SENHOR
ESCURO
Coletânea
de micro contos
Escrito
por: Luiz Cesar
— A Rua Escura —
Durante o
dia ela só é mais uma rua, mal asfaltada. Praticamente sem calçamento. Do lado
direito o matagal já ultrapassa dois metros de altura e do esquerdo um número
absurdo de árvores não frutíferas. Essa rua não possuí nome ou CEP. Ela não te
leva a lugar algum, isso porque é sem saída. Quem ousa passar por ali, mesmo
tendo a luz do dia como uma forma de proteção, se sente mal, oprimido e porque
não dizer, achafundado na terrível sensação de estar sendo seguido por alguém.
— Foi muito
estranho, eu ouvi ruídos de alguém arrastando chinelos atrás de mim. – falou
uma transeunte.
A noite
ninguém é louco de circular por ali mesmo protegido dentro de um veículo. Quem
o fez, jura ter sofrido a pior experiência de sua vida.
— Eu passei
de moto e vi uma pessoa andando na calçada. Ela usava aquelas roupas de pessoas
internadas no hospital. Horrível o seu aspecto. – relatou um jovem motoqueiro.
Há outros
relatos de que, perto das três horas da madrugada era possível ouvir murmúrios
de vozes falando, crianças chorando e até risadas.
— Eu juro
por Deus. Eu ouvi um barulho perto das árvores e pareciam crianças brincando
num playground. Sinistro. – disse uma moça em situação de rua.
Certa vez,
houve um blackout em toda cidade que durou horas. Os moradores disseram que
desde às dezoito horas, até o fim da escuridão, perto das cinco da manhã, era
possível ouvir a voz de uma mulher pedindo por ajuda e uma outra entoando uma
canção desconhecida. Isso causara pânico e náuseas em todos.
A rua
escura. A rua do medo. A rua maldita. Não sabemos de fato qual nome se encaixa melhor
nesse caso. Qualquer adjetivo funesto se enquadraria. Durante o dia ela é um
mistério profundo e a noite uma ameaça real.
- Demônios na Guerra –
Tudo
aconteceu durante uma emboscada perto das duas da manhã. Nós estávamos num
grupo de trinta homens contando com o capitão. Um grupo dormia enquanto que eu
e mais dez vigiávamos em meio a mata fechada e úmida. Foi a pior experiência da
minha vida naquele conflito, pior até do que assistir corpos sendo dilacerados
ou cortados ao meio por metralhadoras ponto cinquenta. Eu os vi. Todos nós os
vimos. Eles saíram da nada, circulavam pelo mato alto feito sombras, só era
possível ver seus olhos. Olhos vermelhos, brilhantes como brasas vivas.
De longe
pareciam soldados inimigos, usavam fardas, portavam rifles e tudo mais, porém
não eram humanos. Pela mira do meu fuzil eu pude vê-los bem de perto. Só de
lembrar já me causa arrepios e olha que isso acorreu há quarenta anos. Até hoje
não sei como sobrevivi aquela chacina. Eles eram muitos. Uns cem, eu acho. O
primeiro a atirar foi o Rodrigues. Pobre Rodrigues. Teve a cabeça arrancada sem
esforço algum por um deles. Desesperados, meus companheiros iniciaram a
investida lançando suas granadas que de nada adiantaram. A tropa diabólica
seguia avançando.
— O que
faremos, capitão? – berrei.
— Fiquem em
seus postos e lutem. Não parem de atirar, soldados.
Show de
horrores. Um espetáculo regado a sangue, vísceras e gritos de pavor. Algo que
não sai de minha mente foi ver a dois metros de onde eu estava, um dos nossos jovens
ter os olhos arrancados cruelmente. O demônio os comeu. Depois disso, mesmo sob
seu choro pedindo piedade, o ser da escuridão o matou com um único pisão em seu
pescoço. Eu ainda ouço o som do osso se partindo.
