quarta-feira, 28 de junho de 2023

Máscara da Morte | Capítulo 4

 


Ainda no carro Fontana fez uma busca na internet baseando-se pela comanda encontrada. Muito empolgado, ele mal conseguia digitar o endereço do site, foi preciso um rápido exercício para o controle da respiração. O celular estava apenas com vinte por cento de carga e só agora ele se deu conta que havia deixado o carregador em casa. Mas, tudo bem, sem estresse.

 

O site abriu. Um estabelecimento comum, daqueles que é possível encontrar em qualquer bairro de médio porte, localizado próximo ao centro de Paraíso Novo. Ainda preocupado com a baixa carga da bateria, Abílio buscou o que realmente o interessava. Câmeras de segurança. Não encontrou nada que dissesse “possuímos monitoramento para melhor protegê-lo”, mas viu que o lugar tem sim um sistema de vigilância e isso sim, é ótimo. Ele anotou o endereço e conferiu o horário. Um pouco tarde para ir até lá. Tudo bem, o estrago já havia sido feito, o melhor a fazer é voltar para casa e... Zélia.

 

*

 

Após alguns bocejos e várias espreguiçadas barulhentas, Abílio Fontana desceu do veículo e pela primeira vez ele sentiu o peso da idade chegando. Lógico que isso não o abalou, envelhecer é para quem pode. Ele deu uma rápida alongada em sua lombar estudando a fachada do bar. Nada mal. Caminhou moderadamente observando o movimento de cada civil, o cheiro do café fresco o deixou entorpecido mesmo ele de barriga cheia do desjejum feito em casa com Zélia. Por falar nela, Fontana ao chegar ontem, pode sentir um clima um pouco mais leve, Zélia trazia um tímido sorriso no rosto. Isso consegue deixar qualquer homem assustado, mulheres “hormonalmente” mexidas conseguem tudo. Mas, graças a Deus nada aconteceu.

— Olá, bom dia! Um café, por gentileza. — encostou no balcão.

 

— Pingado ou puro, meu bem?

 

A atendente regula aproximadamente a idade do detetive, rosto redondo e maquiado, muito linda.

 

— Puro, por favor.

 

Abílio se esforçou para não perder o foco, mas a protuberância traseira da mulher foi mais forte do que ele. A frente então nem se fala.

 

— Prontinho. — sorriu.

 

— Obrigado.

 

Os sachês de açúcar estavam sendo abertos e o seu conteúdo jogado no líquido fumegante enquanto os olhos do Investigador escaneavam o lugar até se cruzarem com os da atendente. Eles permaneceram se olhando por alguns segundos até Abílio perder para a timidez.

 

Olhando para as intermináveis garrafas de bebidas nos fundos do balcão, ele encontrou o que tanto procurava. Comemorou intuitivamente e depois buscou por outra, porém lá estava a atendente o comendo com os olhos. Até que ela não é de se jogar fora, possuí tudo o que ele admira numa mulher e em grande escala. Deixando a timidez de lado, Fontana lhe jogou um sorrisinho de canto de boca que logo foi retribuído com outro. Aí, meu Deus, onde estou me metendo?

 

Ele não estava ali para uma aventura, havia um caso em andamento então...

 

— Por favor, a conta.

 

Conforme a gata cinquentona andava em sua direção, Abílio sentia o coração esbarrar na garganta.

 

— Dois reais, mas esse pode deixar por minha conta.

 

Abílio engoliu seco.

 

— Sério?

 

— Muito sério.

 

Ela cheirava a hidratante e tinha um sorriso encantador, Abílio estava hipnotizado por ela.

 

— Quando posso te ver fora daqui?

 

Ela olhou para a porta onde havia um movimento de clientes chegando.

 

— Anota meu número, rapidinho.

 

Fontana sabia que estava fazendo merda, mas agora era um pouco tarde para voltar. Ela falou e ele anotou em seu bloco.

 

— Posso te ligar mais tarde?

 

— Pode. — se afastou exibindo o que ela tinha de maior e melhor.

