sábado, 27 de julho de 2019

Aquele Olhar - Parte 2





De repente eu me vejo planejando o assassinato de meu próprio marido, aquele homem que jurei proteger, cuidar, amar, ser cúmplice. Logo eu Augusta, uma mulher que sempre foi pacata, defensora da paz, da boa conversa, Agora me pego pensando em como vou fazê-lo pagar por me trair. Terminei de fazer o almoço e como é de costume tomo meu café folheando a nova edição de uma revista de moda que assinei. Fisicamente eu estava olhando as imagens, mas eu não estava ali. Minha mente viajava em outro lugar, martelava meus pensamentos e sentimentos dizendo que eu precisava fazer alguma coisa. Me vingar.
        Fecho a revista sem concentração e nem paciência. Claro que eu sei quem está querendo invadir minha mente. Ele se encontra sentado na outra ponta do sofá. Sávio. Pálido, olhos marcantes e uma expressão gélida.
        - Querida, você sabe muito bem que Arthur não se encontra no escritório fechando contratos. Ele está lá, com a cabeça entre os seios dela, se alimentando feito um bezerro. E você aqui, na dúvida se o mata ou não.
        - Quando foi que lhe dei legalidade para controlar meus passos? – falei com autoridade e mais alto do que imaginei que falaria.
        - Foi exatamente no dia que você o viu entrar no motel, lembra? Você o seguiu e ficou chorando escondida atrás da árvore. Lamentável.
        Infelizmente Sávio estava certo. Tudo o que me restou foi abaixar a cabeça e aceitar. Chorei um pouco e quando levantei a cabeça ele já não estava mais na outra ponta do sofá. Desgraçado. Corro até o quarto e vou abrindo as gavetas do armário até encontrar na última a caixa azul forrada com camurça. Lá dentro a 45 de Arthur, municiada, pronta para cuspir fogo. Chega de lenga lenga, chega desse demônio ditar as regras. Fui traída e todo traidor deve pagar.

*

      Arthur coloca a calça com pressa. Na cama Sheila mexe no celular de bruços deixando a mostra suas enormes nádegas fazendo lembrar o morro do Corcovado.
       - Passamos da hora. – disse fechando a camisa.
       - Passamos uma vírgula, você passou. – segue conferindo a rede social.
       - Muito engraçadinha. – pega a gravata na cadeira.
       - Mô, você pode deixar cem reais para eu fazer o cabelo mais tarde? Meu cabelo está horrível.
       - Mais cem? Poxa Sheilinha, eu lhe dei cento e cinquenta no início da semana. – pega a pasta.
       Muito sedutora, a bela morena de olhos negros e grandes, lábios carnudos, seios fartos e firmes se levanta. Ela o agarra nas partes baixas e se ajoelha começando um oral alucinante.
       - Mereço ou não mereço?
       - Uau, até mais de cem. – diz revirando os olhos.

*

       Do lado de fora Augusta aguarda sentada numa mesa de um bar que fica bem de frente do motel onde seu esposo se encontra com a morena peituda quase que diariamente. Dez minutos depois o carro de Arthur deixa o estabelecimento. Somente ele dentro do veículo. Ótimo, melhor ainda. Sávio aparece apoiado no balcão. Dois minutos depois Sheila saí do motel. Vestido branco colado ao corpo, cabelos lisos de mechas vermelhas. Augusta espuma de raiva. Ela olha para Sávio que assovia.
        - Faça o que tem que ser feito. – seu rosto fica coberto de veias negras quase saltando da pele.
        Sheila já está no ponto de ônibus quando Augusta a aborda encostando o cano da 45 na barriga da morena.
        - Aí, meu Deus, o que é isso, assalto?
        - Cala boca vagabunda, sou a esposa do Arthur, vamos dar uma voltinha.(continua)

quarta-feira, 24 de julho de 2019

O que me faz continuar escrevendo?


O que me faz continuar escrevendo é justamente o encanto de sozinho construir mundos e pessoas. Escrever para mim é antes de tudo uma paixão pelas letras, pelas palavras, enfim, o conjunto da obra me encanta. Devo confessar que as vezes penso em parar e desbravar outros meios, porém o coração bate sempre mais forte pela arte de contar histórias.

Não sou autor famoso e não tenho essa pretensão. Claro que eu gostaria de poder ser lido por milhares de pessoas no mundo todo, mas felizmente tenho meus pés no chão. Sei que ainda tenho muito o que melhor, mas acho que venho fazendo um bom trabalho.

Hoje em dia quase ninguém usa blog para postar suas obras e quase não há leitores também. Infelizmente nosso país não cultiva a leitura, o percentual de pessoas que lêem é baixo, mas mesmo assim consigo um número satisfatório de visitantes aqui.

Se vou continuar escrevendo? Sim! Se eu quero viver de contos? Gostaria muito, mas conheço bem a realidade de um escritor no Brasil. Vou seguir postando meus trabalhos aqui no blog sempre com muito amor e carinho e digo mais, até o final de 2019 ainda teremos bastante novidades.

Muito obrigado pela atenção e fiquem ligados!!!

sábado, 6 de julho de 2019

Km 47 A Estrada Fantasma


       A lua é minha testemunha. Estou aqui parado, aguardando aquele desgraçado passar. De hoje ele não passa. Vou cravar meu machado em seu crânio e depois lhe arrancar a cabeça. Esse será o meu troféu, minha conquista. Sei que depois disso serei um assassino, minha fama não será mais a mesma. Damião Carvalho será conhecido como o homem que matou o demônio veloz, o diabo da motocicleta. 
        A lua ainda está lá, me observando. Eu permaneço em pé, parado no meio da estrada exatamente no km 47 onde minha vida foi retirada de mim brutalmente. Aquele desgraçado a tomou de mim e agora todas as noites monto vigília aqui, em cima da marca onde o cérebro de Miriam ficou espatifado. Uma hora eu pego ele.
        Miriam. Minha vida, minha esposa amada, a única mulher que me fez entender a vida. Aonde você está agora? Está ao lado de Deus. Aonde Deus estava quando o demônio veloz fez do seu belo corpo em milhares de pedaços? Onde? Miriam. Meu amor infinito. Nosso primeiro contato eu jamais vou esquecer. Enquanto aguardo a passagem daquele maldito, minha mente me leva para aquele dia lindo de sol forte e boa conversa ao pé de uma mangueira.

