no espelho interno e viu o policial enrolando a corda nas mãos.

- Mais que merda é essa?

Girou o pescoço ao mesmo tempo em que o agente o atacou. A van ficou desgovernada. Outro rasante do helicóptero. A corda grossa fez com que a pele do pescoço do bandido ficasse enrugada.

- Morre, desgraçado! – gritou Araújo.

Os olhos de Félix estão totalmente abertos, parecendo duas lamparinas acesas. Ele arca, tosse e se debate. Ele sente que seu fim está próximo, por isso resolveu apelar. Romão não está disposto a morrer sozinho. Seu pé esmagou o acelerador. O veículo atravessou todo o depósito passando por cima de madeiras, resto de pedras e até mesmo comparsas. Almeida conseguiu se livrar das amarras e em auxílio ao soldado começou a socar o rosto já avermelhado do marginal. Nesse curto espaço a van alcançou uma velocidade acima dos setenta por hora indo de encontro ao murro. Félix, sendo asfixiado, ainda tentou pegar sua arma, mas sem sucesso. Lá fora um PMs foi arremessado pela van em alta velocidade contra um monte de tijolos ficando gravemente ferido. Fim da linha. Almeida, Araújo e Romão Félix, ambos gritam de desespero ao verem que irão colidir fortemente. A pancada foi tão violenta, que a van atravessou o muro, arrastou outras viaturas e se chocou contra uma árvore.

 

*

 

Janaína está boquiaberta. Tudo foi transmitido ao vivo. Imagens impressionantes. Um dos moradores flagrou o exato instante que o corpo do motorista da van foi lançado pelo para-brisas se arrebentando contra o tronco da árvore. Como fogo em palheiro, o vídeo já circula por toda Luzia. A namorada de Paulo Alves também assistiu o chefe Damião auxiliando na retirada dos feridos da van junto com ele, seu quase pai de seu filho. A emissora de maior audiência conseguiu uma entrevista exclusiva com Alves perto das ambulâncias.

- Detetive, nos dê seu parecer quanto essa operação, por favor.

- A operação foi sucesso. – Paulo parece nervoso.

- Alguns disseram que a operação foi desastrosa. O que o senhor tem a dizer sobre isso?

- O que eu tenho a dizer é que hoje, duas famílias irão dormir em paz, sabendo que o pai, o filho, foi tirado das mãos de um maníaco. Romão Félix havia comprado três toneladas de cocaína pura para vender para os nossos jovens e graças a essa operação desastrosa, essa droga estará fora de circulação.

Janaína vibrou sozinha.

- Dá-lhe, amor!

Assim que se afastou dos jornalistas, Paulo foi abordado por Ramos.

- Araújo sofreu ferimentos leves e algumas escoriações, terá que ficar em observação. – colocou às mãos na cintura.

- E Almeida?

- Quebrou uma perna e alguns dentes, luchou o ombro também. Vai ficar bem. – fez uma pausa. – e você, está bem?

- Sim, estou sim. E o Romão? – Olhou para a árvore com a mancha do sangue.

- Já era. – expirou. – a pancada foi forte na cabeça, houve perda de massa e...

- CPF cancelado. – sorriso enviesado.

- É, isso mesmo. Menos um vagabundo fora de circulação. Luzia é a minha cidade, a nossa cidade. Fizemos um juramento, Alves. Servir e proteger. Eu levo esse juramento muito a sério e agradeço a Deus por colocar homens como você que honram a farda que vestem, o distintivo que carregam e a bandeira do nosso estado. Parabéns, detetive Paulo Alves, fez um ótimo trabalho. – estendeu a mão.

Foi mais que um aperto de mão. Segurar a enorme mão do chefe Ramos foi estabelecer uma aliança contra o crime organizado. Luzia tem heróis, protetores, soldados prontos para defender sua terra. Paulo Alves e Damião Ramos. Eles podem não conseguir mudar o mundo, mas, se esse mundo for o lugar onde vivem, há, isso eles tentarão fazer. Paulo foi para casa feliz ao quadrado. Ele estava louco para ver sua mulher, sua pretinha – como costuma chamá-la. Janaína pode estar grávida de um filho ou filha dele. Paulo está radiante. O policial não gosta de deixar o carro na calçada, sempre preferiu guardá-lo na garagem, mas hoje o dia é especial.

Janaína estava na sala segurando um teste de gravidez cabisbaixa. Ela olhou para o namorado com olhos úmidos.

- O que houve, mamãe do ano? – a beijou na testa.

- Veja você mesmo. – o entregou.

Paulo ficou olhando o objeto como se tivesse hipnotizado.

- Acho que o título de mamãe do ano terá que ficar para uma próxima vez.

- É. – deixou o teste sobre a mesa. – negativo. Mas, o que houve com você na verdade? – se sentou no braço do sofá.

- Intoxicação alimentar, eu acho. Horrível, não gosto nem de lembrar.

- Foi ao médico? – cruzou os braços.

- Não. Nada que um bom chá não resolva.

Alves abaixou a cabeça. Janaína se levantou e o abraçou.

- Termos um bebê, em breve, seja paciência. – o beijou na boca.

- Te amo, pretinha.

- Também te amo, herói de Luzia. Agora me conte tudo o que aconteceu na operação.

- Há, foi complicado, mas no final deu tudo certo. – se levantou. – vamos pro quarto, te conto com mais detalhes lá.

- Ah, sim, conheço esse truque. – riu. FIM.