 

*

 

A vida está passando e enquanto isso Zélia a aproveita o melhor possível dobrando as roupas e as organizando no armário. Não é uma de suas tarefas prediletas, mas manter um guarda-roupas bem organizado não fará mal a ninguém. Esse tipo de trabalho doméstico é bom para a mente, ele a fez voltar no tempo, há quase quarenta anos quando Abílio e ela se conheceram na chegada ao baile de carnaval. Quando jovem Zélia gostava de se reunir com a turma e seguir a pé até o centro onde acontecia o maior fuzuê da cidade. Réveillon, carnaval, São João entre outras comemorações o point da juventude dos anos 70 era ali.

 

Zélia chegava fantasiada de odalisca e Abílio Fontana de Tarzan exibindo todo seu físico coberto por pelos negros. Ela não conseguiu segurar a excitação e nem a piadinha sem graça.

 

— E aí, Tarzan, cadê a Jane?

 

O baile só terminou no outro dia pela manhã, isso porque houve um princípio de confusão e a polícia interveio. Boa parte da galera permaneceu no local, cada um procurou um canto menos desconfortável para curar a ressaca, porém o casal recém-conhecido Abílio e Zélia correram para o apartamento dele e ali ficaram durante todo aquele sábado de folia.

 

Dobrar roupas e guarda-las é sim um porre, mas tem seu tempo de duração. As memórias seguem até Deus sabe quando e sim, há lugares no passado que não merecem ser revisitados.

 

*

 

Abílio Fontana passou o dia inteiro no departamento revisando os arquivos de ocorrências sobre homicídios e não encontrou nada que pudesse ajudá-lo nessa nova empreitada. Ele gostaria de saber se, em meio as dezenas de documentos houvesse pelo menos um onde a vítima foi morta envenenada por Cianeto. Lógico que Fontana encontrou alguns, mas longe da gravidade do atual. Quando resolveu parar e tomar um café o horário já era avançado e seu plantão estava próximo de terminar. Ele deixou a sala dos arquivos e andou pelo corredor rodando o molho de chaves no dedo indicador até a sala de Fausto.

 

— Eu já vou indo. — bateu na porta.

 

Maia sinalizou o pedindo para esperar. Putz!

 

Cinco minutos depois, Abílio tomava uma deliciosa e estupidamente gelada tulipa de chopp com seu chefe em um bar sofisticado.

 

— Sempre que posso eu venho aqui. — disse o delegado.

 

— Quase sempre passo por aqui e nunca pensei que um dia estaria aqui dentro e logo com quem. — riu.

 

— Que merda! Você precisa provar a linha de petiscos daqui é simplesmente maravilhosa.

 

— Quer rachar? — sacou a carteira.

 

— Nada feito. Eu lhe convidei. É por minha conta. — chamou o garçom.

 

Foram às duas horas mais surpreendentes da vida profissional de Fontana. Fausto revelou ser um ser humano e somente isso. Abílio conheceu um lado de seu chefe que poucos nem sequer imaginam que exista. Fragilidade.

 

— Mas você nunca pensou em ir até lá e dizer isso a ela? — perguntou Abílio andando lado a lado com Fausto até o carro.

 

— Pior que já, mas, sabe como são às coisas. Algo me bloqueia sempre.

 

— Chefe, chefe, a vida tá passando. Ela é sua irmã, sua família, vai deixar que um pequeno desentendimento destrua tudo que seus pais trabalharam tanto durante anos para estruturar?

 

Fausto parou a centímetros de seu veículo e olhou para o seu notável investigador.

 

— Você é fera mesmo, Fontana. Além de bom policial é um excelente conselheiro familiar.

 

Eles riram juntos.

 

— Vamos nessa que a festa só está começando. — destravou a porta do carro e embarcou.

 

*

 

Voltando para casa Abílio se lembrou da linda atendente do bar. Ele parou para abastecer e aproveitou a ocasião. Ligou para ela que o atendeu ao segundo toque.

 

— Oi! pensei haver esquecido de mim.