Todo
urinado, deixei minha trincheira e corri para uma outra. A cena que presenciei
foi de fazer meu coração despedaçar. O capitão estava lá, com as mãos nos
ouvidos e chorando aos berros. Ao me ver, ele me indagou.
— Saia
daqui, Lopes, fuja, fuja, fuja.
— Venha
comigo, senhor.
— Não seja idiota.
– chorou mais alto. — nós dois seremos alvos fáceis para eles. Você é mais
novo, mais magro e mais rápido. Me deixe aqui. Vai embora.
Me veio uma
incrível vontade de chorar. E eu chorei. Dei uma rápida olhada para fora. Vi
dois capetas esfaqueando o peito do Silva.
— Capitão,
vamos correr para o rio, ele fica a poucos metros daqui. Venha comigo, pelo
amor de Deus. Se ficar o senhor será morto.
Meu
superior estava irredutível e me pediu algo ainda mais triste.
— Atire em
mim, Lopes. Eu não vou conseguir chegar ao rio.
O capitão
havia sido atingido na perna por um atirador inimigo que esperava por nós em
uma casa-mata há três dias.
— Essa
merda ainda dói, e eu não quero morrer pelas mãos desses bichos.
Olhei mais
uma vez para fora e vi o Albuquerque sendo partido em vários pedaços por um
soldado demônio gigante. Seu aspecto me deixou sem fôlego.
— Lopes.
Você precisa sair daqui, filho. Tome isso. – me entregou uma carta. – assim que
pousar em nosso país, procure por minha família, entregue essa carta a minha
mulher. – começou a chorar e a salivar. — diga a ela que eu a amava e que
sempre vou ama-la. Faça isso por mim, soldado...
— Mas,
capitão...
— É uma
ordem. – gritou. – atira em mim, rápido, eles estão vindo.
Em prantos
saquei minha pistola. Mirei em sua testa e apertei o gatilho. Meu rosto foi salpicado
pelo sangue. Não havia mais tempo. Se eu saísse seria morto terrivelmente. Deitei-me
na trincheira e me cobri com o corpo do meu capitão. Permaneci ali por três
longas horas até tudo se acalmar. Deixei o buraco onde estava com o dia claro.
Antes de seguir para o rio, fiz uma oração e prestei continência ao capitão
Marçal. Quanto a carta, a entreguei pessoalmente a viúva que me agradeceu demais.
Foi graças ao capitão, e a missão que me incumbiu, que hoje estou casado com a
mulher de minha vida, Julia Marçal, sua filha, há quarenta anos.
— Caçada
Noturna —
O ferimento
no braço esquerdo arde e queima feito brasa viva. A caçada não foi nada fácil e
tanto ele como os demais foram alertados quanto ao perigo. Como líder do bando
ele estava certo de que todos voltariam para conforto do lar, felizes pela
vitória alcançada. Pois é. Nem sempre o que planejamos acontece. Ele percorre
todo o caminho de volta para casa, mas seu semblante não é de alegria e muito
menos está acompanhado por outros valentes como ele. Foram todos mortos. Apenas
Antônio sobreviveu a fúria dos demônios em figura de lobo. Eles eram muitos e
esse foi o erro. Erro gravíssimo. Erro que custou a vida dos nove valentes.
Antônio não esperava por isso. Ninguém esperava.
E não pense
ele que o perigo já se fora. Mesmo longe da floresta os lobisomens podem muito
bem alcança-lo e dar por terminada a chacina. Perto do riacho que divide a
cidade com a mata, Antônio resolveu deitar-se a fim de recuperar o fôlego e se
hidratar. A dor no braço não passa. Ao encostar sua boca nas águas frias o
caçador agradeceu aos céus pelo fato do ferimento não ter sido produzido por um
homem-lobo. Assim acha ele. Na verdade, Antônio não se lembra como tudo
aconteceu. Ao tentar ficar de pé e seguir sua caminhada, seus ouvidos captaram alguns
uivos. Estavam longe. Parecia ser mais de um na realidade. Às mãos trêmulas
seguraram firme a culatra do trinta e oito no coldre.
