sexta-feira, 10 de março de 2023

Senhor Escuro

 


SENHOR ESCURO

Coletânea de micro contos

Escrito por: Luiz Cesar

 

— A Rua Escura —

 

Durante o dia ela só é mais uma rua, mal asfaltada. Praticamente sem calçamento. Do lado direito o matagal já ultrapassa dois metros de altura e do esquerdo um número absurdo de árvores não frutíferas. Essa rua não possuí nome ou CEP. Ela não te leva a lugar algum, isso porque é sem saída. Quem ousa passar por ali, mesmo tendo a luz do dia como uma forma de proteção, se sente mal, oprimido e porque não dizer, achafundado na terrível sensação de estar sendo seguido por alguém.

— Foi muito estranho, eu ouvi ruídos de alguém arrastando chinelos atrás de mim. – falou uma transeunte.

A noite ninguém é louco de circular por ali mesmo protegido dentro de um veículo. Quem o fez, jura ter sofrido a pior experiência de sua vida.

— Eu passei de moto e vi uma pessoa andando na calçada. Ela usava aquelas roupas de pessoas internadas no hospital. Horrível o seu aspecto. – relatou um jovem motoqueiro.

Há outros relatos de que, perto das três horas da madrugada era possível ouvir murmúrios de vozes falando, crianças chorando e até risadas.

— Eu juro por Deus. Eu ouvi um barulho perto das árvores e pareciam crianças brincando num playground. Sinistro. – disse uma moça em situação de rua.

Certa vez, houve um blackout em toda cidade que durou horas. Os moradores disseram que desde às dezoito horas, até o fim da escuridão, perto das cinco da manhã, era possível ouvir a voz de uma mulher pedindo por ajuda e uma outra entoando uma canção desconhecida. Isso causara pânico e náuseas em todos.

A rua escura. A rua do medo. A rua maldita. Não sabemos de fato qual nome se encaixa melhor nesse caso. Qualquer adjetivo funesto se enquadraria. Durante o dia ela é um mistério profundo e a noite uma ameaça real.

 

- Demônios na Guerra –

 

Tudo aconteceu durante uma emboscada perto das duas da manhã. Nós estávamos num grupo de trinta homens contando com o capitão. Um grupo dormia enquanto que eu e mais dez vigiávamos em meio a mata fechada e úmida. Foi a pior experiência da minha vida naquele conflito, pior até do que assistir corpos sendo dilacerados ou cortados ao meio por metralhadoras ponto cinquenta. Eu os vi. Todos nós os vimos. Eles saíram da nada, circulavam pelo mato alto feito sombras, só era possível ver seus olhos. Olhos vermelhos, brilhantes como brasas vivas.

De longe pareciam soldados inimigos, usavam fardas, portavam rifles e tudo mais, porém não eram humanos. Pela mira do meu fuzil eu pude vê-los bem de perto. Só de lembrar já me causa arrepios e olha que isso acorreu há quarenta anos. Até hoje não sei como sobrevivi aquela chacina. Eles eram muitos. Uns cem, eu acho. O primeiro a atirar foi o Rodrigues. Pobre Rodrigues. Teve a cabeça arrancada sem esforço algum por um deles. Desesperados, meus companheiros iniciaram a investida lançando suas granadas que de nada adiantaram. A tropa diabólica seguia avançando.

— O que faremos, capitão? – berrei.

— Fiquem em seus postos e lutem. Não parem de atirar, soldados.

Show de horrores. Um espetáculo regado a sangue, vísceras e gritos de pavor. Algo que não sai de minha mente foi ver a dois metros de onde eu estava, um dos nossos jovens ter os olhos arrancados cruelmente. O demônio os comeu. Depois disso, mesmo sob seu choro pedindo piedade, o ser da escuridão o matou com um único pisão em seu pescoço. Eu ainda ouço o som do osso se partindo.

Todo urinado, deixei minha trincheira e corri para uma outra. A cena que presenciei foi de fazer meu coração despedaçar. O capitão estava lá, com as mãos nos ouvidos e chorando aos berros. Ao me ver, ele me indagou.

— Saia daqui, Lopes, fuja, fuja, fuja.

— Venha comigo, senhor.

— Não seja idiota. – chorou mais alto. — nós dois seremos alvos fáceis para eles. Você é mais novo, mais magro e mais rápido. Me deixe aqui. Vai embora.

Me veio uma incrível vontade de chorar. E eu chorei. Dei uma rápida olhada para fora. Vi dois capetas esfaqueando o peito do Silva.

— Capitão, vamos correr para o rio, ele fica a poucos metros daqui. Venha comigo, pelo amor de Deus. Se ficar o senhor será morto.

Meu superior estava irredutível e me pediu algo ainda mais triste.

— Atire em mim, Lopes. Eu não vou conseguir chegar ao rio.

O capitão havia sido atingido na perna por um atirador inimigo que esperava por nós em uma casa-mata há três dias.

— Essa merda ainda dói, e eu não quero morrer pelas mãos desses bichos.

