quarta-feira, 23 de março de 2022

Prazer Sombrio

 


Escrito por: Adriano Galindo 

            Jorge acordou. Tentou levar a mão à cabeça mas não conseguiu. Algo segurava seus braços. Percebeu que estava sentado em uma cadeira. Olhou para uma fonte de luz que se mexia logo à frente. Era uma lâmpada que estava pendurada por dois fios, a uma altura de uns dois metros. Tentou mexer a perna. Ela também estava presa. Alguém o amarrara naquela cadeira. Mas quem? E por quê? Aliás, que lugar era aquele? Só após se perguntar isso, o policial se deu conta do forte cheiro de mofo que brotava das paredes imundas a sua volta e agredia seus pulmões e sua garganta. Tossiu uma vez. Depois de cinco segundos tossiu mais quatro vezes. Aquele lugar deveria ser um porão. Daqueles bem esquisitos que aparecem nos filmes.
            Havia uma enorme poça de água, a poucos metros de Jorge, sendo alimentada por uma goteira que pingava preguiçosamente. Ao vê-la, Jorge lambeu os beiços. Estava sedento. Fazia muito tempo que bebera algum líquido. Daria qualquer coisa por um pouco de água. Forçou as cordas com os braços. Nada. Tentou de novo, com toda a força que tinha. Não conseguiu nem mesmo afrouxar um pouco. Ao contrário, parecia que quanto mais tentava se soltar, mais apertado ficava. Quem o amarrou ali fez um bom trabalho.
De repente, uma porta se abriu atrás dele. Ouviu passos pesados e lentos. Tentou virar o rosto mas a corda que o segurava à cadeira não permitiu.
– Calma, meu caro, você logo verá quem eu sou. – Disse uma voz Tranquila.
Jorge sentiu o coração palpitar. Teria sido pego por alguém querendo vingança? Para um policial como ele, inimigos não faltavam.
– O que quer de mim? – Perguntou ofegando.
– Já vai saber. – A figura passou por Jorge e parou na frente dele.
Não era ninguém conhecido. Será que o sujeito estava a serviço de alguém? Era só o que faltava. Um pau mandado. O sangue do policial ferveu. Quem aquele sujeito pensava que era para tentar intimidá-lo? Já estivera em situações bem piores e conseguirá se dar bem. O escrivão Henrique podia confirmar. Contra a vontade, mas podia. Não. Tinha que se acalmar, usar a cabeça. Se partisse para a ignorância seria trucidado. A hora para fazer isso chegaria, no momento deveria colaborar com o sujeito e pegar tudo o que pudesse.
– Por que não me amordaçou? – Perguntou, dando início a sondagem.
– Por que não quero abafar os seus gritos. – Respondeu a figura sorrindo.
Os dentes amarelos do homem surgiram entre os lábios.
– Você acha mesmo que não deveria estar aqui? – Perguntou o estranho de cabelos castanhos e pele clara.
Jorge não respondeu. Não daria nenhuma informação sobre o que pensava. Conhecia aquele jogo muito bem, afinal ele próprio o estava jogando.
O sujeito aproximou-se de Jorge e se abaixou, ficando frente a frente com ele. Tinha alguma coisa errada. O olhar daquele estranho era incomum, selvagem.
– Um pai de família exemplar como você não deveria passar por isso, não é? – O sujeito não disfarçou o sarcasmo. – Ah, já ia esquecendo, um policial excepcional também. – O sorriso desapareceu do rosto e ele lambeu os lábios lentamente.
– Você não faz ideia de quem ou o quê eu sou, e mesmo que lhe diga não entenderia.
Jorge finalmente abriu a boca:
– Por que está fazendo isso, afinal? – Quis saber trincando os dentes. – vingança?
– Vingança? Não, isso é mesquinho demais. Além disso, não tenho nada contra você. – O olhar do sujeito tornou–se mais sombrio. – Eu apenas preciso fazer isso.
– Por que? – O policial já não escondia mais a raiva.
Em que merda havia se metido daquela vez? O que aquele sujeito queria?
– Digamos apenas que você tem as qualidades necessárias. Por isso foi escolhido.
– A delegada Mônica, ela armou pra mim, não foi? Ou foi a Suzana?
O sujeito voltou a sorrir, mas não como antes. A cortesia havia desaparecido. Se um leão pudesse sorrir diante da presa, aquela seria certamente a expressão que ele exibiria
– Ohhh. – Zombou. – O grande Jorge acha que é vítima de uma conspiração. Eu adoraria que essa fosse a resposta. Amo quando vocês humanos tentam ferrar uns aos outros.
Aquele homem era louco, só podia ser. Isso piorava tudo. Lidar com alguém imprevisível não era nada fácil. Teria que ter ainda mais cautela.
– Talvez possamos chegar a um acordo. – Disse Jorge.
– Você não tem nada que eu queira. – Retrucou o outro. – Na verdade tem, mas isso conseguirei de qualquer forma.
O policial agitou–se violentamente na cadeira. Se pudesse, teria quebrado o pescoço do sujeito ali mesmo. O sangue circulava quente e os músculos do corpo se contraíam em fúria. Sentiu-se humilhado. Humilhado por um bandidinho louco.
– Isso, lute, grite, esperneie. Quanto mais melhor. – Disse o estranho lambendo os lábios novamente.
Loucura. Loucura pura. Jorge havia caído numa maldita armadilha e não fazia ideia de como sair.

