Jorge
acordou. Tentou levar a mão à cabeça mas não conseguiu. Algo segurava seus
braços. Percebeu que estava sentado em uma cadeira. Olhou para uma fonte de luz
que se mexia logo à frente. Era uma lâmpada que estava pendurada por dois fios,
a uma altura de uns dois metros. Tentou mexer a perna. Ela também estava presa.
Alguém o amarrara naquela cadeira. Mas quem? E por quê? Aliás, que lugar era
aquele? Só após se perguntar isso, o policial se deu conta do forte cheiro de
mofo que brotava das paredes imundas a sua volta e agredia seus pulmões e sua
garganta. Tossiu uma vez. Depois de cinco segundos tossiu mais quatro vezes.
Aquele lugar deveria ser um porão. Daqueles bem esquisitos que aparecem nos
filmes.
Havia uma enorme poça de água,
a poucos metros de Jorge, sendo alimentada por uma goteira que pingava
preguiçosamente. Ao vê-la, Jorge lambeu os beiços. Estava sedento. Fazia muito
tempo que bebera algum líquido. Daria qualquer coisa por um pouco de água.
Forçou as cordas com os braços. Nada. Tentou de novo, com toda a força que
tinha. Não conseguiu nem mesmo afrouxar um pouco. Ao contrário, parecia que
quanto mais tentava se soltar, mais apertado ficava. Quem o amarrou ali fez um
bom trabalho.
De repente, uma porta se abriu atrás dele. Ouviu passos pesados e lentos.
Tentou virar o rosto mas a corda que o segurava à cadeira não permitiu.
– Calma, meu caro, você logo verá quem eu sou. – Disse uma voz Tranquila.
Jorge sentiu o coração palpitar. Teria sido pego por alguém querendo vingança?
Para um policial como ele, inimigos não faltavam.
– O que quer de mim? – Perguntou ofegando.
– Já vai saber. – A figura passou por Jorge e parou na frente dele.
Não era ninguém conhecido. Será que o sujeito estava a serviço de alguém? Era
só o que faltava. Um pau mandado. O sangue do policial ferveu. Quem aquele
sujeito pensava que era para tentar intimidá-lo? Já estivera em situações bem
piores e conseguirá se dar bem. O escrivão Henrique podia confirmar. Contra a
vontade, mas podia. Não. Tinha que se acalmar, usar a cabeça. Se partisse para
a ignorância seria trucidado. A hora para fazer isso chegaria, no momento
deveria colaborar com o sujeito e pegar tudo o que pudesse.
– Por que não me amordaçou? – Perguntou, dando início a sondagem.
– Por que não quero abafar os seus gritos. – Respondeu a figura sorrindo.
Os dentes amarelos do homem surgiram entre os lábios.
– Você acha mesmo que não deveria estar aqui? – Perguntou o estranho de cabelos
castanhos e pele clara.
Jorge não respondeu. Não daria nenhuma informação sobre o que pensava. Conhecia
aquele jogo muito bem, afinal ele próprio o estava jogando.
O sujeito aproximou-se de Jorge e se abaixou, ficando frente a frente com ele.
Tinha alguma coisa errada. O olhar daquele estranho era incomum, selvagem.
– Um pai de família exemplar como você não deveria passar por isso, não é? – O
sujeito não disfarçou o sarcasmo. – Ah, já ia esquecendo, um policial
excepcional também. – O sorriso desapareceu do rosto e ele lambeu os lábios
lentamente.
– Você não faz ideia de quem ou o quê eu sou, e mesmo que lhe diga não
entenderia.
Jorge finalmente abriu a boca:
– Por que está fazendo isso, afinal? – Quis saber trincando os dentes. –
vingança?
– Vingança? Não, isso é mesquinho demais. Além disso, não tenho nada contra
você. – O olhar do sujeito tornou–se mais sombrio. – Eu apenas preciso fazer
isso.
– Por que? – O policial já não escondia mais a raiva.
Em que merda havia se metido daquela vez? O que aquele sujeito queria?
– Digamos apenas que você tem as qualidades necessárias. Por isso foi escolhido.
– A delegada Mônica, ela armou pra mim, não foi? Ou foi a Suzana?
O sujeito voltou a sorrir, mas não como antes. A cortesia havia desaparecido.
Se um leão pudesse sorrir diante da presa, aquela seria certamente a expressão
que ele exibiria
– Ohhh. – Zombou. – O grande Jorge acha que é vítima de uma conspiração. Eu
adoraria que essa fosse a resposta. Amo quando vocês humanos tentam ferrar uns
aos outros.
Aquele homem era louco, só podia ser. Isso piorava tudo. Lidar com alguém
imprevisível não era nada fácil. Teria que ter ainda mais cautela.
– Talvez possamos chegar a um acordo. – Disse Jorge.
– Você não tem nada que eu queira. – Retrucou o outro. – Na verdade tem, mas
isso conseguirei de qualquer forma.
O policial agitou–se violentamente na cadeira. Se pudesse, teria quebrado o
pescoço do sujeito ali mesmo. O sangue circulava quente e os músculos do corpo
se contraíam em fúria. Sentiu-se humilhado. Humilhado por um bandidinho louco.
– Isso, lute, grite, esperneie. Quanto mais melhor. – Disse o estranho lambendo
os lábios novamente.
Loucura. Loucura pura. Jorge havia caído numa maldita armadilha e não fazia
ideia de como sair.
****
Jorge
conferiu o relógio do criado-mudo; eram sete e quarenta da noite. Ainda estava
cedo. Poderia ter a noite inteira para aproveitar a companhia da esposa Suzana
e do filho Eduardo. Não apenas poderia, mas deveria. Há quanto tempo não
desfrutavam de uma noite juntos, como uma família feliz? Tempo demais. Os três
precisavam disso. Mas o maldito telefone tinha que tocar. Aliás, a delegada
Mônica, aquela megera, tinha que ligar. Tinha que chamá-lo à delegacia. Ela
sabia dos problemas que ele estava passando com a família, poderia ter lhe dado
uma folga, um tempo para ajustar-se, mas ela era egoísta demais para isso.
Sentou na cama para calçar os coturnos. A maciez do colchão provocou-lhe
calafrios. Lembrara da última vez em que fizera amor com Suzana, ali mesmo. Por
que essa lembrança doía tanto agora? Será que achava que nunca mais voltaria a
tê-la em seus braços? Afinal, o que ele fez para merecer aquilo?
Levantou da cama e vestiu a
camisa olhando para as paredes vazias. A falta de decoração tornava tudo aquilo
um reflexo de como ele se sentia naquele ambiente. Olhou em volta, buscando um
alento, algo que não o oprimisse, mas não obteve sucesso. Era como se aquelas
paredes apontassem o dedo para ele, acusando-o, julgando-o. E enquanto isso
aproximavam-se, diminuindo seu espaço para esmagá-lo.
Saiu e fechou a porta do
quarto atrás de si com força. Ele não deveria ter que passar por isso. Era um
bom pai, um marido atencioso, preocupado e um policial exemplar; não era? Tinha
que acreditar que sim, ainda mais agora que todos, incluindo sua família,
pareciam esquecer isso.
Cruzou o pequeno corredor como uma bala, ignorando os quadros que tanto
gostava, e chegou à sala. Olhou para o sofá de couro. Ali estava Suzana, lendo
um livro. Parou por alguns segundos, esperando uma palavra, um cumprimento, uma
pergunta. Nada. Resolveu quebrar o silêncio ele mesmo.
– Amor, tenho que ir na delegacia. – Disse o mais carinhosamente possível.
– Tudo bem. – Respondeu Suzana sem olhar para ele.
Jorge sentiu o sangue subiu-lhe à cabeça, mas respirou fundo.