Olhei mais uma vez para fora e vi o Albuquerque sendo partido em vários pedaços por um soldado demônio gigante. Seu aspecto me deixou sem fôlego.

— Lopes. Você precisa sair daqui, filho. Tome isso. – me entregou uma carta. – assim que pousar em nosso país, procure por minha família, entregue essa carta a minha mulher. – começou a chorar e a salivar. — diga a ela que eu a amava e que sempre vou ama-la. Faça isso por mim, soldado...

— Mas, capitão...

— É uma ordem. – gritou. – atira em mim, rápido, eles estão vindo.

Em prantos saquei minha pistola. Mirei em sua testa e apertei o gatilho. Meu rosto foi salpicado pelo sangue. Não havia mais tempo. Se eu saísse seria morto terrivelmente. Deitei-me na trincheira e me cobri com o corpo do meu capitão. Permaneci ali por três longas horas até tudo se acalmar. Deixei o buraco onde estava com o dia claro. Antes de seguir para o rio, fiz uma oração e prestei continência ao capitão Marçal. Quanto a carta, a entreguei pessoalmente a viúva que me agradeceu demais. Foi graças ao capitão, e a missão que me incumbiu, que hoje estou casado com a mulher de minha vida, Julia Marçal, sua filha, há quarenta anos.

 

— Caçada Noturna —

 

O ferimento no braço esquerdo arde e queima feito brasa viva. A caçada não foi nada fácil e tanto ele como os demais foram alertados quanto ao perigo. Como líder do bando ele estava certo de que todos voltariam para conforto do lar, felizes pela vitória alcançada. Pois é. Nem sempre o que planejamos acontece. Ele percorre todo o caminho de volta para casa, mas seu semblante não é de alegria e muito menos está acompanhado por outros valentes como ele. Foram todos mortos. Apenas Antônio sobreviveu a fúria dos demônios em figura de lobo. Eles eram muitos e esse foi o erro. Erro gravíssimo. Erro que custou a vida dos nove valentes. Antônio não esperava por isso. Ninguém esperava.

E não pense ele que o perigo já se fora. Mesmo longe da floresta os lobisomens podem muito bem alcança-lo e dar por terminada a chacina. Perto do riacho que divide a cidade com a mata, Antônio resolveu deitar-se a fim de recuperar o fôlego e se hidratar. A dor no braço não passa. Ao encostar sua boca nas águas frias o caçador agradeceu aos céus pelo fato do ferimento não ter sido produzido por um homem-lobo. Assim acha ele. Na verdade, Antônio não se lembra como tudo aconteceu. Ao tentar ficar de pé e seguir sua caminhada, seus ouvidos captaram alguns uivos. Estavam longe. Parecia ser mais de um na realidade. Às mãos trêmulas seguraram firme a culatra do trinta e oito no coldre.

— Venham, desgraçados. – balbuciou.

Antônio iniciou a travessia do riacho. Tropeçou numa pedra pontuda e se espatifou nas águas as manchado de sangue. A dor se intensificou e ele não pode conter seus gritos e xingamentos. Os uivos se tornaram mais fortes e estavam cada vez mais pertos e isso significava uma coisa; estava em apuros e se quisesse sobreviver, Antônio teria que ignorar a dor e correr até alcançar a estrada.

Quando finalmente terminou de atravessar o riacho, Antônio sacou sua arma e para sua triste surpresa a mesma encontrava-se somente com duas balas no tambor.

— Mais que porcaria.

Às roupas agora ensopadas, tornaram o desafio de sair dessa enrascada ainda maior, além do braço ferido que não para hora alguma de latejar.

— Argh! Jesus Cristo. – murmurou enquanto entrava em outra parte da mata fechada.

Agora falta pouco. Muito pouco para que finalmente Antônio chegue a estrada e com sorte consiga uma carona. Duas balas. Dois disparos. Isso precisa funcionar. Tem que funcionar, caso contrário, ele servirá de alimento para os demônios uivantes. E por falar neles...

Já era possível ver às dezenas de árvores a frente da cerca de arame farpado. Passando por elas, a tão aguardada estrada com seu asfalto irregular. Antônio olhou para trás ainda em tempo de ver alguns pares de olhos incandescentes surgindo em meio a escuridão.

— Aí, meu Deus. São eles.

Para não ser surpreendido, o caçador achou melhor correr de costas mesmo correndo o risco de tropeçar nas raízes. Um dos lobisomens rosnou deixando cair do focinho uma bela quantidade de saliva. Em seguida, o mesmo homem-lobo tentou abocanha-lo, porém foi alvejado na cabeça.

— Vamos lá, me ajuda Deus.

Outra tentativa de ataque. Outro lobisomem e dessa vez o seu aspecto faz o coro cabeludo do caçador se arrepiar inteiro. Ele tinha partes do corpo transformada em lobo e outras de homem. Bastante sinistro. Esse também fora atingido na cabeça. Fim das balas. O jeito foi correr. Antônio passou pelas árvores. Alcançou a cerca. Ao pula-la, sua calça entranhou-se nas pontas o impedindo de seguir adiante.

— Essa não. – gritou.