— Venham,
desgraçados. – balbuciou.
Antônio iniciou
a travessia do riacho. Tropeçou numa pedra pontuda e se espatifou nas águas as
manchado de sangue. A dor se intensificou e ele não pode conter seus gritos e
xingamentos. Os uivos se tornaram mais fortes e estavam cada vez mais pertos e
isso significava uma coisa; estava em apuros e se quisesse sobreviver, Antônio
teria que ignorar a dor e correr até alcançar a estrada.
Quando
finalmente terminou de atravessar o riacho, Antônio sacou sua arma e para sua
triste surpresa a mesma encontrava-se somente com duas balas no tambor.
— Mais que
porcaria.
Às roupas
agora ensopadas, tornaram o desafio de sair dessa enrascada ainda maior, além
do braço ferido que não para hora alguma de latejar.
— Argh!
Jesus Cristo. – murmurou enquanto entrava em outra parte da mata fechada.
Agora falta
pouco. Muito pouco para que finalmente Antônio chegue a estrada e com sorte consiga
uma carona. Duas balas. Dois disparos. Isso precisa funcionar. Tem que
funcionar, caso contrário, ele servirá de alimento para os demônios uivantes. E
por falar neles...
Já era
possível ver às dezenas de árvores a frente da cerca de arame farpado. Passando
por elas, a tão aguardada estrada com seu asfalto irregular. Antônio olhou para
trás ainda em tempo de ver alguns pares de olhos incandescentes surgindo em
meio a escuridão.
— Aí, meu
Deus. São eles.
Para não
ser surpreendido, o caçador achou melhor correr de costas mesmo correndo o
risco de tropeçar nas raízes. Um dos lobisomens rosnou deixando cair do focinho
uma bela quantidade de saliva. Em seguida, o mesmo homem-lobo tentou
abocanha-lo, porém foi alvejado na cabeça.
— Vamos lá,
me ajuda Deus.
Outra
tentativa de ataque. Outro lobisomem e dessa vez o seu aspecto faz o coro
cabeludo do caçador se arrepiar inteiro. Ele tinha partes do corpo transformada
em lobo e outras de homem. Bastante sinistro. Esse também fora atingido na
cabeça. Fim das balas. O jeito foi correr. Antônio passou pelas árvores.
Alcançou a cerca. Ao pula-la, sua calça entranhou-se nas pontas o impedindo de
seguir adiante.
— Essa não.
– gritou.
Três lobos pularam
com suas bocas abertas e presas enormes a mostra em direção ao jantar que
tentava as duras penas se livrar da morte iminente. Pobre Antônio. Pelo menos ganhou
uma lápide bonita e um epitáfio com dizeres do tipo: aqui descansa um herói.
– A
Última Noite –
A vítima
tenta a todo custo encontrar uma posição menos desconfortável antes da chegada
de seu algoz naquele lugar escuro, mal ventilado e fétido. Ele sabe que vai morrer,
por isso o sacrifício de encontrar um jeito mais digno possível de deixar a
vida entre aquelas pedras. Tudo o que sabe é que o lugar é uma caverna e só. A secura
faz com que sua língua cole no céu de sua boca e o suor que escorre da testa
queima seus olhos azuis piscina “eu preciso sair daqui” se agitou. Do fundo da
caverna ele escuta uma voz. Seu coração lhe deu um sinal de alerta. A morte
está cada vez mais perto. Ao imaginar que, dali a alguns minutos ele será
brutalmente retirado de sua curta exigência, todos os músculos do corpo entraram
em ação na tentativa de se livrar das cordas.
— Socorro.
Alguém me ajuda. – seu grito ecoou por todo o lugar.
Como puro
encanto, uma figura sinistra, usando um tipo de capa, bastante surrada,
apareceu bem na sua frente o encarando de maneira ameaçadora.