– Como assim, tudo bem? Não vai perguntar o motivo? Ficar preocupada?
– Já passamos dessa fase, Jorge. – Respondeu ela, levantando e se dirigindo à
cozinha. – De qualquer forma sei que tem a ver com aquelas malditas fitas que
você vive falando.
Jorge calou-se por um momento, observando a esposa. Seu andar vagaroso ainda o
encantava, mesmo depois de anos. Os cabelos negros cortados a altura dos ombros
balançavam graciosamente, como o pêndulo de um sino.
Suzana retirou um copo do
armário e abriu a geladeira. Pegou uma chaleira e colocou na mesa de madeira no
meio do cômodo. Chá de camomila gelado. Ela sempre apelava para ele quando
ficava nervosa. Talvez aquele fosse um bom sinal. Ela deve estar preocupada,
mas não quer admitir. Estranhamente, aquilo fez Jorge sentir-se mal. Uma
espécie de culpa insistia em molestá-lo. Mas por que diabos isso acontecia? Já
não bastava ela colocar o próprio filho contra ele, agora ousava culpá-lo pela
decadência da relação? Ele quase literalmente se matava de trabalhar para terem
uma vida confortável, e se por acaso perdia a paciência com as exigências de
Suzana era unicamente por cansaço. Será que ela não via isso? Certa vez ela
reclamara do próprio trabalho durante uma discussão. Disse algo sobre também
estar cansada, mas ele logo tratou de trazê-la a realidade. Desde quando ela
tinha do que reclamar? Ela sabia o que é enfrentar animais, como os que ele
próprio enfrentava em sua profissão?
Ele sacudiu a cabeça para
afastar aqueles pensamentos e tentou, mais uma vez, dialogar com a esposa.
– Evitei ao máximo me envolver com aquelas fitas, mas acho que dessa vez não
vai ter como. A delegada quer que eu assista a uma delas. – Disse observando
enquanto Suzana engolia seu chá.
– Qual delas? – Perguntou a esposa depositando o copo na mesa.
– Não sei. Acho que é uma fita nova. Meu Deus, parece que isso nunca vai
acabar.
Suzana olhou o marido nos olhos. Havia raiva e ressentimento, mas também
parecia haver, lá no fundo, medo. Mas Jorge não sabia do quê.
– Aquela desgraçada da Mônica. – Jorge socou a mesa com força, assustando
Suzana. – Perdão, amor. - Desculpou-se estendendo a mão para acariciar o rosto
da esposa. Ela, por sua vez, afastou-se delicadamente. A última discussão
parecia ainda marcar sua alma.
Jorge a olhou por alguns
segundos e virou-se para ir embora. Na entrada da cozinha estava Eduardo.
Parecia alarmado. O pai abaixou-se e tocou o ombro do menino.
– Papai vai ter que ir trabalhar, Edu, cuida da sua mãe enquanto isso? –
Perguntou.
O filho tirou a mão do pai e correu até Suzana, que o abraçou. A sensação de
culpa, algo raro para ele mas, que estava se tornando frequente demais, deu-lhe
um soco no estômago novamente. Sentiu que o jantar tentava subir-lhe pelo
estômago. Jorge levantou e olhou para o chão desolado. Talvez seu casamento
tenha acabado, mas não desistiria tão fácil. Não abriria mão de sua família,
não sem lutar. Agora, porém, tinha que se apressar, a delegada Mônica o
esperava, e ela detestava isso.
– Vou tentar voltar logo. – Disse com tristeza.
– Tenha cuidado. – Pediu Suzana enquanto enchia novamente o copo com o chá.
– Vou ter. – Prometeu Jorge.
Afinal, ela ainda se preocupa. Aquilo era um bom sinal.
****
O carro
parou na última vaga da direita, reservada para idosos. Afinal, do que
adiantava uma vaga para idosos e deficientes se apenas quem trabalhava na
delegacia tinha autorização para usar o estacionamento? O policial saltou do
carro e empurrou a porta com a perna. A delegada já deveria estar se mordendo
de raiva por esperar. Jorge riu, enquanto dava a última tragada no cigarro e
jogava o filtro no chão. Ela que esperasse. Até os poderosos deveriam aprender
a ter paciência. Começou a caminhar lentamente pelo estacionamento até que
avistou o escrivão Henrique encostado em uma viatura, fumando. O policial se
aproximou com os braços abertos, sorrindo.
– Grande, Henrique. Fazendo um intervalo? – Perguntou amigavelmente.
Ao vê-lo, O escrivão desencostou do carro e deu uma longa tragada no cigarro.
– Boa noite. - Respondeu secamente – É, estou respirando um pouco. Tenho muito
trabalho pra essa noite.
– Pois é, eu também. A delegada está lá dentro?
– Está sim. Se eu fosse você me apressava. – Aconselhou Henrique.
– Não se preocupe. – Disse Jorge sorrindo. - Você sabe que tenho talento para
sair de enrascadas.
O escrivão lançou-lhe um olhar sombrio.
– Sei sim. Mas acho que as coisas se complicaram muito ultimamente.
– Fala das fitas?
– Também. Não sei se soube – Henrique jogou o cigarro no chão e o pisoteou. –
mas estão interrogando todo mundo da delegacia.
– Sim, estou sabendo. Mas lembra do que falei naquele dia? As vezes é melhor
calar a boca e fazer o que é certo.
Henrique sorriu e Jorge se perguntou se ele havia entendido a mensagem.
– Bom, vou entrando. – Disse Jorge. – Encarar a fera.
– Boa sorte com isso. – Respondeu o escrivão, acendendo outro cigarro.
Ao entrar pela porta, o
policial sentiu os pelos do corpo se arrepiarem. O ar-condicionado estava
funcionando a todo vapor. Essa era uma boa notícia. A delegacia estava
trabalhando em um calor infernal a mais de um mês. Um tiro acidental atingira o
aparelho, iniciando o suplício. Jorge esfregou as palmas das mãos e olhou em
volta. Como sempre, as luzes da recepção estavam apagadas. Os únicos resquícios
de iluminação no ambiente vinham do corredor logo atrás e da sala do escrivão
que ficava ao lado.
O policial se aproximou do
balcão e tocou a campainha. Uma, duas, três vezes. Ninguém apareceu. Samanta
deve estar cochilando na sala de arquivos. Ele olhou em volta bem-humorado e
seguiu para o corredor. A sala da delegada era a última. Uma porta de madeira
pintada de branco exibia uma placa com o nome de quem ocupava o cargo. Jorge
respirou fundo, girou a maçaneta e entrou sem bater. Adorava fazer isso. Pegar
as pessoas de surpresa nos dá informações valiosas sobre elas, e informação é
poder. Ele chegou perto muitas vezes de pegar a delegada desprevenida, mas em
todas as ocasiões, ela conseguira contornar a situação. Um mês atrás a ouviu
atrás da porta discutir com o ex marido pelo telefone.
– Se você não comparecer à próxima audiência, mando uma viatura lhe buscar. –
Gritou.
Depois de alguns segundos, o
som do telefone batendo com força no gancho atravessou a porta. Aquele era a
hora certa para surpreender a delegada e Jorge aproveitou. Abriu a porta e
entrou rapidamente. Para sua decepção, porém, ela já havia recuperado a
compostura. Lá estava ela, sentada atrás de sua mesa, olhando para ele com as
mãos entrelaçadas. Ela é incrível. Pensou ele na ocasião. Talvez ele
conseguisse pegá-la desta vez. Assim que Jorge passou pela porta, teve outra
decepção. Ela estava preparada. Ele fora ingênuo demais. A delegada Mônica
sabia que ele estava a caminho, não cometeria tal deslize. Quando ele olhou
para ela, a mulher estava de pé ao lado da mesa, com um copo na mão e sorrindo.