*

Damião não era chegado em estudar, preferia passar horas ajudando seu velho pai no cansativo trabalho de cortar lenhas. Até hoje ele se arrepende de não ter concluído pelo menos o ensino fundamental. Hoje em dia ele ganha a vida juntando e cortando lenhas para sobreviver.
       Com o pouco que ganha ele consegue se manter vivendo sozinho numa minúscula casa a beira da mais perigosa estrada que corta o estado. Damião Carvalho, 43 anos, rosto coberto por uma barba espessa, suspensórios jeans sem camisa e um machado herdado de seu Sebastião, seu pai.
         O sol escaldante não chega a ser um problema. Damião está acostumado a trabalhar duro debaixo de uma bola de fogo a anos. Somente na hora de descansar ele procura uma sobrinha para limpar o suor e tomar uma água estupidamente gelada. Os dias são assim, trabalhosos, quentes e sem surpresa alguma.

Fim de expediente. Damião traz apoiado no ombro o machado e na mão esquerda um balde com água. Ele caminha por um caminho feito por moradores da região que dá acesso a uma pequena vila. Damião mora praticamente isolado na beira da estadual. Sua casa possui apenas dois cômodos. A sala e quarto, cozinha e banheiro e só. A única janela dá de frente para a estrada que fica a alguns metros mais a frente.
         Damião finca o machado num troco que serve como banco. Coloca o balde no chão e olha ao redor. Hora do banho. Ele retira os suspensórios surrado, suado ficando somente de bermuda. Mesmo aos 43 anos a forma física do lenhador lembra muito a de um pugilista. A água fresca do balde cai em seu corpo renovando suas forças. Um banho tem essa propriedade.
*

As sete da manhã ele está de volta a rotina. Ele não se cansa dessa vida. O que na verdade o deixa fadigado é a solidão. Desde quando seu pai morreu Damião vive só e isolado. Sebastião era um fumante inveterado, seu pulmão não suportou os cinco maços diários de nicotina. Tião partiu numa tarde tentando encontrar ar desesperadamente.
        Damião sente falta do pai, porém a falta de alguém que lhe dê carinho e sexo é maior. Sua última namorada era uma mulher louca, tinha sérios problemas com bebidas. Se Margarida tomasse uma caneca de vinho era o suficiente para perder a linha e dar vexame. Damião não suportou ficar com ela e a dispensou depois de um ano de vergonhas.
           Agora o lenhador quer uma mulher de verdade. Uma mulher íntegra. Uma mulher disposta a viver a seu lado e entendê-lo. Damião chega para mais um dia de trabalho e mesmo as sete o sol já se mostra implacável. Ele junta o que sobrou das lenhas do dia anterior quando um carro entra no acostamento pegando o caminho que vai dar no quintal de sua casa. Damião ergue a cabeça.
           - Xerife Brito Moreira. – resmunga.
          O carro da polícia para levantando poeira. Um homem mediano, barrigudo, usando chapéu com uma estrela dourada fixada na frente desce fechando sua jaqueta marrom.
          - Bom dia, Damião.
          - Bom dia, Xerife. – continua recolhendo as lenhas.
          - Alguma alteração por aqui? – levanta as calças as pondo na altura da barriga.
          - Graças a Deus, nenhuma.
          - Que calor, hein? – retira o chapéu e se abana.
          - Muito.
          - Estou patrulhando. Já ouviu falar no motoqueiro que anda atormentando essa região?
         Damião crava o machado no toco onde corta as lenhas e se apoia no cabo.
          - Sim.
         - Pois é, esse miserável já atropelou e matou cinco pessoas na estadual, dizem que se trata de um demônio em uma motocicleta enfurecido.
          - Esse povo não tem mais o que inventar. Demônio andando de moto.
          - Pois é Damião. – coloca o chapéu. – pelo sim ou pelo não, vou investigar. Tenha um bom dia.
          - Bom dia Xerife.

*

        Miriam Santana. Uma mulher bonita, cabelos castanhos soltos, pele branca, olhos pequenos como de passarinho e uma voz suave. Vendedora de doces. Ela avista a pequena casa no meio do nada perto da estrada. O sol está quente e ela se vê na iminência de desistir de ir até lá. Hoje as vendas estão indo bem. Em apenas duas horas sua cesta está praticamente vazia. Melhor ir até lá.
        Damião não mede forças para partir a lenha ao meio quando a voz de canção de Miriam entra em seus ouvidos.
          - Boa tarde.
         Ao ver aquela imagem linda de calça jeans, blusa preta segurando uma cesta sorrindo para ele o lenhador esqueceu do calor, do cansaço, da vida medíocre que leva. Até a voz ficou embargada. O filho de seu Sebastião limpa o suor da testa.
         - Boa tarde. Como posso ajudá-la?
         - Me chamo Miriam, vendo doces, o senhor gostaria de conferir alguns?
        Damião solta o machado em cima das madeiras e anda até a vendedora. O cheiro dela é melhor que qualquer flor em sua época. Damião fica embriagado com o perfume.
          - A senhora adivinhou, depois do almoço eu adoro comer doce. O que temos ai?
         Miriam tirou sorte grande, aquele lenhador meio desajeitado com pinta de ogro esvaziou sua cesta. Damião pagou tudo com moedas do cofre. Durante a degustação dos saborosos doces Miriam se impressiona com o estilo de vida de seu mais novo cliente.
          - Você mora aqui sozinho?
          - Eu e Deus. – morde a bomba de chocolate.
          - Sua casa não possui muros e nem cercas, não tem medo de alguém invadir?
          - A pessoa teria que ter muita coragem de invadir meu barraco.
        Miriam gostou dele. Mesmo sendo um homem de aparência bruta, Damião caiu no gosto da vendedora. Ela observa o peitoral, os bíceps e tríceps do sujeito e se excita. O sol começa a ficar mais fresco próximo das 16h. O lenhador olha para Miriam e lhe faz um convite.
          - A mocinha tem compromisso?
          - Agora, não. – engole seco.
          - Atrás da casa tem uma mangueira onde a brisa passa refrescante, quer ir?
          - Bom. – se abana. – acho que vou aceitar. Vamos.
       Sim, o local é bastante agradável. A sombra é grande e o vento que corre ali é realmente do paraíso. Eles se acomodam nas raízes e jogam conversa fora. Damião está cada vez mais apaixonado por ela. Assim que o sol se pós por completo Miriam se despede do lenhador. Foi uma tarde maravilhosa.
            - Vai voltar amanhã? – Damião mexe nos cabelos despenteados.
            - Amanhã não terei mais doces para vender.
            - E eu quero lá quero saber de doce, eu quero te ver outra vez.
        Pintou um clima. Se Damião pedisse para que ela ficasse essa noite, Miriam não hesitaria em aceitar.
           - Posso voltar amanhã. – ruboriza.
           - Legal. Que horas?
           - Ah, mais ou menos no mesmo horário de hoje.
           - Estarei te esperando aqui, no pé da mangueira.
        Os encontros se tornaram mais frequentes. Miriam passou a ser mais amiga, mais íntima do lenhador. Ele por sua vez criava coragem para se declarar a ela. A vendedora de doces não entendia o porquê da demora, era simplesmente pedir e, com certeza, ela prontamente aceitaria.
       Num dos encontros Miriam resolveu forçar um pouco. Damião se banhava com a água do balde aliviando o calor quando ela aparece um pouco mais produzida, um pouco mais à vontade. Vestido rodado florido mostrando os joelhos, cabelos presos num rabo de cavalo e uma maquiagem bastante provocante. Isso fez com que o ogro caísse de joelhos.
           - Minha nossa, olha isso.
           - O que foi? – fica vermelha.
       Naquela tarde Miriam não escapou de provar do beijo do trabalhador. Uma coisa ela precisa admitir, ele tem pegada, sabe como conduzir uma mulher para uma aventura. Claro, Miriam passou a noite na casa de Damião. Completamente louco por ela, ele tentou de todas as maneiras levá-la para cama, porém ficou somente nas tentativas.