 

 

****

 

 

            Jorge conferiu o relógio do criado-mudo; eram sete e quarenta da noite. Ainda estava cedo. Poderia ter a noite inteira para aproveitar a companhia da esposa Suzana e do filho Eduardo. Não apenas poderia, mas deveria. Há quanto tempo não desfrutavam de uma noite juntos, como uma família feliz? Tempo demais. Os três precisavam disso. Mas o maldito telefone tinha que tocar. Aliás, a delegada Mônica, aquela megera, tinha que ligar. Tinha que chamá-lo à delegacia. Ela sabia dos problemas que ele estava passando com a família, poderia ter lhe dado uma folga, um tempo para ajustar-se, mas ela era egoísta demais para isso.
Sentou na cama para calçar os coturnos. A maciez do colchão provocou-lhe calafrios. Lembrara da última vez em que fizera amor com Suzana, ali mesmo. Por que essa lembrança doía tanto agora? Será que achava que nunca mais voltaria a tê-la em seus braços? Afinal, o que ele fez para merecer aquilo?
            Levantou da cama e vestiu a camisa olhando para as paredes vazias. A falta de decoração tornava tudo aquilo um reflexo de como ele se sentia naquele ambiente. Olhou em volta, buscando um alento, algo que não o oprimisse, mas não obteve sucesso. Era como se aquelas paredes apontassem o dedo para ele, acusando-o, julgando-o. E enquanto isso aproximavam-se, diminuindo seu espaço para esmagá-lo.
            Saiu e fechou a porta do quarto atrás de si com força. Ele não deveria ter que passar por isso. Era um bom pai, um marido atencioso, preocupado e um policial exemplar; não era? Tinha que acreditar que sim, ainda mais agora que todos, incluindo sua família, pareciam esquecer isso.
Cruzou o pequeno corredor como uma bala, ignorando os quadros que tanto gostava, e chegou à sala. Olhou para o sofá de couro. Ali estava Suzana, lendo um livro. Parou por alguns segundos, esperando uma palavra, um cumprimento, uma pergunta. Nada. Resolveu quebrar o silêncio ele mesmo.
– Amor, tenho que ir na delegacia. – Disse o mais carinhosamente possível.
– Tudo bem. – Respondeu Suzana sem olhar para ele.
Jorge sentiu o sangue subiu-lhe à cabeça, mas respirou fundo.
– Como assim, tudo bem? Não vai perguntar o motivo? Ficar preocupada?
– Já passamos dessa fase, Jorge. – Respondeu ela, levantando e se dirigindo à cozinha. – De qualquer forma sei que tem a ver com aquelas malditas fitas que você vive falando.
Jorge calou-se por um momento, observando a esposa. Seu andar vagaroso ainda o encantava, mesmo depois de anos. Os cabelos negros cortados a altura dos ombros balançavam graciosamente, como o pêndulo de um sino.