Mas não era um sorriso amigável.
– Boa noite, Jorge. – Cumprimentou a delegada.
– Boa noite delegada. – Respondeu o policial.
– Não perde a mania de entrar sem bater, não é? Um homem como você deveria ter
mais educação. – Alfinetou Mônica.
– Me desculpe. Acho que é o costume. Tenho feito algumas batidas policiais
ultimamente.
A delegada jogou a cabeça para trás e gargalhou assustadoramente. Aquilo causou
arrepios em Jorge.
– Chega de conversa fiada, temos muito o que conversar. – Disse ela indicando a
cadeira para que ele se sentasse.
Jorge
sorriu e sentou. Apesar de suas diferenças, uma coisa ele tinha que admitir:
ela sabia impor respeito. Não era uma mulher muito alta, devia ter no máximo um
metro e setenta e cinco, mas estava sempre usando sapatos de salto alto e
andava com muita elegância. Vestia invariavelmente uma calça jeans com blusa
social feminina com manga três quartos de cor escura, o que contribuía para sua
aura de mulher que não tinha tempo para banalidades. Por último, um relógio
dourado e um par de brincos de argola davam um pequeno toque de ostentação,
combinando perfeitamente com sua pele negra.
Mônica andou até o outro lado
da mesa, mas não se sentou. Apoiou os dois punhos fechados na superfície de
madeira e se inclinou um pouco para frente.
– Espero que esteja ciente da gravidade da nossa situação. – Disse a delegada
olhando para Jorge com firmeza.
– É claro que estou. – Respondeu o policial. – Ninguém me deixa esquecer meu
papel nisso.
– E é bom mesmo que você não esqueça. Se tivesse se controlado, não estaríamos
todos sob investigação.
– Me controlado – Jorge riu com sarcasmo. – você é mãe, eu sou pai. Nós dois
sabemos o que aquele casal passou.
Mônica endireitou a postura sem tirar os olhos dele.
– Jorge, você espancou o sujeito e quase deixou ele aleijado.
– Não espanquei um sujeito, espanquei um maldito pedófilo. Os pais daquelas
crianças me mandam mensagens todos os dias agradecendo.
– E agora a corregedoria está no meu pé.
Jorge cruzou os braços e olhou para baixo.
– Lamento por isso. – Disse o policial. – Que justiça é essa que protege
criminosos desse tipo? - Perguntou.
– Não é só a justiça – Disse Mônica com pesar – Sabemos que essa investigação
não dará em nada, mas uma parte da imprensa está lambendo os beiços ao falar
dela. – A delegada fitou mesa. – Acabei de mostrar isso para o agente da
corregedoria. - Disse, apontando para uma pilha de papéis.
– O que é? - Perguntou ele.
– São os relatórios de seus últimos casos. Ele ficou impressionado com sua
competência.
– Então, qual é o problema?
– O problema, Jorge, é que ele percebeu o seu padrão.
– Que padrão? – O policial olhou para a delegada intrigado.
Mônica respirou fundo e finalmente sentou na cadeira atrás da mesa.
– Ele me disse que há outras denúncias contra você pelo mesmo motivo.
Jorge não esperava por aquilo. Será que alguém abriu a boca? Ficou sem
palavras.
– Você está na corda bamba. – Advertiu a delegada.
– Tem algo que você possa fazer para me ajudar? – Perguntou o policial.
As mãos dele tremiam sem parar. Sabia muito bem que denúncias eram essas. Os
olhos da delegada percorreram a mesa em busca de alguma coisa. Pegou um
envelope branco e abriu.
– Essa é uma carta da polícia federal. - Disse ela passando a mão pelos cabelos
crespos. - Eles querem nossa colaboração no caso das fitas VHS.
– E o que isso tem a ver com o meu problema? – Questionou Jorge.
– Quero que você fique à frente da investigação. – Disse Mônica.
– Quê? Tá brincando comigo? Quero distância dessa merda toda. - Esbravejou o
policial.
Antes que a delegada dissesse algo, a porta atrás de Jorge se abriu e uma voz
masculina falou:
– Mônica, já preparei o vídeo e a televisão.
– Ok, Mário, ele já está indo.
A porta se fechou novamente.
– Tava falando de mim? – Perguntou Jorge. – Vai mesmo me obrigar a participar
disso?
– Jorge, acho que você ainda não entendeu a enrascada em que se meteu. - Disse
Mônica. – Esse caso das fitas está deixando o estado inteiro de cabelos em pé.
Até a federal quer meter o bedelho.
– Repito, e daí?
– Imagina o status que você vai alcançar se resolver o caso. – Pediu Mônica. –
A turma lá de cima vai obrigar a corregedoria a arquivar todas as denúncias
contra você.
Jorge suspirou. Sua cabeça
começou a trabalhar. E se tudo isso fosse uma jogada da delegada? Todos sabiam
que ela nunca o apoiara, por que faria isso agora? Aliás, ela estava mais calma
do que o habitual. Alguma coisa estava errada.
– Jorge – Recomeçou a delegada, interrompendo os pensamentos do policial. –
Você é o melhor investigador que nós temos. Essa é não só a sua grande chance,
mas a nossa também.
Então era isso. Ela queria manipulá-lo. Colocar ele contra a parede e em
seguida adulá-lo para que ele aceitasse o caso. Esse era o jogo dos poderosos.
Já vira acontecer com outros antes; várias vezes. O sangue dentro de Jorge
estava fervendo. Ela realmente conseguira deixá-lo de mãos atadas.
– Não precisa assistir às outras fitas. Quero que veja apenas a que chegou esta
tarde. – Disse a delegada levantando da cadeira e caminhando até a porta.
– Assista ela, depois volte aqui e conversaremos sobre você aceitar ou não. –
Ordenou com um tom autoritário.
Jorge se levantou e observou a mulher por alguns segundos. Ela havia aberto a
porta e estava segurando-a para que ele passasse. Exibia no rosto uma expressão
enigmática. Estava séria, mas havia a impressão de que os olhos dela sorriam.
O policial passou por ela e se dirigiu à sala de arquivo em silêncio; teve medo
de questioná-la naquele momento.
****
Mário havia
deixado a porta entreaberta para Jorge. Assim que entrou por ela, o policial
viu o colega examinando algumas fitas VHS. Aquele era um bom sujeito. Do tipo
que trabalhava duro e gostava de auxiliar os outros. Talvez pudesse livrar
Jorge da obrigação de assistir à macabra fita.
– Oi, Mário. – Cumprimentou. - Desculpe a demora.
– Não esquenta. – Respondeu o outro. – Senta aí, já coloquei a fita no vídeo.
Jorge pegou uma cadeira de escritório e a arrastou até a frente da televisão.
– Você assistiu à fita? – Perguntou.
– Assisti todas elas. Cara, essa última é a mais estranha, você vai ver.
– Eu não assisti nenhuma até agora.
– Sério?
– Não tive estômago. Sinceramente, estava pensando se você não poderia me
ajudar a respeito disso.
– Quer um remédio pra enjoo?
– Não, não é isso. Queria que você me livrasse da obrigação de assistir essa
coisa.
O outro olhou para o colega, confuso.
– Não posso fazer isso, cara, a delegada vai arrancar o meu saco.
– Como assim? – Agora era Jorge quem estava confuso.
– Desculpa, cara, ela deu ordens explícitas. – Mário fez uma careta. – Ela
disse: faça o Jorge assistir de qualquer maneira, se ele não fizer isso eu
saberei. – concluiu imitando a voz da delegada.
O policial coçou a cabeça e sentou-se. Olhou para as mãos. Estavam, mais uma
vez, tremendo. Não queria fazer aquilo, mas não havia saída, a delegada o
cercou por todos os lados.