*

           Basta a noite cair para que o som ensurdecedor da motocicleta se torne um tormento para quem circula pela estadual. O demônio veloz tem sede de matar, ele precisa de sangue. Há quem diga que ele não é real, que é invencionice do povo daquela região. O pobre vendedor de verdura sentiu na pele o terror de estar pedalando voltando para casa quando ele passou a uma velocidade espantosa. Joaquim até tentou sair da estrada, mas o demônio foi mais rápido que suas pernas cansadas.
        Tudo o que Joaquim pode ver foram seus olhos ardendo em uma chama vermelha e um rosto desfigurado. O velho verdureiro foi arremessado a metros e bateu no asfalto perdendo os sentidos. O diabo faz uma curva fechada e volta a investir contra a vida do idoso.
           - Não! – geme.
        As rodas nervosas da moto passam em alta velocidade sobre o troco do homem que borrifa sangue no ar. Vendo que sua vítima ainda respira o assassino passa mais uma vez em cima do velho que tem a vida ceifada. Uma tragédia.

           Ao redor do corpo os curiosos se aglomeram. Alguns revoltados protestam, outros choram pela vida do velho vendedor de verduras e outros simplesmente estão ali porque adoram ver pessoas mortas. Brito Moreira abre caminho até chegar ao cadáver.
          - Droga. – se agacha. – é o Joaquim.
       Imediatamente uma equipe de peritos assume. O xerife acompanha com cara de poucos amigos a retirada do corpo do conhecido. A raiva é como fogo, se não for controlada ela se alastra. Brito cerra os punhos até quase partir os ossos. Basta de mortes, basta de sangue. Nesses casos é melhor voltar para a delegacia e tentar colocar a mente em ordem.

*

         Damião acordou tarde. A noite não foi nada reparadora. Hoje ele tirará o dia para relaxar. No depósito há lenha o bastante para vender a semana inteira. Depois de fazer o café e se sentar embaixo da sombra da mangueira ele volta a pensar em Miriam. Ele a ama e a quer pedir em casamento. Mas como? Ela aceitaria?
       Depois de tomar café ele vai até a precária caixa de correios conferir se há o que pagar. Não só há o que pagar como há também um informativo regional. A notícia estampada na primeira página o faz prender a respiração.
         - Vendedor de verdura é morto por motociclista misterioso. – funga o nariz. – mais que diabo.
      Ao continuar lendo ele descobre o nome da vítima. O coração aumenta as batidas e ele se enluta. Damião conhecia Joaquim. Quantas e quantas conversas sem hora para terminar ali embaixo da mangueira. Um nó na garganta e uma raiva em seguida. Alguém precisa deter esse bandido dos infernos. Ele volta para dentro de seu barraco ainda mergulhado nas lembranças do velho amigo verdureiro. Em certos momentos ele pensa em ir até a delegacia e pedir por justiça a Brito Moreira, porém ele conhece bem o xerife, sabe de sua competência. O que lhe resta então? Enterrar o pobre Joaquim.

*

         Brito Moreira está sentado em sua sala diante de várias fotografias de pessoas que foram vítimas do diabo da velocidade. As imagens são ruins de se ver, os corpos praticamente foram esmagados pelas rodas da motocicleta. Cuidar, proteger aquela cidade, foi o que prometeu ao assumir como chefe de segurança. Graças ao empenho e rigor os crimes diminuíram consideravelmente. Para que esses dados continuem valendo ele precisa colocar as mãos nesse assassino que todos jugam ser do inferno. Um homem da lei não pode se deixar levar por essas coisas. Crime é crime e pronto.
      Alguns minutos depois de analisar as fotos sua sala está repleta de agentes com seus olhos e ouvidos atentos a tudo que Brito tem a dizer. Um plano é traçado e se tudo der certo a captura desse miserável é questão de tempo.
            - Senhor, ele só aparece a noite, não é? – pergunta uma policial
          - Sim, por enquanto é só o que sabemos. Por isso quero uma equipe em cada ponto da Estadual. – mostra no mapa fixado no quadro logo atrás de sua mesa.
           - Xerife Brito, e se realmente estivermos lidando com o sobrenatural? – outro policial pergunta com seus braços apoiados no cinto.
       - Não creio que estamos lidando com o sobrenatural, acredito que estamos diante de um assassino em série e é nosso dever colocá-lo na cadeia, por isso quero o empenho dos senhores nessa missão. Já chega de mortes.
        Brados, abraços e batidas nas mesas, assim termina a reunião com o chefe. Cada um sabe de sua obrigação, cada um entende sua responsabilidade. Brito Moreira volta para trás de sua mesa e pela primeira vez ele está otimista. Hora de prender esse tal demônio veloz.

*

         Miriam resiste o máximo que pode. Damião possui mãos e boca que a fazem revirar os olhos e sentir o coração na garganta. Ela não quer ceder  Transar só depois do matrimônio, essa é a sua promessa.
       Sendo beijada no pescoço, deitada na cama, Miriam sente que terá o sutiã arrancado a qualquer momento. Os beijos vão descendo até os ombros.
          - Ai, chega Damião. – geme.
        Claro que ele não obedece e ela agradece. Por fim ele alcança a altura dos seios. Vendo que cederá a tentação Miriam escorrega para o lado deixando Damião a ver navios beijando o colchão.
          - Ai, me desculpe. – abaixa a blusa.
          - Assim você me mata do coração mulher.
      - Eu fiz uma promessa ao meu finado pai, prometi a ele que só... Você sabe, depois do casamento.
       Damião se deita colocando as mãos embaixo da cabeça.
         - Ora, então vamos nos casar.
        Miriam explode de alegria por dentro e no momento seguinte ela vira de costa para o namorado.
          - Não foi assim que sonhei em ser pedida em casamento.
        Mesmo de má vontade o lenhador se levanta e se coloca de joelhos aos pés da vendedora de doces.
         - Senhorita Miriam, você aceita casar-se comigo?
        Não aguentando prender o riso por mais tempo ela se vira para Damião ainda de joelhos.
         - Sim, sim, sim, eu me caso com você.