 

— Jamais! Podemos conversar?

 

— Agora?

 

— Sim, se puder é claro.

 

— Um momentinho.

 

Abílio ficou de olho na bomba e depois voltou sua atenção para o frentista.

 

— Alô?

 

— Oi! diga.

 

— Anota meu endereço.

 

Minutos depois Abílio a aguardava em frente a um condomínio sem muita expressão. Ela passou pelo portão esbanjando sensualidade e um perfume doce que o deixou embriagado.

 

— Oi! — seu rosto estava ruborizado.

 

— Oi! entre. Chamo-me Abílio.

 

— Prazer, Fátima.

 

— Belo nome. E então, quer ir para onde?

 

Fátima ajeitou os cabelos atrás das orelhas e ficou ainda mais vermelha.

 

— Ah! não muito longe, amanhã trabalho cedo lá no bar e...

 

— Legal. É sobre o bar mesmo que eu quero conversar. — ligou o carro e saiu.

 

Fátima não sabia o que pensar, muito menos no que dizer sentada no banco do carona aguardando a volta de Abílio com o lanche. Assim que seus olhos o viram vindo segurando uma bandeja com os hambúrgueres e refrigerantes, a atendente conferiu rapidamente o hálito e também se o desodorante ainda se mantinha em atividade. Tudo certo, graças a Deus.

 

— Demorou, mas está aqui. Refrigerante diet como você pediu.

 

— Ah! obrigada.

 

Fontana ocupou o lugar do motorista já de olho no par de coxas roliças da mulher.

 

— Você disse que gostaria de falar sobre o bar, o que necessariamente?

 

— Sim! Ele possui câmeras de segurança, não é? — sorveu a Coca.

 

— Sim, possuímos.

 

— As imagens ficam armazenadas ou elas só filmam?

 

— Não, as imagens ficam armazenadas na memória, porque o interesse? — mordeu o sanduíche.

 

— Sou investigador de polícia. — Fátima arregalou os olhos. — me desculpe por não ter lhe contado antes, estou investigando um caso de homicídio e é bem provável que o assassino ou assassina tenho estado lá.

 

— Meu Deus! que loucura.

 

— Pois é, loucura mesmo.

 

Fátima abaixou a cabeça e mexeu nas unhas.

 

— E você só me procurou por isso?

 

— Acreditaria em mim se eu dissesse que não?

 

Faltando poucos minutos para um novo dia, Fátima desembarcou do carro do policial que a propôs um novo encontro.

 

— Sim, claro que sim, aonde vamos?

 

— Gosta de massas? — batucou no volante.

 

— Adoro.

 

— Ótimo! Te pego no sábado. Agora, por favor. Me envie as imagens amanhã com urgência, tá bom?

 

— Está bem. Assim que eu chegar lá já te envio.


segunda-feira, 19 de junho de 2023

Máscara da Morte | Capítulo 3

 


Fausto Maia não é nenhum galã, mas também não é feio. Quando ainda nem sonhava em ser um policial vivendo no sítio onde seus pais trabalhavam como caseiros, era normal vê-lo arrastando meninas para o meio das plantações. Garotos mais velhos e muito mais bonitos não sabiam explicar o porquê de moças lindas se interessarem por ele. Nada como uma boa e velha conversar ao pé do ouvido, dizia ele.

 

Enquanto aguarda a chegada de Abílio, Maia voltou ao passado, na época em que trabalhava nas ruas como patrulheiro. Não foi a melhor época de sua vida, porém lhe serviu de aprendizado. Fora anos circulando por ruas onde gangues, assaltantes e até assassinos dominavam. Numa dessas intermináveis patrulhas, ele deu de frente com um tal de Coruja, um perigoso traficante de drogas saindo de uma escola pública. Claro que seu instinto policial falou mais alto, mas ele não podia por sua vida, tão pouco a de civis em perigo. Foi necessário enviar mensagem para a central e solicitar suporte.