– Ela por acaso viu a fita? - Perguntou Jorge ao colega.
– Se ela viu? – Mário deixou o ar escapar entre os dentes, com deboche. – Claro
que não.
– Hum, que surpresa.
– Essa aqui chegou hoje à tarde. – Disse o outro enquanto pegava o controle
remoto. – Um cara que mora perto do parque trouxe, disse que tinha tomado do
filho dele de nove anos.
– O quê? A fita estava com uma criança? – Jorge ficou chocado.
– Pode crer. O moleque falou ao pai que tinha comprado de um cara que mora na
mesma rua.
Mário apertou o play. A televisão exibiu uma série de chuviscos e então tudo
ficou preto. Após alguns segundos, as imagens apareceram. A câmera focava em um
sujeito sentado ao fundo de uma sala vazia. Parecia ter acabado de acordar e
estava confuso. A qualidade da filmagem fez o estômago de Jorge embrulhar. Ele
já vira gravações amadoras antes, mas essa era diferente. Era como se tudo,
desde o áudio até a iluminação do ambiente, tivessem sido manipulados com o
propósito de causar desconforto. Após
algum tempo, o homem na tela levantou-se do chão e caminhou até o meio da sala.
Depois de passar algum tempo coçando a cabeça, continuou a andar até sumir do
enquadramento.
– O que significa isso? – Perguntou Jorge.
– Veja até o fim. – Pediu o outro com uma expressão esquisita.
Agora, uma série de pancadas soavam, como se alguém socasse uma superfície de
madeira. Jorge presumiu que o homem estava batendo na porta.
– Socorro. – Gritou o sujeito. – Me deixem sair.
Depois de vários minutos de apelo, o homem desistiu e voltou ao meio da sala
com as mãos na cintura. Naquele momento, um ruído agudo típico das falhas das
fitas VHS soou alto. Era como o de um avião, mas distorcido. Jorge estranhou
aquilo. Como uma fita novinha em folha apresentaria esses barulhos? Enquanto o
som continuava por algum tempo, o chuvisco na imagem aumentou, somando se a uma
listra negra no meio da dela. A sensação de desconforto voltou a crescer no
policial. Jorge aproximou-se da televisão e aprumou os ouvidos. Mais uma vez,
teve a impressão de que era algo proposital. Apesar da náusea, não tirou os olhos
da tela e viu que a porta acabara de ser aberta, pois percebeu uma luz
amarelada se formando no chão de cimento e cobrindo o homem no meio da sala.
Ele olhou em direção à luz com curiosidade.
– Olá, veio me ajudar? – Perguntou.
De repente, uma sombra surgiu no chão e o homem recuou até a parede, apavorado.
– Não, não. – Gaguejou aos gritos. – Fique longe de mim.
Jorge franziu a testa e arrastou a cadeira para ainda mais perto da televisão.
Seu coração estava chocando-se contra a sua caixa torácica com força. Mário
havia parado o que estava fazendo e também se aproximou da tela.
O homem no vídeo estava com os
braços entendidos para frente e continuava a gritar desesperadamente. Jorge
lembrou-se de um sujeito que ele havia pego uns anos atrás. Um traficantezinho
analfabeto que achava que era invencível. Após a polícia invadir sua casa, ele
se encolheu no canto do barraco e fez a mesma coisa. Com os braços estendidos,
implorou para que não chegassem perto dele. Ele teve seus motivos para se
desesperar, pensou Jorge.
– Coitado desse cara. – Disse Mário, referindo-se ao indivíduo na filmagem. –
Olha só o porquê de ele ficar tão nervoso.
Jorge quase caiu da cadeira quando viu o que era. Mesmo ele, um policial
experiente que achava que já vira de tudo, jamais imaginou que aquilo podia
acontecer de verdade. Em filmes de terror, aquilo aconteceria, mas não na vida
real. Era inconcebível. O que surgiu no enquadramento da câmera foi uma coisa
humanoide, mas desprovida de cabelos ou qualquer outro pelo que pudesse ser visível
na imagem. Sua cabeça era pequena e exibia um brilho amarelado nos olhos. Os
membros eram anormalmente longos e andou inicialmente sobre as duas pernas, com
os braços pendendo soltos ao lado do corpo. Depois de alguns passos, a coisa
abaixou-se e apoiou as mãos esquálidas no chão, como se fosse uma aranha. O
sujeito no canto da sala pareceu ainda mais apavorado quando a coisa mudou de
posição e seus gritos começaram a extrapolar os limites do áudio da câmera,
provocando efeitos ensurdecedores. Felizmente, Mário havia se adiantado a esse
momento e abaixou o volume da televisão, deixando-o quase no mínimo.
A criatura
começou a se aproximar do homem lentamente. Seus movimentos eram esquisitos mas
não desajeitados. Andava de quatro tão bem quanto qualquer quadrúpede, mas seus
braços e pernas compridos e finos moviam-se de maneira incomum, o que deixava
aquela coisa com um aspecto ainda mais ameaçador. A criatura hesitou por um
pequeno instante e depois saltou sobre o homem, caindo por cima dele. Apesar da
violência com que o ataque foi executado, a coisa parecia não ter a menor
pressa em matar sua vítima. Ela mordeu e arrancou com as garras primeiramente
os dedos das mãos, depois foi para os pés, dando intervalo de alguns segundos,
enquanto o sujeito continuava berrando de dor. Em seguida passou a arrancar as
mãos e os braços, um pequeno pedaço de cada vez. Ela puxava com os dentes ou
com as garras, depois largava no chão e ficava observando a vítima se contorcer
de agonia.
Após algum
tempo, Jorge não aguentou mais e pediu para que Mário tirasse o vídeo.
– Dane-se, pode dar stop nessa coisa, não quero mais ver
isso.
– Relaxa, cara, tô tirando. – Respondeu Mário. – E então, o
que achou?
– O que achei? Tá brincando? Isso é uma atrocidade nojenta.
– Gritou Jorge apontando para a televisão. – De onde saiu aquela, aquela coisa?
– Essa é uma boa pergunta, Brother, mas ninguém sabe. –
Respondeu Mário coçando a cabeça. – Você não viu as outras fitas né? Tem coisa
bem pior.
Jorge ficou horrorizado.
– Como pior? Já vi filmagens amadoras de tortura, mas isso
supera tudo. Aquela coisa nem parecia humana.
– Não parecia. – Concordou Mário. – Mas hoje em dia tem
esses lances de efeitos especiais e tal.
– Não vem com essa. Desde quando uma filmagem porca como
essa tem efeitos especiais? Aqui não é Hollywood, amigo.
– Pode crer. – Mário tirou a fita do videocassete e a
colocou na capa de plástico. – Sem falar que as vítimas que aparecem nas
imagens das fitas já foram identificadas, inclusive esse último cara.
– Quem é ele?
– O nome dele eu não sei, cara, mas era pedreiro. O mestre
de obras onde ele estava trabalhando disse que não o vê à duas semanas e a
esposa denunciou o desaparecimento à polícia.
– Acharam o corpo, ou o que sobrou dele?
– Cara, se você tivesse visto até o fim, saberia que não
sobrou nada.
Jorge sentiu novamente o desconforto no estômago.
– E agora? – Perguntou.
– Agora volta lá e fala com tua delegada.
– Vou pular fora, não quero me meter nisso. – Disse Jorge
convicto. – Ela que encontre outro.
– Brother – Mário se aproximou e tocou o ombro do colega. –
Acho que você não tem escolha.
****
Mônica
estava novamente sentada à mesa. Sua atenção, voltada para uma folha marrom que
ela segurava nas mãos. Aquilo não era nada bom, esse tipo de papel só era utilizado
nos relatórios da corregedoria. Jorge bateu à porta, apesar de ela já estar
aberta.