*

          Eu continuo aqui esperando a passagem daquele que colocou um ponto final em nossa história. Tudo muito vazio e silencioso. Ele vem, eu sei que ele vem e quando essa hora chegar estarei aqui para partir sua cabeça ao meio com meu instrumento de trabalho. Alguém precisa encerrar essa onda de assassinatos, alguém precisa deixar claro que sonhos não podem ser interrompidos de maneira tão brutal. Isso tem fim hoje.
         Não me canso de pensar em minha Miriam, de como fomos felizes, durou pouco tempo, mas tudo valeu a pena. Não precisava terminar desse jeito. A placa está logo ali, indicando o km 47, local da morte de minha amada. Meu Deus, como dói ainda. Chega de mortes. Não quero ser herói, não quero ser lembrado como o guerreiro da justiça. Estou aqui porque estou cansado disso tudo. Nada mais importa.

*

        Juntar os trapos, esse é o termo? Se for, Damião e Miriam estão adorando a ideia de viverem juntos naquele barraco. Por fim casados. Miriam sente orgulho em ter acrescentado o Carvalho ao seu nome. Esposa de Damião Carvalho, o ogro mais fofo que já existiu - pelo menos para ela. Eles fazem amor de manhã, a tarde e principalmente a noite. Transam sem serem incomodados. Damião leva sua mulher a beira da loucura com sua pegada forte e preliminares prolongadas. Miriam tirou sorte grande.

*

       A viatura está parada no acostamento com dois agentes de prontidão aguardando alguma ocorrência. No volante a sargento Letícia mastigando seu inseparável chiclete de morango. A seu lado o soldado Pedro, morrendo de tesão por ela. Letícia é durona, não dá mole para bandido e nem para colegas de farda. Ela já perdeu as contas das cantadas de Pedro. Tudo o que ela não queria era ter que dividir o plantão com ele, mas, fazer o que?
          - Fome? – ele pergunta.
          - Um pouco. – continua olhando para frente.
          - Dizem que chiclete engana o estômago.
          - Você agora virou especialista em nutrição?
          - Calma, eu só estou fazendo um comentário.
          - Dispenso seus comentários. Foque na estrada, soldado.
        Pedro não é um homem feio, pelo contrário. Ótima forma física, braços cobertos por músculos e olhos azuis, pinta de galã, porém um idiota. Isso irrita sua parceria de plantão.
        - De hoje esse diabo não passa. – relaxa no banco. Letícia não responde. – posso te fazer uma pergunta?
        A sargento faz questão de lhe mostrar sua insatisfação revirando os olhos.
          - O que te incomoda, na boa, você está odiando ficar aqui dentro comigo, fala a verdade?
         - Eu não lhe devo explicações, soldado Pedro, agora vá até a curva e vê se consegue ouvir ou ver alguma coisa. É uma ordem.
         Mesmo contrariado e resmungando o policial desce e anda até a curva. A noite é abafada e ele estava adorando o ar-condicionado da viatura. Aos poucos o suor vai molhando seu uniforme. Ele para no meio da estrada. Aguça seus ouvidos. Gira nos calcanhares para ver Letícia dentro da viatura mastigando sua goma de mascar. Ao se virar ele dá de frente com um farol alto de uma motocicleta endiabrada. O policial é arremessado contra o para-brisa do carro. A pancada foi tão violenta que Pedro já cai sem vida. Letícia saca sua arma descendo da viatura atirando no motoqueiro que passa em altíssima velocidade.
         - Ai, meu Deus, Pedro. – saca o rádio da cintura. – policial ferido, mandem uma ambulância para a estadual no km 40, já.
        Ela agiu dentro dos procedimentos, mas infelizmente seu parceiro de operação perdeu a vida. Seu corpo permanece agarrado ao para-brisas da viatura. Em sinal de respeito Letícia retira o boné e faz o sinal da cruz. Tenta não chorar, mas é quase impossível. Era o motoqueiro infernal nisso não há dúvidas. Quantas pessoas terão que morrer?

*


        As mãos tremem mal podendo segurar o copo com café. Letícia aguarda a liberação do corpo sentada no corredor frio do hospital. Brito Moreira adentra, se identifica e procura por sua agente.
         - Sargento?
        Mesmo sem vontade ela se levanta ao ver a figura imponente do xerife a sua frente.
         - Boa noite, xerife.
         - Como está o soldado Pedro?
         - Morto.
       A expressão do chefe mudou do preocupante para o sombrio de uma forma espantosa. Sua respiração se tornou pesada, arrastada.
      - Eu não pude fazer nada, ele surgiu de repente, efetuei alguns disparos, mas, a velocidade daquela moto era realmente algo sobrenatural.
         - Não se preocupe, sargento. – apoia a mão no ombro da militar.
         - Senhor, não estamos lidando com algo humano, esse motoqueiro é um ser de outro mundo.
         - A senhora está nervosa, sargento...
         - Não senhor, eu o vi, foi terrível. – chora.
       Foi preciso Brito agir como um pai. Ele a abraçou e a confortou. O xerife a conhece bem, Letícia sempre foi controlada emocionalmente apesar da pouca idade. A cada dia as coisas estão ficando mais difíceis. A operação precisa continuar mesmo com o ocorrido.
         - Letícia, deixa que eu assumo daqui, vá para casa, descanse, apresente-se amanhã, certo?
       - Senhor, peço que não me afaste da operação, pegar esse demônio será uma questão de honra agora.
*

          Damião e Miriam vivem uma eterna lua de mel enquanto que a realidade lá fora é esmagadora. O lenhador deixou para trás trabalhos importantes e até rentáveis para ficar enrolado nos lençóis com sua mulher.
         - Damião, agora chega, hora de trabalhar. – se levanta envolvida no lençol.
         - Que trabalhar que nada mulher, volta pra cama. – se vira de bruços.
        - Você agora é um homem casado, precisa sustentar essa casa. – dá um tapa na bunda do esposo. – levante.
         - Eu estou morto, vou dormir um pouco, depois eu pego no pesado.
        Pois é, Damião Carvalho agora tem alguém para lhe controlar, para segurar as rédias do lar. A senhora Carvalho tem pulso firme e o obrigou a cortar lenhas antes do galo cantar. Apesar de tudo ele está feliz, muito feliz. Na cozinha Miriam prepara os doces para vender observando o marido descendo o machado com violência. Isso a atrai, um homem bruto, suado com roupas sujas devido o trabalho duro. Ela fica maravilhada de como tudo aconteceu rápido em sua vida, até mesmo ao conhecer seu grande amor. Ela sabe que nem tudo será o país das maravilhas, chegará um tempo difícil, complicado, mas ela também sabe que com cumplicidade e uma dose de paciência tudo será resolvido. Viver a dois é uma arte que poucos sabem como funciona.