 

O meliante ganhou a calçada subindo uma rua que daria do outro lado da cidade e provavelmente nunca mais séria visto. Maia precisava agir. Desceu da viatura já segurando seu trinta e oito seis balas em perseguição ao vagabundo. Fausto fez de tudo para não chamar a atenção, mas foi inevitável. Todos queriam saber o porquê de um agente da lei fardado andando a passos largos calçada afora. Lógico que não daria certo uma operação como essa. Antes que Fausto Maia pudesse lhe dar voz de prisão, coruja foi resgatado por um misterioso motoqueiro que o fez sumir de vista. Meses mais tarde esse mesmo indivíduo foi pego por Maia e obrigado de maneira carinhosa a falar onde se escondia o chefe. Foi fácil.

 

*

 

Abílio Fontana recebeu uma chamada de vídeo do casal de filhos quando chegava a delegacia. Infelizmente o tom da conversa não foi nada amigável como das outras vezes.

 

— Poxa! pai, vocês esperaram tanto por essas benditas férias. – disse Carlos o filho mais velho. — a mamãe está muito aborrecida e com razão.

 

— Sim, filho, admito que vacilei, mas agora é um pouco tarde para arrependimentos.

 

— Paizinho, sabemos de sua devoção pela sua profissão, mas eu penso que o bem-estar em família vem em primeiro lugar. Não acha? – declarou Hortência.

 

— Claro, claro, minha filha. Prometo compensar esse vacilo. O que acham de uma viagem em família para o nordeste, hein, vai ser ótimo.

 

— Não tenho dúvidas, pai, mas antes o senhor precisa amansar a dona Zélia.

 

— Pode deixar, meus amores. O pai precisa desligar agora. Quanto antes eu terminar esse caso, mais rápido faremos nossa viagem em família.

 

— Valeu, paizão. — despediram-se os dois.

 

“Amansar a dona Zélia”. Não teria nada mais fácil? Eles estão casados há trinta e cinco anos e Abílio não faz a mínima ideia de como fazer isso e olha que não foram poucas às vezes em que ele pisou na bola com ela. Fontana deu um basta nos problemas familiares e focou no caso em mãos. Fausto Maia o aguarda em sua sala com seu carisma de uma fechadura de porta.

 

*

 

Fausto Maia lê com atenção ao relatório dado por Abílio, mas a sua mente não se encontra ali, mas sim no brilhante histórico do investigador. Maia tem sorte em tê-lo em sua equipe. Assim que o recebeu transferido de outro distrito e com belíssimas recomendações, na hora Fausto soube que estaria trabalhando com um craque.

 

— Morte por envenenamento?

 

— Cianeto. – completou Fontana.

 

— Cacetada! Mas como assim a vítima não ofereceu reação?

 

— Vamos partir do princípio. Encontramos sêmen nas partes íntimas da vítima. É bem provável que, a assassina ou assassino tenha aplicado no momento do clímax e nessas horas...

 

Fausto coçou o queixo.

 

— Ainda não sabemos o sexo do autor... – Maia olhou para Abílio de forma condescendente.

 

— Eu acredito que seja uma mulher, visto que, Vagner, a vítima, tenha um histórico de infidelidade.

 

— Caramba! – voltou a coçar o queixo. — e você não encontrou nada dentro do carro?

 

— Nada além do próprio Vagner.

 

Maia organizou a papelada ainda tentando encontrar às peças desse quebra-cabeça.

 

— Vou dar uma sondada nos arredores, vê se consigo imagens de câmeras, fazer perguntas, com certeza as ruas tem muito a dizer.

 

“As ruas têm muito a dizer”. Agora Fausto Maia entende o porquê da eficiência e eficácia de seu detetive. Ele não espera que a informação venha até ele. Fontana vai atrás dela e isso faz toda diferença.

 

— Cara, lamento por tê-lo pego de surpresa. Você esperou tanto por suas férias. Como estão as coisas em casa?

 

Abílio tirou os olhos do delegado, esse não é um assunto fácil de se debater.