– Entre. – Ordenou a delegada.
– Com licença.
A mulher o olhou com desconfiança.
– você está bem? – Perguntou levantando uma sobrancelha.
– Estou sim.
Jorge sentou na cadeira em frente a mesa e ficou em
silêncio.
– Acredito que você já tenha assistido à fita, como ordenei.
– Sim.
– E o que me diz? – A delegada apoiou os cotovelos na mesa e
juntou as pontas dos dedos das mãos, formando um triângulo.
– Sinceramente? Estou chocado. As outras fitas, das quais
apenas ouvi falar, não eram tão pesadas.
– Isso é subjetivo, Jorge. Para muitas pessoas, a tortura de
um pedófilo pode ser chocante.
– Para mim não é. Mas enfim, o que quer que eu faça? Alias,
primeiro responda: Por que eu?
Mônica suspirou impaciente e apertou os olhos.
– Achei que já houvesse dito. É uma boa oportunidade para
você endireitar as coisas.
– Isso eu já entendi. O que não entra na minha cabeça é: por
que quer me ajudar?
Apesar da pergunta, Jorge estava convencido de que aquilo
nada mais era do que um jogo mas, estava ansioso para saber onde chegaria.
– Por que você é um dos nossos. E como já falei, o melhor
investigador daqui. Precisamos de você.
O policial quase se abriu numa gargalhada. Ela estava mesmo
disposta à bajulá-lo.
– Digamos que eu aceite – Jorge abriu um sorriso – o que me
garante que isso realmente me beneficiará?
A delegada entrelaçou as mãos e apoiou o queixo.
– Eu mesma vou me certificar de seus benefícios, tem minha
palavra. Só peço uma coisa.
– O que?
– Não pise na bola dessa vez, ou será a última. – Mônica se
recostou em sua cadeira. – Isso eu também garanto.
Jorge
abaixou a cabeça e coçou a sobrancelha. Numa coisa a delegada não estava
mentindo: aquela era uma excelente oportunidade para ele. O único problema, era
o preço cobrado. Se envolver em um caso como aquele era garantia de muitos anos
de terapia. Ele já havia passado por aquilo no passado e não tinha a menor
vontade de repetir a experiência. Respirou fundo. Sabia que mesmo assim não
poderia recusar. A delegada o havia pego de jeito.
– Muito bem, eu aceito. – Disse enfim.
– Que bom. – Respondeu Mônica. – Inicialmente você fará
apenas algumas vigílias e nada mais. Depois que conseguirmos provas mais
robustas, partiremos para a ação.
– Como assim vigílias?
– Mário não lhe contou? Descobrimos de onde veio a última
fita. O garoto que a comprou apontou a casa do vendedor.
– Não acha isso estranho? – Perguntou Jorge. – Dezenas de
fitas desse tipo têm sido vendidas por aí há tempos e até agora ninguém tinha
conseguido rastrear a fonte. De repente um sujeito comete o erro absurdo de
vender para um conhecido que mora na mesma rua.
– É verdade, o comércio dessas fitas estava sendo muito bem
executado desde o início. Não sei se você sabe, mas foi com muito custo que
conseguimos obter várias delas, através de pais e professores que as
confiscavam. Mas, mesmo quando isso acontecia, os filhos e alunos deles diziam
não saber de onde elas vinham. Ou falavam que acharam na rua, ou que um amigo
de um amigo conseguiu a fita.
– Isso estava acontecendo por que os compradores eram sempre
adolescentes. – Disse Jorge. – Eles estão acostumados a esconder fitas pornô.
A delegada abriu um sorriso malicioso.
– Viu? Esse é o maior motivo de querermos você no caso. Você
sabe do que está falando. É esperto, experiente.
– Não é bem isso. Na verdade eu também escondi algumas no
meu tempo. – Brincou o Policial, sorrindo.
A delegada ignorou a piada.
– Bem, vamos adiante. Ivan já está no local, vigiando a
casa. Quero que você vá até lá e se junte a ele. Não faça nada além disso, não
temos mandado ainda.
– Ok, delegada. Algo mais?
– Sim, Não vá com seu carro. Se o sujeito vir dois carros
próximos à residência dele, poderá ficar desconfiado. Vou mandar alguém lhe dar
uma carona. – A delegada levantou da cadeira e estendeu a mão ao policial. –
Boa sorte, Jorge, e obrigada.
Ele pegou a mão e a apertou firmemente.
– Disponha. – Disse.
****
Mário parou
o carro duas ruas antes do destino. Ele não arriscaria deixar Jorge em frente a
casa, recomendações da própria delegada. Na verdade ele faria daquela maneira
mesmo que ela não houvesse dito nada. Não era idiota, apesar de ter certeza de
que ela achava isso. Destrancou as portas e esperou o colega descer.
– Obrigado pela carona, Mário. – Agradeceu Jorge. – A minha
noite vai ser longa e foi bom bater esse papo no caminho.
– Relaxa, Cara, eu também vou ficar em claro. Tenho que
organizar as fitas no arquivo e dar aquela geral no depósito.
– Enquanto isso, nossa querida delegada vai para casa e
sonhar com os anjos.
– Não tenho certeza de que ela vá dormir. O dela está na
reta também, esqueceu?
– Não tanto quanto o meu, amigo.
– Isso é verdade, mas você não pode reclamar, cara.
– Não posso mesmo. – Disse Jorge com sarcasmo. – Bom, vou
indo, até amanhã.
– Até.
Jorge ficou
parado na calçada enquanto Mário acelerava o carro e desaparecia no fim da rua.
Tirou um cigarro do maço e acendeu com o Zippo. Era uma caminhada curta, mas
sempre havia tempo para fumar. Assim que atravessou a última esquina e chegou à
rua, ele viu o carro de Ivan estacionado. Aquele poderia ser um policial bem
estúpido, mas, pelo menos, sabia se esconder. Provavelmente foi esse o motivo
pelo qual a delegada o escolhera para a função de vigiar junto com Jorge.
Ao perceber uma
aproximação, Ivan botou a cabeça para fora do carro e olhou para trás.
– Sabia que era você. – Disse, reconhecendo o colega.
– Claro que sabia, quem mais acharia sua tocaia?
O outro arrodeou o veículo e entrou.
– E então, o que eu perdi?
– Muita agitação. Eu estou até sem fôlego. – Respondeu Ivan.
Jorge encostou no banco e tentou relaxar.
– Não entendo porque não mandam a gente entrar lá e encher o
sujeito de porrada.
– Tá brincando? – Ivan perguntou enquanto ria. – Isso aqui é
trabalho e não diversão, meu caro.
Jorge também riu. Gostava da companhia de Ivan, apesar de
nem sempre concordarem.
– Queria poder acender um cigarro.
– Depois do que vi numa das fitas decidi parar de fumar. –
Disse Ivan coçando os olhos. – você também viu a do grandalhão?
– Não, Só a última que chegou.
– Acho que foi uma das primeiras que recebemos. O pai de um
garoto chegou do trabalho bem na hora em que o filho e os colegas estavam
reunidos na sala de casa pra assistir.
– Que ótimo. – Disse Jorge.
– No vídeo aparece um grandalhão de mais de dois metros. Ele
empurra a cabeça de uma mulher na parede, várias vezes. O nariz afunda
completamente no rosto depois da última pancada. Em seguida ele acende um cigarro
e coloca na boca dela.
– Eca.
– Ela dá várias tragadas antes de finalmente morrer.
– Gostaria que não tivesse me dito isso, Ivan. – Disse Jorge
irritado.
– Desculpa cara, só achei que de repente isso te ajudaria a
parar de fumar.