*

        De uma coisa xerife Brito Moreira sabe bem, participar de um sepultamento de um companheiro é algo assombroso, ainda mais sendo esse companheiro um membro de sua equipe. Ter que assistir o sofrimento dos familiares sem ter como amenizar a dor é torturante. O enterro de Pedro foi duro, uma mescla de sentimentos por parte da corporação que compareceu em peso. Letícia se manteve forte e vez por outra retirava os óculos de sol para limpar uma lágrima teimosa.
        O caixão com o corpo do soldado que perdeu sua vida trabalhando é carregado por seis oficiais dos quais Brito é um deles. Pela primeira vez o xerife usa seu chapéu com uma estrela na frente que o identifica como o tal. Sua expressão é bastante seria, soturna e as vezes fechada. Enterrar um companheiro de farda dói. Brito Moreira olha para Letícia que acompanha o cortejo parecendo não acreditar que isso esteja acontecendo. Ela viu tudo, ela esteve com ele, ela o viu voar pelos ares até cair morto. Esse demônio precisa ser liquidado.

       Depois do sepultamento xerife e sargento conversam tomando café num bar perto do cemitério. O lugar não é lá essas coisas, mas quem se importa? Pelo menos é limpo e o café é perfeito.
        - A operação continua, certo? – Brito roda o café para esfriá-lo
        - O senhor pode contar comigo.
        - Vou aumentar o efetivo e dessa vez pegamos ele.
      - Xerife, foi como falei, não estamos lidando com um ser humano, eu o vi, seu aspecto é algo sobrenatural, e se ele for mesmo uma criatura do inferno, do que valerá nossas armas?
      - Isso só saberemos quando colocarmos as mãos nele, sargento. – termina de beber o café e coloca seu chapéu. - apresente-se para liderar outra equipe amanhã.
        - Sim, senhor.

*

      A estrada estadual nunca foi tão policiada quantos nos últimos dias. Antes do surgimento do motoqueiro do inferno, ela era conhecida como a estrada do assalto. Os crimes aconteciam todos os dias e a qualquer hora. Foi preciso um choque de ordem para que motoristas e pedestres circulassem em paz. Brito montou um esquema onde foi preciso mais de cinco viaturas circulando vinte e quatro horas pela via. Deu certo, isso afugentou os criminosos de uma vez por todas.
       Agora chegou a vez de pegar o assassino da motocicleta. Letícia dirige o carro onde seu xerife está sentado e concentrado olhando o mapa da região. Usando uma caneta piloto vermelha ele vai pontuando cirurgicamente as áreas de maior atuação do demônio. Mesmo com os olhos na estrada ela encontra um jeito de observá-lo e aprender como se faz um bom trabalho.
        - Estou confiante. – ela declara.
       - Posso falar a verdade? – diz ainda olhando e rabiscando o mapa. – temos que ser otimistas, porém um pouco de cautela nunca fez mal a ninguém. Preciso que todos mantenham o foco, caso contrário iremos a mais um sepultamento.
      Foi o suficiente para Letícia ficar calada o restante percurso. Seu coração não aguentaria ter que assistir mais um companheiro sendo levado para apodrecer em baixo da terra. Pedro precisa ser vingado, alguém precisa fazer justiça por ele.
          - Chegamos senhor. – ela vai jogando a viatura para o acostamento.
          - Ótimo, farei uma chamada pelo rádio e iniciaremos a operação. – coloca o chapéu.

*
          - Estou morto. – Damião entra em casa alongando as costas.
          - Muita lenha para encomenda? – pergunta descascando as cenouras.
          - Acumulou o serviço, tive que correr para não deixar os clientes não mão.
          - Amanhã vou sair cedo para vender, meus clientes estão esperando.
      Damião se serve do café fresco da garrafa térmica e o toma num copinho americano.
          - Vou lhe tirar dessa vida. Mulher minha não pode trabalhar de sol a sol.
       - Amor, eu me realizo trabalhando, não me importo em andar por ai com minha cestinha de doces. Tá bom?
       O lenhador faz cara de quem comeu e não gostou. Ele é obrigado a aceitar pois a sua situação não é ainda favorável para sustentar um lar sozinho.
         - Tudo bem. Vou tomar um banho. Quer ajuda?
         - Não precisa se preocupar, vá descansar.

*

      O ruído de uma motocicleta é ouvido colocando a equipe do xerife Brito em alerta. Um agente confere sua munição enquanto que o outro tenta localizá-lo olhando através de um binóculo.
        - Vê alguma coisa?
        - Nada.
        - Vamos sair da viatura, dessa vez ele não me escapa.
        - Tem certeza? – pendura o binóculo no pescoço.
        - Sim, desça, já.
        Lá vem ele, enfurecido, diabólico e letal. A moto rompe o silêncio noturno com seu condutor de olhos de brasa viva. Até mesmo suas mãos são esqueléticas, elas aceleram a máquina mortal cortando o asfalto da estadual.
       O policial atira. De uma forma surpreendente o assassino motorizado desvia do disparo certeiro e depois empina a motocicleta avançando contra ele. Foi preciso pular para fora da pista para não se tornar mais uma vítima. O outro pega sua calibre doze e dispara. O bicho salta com a moto por cima da viatura que está atravessada na estrada.
         - Santo Deus.
      Imediatamente o outro policial saca o rádio alertando os demais companheiros.
        - Atenção, ele furou o bloqueio, repito, ele furou o bloqueio.
       A polícia não está enfrentando um inimigo comum. Ele é perigoso e não toma conhecimento das autoridades. Para ele o que é uma barreira policial? Ele segue correndo até dá de frente com outro bloqueio. Brito Moreira está logo a frente segurando seu fuzil. A seu lado sua discípula Letícia com sua pistola em mãos. O barulho da moto já pode ser ouvido. Letícia sente um leve mal estar, esse ruído ela conhece bem.
         - Ele chegou, vamos nessa. – grita o xerife.
       Os polícias que estão escondidos atiram e nada acontece. Outros disparos acontecem gerando expectativas. A moto vem vindo e não vem sozinha. O motoqueiro do inferno vem arrastando algo e esse algo berra desesperadamente.
         - Meu Deus. – diz Brito. – é o Jorge.
     A motocicleta fura mais um bloqueio arrastando policial que urra sentindo sua carne sendo arrancada pelo asfalto. Ele é solto perto das outras viaturas. O sentimento que fica é de pura impotência. Letícia corre para socorrer o parceiro.
         - Ele ainda está vivo, chamem uma ambulância.
       Brito Moreira caminha com pressa até o carro. Bastante frustrado ele anuncia o fim da operação. Ele não coloca o rádio no lugar, ele simplesmente o bate e se volta para a sargento.
          - Como ele estar?
          - Muito machucado, mas vai sobreviver.
      Uma das piores sensações que um líder pode sentir, o de estar perdendo uma guerra sem chance de reverter o resultado. Brito se agacha perto de seu soldado para confortá-lo.
          - Fique calmo.
       O rapaz treme e geme ao mesmo tempo. Letícia engole seco várias vezes e depois se afasta para respirar fundo e engolir o choro. Primeiro Pedro e agora Jorge. Quantos mais precisarão sofrer até que esse monstro seja de uma vez por todas tirado de circulação?
     O socorro chega e xerife Brito acompanha de perto o atendimento ao soldado. Letícia o admira ainda mais por esse ato.
        - Cuidem bem dele. – diz ao socorrista.
       A sargento já está a posta dentro da viatura quando o xerife aparece.
        - Eu dirijo.
        - Sim senhor.