 

— Sabe como são as mulheres. Zélia estava vivendo os melhores dias de nossas vidas. Claro que ela não aceitou.

 

— Pô, mais que merda. – esfregou o rosto.

 

— Relaxa.

 

— Eu juro que pensei em deixar esse caso com o Pascoal, mas...

 

— O Pascoal tá atolado até o pescoço com as milícias, pode deixar esse caso comigo.

 

Fausto estendeu a mão.

 

— Terminamos aqui.

 

— Positivo. – apertou a mão do chefe.

 

*

 

Zélia não estava muito a fim de cozinhar e olha que a gastronomia e uma de suas paixões, depois da literatura, é claro. Logo cedo ela colocou a carne em cima da pia para o degelo. Para o almoço ela comeu o que sobrou da janta na noite passada, frango grelhado, porém para o jantar de hoje ela gostaria de um picadinho, receita de família. Sua avó materna a ensinou preparar. As coisas não andam nada bem entre Abílio e ela e isso se reflete no preparo das refeições de uma certa forma. A dona de casa não queria, mas fazer o quê? A vida precisa seguir.

 

Abílio Fontana saiu do quarto concentrado no celular e ocupou uma das cadeiras da copa. O clima é insustentável. Ele odeia quando isso acontece.

 

— Às crianças fizeram uma chamada de vídeo hoje.

 

Zélia, de costas para ele sorriu. Crianças?

 

— Os dois, ao mesmo tempo. – insistiu em puxar assunto. — faremos uma viagem em família para o nordeste. O que acha?

 

— Acho bom. – segue mexendo a panela.

 

Fontana estava a ponto de explodir. Ele a ama demais, mas às vezes ele tem vontade de...

 

— Eles gostaram da ideia. Poxa! será maravilhoso. Lembra da última vez em que fomos juntos para a Bahia? Nossa.

 

— Pois é, lá, por incrível que pareça o seu chefe não te ligou lhe convocando para uma missão impossível. – girou nos calcanhares.

 

Silêncio. A irritação de Abílio cedeu espaço a frustração e desânimo. Ele abandonou a copa e caminhou lentamente para a sala segurando o telefone. O seu toque assustou a ambos. Era Fausto Maia.

 

— Fala chefão.

 

Falando no Diabo, pensou Zélia provando o tal picadinho.

 

— Meu Deus do céu. Sério? Chego lá em minutos.

 

Zélia controlou a vontade de jogar a panela contra a parede.

 

*

 

No que afinal de contas essa cidade vem se transformando? Logo ela que um dia foi considerada exemplo de paz e tranquilidade por outras. Tudo o que seus moradores precisa tem ali, desde incríveis “shoppings” centers a parques onde é possível manter contato com a natureza. Hoje, Paraíso Novo tem vivido e servido de palco e cenário para crimes em séries sem precedentes. Abílio Fontana encostou o carro de qualquer jeito, sua paciência já havia decolado há muito tempo, desde quando saiu de casa para ser mais exato.

 

Dessa vez o assassino ou assassina escolheu um lugar um pouco mais aberto, porém com pouca iluminação durante a noite. Uma quadra polivalente muito mal conservada onde aos finais de semana meninos que moram na comunidade ali perto disputam quase que a tapas rodadas de peladas. Como sempre, haviam pessoas com seus celulares gravando ou simplesmente registrando em imagens mesmo sob os protestos dos PMs que fazem a guarda do corpo.

 

Abílio Fontana abriu passagem entre os curiosos e pelo menos hoje alguém teve a boa vontade de cobrir o infeliz.

 

— Com licença, pessoal. – disse Abílio erguendo seu distintivo. — vamos nos afastar.

 

O cadáver estava sentado ao pé da trave com as calças abaixadas. Olhos bem abertos deixando claro o sofrimento que antecedeu sua partida desse mundo. Fontana lamentou profundamente, o sujeito parecia ser um homem educado e de família. Outro fato que o levou a lamentar foi que, com esse segundo corpo, suas férias estariam definitivamente perdidas. Zélia não o perdoaria.