– Não ajudou em nada. Me deixou mais nervoso, e com nervoso,
eu digo com vontade de fumar.
Ivan se calou e encostou a testa no volante do carro
– Afinal, qual é o objetivo desses caras? Digo, os que fazem
essas fitas? – Perguntou Jorge, tentando tirar da cabeça a imagem que o colega
o fizera criar.
– Vender, levantar uma grana… – Respondeu Ivan sem se mexer.
– Não, não pode ser só isso. Pra mexer com essas coisas,
precisa ser…
– Sádico pra caramba. – Completou o outro.
– É, sádico. Mas, mesmo assim, porque se arriscar? Porque
fabricar provas de crimes?
Ivan tirou a cabeça do volante e encostou no banco.
– Não sei como funciona a cabeça dessa gente maluca, mas de
uma coisa eu sei.
– Do que?
– Trabalhe com o que gosta e nunca mais terá que trabalhar
na vida.
Jorge fitou o colega com surpresa. Ele não era tão estúpido
quanto parecia normalmente.
– Então eles estão unindo o útil ao agradável?
– Exato. Ganhando uma grana, que diga-se de passagem, não é
pouca, e ao mesmo tempo se divertindo com as torturas.
– Acho que você tem razão.
Agora foi a vez de Ivan ficar surpreso.
– Tenho? Está tudo bem, Jorge? Está com febre? – Brincou.
O outro fingiu não ouvir a provocação.
– Todo mundo na delegacia viu as fitas, menos eu. Não tenho
estômago para isso.
– Imagina se uma dessas merdas cai nas mãos do seu filho. –
Disse Ivan de repente.
Jorge estremeceu por dentro. Até então, não havia pensando
naquela possibilidade.
– Não sei o que eu seria capaz de fazer.
– Eu imagino o que você faria. – Disse Ivan – Mas deixa pra
lá.
– Espero que essa merda acabe. Só em pensar que coisas assim
são vendidas por aí e os jovens estão comprando fico de cabelos em pé.
– Se fitas de tortura e assassinato vendem tão bem assim nas
ruas, imagine drogas.
– Penso nisso o tempo todo. – Disse Jorge em um tom soturno.
– É por isso que não tenho dó desses malditos bandidos.
– Você precisa aprender a pegar mais leve, Guerra.
– Tenho escutado muito isso ultimamente.
Ivan agitou-se no banco de repente e fez sinal para que
Jorge se calasse. Uma figura usando um casaco preto e capuz abriu a porta da
casa que eles estavam vigiando. Os dois policiais permaneceram em silêncio,
enquanto o sujeito saía da casa e se dirigia a um carro estacionado do outro
lado da rua.
– O que faremos? - Perguntou Ivan – seguimos ele ou ficamos aqui?
– A delegada disse que não fizéssemos nada além de vigiar a casa. - Jorge
ajeitou-se no banco e olhou para a placa do carro em que o estranho havia
entrado. – Vamos esperar ele voltar.
– Está certo. Penso que ele não vá demorar, afinal, nem trancou a porta.
– Como? – Jorge ficou surpreso.
– Não percebeu? Ele apenas fechou a porta sem passar a chave e correu para o
carro.
Jorge não disse mais nada até que o sujeito de preto desse partida no carro e
saísse levantando fumaça. Após alguns minutos pensando, abriu a porta para sair
– Aonde vai? - Quis saber Ivan? - Não me diga que...
– Vou entrar na casa. - Disse Jorge.
– Não faça isso, lembre das ordens da delegada Mônica. – Alertou o outro.
– Que se dane. É uma ótima chance de vermos o que tem naquela casa, antes que
ele perceba que chegamos a ele. Se é que já não percebeu.
O outro balançou a cabeça descrente.
– Acho que não percebeu. - Disse Ivan. - Se quer ir vá, eu cubro você, mas não
farei nada além disso.
– É só o que eu peço. Assim ficaremos quites.
– Pode apostar. – Ivan tirou um objeto retangular do porta-luvas e entregou ao
colega. - Fique atento ao rádio e não demore. Acho que você tem no máximo dez
minutos. Se o sujeito voltar antes, eu te aviso.
– Obrigado. – Agradeceu Jorge enquanto se afastava em direção à casa.
Assim que
girou a maçaneta e viu que a porta estava de fato aberta, O policial se
alarmou. O pensamento de que aquilo fora proposital passou rapidamente pela
mente dele. Será uma armadilha? "Dane-se”, pensou. Que seja, pegaria
o desgraçado naquela noite, então tudo acabaria. Sem mais vítimas. Satisfeito
com sua decisão, Jorge entrou na residência e fechou a porta atrás de si. Teria
que ser rápido e discreto, afinal não tinha nenhum mandado.
Aquela era uma casa como outra
qualquer, apesar de bem espaçosa. A sala estava cuidadosamente limpa, com dois
sofás de couro marrom e um tapete vermelho decorando o ambiente. Uma mesa de
madeira com duas cadeiras fora colocada discretamente em um canto da parede.
Jorge se aproximou dela e viu dois copos e um prato sujo com algo que parecia
ser pedaços de carne cheios de moscas e formigas. Pegou lentamente um dos copos
e cheirou. Um cheiro acre queimou suas narinas e fez seu estômago contorcer-se
violentamente. A boca se encheu de saliva e a língua endureceu. O que diabos
era aquilo? O policial afastou o objeto rapidamente e se apoiou na parede
tentando respirar. Por pouco não colocou o jantar para fora. Precisava perder
essa mania de enfiar o nariz em tudo o que via.
Depois de se recompor,
posicionou o copo da mesma maneira que o encontrara e andou até um corredor que
saía da parede leste com três portas, duas no meio e uma no final.
Na porta da esquerda não encontrou nada além de uma cama, um guarda-roupa e um
cofre aberto e vazio. Era um quarto comum. Jorge ficou decepcionado, mas não
desistiu. Abriu a porta da direita. Ali, finalmente encontrou algo
interessante. Ficou perdido no meio de papéis, fios e aparelhos eletrônicos.
Havia uma filmadora em cima de um laptop velho e diversos cabos e baterias
extras. Jorge se aproximou, pegou a câmera, abriu o visor de LCD e ligou.
Estava bem suja e danificada mas ainda funcionava e havia uma fita dentro. O
vídeo começou a ser exibido no pequeno monitor, mas após dois segundos, Mário
desligou a câmera enojado. Meu Deus, então estavam mesmo na pista certa. Aquela
câmera foi usada para gravar várias das asquerosas fitas que estavam circulando
por aí. A fita dentro da filmadora era a prova de que precisavam.
O policial respirou fundo.
Precisava se acalmar, deixar a empolgação passar. Ele havia entrado na
residência sem mandado ou autorização, não poderia correr de volta à delegacia
levando as provas que tinha encontrado. Se fizesse isso, colocaria tudo a
perder. Ele deveria voltar para o carro e continuar vigiando até que seu turno
acabasse. Nesse meio tempo pensaria em algo para convencer a delegada Mônica a
correr atrás de um bendito mandado. Era isso. Satisfeito, Jorge virou-se para
sair da casa o mais rápido possível, porém, sua vista começou a escurecer
repentinamente e ele ouviu o som do próprio corpo caindo no chão antes de
apagar.
****
Jorge
aquietou-se. Se era agitação que aquele sujeito queria então, não daria a ele.
O homem afastou-se e virou as costas para o policial. Parecia muito seguro da
situação.
– Você realmente não faz ideia do que está acontecendo não é
jorge? Não sabe nem quem eu sou.
– Não sei o seu nome, mas sei quem é. É o desgraçado que
gravou aquelas fitas e as vendeu.
– Sim, mas não sou apenas isso. – Disse o estranho.