*

         Foi um dia produtivo. Damião conseguiu dar conta das lenhas e sua esposa vendeu todos os doces da cesta. Miriam está feliz, muito feliz. Ela volta para casa organizando seus pensamentos quanto ao que preparar para o jantar. Para não perder muito tempo ela resolve seguir pela estadual. Seu vestido rodado com flores gigantes estampadas e cabelos soltos balançam devido ao vento que corre por ali.
      Próximo do km 47 ela escuta o som de um veículo se aproximando. Olha para trás, nada vê. Segue arrastando suas sandálias no asfalto. O barulho está mais perto. No céu o sol já não está mais presente, algumas estrelas sorriem para ela timidamente. Miriam sente medo e um frio repentino. Ela acelera os passos até, por fim, alcançar o km 47.
      Cansada e com medo, a esposa de Damião olha para trás e lá está ele, o assassino motorizado. Ele parece debochar dela ao acelerar contra sua vida. Não resta outra saída a não ser correr. Miriam corre muito com o maldito em duas rodas logo atrás. Ela olha mais uma vez para ele conseguindo fixar em seus olhos. Apavorada ela tropeça caindo e ralando os joelhos. A moto vem em alta velocidade com seus pneus em chamas. Miriam grita assim que tem seu corpo esmagado pelas rodas. Sua perna esquerda foi a mais afetada faltando pouco para se separar do corpo. Miriam grita mais uma vez chamando atenção do motoqueiro que faz a volta. Mesmo mergulhada em dores alucinantes a vendedora consegue ver seu algoz vindo, sorrindo e fazendo de seu corpo uma pista para sua máquina.
      Sangue, membros espalhados e uma cesta vazia jogada no acostamento. Esse foi o fim de Miriam Carvalho. O motoqueiro desaparece em meio a noite deixando para trás um rastro de sangue.

*
         - Mais que coisa, onde essa mulher se meteu? – Damião anda até a cozinha. Ele olha pela janela e é surpreendido pela viatura do xerife Brito. O lenhador abre a porta e vê uma linda policial de boné ao lado do chefe da polícia da região.
         - Oi, Damião, essa é a sargento Letícia, podemos entrar?
         - Claro.

*

        Ninguém, absolutamente ninguém está preparado para sepultar um ente querido, principalmente o grande amor de sua vida. No cemitério Damião tenta desesperadamente se manter firme, porém a emoção o toma de maneira voraz. Ele explode em lágrimas ao lado de seus familiares. O pastor explana as sagradas escrituras de forma primorosa, mas todos estão inconformados.
      Brito aparece na porta da capela olhando para Damião que se levanta.
        - Sinto muito, Damião.
        - Xerife, por favor, prenda esse desgraçado, senão, serei eu quem o senhor vai prender.
        - Damião, escute, sei que está nervoso, mas...
        - Xerife. – funga o nariz. – prenda esse maldito que matou minha Miriam. – rosna.
        - Estou fazendo o melhor que posso.
       Eis que é chegada a hora crucial. O momento da separação definitiva. Momento de deixar o corpo de Miriam na cova. Hora triste. Damião parece viver o seu pior pesadelo, isso dói demais, isso não pode ser real, não pode. Fim de história. Miriam se foi para sempre. De cabeça baixa, olhos fixados na sepultura e na mente lembranças dos melhores dias de sua vida. Esse assassino tirou tudo o que ele tinha de melhor. Como serão os próximos dias?

*

           Os próximos dias serão difíceis de se viver. Damião passa boa parte do tempo sentado debaixo da mangueira chorando ou trincando os dentes de ódio. Vez por outra ele olha para o monte de lenha que ainda tem que preparar e depois para seu machado, sua ferramenta de trabalho inseparável. Esse machado pertenceu primeiramente a seu avô, que também era lenhador. Depois a ferramenta passou para seu pai que deu sequência ao ofício. O machado tem o cabo envernizado e a cunha pintada de vermelho já bastante gasto. Com certeza as digitais dos Carvalho estão impregnadas no cabo dessa poderosa arma.
        Damião antes de se levantar respira fundo. Caminha com pressa até onde o machado está encravado e o arranca de lá usando apenas uma mão. Sua fúria o inflama de tal maneira que ele perde o controle de seu próprio corpo. Sem olhar para trás ele vai abrindo caminho até chegar na estrada estadual. Não se importando com o perigo o viúvo de Miriam anda no meio da pista com o machado apoiado no ombro.
           - Você vai pagar seu miserável, vai pagar caro.
        Um carro precisou desviar dele e quase capota. Damião sequer tomou conhecimento do que ocorreu.
             - Ei, cara, ficou louco, vai para a calçada. – diz outro motorista.
         Damião parece estar em outro planeta. Ele segue caminhando e balbuciando palavras sem sentido, pelo menos para quem o escuta. Passos firmes e precisos e na mente uma decisão. Hoje essa história terá um final, independente do desfecho, o final é certo. Km 47, esse é o seu destino.