 

Com a chegada de Carvalho, o perito, Abílio pode sair daquele tumulto e respirar um pouco. Encostado na grade ele pôs seu cérebro para funcionar a todo vapor. Por que alguém estaria matando homens de família e do mesmo “modus” operandi? Por envenenamento no caso. Vingança? Loucura? Surto? Ou na pior das hipóteses, por puro prazer de matar.

 

Carvalho se aproximou trazendo boas novas.

 

— Grande Carvalho, o que tem para mim?

 

— O pobre coitado teve o mesmo fim que o outro. Encontrei sêmen e desse vez o Cianeto foi aplicado um pouco mais para cima.

 

— Não me diga que foi na bunda?

 

— Não. Na altura da bacia.

 

Abílio olhou e viu o corpo sendo removido.

 

— Encontrei isso no bolso da calça dele.

 

Tratava-se de uma comanda. Como aquele pedaço de papel amarelo foi capaz de reacender a esperança ao coração do detetive.

 

— Ele tomou alguns drinks antes de bater as botas também. – salientou Carvalho.

 

Que ótimo! Agora Abílio sabe exatamente por onde começar. Até então ele seguia no escuro e de olhos vendados. Fontana acredita que, tudo nessa vida precisa ser conquistado com esforço e também estar preparado quando a oportunidade passar.

 

— Finalmente uma luz no fim do túnel. – pegou o papel.

 

*

 

Eu nasci bela, saudável, cercada de gente que só queria meu bem. Cresci em meio a um lar devoto ao Criador e, no entanto me deixei ser seduzida por palavras vazias. Esse foi o meu mal. Paulo Augusto era uma serpente. Serpentes são envolventes, porém não pensam duas vezes antes de lhe ferir o calcanhar. Eu acreditei em suas juras de amor, nas frases prontas ao pé do ouvido depois da cama, dei crédito as suas dissimulações e paguei um alto preço por isso. Paulo Augusto despertou o que havia de pior em mim e talvez acontecesse o mesmo com qualquer outra pessoa. Ele acionou a assassina que existia e... Pagou caro também.

 

Rose Maria não conseguiu chegar a tempo ao vaso sanitário. O enjoo veio forte e ainda levantando a tampa o vômito veio e se espalhou sujando a parede e até parte da pia. Fala sério! Pensou ainda gofando. Não faz mal, nada que um bom desinfetante não resolva. Se todos os seus problemas fossem resolvidos dessa forma, ela seria a mulher mais feliz desse mundo. Descarga dada. Um belo enxaguante bucal e pronto, hora de relaxar no sofá e terminar de repor suas energias. Matar não é para qualquer um mesmo, é preciso ter estômago.


segunda-feira, 12 de junho de 2023

Máscara da Morte | Capítulo 2

 


A casa encontra-se em um silêncio sepulcral e num breu que, se Abílio Fontana não conhecesse tão bem aquele cômodo da casa, era capaz dele tropeçar algumas vezes nas quinas dos móveis. Ele não jogou o molho de chaves em cima da mesa como normalmente faz. Dessa vez ele o colocou e seguiu para a cozinha. Em tempos de paz, mesmo tarde da noite sua mulher o estaria aguardando com algo no forno sentada na mesa. Quantas foram às vezes em que ele precisou dizer para que ela não se preocupasse que ele esquentaria algo fácil e rápido quando chegasse do plantão e tantas foram às vezes em que ela não lhe dera ouvidos? A princípio essa teimosia de Zélia lhe causara desconforto, mas depois, pensando melhor, o policial chegou a conclusão que, tudo não passava de um gesto de carinho e atenção.

 

Hoje, ao entrar naquela mesma cozinha e não vê-la sentada o aguardando, foi como receber um forte golpe no estômago sem chance de defesa. Por falar em estômago, até que um sanduíche de frango cairia muito bem, mas isso não lhe daria uma boa noite de sono. O jeito foi tomar o resto de suco de uva de caixinha e cama.