– O que mais você é?
– Na verdade quem sou não importa e sim o que sou. – O
sujeito virou-se novamente para encarar Jorge.
– Você é um assassino e molestador, no mínimo. – Cuspiu o
policial.
O homem gargalhou.
– Agora você começou a se enganar.
O policial o olhou com os olhos em brasa.
– Vai me dizer que não causou a morte daquelas pessoas? Ou
que não vendeu aquelas fitas nojentas para as crianças?
– Sim, sim. – Respondeu o estranho. – Mas você ainda não
sabe o porquê.
– Não me importa, não existe justificativa pra isso.
O estranho aproximou-se de Jorge e o tocou no ombro. Aquele
toque fez o policial se contorcer, mesmo amarrado.
– Sentiu? He, he, he.
– Que Merda foi essa? O que você fez comigo?
– Nada. Você teve apenas uma reação natural a um trauma
ancestral. Entende o que isso significa?
– Você é louco.
– Infelizmente não, Jorge.
– Como passou pelo meu colega? – Perguntou Jorge de repente
como se houvesse acabado de lembrar.
– Não se preocupe com seu amigo, ele está bem. Não posso
mexer com pessoas como ele. Apenas dei um jeito de chegar até aqui sem ele
saber.
– Como assim não pode mexer com ele?
O sujeito andou até um interruptor e olhou para o policial
com seriedade.
– Olhe bem para mim e espere seus olhos acostumarem-se com a
escuridão. – Disse. Em seguida apagou a luz.
Jorge calou-se intrigado. Cada palavra que aquele homem
dizia, o convencia mais de que ele estava diante de um louco. Porém, quem sabe
fazendo o jogo dele, ganharia tempo para que Ivan percebesse sua demora e fosse
em seu socorro? Era o melhor a fazer.
– Não consigo ver nada. – Disse, fingindo interesse.
– Espere.
Jorge revirou os olhos impaciente e olhou para o teto. Até
quando teria que esperar?
– Não está olhando para mim, Jorge. – Disse o sujeito depois
de algum tempo. – Olhe agora.
O policial baixou os olhos e os fixou na silhueta escura de
pé do outro lado da sala. Ainda não estava conseguindo enxergar muito bem, mas
percebeu que havia algo errado. Primeiro viu que as pernas estavam dobradas em
um ângulo incomum, como se os joelhos estivessem atrás delas, depois achou que
a cabeça estava maior do que deveria.
– Mas o que…
– Está vendo? – O sujeito abriu os braços e algo como asas
enormes saíram das suas costas. – E agora?
Jorge sentiu o sangue congelar em suas veias.
– Que truque é esse? – Perguntou gaguejando.
– Truque nenhum, meu caro, apenas o que eu sou.
O policial forçou os olhos no escuro para tentar ter certeza
do que estava vendo. A medida que seus olhos se acostumavam, mais traços
anormais surgiam. Depois de algum tempo não aguentou mais.
– Ascenda a luz. – Gritou.
O sujeito apertou o interruptor. Por alguns milésimos de
segundo, Jorge ainda viu aquela coisa sob a luz amarela da lâmpada, mas logo em
seguida tudo voltou ao normal. O que diabos era aquilo? Não podia ser humano.
– Nossas raças se cruzaram pela primeira vez há milênios. –
Disse o sujeito se aproximando. – Quando vocês ainda pintavam em cavernas e
acendiam fogueiras para espantar os animais e se aquecerem, minha espécie
percebeu o potencial destrutivo da humanidade.
– Meu Deus. – Exclamou jorge aterrorizado.
– Acho engraçado vocês nos temerem, sendo que são vocês
mesmos que se matam.
– Nós mesmos? Foi você quem fez aquelas fitas, que matou
aquelas pessoas. – Berrou o policial perdendo o controle.
A coisa se divertiu. Mostrou novamente os dentes amarelados
e enxugou com a mão, uma gota de saliva que escorreu-lhe dos lábios.
– Nós só conseguimos causar mal a quem já tem o mal na
própria alma, meu caro.
– O que quer dizer?
– Quero dizer que todas aquelas pessoas que você viu nas
fitas eram monstros. Vamos lá, você me entende.
Jorge quase vomitou.
– Quantos bandidos você torturou? – Perguntou a criatura em
forma de homem.
– Fiz isso apenas para conseguir informações.
– Mas você matou muitos também, não matou?
O policial não respondeu. Havia percebido que estava caindo
no jogo da coisa.
– Não seja covarde, admita. – Pediu a criatura ainda
sorrindo.
– Se você consegue apenas prejudicar quem tem o mal em si,
por que está fazendo isso comigo?
– Ohh, então você se acha um herói? – Zombou o estranho.
– Se não sou o herói, quem é? Você?
– Não, eu não sou nenhum herói. Sou um monstro. Alimento-me
da dor física e psicológica de pessoas como você.
Jorge encarou a coisa nos olhos. A fúria crescendo cada vez
mais em seu corpo. O sangue agora fervia e os músculos tremiam. Como aquilo
ousava comparar-se a ele?
– Quem me traiu? Quem me entregou?
A criatura pareceu irritar-se com a pergunta.
– Não perca seu tempo superestimando a sua importância,
Jorge, a sua situação nada tem a ver com traição.
– Duvido.
– Seus colegas e sua família são leais a você, apesar do que
você os fez passar.
– Eu nunca fiz mal a eles.
– Ah, você fez sim. Você os fez guardar os seus segredos
sombrios, meu caro, e não existe fardo maior para a consciência humana.
– O que você entende de consciência humana?
– Nós estamos entre vocês desde o princípio Jorge. Assim que
percebemos que podíamos nos misturar com a sua espécie nós o fizemos. Sempre
observando, escolhendo.
– Escolhendo o quê?
– Os mais saborosos. – O sujeito passou a língua nos lábios.
– O sofrimento dos maus nos dão um prazer imenso. Para nós, é como o sexo é
para vocês humanos. Por outro lado – O estranho abaixou-se próximo à jorge – Os
inocentes ou bem-intencionados não nos agradam. O sofrimento deles não nos
satisfaz. Para falar a verdade, não conseguimos sequer nos aproximar deles.
– Por que me escolheu? – Quis saber Jorge.
O estranho se levantou e abriu os braços Com impaciência.
– Só tem uma coisa que odeio em vocês: essa maldita
estupidez. Você realmente não sabe?
O policial ficou calado enquanto o sujeito apalpava o bolso
da calça. Ao ver que era uma foto de sua esposa e filho, voltou a enfurecer-se.
– O que faz com isso, sua criatura suja? Me devolva. –
Gritou.
O estranho fechou os olhos e franziu a testa, como se
tivesse sido atingido por uma onda de êxtase. Depois de alguns segundos,
finalmente falou.
– É apenas emprestado. Não se preocupe, não posso fazer nada
contra sua família, a menos que saiam da linha.
Jorge cuspiu nos sapatos da criatura.
– Não ouse…
– Não ouse o que? – Interrompeu o sujeito. – Sua doce esposa
e seu filho certamente me agradeceriam se soubessem.
– Eles me amam. Você vai destruí-los se fizer alguma coisa
comigo.
– É verdade, eles o amam. Mas também o odeiam.
– Você não sabe o que está falando.
– Você foi um bom policial, Jorge, e um bom marido e pai
também por muitos anos, mas se deixou envolver demais com o seu trabalho. Suas
missões cada vez mais violentas o influenciaram em sua vida pessoal.
Jorge
estava respirando rápido e pesadamente. A raiva ainda estava lá, mas o que a
coisa dizia estava mexendo com sua mente.
– Quantas vezes você os espancou, Jorge?