*
          As vezes, pra não dizer sempre, ser uma autoridade numa terra sem lei é algo desgastante e até mesmo digno de desistência. Brito Moreira não consegue ver saída ante a esse quadro onde pessoas inocentes são laceradas por um lunático em cima de uma motocicleta decidindo entre a vida e a morte. O que fazer diante dessa situação aparentemente insolúvel?
      De uma coisa o xerife sabe, algo precisa ser feito e com urgência. Do que adianta ficar sentado em seu gabinete traçando planos e lamentando as perdas? Um verdadeiro líder toma a frente e dá a cara para bater. Ele pega sua jaqueta e seu chapéu e parte para a caça.

*
         - Vamos lá, aparece seu maldito, eu estou aqui, vem. – Damião grita a plenos pulmões. – chegou sua hora desgraçado.
      A noite caiu e o lenhador continua irredutível quanto a sua vingança. Estaria Damião ficando louco por causa da saudade e da dor? Não. Claro que não. Um homem determinado tem muito disso, ainda mais sendo esse homem criado com rigidez e sem muito tempo para brincadeiras.
      O machado no ombro aguarda sua vez de entrar em ação no lombo do demônio. Damião olha para os dois sentidos da estadual quando um ruído alcança seus ouvidos. Será ele? Automaticamente seu corpo se prepara para a batalha. O barulho é de moto. Ele olha para o asfalto e as marcas de seu último ataque ainda estão bem vivas. O sangue de Miriam. Sua raiva incendiou todo o seu ser e ele novamente se encontra fora de si.
            - Vem! – berra.
       Sim, é ele. O demônio veloz. Seus olhos incandescentes, seu rosto desfigurado e sua moto envenenada. Lá vem ele, enlouquecido, furioso. Damião se coloca em posição de ataque. Agora nada importa, nada mesmo. Sua vida acabou quando Miriam foi sepultada.
         - Vem! – berrou mais uma vez.
       O demônio abre a boca parecendo rir da situação, parece entender o que lhe espera. Quanto a Damião o golpe precisa ser certeiro, preciso. Cem metros para o impacto e o coração do lenhador para de bater.
         - É agora! – grita Damião.
      O golpe com o machado passa em branco e a moto esbarra em seu braço. O homem rodopia e cai. O bicho faz a volta numa curva impressionante. Ele volta a ser uma ameaça ao viúvo. Damião se levanta se colocando também em posição de ataque.
         - Vem me pegar.
       A moto acelera ainda mais a uma velocidade sobre-humana. Mais uma vez a machadada passa no ar e outra vez Damião vai parar no asfalto. O diabo debocha da cara do sujeito. Descontrolado Damião se levanta desferindo golpes.
          - Agora eu te pego.
       O demônio faz a volta. Acelera. Chega de brincadeira. Vamos ver se esse idiota é esperto o bastante para aguentar essa máquina endiabrada. Damião apenas espera o choque, e ele vem. O lenhador é arremessado a metros. Com a queda ele se feriu no ombro e joelho.
           - Meu Deus. – se contorce.
       Mais uma vez o motoqueiro faz a curva, acelera e vai pra cima. Assustado, dolorido, mas ainda na batalha, Damião se ergue. Pega o machado e o ataca. Sem sucesso. Seu corpo é mais uma vez lançado quase que para fora da pista.
          - Deus!
       Pela primeira vez Damião sente que a guerra está perdida. Em poucos minutos, com certeza ele se juntará a sua amada. Se apoiando no machado ele se levanta, olha para o demônio fazendo a volta para aplicar o golpe final. É preciso mais que isso para vencê-lo. Faltando pouco menos de cem metros para o atropelamento, Damião faz algo que deixa seu oponente sem ação. O ogro pula e se segura na moto. 
       Ficar cara a cara com seu inimigo não lá a melhor das experiências, ainda mais sendo esse adversário um ser habitante das trevas. Damião pode sentir de perto sua fúria e sua energia nociva. Para não ficar por baixo o lenhador também deixa claro seu sentimento por ele.
           - Vou te mandar pro inferno. – grita.
       O demônio breca a motocicleta e como era previsto o corpo de Damião volta a cortar o ar e cair no asfalto emitindo um som surdo. A dor é implacável. Ele se contorce no chão tendo como espectador seu oponente que acelera seu veículo mortal.
          - Ai, isso de novo não.

        Brito Moreira segue com o patrulhamento na via. Próximo do km 47 ele consegue ver uma movimentação estranha.
          - Mas, o que é aquilo?
       Sua bota pisa firme no acelerador da viatura. O xerife confere sua arma no banco do carona. Mesmo não sabendo direito o que está acontecendo ele solicita reforço.
          - Atenção, central, preciso de reforço para o km 47 da estadual.

*

         A moto passa em alta velocidade esbarrando em Damião que sente o ombro estalar. Seu grito é gutural e seu machado cai de sua mão. Sem forças, machucado, sem esperança, esse é o estado do viúvo de Miriam. O sangue grosso escorre até tingir o asfalto. Seu corpo treme sem parar e ele desaba. Sua visão se embaça e seus ouvidos escutam a moto vindo para matá-lo. De repente uma luz forte, seria Miriam voltando para lhe ajudar? Sua visão vai ficando ainda mais turva e seus ouvidos captam.
         - Mãos para o alto, você está preso.
       Forçando a visão, Damião consegue ver xerife Brito apontando um fuzil para o demônio.
         - Vamos, desça da moto, acabou. – grita.
       Quem disse que uma criatura diabólica obedece ordens, ou que acata recomendações? Sem pensar muito ele acelera a máquina indo de encontro ao chefe da polícia. Brito Moreira deixa de lado os procedimentos operacionais e atira. Atira muitas vezes. As balas acertam o corpo do demônio que finalmente ruge feito um felino.
          - Pare a moto, pare agora! – volta a vociferar.
       O fuzil é praticamente descarregado no tronco do motoqueiro que perde o equilíbrio caindo no chão rústico. A moto vai rodando até parar no acostamento. Brito caminha até o assassino que ainda se move.
         - Coloque as mãos na cabeça, agora. – olha rapidamente para Damião. – você está bem, Damião?
    O lenhador apenas mexe a cabeça. O xerife pisa no peito protegido por uma jaqueta preta surrada da criatura.
           - Levante-se.
      O bicho abre os olhos que voltam a ficar feito brasa. Ele segura com força a bota do xerife e a puxa fazendo o policial cair. Com habilidade ele monta no homem e começa a socá-lo incessantemente no rosto. A força dos golpes é algo jamais visto ou até sentido. Brito sente cada parte de seu rosto sendo esmagado, partida. O sangue começa a escorrer e os murros não cessam.
       Sem forças Damião começa a se levantar usando o machado como apoio. De onde estar é possível ouvir o som das pancadas no rosto do xerife. É preciso ser rápido e preciso. Se arrastando praticamente o lenhador caminha até onde Brito é espancado. Ergue o machado e o crava nas costas do bicho. O motoqueiro volta a rugir e se volta contra Damião desferindo fortes socos no rosto até nocauteá-lo.
       Brito aproveita a distração do diabo para pegar seu fuzil e disparar contra ele. Damião recobra a consciência ainda em tempo de ver o xerife descarregando a arma. O machado entra mais uma vez em ação acertando o ombro e depois o peito.
         - Deixa comigo agora Damião. – mira na cabeça e atira.
       O ser cai segurando a cabeça. Damião desce com força o machado em seu crânio. Brito mira e atira mais uma vez. Finalmente o motoqueiro para de se mexer.
         - Ele morreu? – pergunta Damião ofegante.
         - Não sei se esse bicho morre.
     Logo o som das sirenes do reforço chegando ao km 47 é ouvido. Brito chuta devagar a cabeça. Nada, nenhuma reação. Ele saca do bolso uma pequena lanterna.
       - Veja isso, Damião. – ilumina o rosto. – que expressão cadavérica, que coisa horrenda. Veja as mãos, esqueléticas, realmente essa criatura nasceu no inferno, cruz-credo.
         - Jesus. – faz o sinal da cruz.
       Sargento Letícia desce de uma das viaturas correndo e vai ao encontro dos dois homens.
         - Como vocês estão?
      Ao ver o estado do chefe ela solicita a presença do médico que veio junto numa ambulância. O bicho é amarrado e por via das dúvidas é algemado. Damião também é atendido pelo médico. Os agentes terminam o serviço por ali e Brito conversa com o lenhador.
          - Você está bem?
          - Meu ombro dói um pouco, mas, vou ficar bem.
          - Ótimo, eu já vou indo, qualquer coisa é só me procurar na delegacia.
          - Vá com Deus, xerife e muito obrigado.
          - Obrigado a você por pegar aquele maldito.