— O que
pensa que está fazendo?
— Por
favor, eu imploro, deixe-me ir. – pediu chorando.
— Isso
encontra-se fora de cogitação, humano.
— Vamos
fazer o seguinte. Eu sou bem sucedido, possuo muitos bens, é só você me pedir que
eu faço.
O ser
misterioso se afastou dirigindo se até perto da entrada da caverna e contemplou
a noite.
— O seu
dinheiro consegue comprar a mortalidade?
O homem
ainda assustado não entendeu a pergunta.
— Como
assim?
—
Mortalidade. O seu dinheiro consegue comprar?
— É, que...
— Ele
consegue trazer de volta meus seiscentos anos perdidos? Minha história? Minha
família?
— Não, é
que...
A criatura
se voltou para sua presa e abriu os longos braços.
— Acho que
já sei a resposta, então, não me resta outra alternativa a não ser lhe matar.
Mais uma
vez a vítima urinou nas calças e isso de forma alguma lhe causou
constrangimento. A criatura arreganhou sua boca e exibiu para o homem seus
dentes pontiagudos e apodrecidos. Seu hálito é muito parecido com o odor de uma
caixa de gordura abandonada há séculos. Antes de receber a primeira mordida em
sua jugular o capturado declarou.
— Acho que
eu consigo comprar a sua mortalidade.
O vampiro fechou
a boca junto com os braços.
— Acha ou
tem certeza?
— Sim, sim,
eu tenho certeza. – engoliu seco com sua respiração ofegante.
— Se
estiver me enganando, vou dar um jeito de ir atrás de sua família e a
transformarei em demônios sugadores de sangue como eu.
Na mesma
hora lhe veio a mente seus pais já idosos e suas irmãs mais velhas.
— Você acha
que estou em posição de enganar alguém? Eu vou comprar sua mortalidade e ponto
final.
— E como
fará isso? – o noturno cruzou os braços.
— Eu fiz
parte de uma seita milenar a qual alcancei o posto mais alto e isso fez com que
meu líder maior me dotasse de poder.
— Um ser
humano dotado de poder. Que tipo de poder? – pôs a mão no queixo.
— Então, é,
foi graças a esse poder que consegui conquistar uma vida financeira bem legal e
agora, consigo o que eu quero.
O vampiro voltou
a abrir os braços, mas agora ele usou de desdém.
— Então
vamos lá, senhor todo poderoso, me torne mortal outra vez.
— Você
precisa me soltar primeiro.
O noturno
fechou o semblante.
— Lógico
que não.
— Vou
precisar das mãos livres.
Aos poucos o
rosto do ser caído que já era assustador, passou a criar contornos
aterrorizantes deixando o sujeito em estado de choque.
— Isso está
me cheirando a puro engodo.
— Acredite
em mim. Eu posso lhe tornar mortal outra vez. Imagine você poder sentir calor,
frio, sentir o sol, não temer mais crucifixo. Imagine, comer uma deliciosa
refeição carregada de alho. Voltar a ser humano.
O vampiro se
transformou em uma fera assassina com asas de morcego e sem hesitação aplicou
uma certeira e mortal mordida em sua presa. Do ferimento o sangue esguichava
feito um chafariz de jardim, o demônio aproveitou para se deliciar da chuva de
sangue quente. Um outro vampiro pousou na boca da caverna e assim que seus pés
descalços tocaram o chão úmido ele correu em direção ao companheiro.
— Onde está
ele?
— Ele quem?
– voltou ao seu estado normal.
— O mago,
onde ele está? Me disseram que você o trouxe pra cá.
Com o redor
da boca manchado de sangue ele olhou para o corpo ainda amarrado nas pedras.
— Não me
diga que esse era o tal mago?
O outro
noturno olhou mais de perto.
— O que
você fez? – vociferou. — você o matou. O mago, não o conhecia? Esse sujeito
possuía poderes incríveis, entre eles...
FIM.