 

Zélia ainda estava acordada. Ela lia sob a luz da luminária e ao ver o marido entrando o exemplar foi fechado.

 

— Oi! voltei. – disse ele retirando a jaqueta.

 

— Percebi. – puxou um pouco mais para cima o edredom.

 

— Se às coisas continuarem do jeito que estão, teremos nossas férias de volta. – desabotoou os botões da camisa.

 

— Carlos e Hortência ligaram, eles estão preocupados.

 

— E o que você falou?

 

— O de sempre. “Não se preocupem meus amores, o pai de vocês o único policial de toda cidade precisou interromper às férias para salvar o mundo”. Foi isso que eu disse.

 

Outro forte golpe no estômago.

 

— Meu amor, veja bem, eu...

 

— Nada do que você for falar agora, Abílio Fontana, vai justificar o que fez, então, boa noite. – cobriu-se.

 

Porcaria! O que se passa na mente das mulheres? Por que é tão difícil de entendê-las? Por que tudo precisa ser tão difícil, por que não é fácil, meu Deus do céu? Ela casou-se com um policial, deveria estar acostumada com esses imprevistos. Ou não? Estaria Zélia já cansada? Seu limite foi ultrapassado? De saco cheio? Como lidar com isso nessa altura da vida? Abílio deitou-se, mas não dormiu.

 

*

 

A noite não foi tão produtiva. Esperava ela encontrar pelo menos um agressor, um traidor, mas aprouve Deus ou qualquer outra entidade que tais seres repugnantes não cruzassem o seu caminho. O jeito foi voltar para casa e tentar repousar sua cabeça no travesseiro.

 

Pela manhã a sensação é sempre a mesma. Ela odeia quando isso acontece. Ao despertar seus olhos vão direto para onde aquele miserável ficava. O lado direito da cama. Ele não está mais aqui, o alívio é imediato. Pior que a perda da vida é a perda da liberdade. De fato Rose Maria enquanto esteve casada com Paulo Augusto não usufruía de sua liberdade. Ele era um homem controlador, autoritário, não dava a mínima para os seus sentimentos, é claro que isso não poderia acabar bem.

 

Rose Maria Silva afastou a cortina devagar e a primeira coisa que contemplou foi o céu nublado. Igualzinho aquele dia onde aquele covarde a atacou com tapas logo pela manhã. Ela não queria transar, estava com sono, não havia pregado os olhos a noite toda com medo dele. Ela se negou e pagou caro por isso.

 

— Você como mulher é um fracasso. – falou a plenos pulmões antes das sete horas da manhã.

 

Ouvir aquilo e mais de uma vez era como penetrassem em seu peito uma lança a curta distância e devagar. Bem devagar. Esse dia já seria ruim, mas Paulo Augusto fez questão de deixá-lo ainda mais tenebroso. Três tapas intercalados com xingamentos e pronto. Esse foi o café da manhã servido na cama pelo marido.

 

Essa dura realidade na vida de Rose Maria já não existe mais. Deus sabe o quanto ela o pediu que a livrasse das garras de Paulo Augusto por bem ou por mal. Demorou, mas aconteceu. Uma mulher livre, forte e disposta a retomar o tempo perdido. Ao abrir a bolsa de modo a se certificar da presença dos documentos antes de sair de casa, ela não pode deixar de vislumbrar de sua eterna companheira de guerra: a máscara de borboleta. Rose Maria a colocou no rosto e se olhou no espelho. Sorriu admirando sua bela imagem. Em seguida a retirou e lá estava ela. A cicatriz de queimadura. O que era alegria deu lugar ao ódio que a consumiu como uma fúria de um vulcão devastador, calma, Rose Maria, respira, não vá querer abraçar o mundo de uma só vez.

 

*

 

O portão foi aberto revelando um homem alto, bem-afeiçoado, vestindo uma jaqueta preta e botas marrons. Abílio Fontana se identificou para a mulher e entrou. A casa não estava arrumada, haviam brinquedos espalhados por todos os cantos, isso não é legal, um sinal de que pequeninos terão que seguir sem a presença do pai.