        Será uma noite diferente, uma noite mais tranquila. Com certeza o pavor e o medo não farão mais parte da vida dos habitantes daquela região. Damião voltará para sua vida humilde de trabalhador do campo e xerife Brito Moreira continuará mantendo a ordem na cidade. Quanto ao demônio da motocicleta, bom, esse se tornará uma lenda, somente uma lenda. FIM.

segunda-feira, 1 de julho de 2019

AQUELE OLHAR - Parte 1


AQUELE OLHAR

Tudo começou quando eu, Augusta, já desconfiava que Arthur estava me traindo. Simplesmente meu marido perdeu o interesse em mim e já não me procurava mais. Eu, boba que era fazia das tripas coração para reacender o nosso fogo. Nada. Arthur se deitava em nossa cama e me ignorava sem nenhuma cerimônia. Tantas foram as noites em que tive que me contentar em dormir com o tesão me sufocando. Quantas vezes tive que recorrer aos meus dedos médio e anelar para me satisfazer. Já perdi as contas.
       Traição é a pior das sacanagens. Eu sempre fui dedicada ao lar, sempre cuidei bem do nosso filho. Nunca neguei nada a Arthur. Mesmo menstruada permitia com que ele se satisfizesse. No fim ele me presenteou com um chapéu com um par de chifres enormes. Eu descobri toda a safadeza do meu marido, porém ele não sabe. Mantenho a naturalidade. Arrumo casa, faço comida, cuido do Gutinho, fico na minha. Tudo isso por fora, por que por dentro o meu desejo é mata-lo. Todas as noites sou acordada por Sávio que insiste que eu me vingue, que eu corte o pescoço de Arthur e essa noite não está sendo diferente. Mais uma vez sinto sua mão fria em meus pés. Abro os olhos e lá está ele, lindo como sempre.
       - Não vai fazer nada mesmo?
       - Não quero destruir minha vida por causa desse sujo.
       - Depois não vai ficar se lamentando pelos cantos. Augusta, a hora é agora, veja. – mostrou-me a faca. – a hora é agora.
       - Eu sei o momento certo.
       Eu não quis esticar o assunto. Puxei o edredom e voltei a dormir. Confesso que não adormeci logo, rolava de um lado para outro e até carneirinhos contei. Quando finalmente consegui dormir já era hora de me levantar e preparar o café do Gutinho.
       Eu me lembro que naquela manhã eu tive uma surpresa. A condução do meu filho chegou quando Arthur ainda tomava café mexendo no celular, talvez conversando com a vagabunda pelo Zap. Quando retornei para cozinha percebi que meu marido me olhava diferente. Eu ainda estava com minha roupa de dormir, uma blusinha solta e shortinho estampado. Sou uma mulher de 43 anos, mas estou em boa forma, uma gostosura de dar água na boca. Arthur se levantou e me agarrou por trás enquanto eu mexia no forno do fogão.
      - O que foi isso? – eu disse sentindo o hálito de café bem perto do meu ouvido.
      - Que tal relembrarmos os velhos tempos de recém casados?
      - Transar. Agora? – ele me beijava a nuca e pescoço.
      - Alguma objeção?
      Eu tentei resistir, mas a minha amiguinha lá embaixo já estava molhando meu shortinho.
      - O que aconteceu? – pergunto revirando os olhos ao sentir a boca de Arthur lambendo minhas costas.
      - Nada. Só fome mesmo.
      Transamos. Fizemos amor gostoso, demorado, ali, na cozinha de nossa casa em plena manhã ensolarada. Arthur me deixou escorada na pia e correu para o banheiro. Eu continuei ali ainda sentindo aquela gostosa sensação pós sexo. Realmente foi bom, muito bom, porém eu ainda guardava um certo ódio. Arthur se foi. Eu fui para o nosso quarto e me deparei com Sávio sentado em minha cama sorrindo para mim.
       - Eita, o que foi aquilo na cozinha minha gente.
       - Tá bom, eu fui fraca, não resisti, já pode começar a encher o saco. – abri o armário e peguei uma toalha e peças de roupa.
       - Foi uma fraca mesmo. Poderia ter aproveitado o momento do oral e ter cortado o negócio dele fora.
       - Fique tranquilo meu amigo. A hora de Arthur está chegando, Agora tudo é uma questão de tempo.
       - Vamos ver então.
       Antes de desaparecer, Sávio me encarou com aquele olhar que me deixou sem ação. Um olhar carregado de maldade, sedento por sangue, um olhar digno do inferno. Entrei no banheiro e pela primeira vez senti medo, medo de Sávio. Pra falar a verdade gostaria que tudo isso acabasse logo. Enquanto tomava banho eu planejava a morte de meu marido. Teria que ser um golpe certeiro e definitivo. Não quero que ele sofra também. Essa noite. Arthur não passará dessa noite. (Continua)