Três lobos pularam com suas bocas abertas e presas enormes a mostra em direção ao jantar que tentava as duras penas se livrar da morte iminente. Pobre Antônio. Pelo menos ganhou uma lápide bonita e um epitáfio com dizeres do tipo: aqui descansa um herói.

 

A Última Noite –

A vítima tenta a todo custo encontrar uma posição menos desconfortável antes da chegada de seu algoz naquele lugar escuro, mal ventilado e fétido. Ele sabe que vai morrer, por isso o sacrifício de encontrar um jeito mais digno possível de deixar a vida entre aquelas pedras. Tudo o que sabe é que o lugar é uma caverna e só. A secura faz com que sua língua cole no céu de sua boca e o suor que escorre da testa queima seus olhos azuis piscina “eu preciso sair daqui” se agitou. Do fundo da caverna ele escuta uma voz. Seu coração lhe deu um sinal de alerta. A morte está cada vez mais perto. Ao imaginar que, dali a alguns minutos ele será brutalmente retirado de sua curta exigência, todos os músculos do corpo entraram em ação na tentativa de se livrar das cordas.

— Socorro. Alguém me ajuda. – seu grito ecoou por todo o lugar.

Como puro encanto, uma figura sinistra, usando um tipo de capa, bastante surrada, apareceu bem na sua frente o encarando de maneira ameaçadora.

— O que pensa que está fazendo?

— Por favor, eu imploro, deixe-me ir. – pediu chorando.

— Isso encontra-se fora de cogitação, humano.

— Vamos fazer o seguinte. Eu sou bem sucedido, possuo muitos bens, é só você me pedir que eu faço.

O ser misterioso se afastou dirigindo se até perto da entrada da caverna e contemplou a noite.

— O seu dinheiro consegue comprar a mortalidade?

O homem ainda assustado não entendeu a pergunta.

— Como assim?

— Mortalidade. O seu dinheiro consegue comprar?

— É, que...

— Ele consegue trazer de volta meus seiscentos anos perdidos? Minha história? Minha família?

— Não, é que...

A criatura se voltou para sua presa e abriu os longos braços.

— Acho que já sei a resposta, então, não me resta outra alternativa a não ser lhe matar.

Mais uma vez a vítima urinou nas calças e isso de forma alguma lhe causou constrangimento. A criatura arreganhou sua boca e exibiu para o homem seus dentes pontiagudos e apodrecidos. Seu hálito é muito parecido com o odor de uma caixa de gordura abandonada há séculos. Antes de receber a primeira mordida em sua jugular o capturado declarou.

— Acho que eu consigo comprar a sua mortalidade.

O vampiro fechou a boca junto com os braços.

— Acha ou tem certeza?

— Sim, sim, eu tenho certeza. – engoliu seco com sua respiração ofegante.

— Se estiver me enganando, vou dar um jeito de ir atrás de sua família e a transformarei em demônios sugadores de sangue como eu.

Na mesma hora lhe veio a mente seus pais já idosos e suas irmãs mais velhas.

— Você acha que estou em posição de enganar alguém? Eu vou comprar sua mortalidade e ponto final.

— E como fará isso? – o noturno cruzou os braços.

— Eu fiz parte de uma seita milenar a qual alcancei o posto mais alto e isso fez com que meu líder maior me dotasse de poder.

— Um ser humano dotado de poder. Que tipo de poder? – pôs a mão no queixo.

— Então, é, foi graças a esse poder que consegui conquistar uma vida financeira bem legal e agora, consigo o que eu quero.

O vampiro voltou a abrir os braços, mas agora ele usou de desdém.

— Então vamos lá, senhor todo poderoso, me torne mortal outra vez.

— Você precisa me soltar primeiro.

O noturno fechou o semblante.

— Lógico que não.

— Vou precisar das mãos livres.

Aos poucos o rosto do ser caído que já era assustador, passou a criar contornos aterrorizantes deixando o sujeito em estado de choque.

— Isso está me cheirando a puro engodo.

— Acredite em mim. Eu posso lhe tornar mortal outra vez. Imagine você poder sentir calor, frio, sentir o sol, não temer mais crucifixo. Imagine, comer uma deliciosa refeição carregada de alho. Voltar a ser humano.

O vampiro se transformou em uma fera assassina com asas de morcego e sem hesitação aplicou uma certeira e mortal mordida em sua presa. Do ferimento o sangue esguichava feito um chafariz de jardim, o demônio aproveitou para se deliciar da chuva de sangue quente. Um outro vampiro pousou na boca da caverna e assim que seus pés descalços tocaram o chão úmido ele correu em direção ao companheiro.

— Onde está ele?

— Ele quem? – voltou ao seu estado normal.

— O mago, onde ele está? Me disseram que você o trouxe pra cá.

Com o redor da boca manchado de sangue ele olhou para o corpo ainda amarrado nas pedras.

— Não me diga que esse era o tal mago?

O outro noturno olhou mais de perto.

— O que você fez? – vociferou. — você o matou. O mago, não o conhecia? Esse sujeito possuía poderes incríveis, entre eles...

FIM.