 

— O senhor toma café?

 

— Tomo.

 

— Tá! bom. Vou buscar.

 

Em cima do raque ao lado da TV um porta-retrato com a família inteira reunida sorrindo naturalmente. Em outro, apenas o casal de rostos colados, um pouco mais jovens, talvez da época em que se conheceram, assim pensou o detetive enquanto aguardava a volta da viúva.

 

— Prontinho. – apareceu segurando uma bandeja com duas xícaras.

 

— Ah! sim, obrigado. – pegou uma das xícaras. — às crianças estão na escola?

 

— Dormindo. Elas estão muito abaladas, então resolvi não levá-las hoje.

 

— Entendo. – tomou um gole. — vejamos, dona Selma. Como andava o relacionamento de vocês ultimamente?

 

— Bem, na medida do possível. Vagner quase não parava em casa devido ao novo trabalho, sabe como são às coisas, período probatório é terrível.

 

— Ele estava chegando muito tarde em casa? – outro gole.

 

— Sim.

 

— Mais ou menos a que horas?

 

A mulher apertou os olhos.

 

— Entre vinte uma e vinte e três horas.

 

— E aos finais de semana?

 

Abílio não prestava atenção somente no que saía da boca de Selma, mas sim no geral. O corpo também fala e pode dizer coisas das quais o coração já não suporta mais segurar.

 

— Essa pergunta não será nada fácil de lhe responder. Não bastasse sua ausência durante a semana, Vagner sempre arrumava um jeito de sair dizendo que faria bicos como garçom ou segurança em festas. As crianças sentiam muita falta dele.

 

— A senhora também, naturalmente.

 

Selma desabou e Abílio se sentiu culpado por isso. No fundo, toda mulher sabe das traições do marido. O Investigador sentiu haver chegado a hora de encerrar a conversa.

 

— Dona Selma, vou deixá-la em paz. Infelizmente o Vagner foi envenenado. Farei o que estiver ao meu alcance para dar cabo a esse caso. Fique tranquila.

 

— Obrigada, detetive.

 

Ser policial não é para qualquer um. Abílio foi ensinado a deixar de lado toda sua humanidade e permitir que, somente o profissional da lei assuma o controle. Ele voltou para dentro do carro refletindo o quanto tem sido profissional dentro de sua própria casa e ele ainda não tinha se dado conta disso. Seus filhos cresceram vendo um pai circular para cima e para baixo com um coldre e distintivo mesmo nós dias de folga. Eles também presenciaram sua saída repentina de comemorações em família e até aniversários para atender as solicitações de Fausto Maia. O profissional sempre esteve presente.

 

*

 

O suco natural de abacaxi chegou na hora certa, Rose Maria já não aguentava mais esperar.

 

— Desculpe a demora, senhora. – falou o garçom.

 

Ela nem sequer olhou para o funcionário, o assunto em voga no site de notícias a fez deixar tudo ao seu redor em segundo plano. “Homem é morto por envenenamento dentro de seu próprio veículo”. Primeiro veio o medo, a merda da polícia já deve estar em seu encalço, pensou. Em seguida veio a satisfação em ter sua obra macabra exposta na mídia. Nada mal, voltou a pensar. Ao erguer a cabeça ela viu o garçom vindo.

 

— Com licença, senhora, pediram para lhe entregar isso. – sacou do bolso do avental um pedaço de papel.

 

— Obrigada. Quem foi?

 

— O cidadão sentado perto da janela, mesa onze.

 

No papel havia o número de celular e um recado “pode me ligar agora se quiser”. Rose Maria olhou e viu que se tratava de um sujeito gordo, calvo e bigode estilo xerife de velho oeste. Interessante. Ela gesticulou dizendo que ligaria.

 

— Bilhetinho pelo garçom? Bem a moda antiga hein, gostei de ver.

 

— Os belos gestos nunca sairão de moda. Quer vir se sentar aqui?

 

— Ah! seja mais cavalheiro, venha você prá cá.