O policial ficou surpreso ao perceber que uma lágrima descia
agora pelo seu rosto. Sacudiu a cabeça com força. Não, era aquilo que a coisa
queria.
– E seus colegas? Você os ameaçava para que não expusessem
seus excessos durante as operações.
– Você fala como se fosse melhor do que eu. – Disse Jorge
sentindo a fúria novamente.
– Não, eu falo para que entenda que, para mim, você é apenas
mais um.
– Não, não sou mais um. Fiz tudo aquilo em nome de um bem
maior.
– Espancou sua esposa em nome de um bem maior? – Questionou
a criatura.
O policial abaixou os olhos.
– Ela passa dos limites quando me questiona.
– Ahhhh, por isso amo vocês, humanos. – disse o sujeito.
Jorge olhou por um momento para o estranho diante dele mas
logo focou no chão novamente.
– Então você sente prazer em nos torturar? – Perguntou.
– Mais do que imagina.
– Então por que não o faz pessoalmente?
– Como assim?
– Nas gravações você não aparece. É sempre outra coisa que
faz o serviço sujo.
– Ah sim. – O estranho sorriu. – O ato de causar dor em si
não nos dá tanto prazer, pra falar a verdade até atrapalha que nos concentremos
na dor da vítima. Por isso, terceirizamos.
Jorge tossiu enojado.
– E o que são aquelas coisas?
– Nós não somos os únicos monstros que habitamos esse mundo.
– Respondeu o outro. – Mas se eu for falar das coisas que já usei nas filmagens
você vai sujar as calças.
– E essas merdas de fitas? Por que gravar elas?
– Apenas uma forma de gravar o sofrimento das pessoas para poder vermos quando
quisermos. Ideia minha. – disse a criatura, orgulhosa.
– E por que vendem para crianças?
– Para deixá-las menos sensíveis. Talvez até passem a gostar, aí poderemos nos
alimentar de seus sofrimentos futuramente. Quem sabe seu garoto não se junte a
nós?
– O policial tentou avançar sobre a criatura, mas as cordas
impediram.
– Ah, permita-me. – O estranho caminhou para atrás de Jorge
e o desamarrou com rapidez.
– Vai me soltar? – O policial ficou desconfiado.
– Seu vídeo será diferente, Jorge. Daremos uma chance de se defender, já que é
o único até agora que sabe o que está acontecendo. – Disse o sujeito estendendo
uma pistola ao policial. – Mas cuidado, aí tem apenas uma bala. Ah, antes que
desperdice sua chance, não tente atirar em mim, vai perder tempo. Se conseguir
acabar com a coisa, estará livre e poderá me levar preso.
A porta do porão se abriu mais uma vez. Jorge ouviu um arrastar de pés e um som
parecido com o de um gargarejo.
– Eis aqui o seu nêmesis. – Apresentou o estranho.
Assim que a coisa que deveria
matá-lo entrou em seu campo de visão, o policial soube o que deveria fazer.
Estava cansado de joguinhos enganadores. Os poderosos estavam sempre usando os
subordinados como peões e aquele sujeito esquisito não era diferente. Jorge
sabia que estava ali unicamente para diverti-lo. Depois seria vendido como um
produto de entretenimento doentio. Lembrou da família. A esposa e o filho ora
sorriam, ora choravam em suas lembranças. Fora por eles que aceitara participar
da operação. Mas afinal, será que precisavam mesmo dele? Será que ele já não
trazia mais sofrimento do que felicidades aos dois? Aquele era um dos raros
momentos em que a culpa dominava a alma de Jorge, e ele sabia que não duraria
muito. Uma bala, pensou. Sabia que a criatura que arquitetara aquilo não
estava disposta a se entregar, dava para ver isso nos olhos dela. Infelizmente,
não tinha tempo para pensar, precisava agir logo. O policial segurou a pistola
com a mão direita, apontou para o alvo e disparou.
****
Suzana
chegou em casa tarde da noite. Eduardo já estava dormindo há um bom tempo e não
viu como ela estava cansada. Cansada não só das tarefas daquele dia, mas também
de tudo o que havia se acumulado no último mês. Durante o banho, lembrou das
palavras da delegada Mônica, com quem acabara de conversar.
– A senhora vai receber o seguro, não se precupe. – Disse a antiga chefe de
Jorge. – Apesar de não ser exatamente
uma boa notícia, espero que isso ajude.
Suzana sentiu um certo alívio ao ouvir aquilo. Não trabalhava por conta própria
há muitos anos e, mesmo que agora tenha conseguido um bom emprego, precisava de
dinheiro para quitar a casa.
– Obrigada, doutora Mônica. – Disse levantando da cadeira para apertar a mão da
delegada. – Tem sido muito difícil ultimamente.
– Claro. Olha, se serve de consolo para a senhora, não teríamos resolvido o
caso sem a ajuda dele, mesmo da forma como aconteceu.
– Acha que era isso o que ele queria? – Perguntou Suzana. – Digo, ele fez isso
por nós?
A delegada olhou para a mulher diante dela e respirou fundo.
– Difícil dizer o que se passava na cabeça de Jorge, mas posso garantir que ele
tinha toda a intenção de proteger você e seu filho.
– Eu sei. Eu o odiei por muito tempo, mas agora...
– Não se torture, Suzana. - Pediu a delegada. – Nada do que aconteceu foi sua
culpa, absolutamente nada.
– Obrigada. – Agradeceu a outra e virou-se para sair da sala.
Porém, antes de cruzar a porta deu meia volta e se dirigiu a Mônica com os
olhos úmidos.
– Sei que é confidencial, mas por favor, como aconteceu? – Perguntou.
Mônica contornou a mesa e sentou-se em cima dela, de frente para Suzana.
– Assim que ouviu o som do tiro, o policial Ivan chamou reforços e entrou na
casa. Ele rapidamente encontrou Jorge e mais duas pessoas no porão. Um deles
estava em estado avançado de decomposição, mas o outro estava de pé diante dos
dois. Parecia muito irritado mas não quis encarar o Ivan. Ao tentar passar
correndo, foi derrubado pelo policial e se rendeu. O reforço chegou logo
depois.
– Quem era esse homem?
– Nós o identificamos como Gustavo Haffman. É um empresário que possui várias
lojas no centro da cidade. Era ele quem gravava e vendia as fitas.
– Por que Jorge não atirou nele – Quis saber Suzana soluçando.
– Por que não iria adiantar. – Respondeu a delegada. – Aquele sujeito não é uma
pessoa.
– Como assim?
– Assim que o reforço chegou, ele tentou se soltar e fugir e acabou atingido por
vários tiros.
– E está vivo?
– Sim, sem nenhum arranhão.
– Meu Deus.
– Por favor, Suzana, não conte isso a ninguém.
– Ele ia usar o Jorge em uma das fitas, não era?
– Durante o interrogatório ele disse que sim.
– Jorge fez aquilo para não dar àquele sujeito o ele que queria.
– Exatamente.
– Como conseguiram prender aquele homem se ele não se fere?
– Ele é fraco fisicamente apesar de tudo.
– Isso me parece muito fantasioso. – Confessou Suzana. – Só estou acreditando
por causa das circunstâncias.
- Eu entendo, Suzana, eu mesma custei a crer.
A viúva de Jorge voltou a caminhar em direção à porta.
– Ele sofreu? – Perguntou sem se virar.
– Jorge?
– Sim.
– Não, ele faleceu instantaneamente, segundo o laudo.
– Nunca imaginei que ele tiraria a própria vida.
– Ele não teria feito isso se não tivesse certeza de que funcionaria. –
Garantiu a delegada.
Após o término do banho, Suzana sentou no sofá para relaxar. Jorge se fora e,
apesar dos erros que ele cometeu, ela sentia muito a sua falta.