            Suzana retirou um copo do armário e abriu a geladeira. Pegou uma chaleira e colocou na mesa de madeira no meio do cômodo. Chá de camomila gelado. Ela sempre apelava para ele quando ficava nervosa. Talvez aquele fosse um bom sinal. Ela deve estar preocupada, mas não quer admitir. Estranhamente, aquilo fez Jorge sentir-se mal. Uma espécie de culpa insistia em molestá-lo. Mas por que diabos isso acontecia? Já não bastava ela colocar o próprio filho contra ele, agora ousava culpá-lo pela decadência da relação? Ele quase literalmente se matava de trabalhar para terem uma vida confortável, e se por acaso perdia a paciência com as exigências de Suzana era unicamente por cansaço. Será que ela não via isso? Certa vez ela reclamara do próprio trabalho durante uma discussão. Disse algo sobre também estar cansada, mas ele logo tratou de trazê-la a realidade. Desde quando ela tinha do que reclamar? Ela sabia o que é enfrentar animais, como os que ele próprio enfrentava em sua profissão?
            Ele sacudiu a cabeça para afastar aqueles pensamentos e tentou, mais uma vez, dialogar com a esposa.
– Evitei ao máximo me envolver com aquelas fitas, mas acho que dessa vez não vai ter como. A delegada quer que eu assista a uma delas. – Disse observando enquanto Suzana engolia seu chá.
– Qual delas? – Perguntou a esposa depositando o copo na mesa.
– Não sei. Acho que é uma fita nova. Meu Deus, parece que isso nunca vai acabar.
Suzana olhou o marido nos olhos. Havia raiva e ressentimento, mas também parecia haver, lá no fundo, medo. Mas Jorge não sabia do quê.
– Aquela desgraçada da Mônica. – Jorge socou a mesa com força, assustando Suzana. – Perdão, amor. - Desculpou-se estendendo a mão para acariciar o rosto da esposa. Ela, por sua vez, afastou-se delicadamente. A última discussão parecia ainda marcar sua alma.
            Jorge a olhou por alguns segundos e virou-se para ir embora. Na entrada da cozinha estava Eduardo. Parecia alarmado. O pai abaixou-se e tocou o ombro do menino.
– Papai vai ter que ir trabalhar, Edu, cuida da sua mãe enquanto isso? – Perguntou.
O filho tirou a mão do pai e correu até Suzana, que o abraçou. A sensação de culpa, algo raro para ele mas, que estava se tornando frequente demais, deu-lhe um soco no estômago novamente. Sentiu que o jantar tentava subir-lhe pelo estômago. Jorge levantou e olhou para o chão desolado. Talvez seu casamento tenha acabado, mas não desistiria tão fácil. Não abriria mão de sua família, não sem lutar. Agora, porém, tinha que se apressar, a delegada Mônica o esperava, e ela detestava isso.
– Vou tentar voltar logo. – Disse com tristeza.
– Tenha cuidado. – Pediu Suzana enquanto enchia novamente o copo com o chá.
– Vou ter. – Prometeu Jorge.
Afinal, ela ainda se preocupa. Aquilo era um bom sinal.

 

 

****

 

 

            O carro parou na última vaga da direita, reservada para idosos. Afinal, do que adiantava uma vaga para idosos e deficientes se apenas quem trabalhava na delegacia tinha autorização para usar o estacionamento? O policial saltou do carro e empurrou a porta com a perna. A delegada já deveria estar se mordendo de raiva por esperar. Jorge riu, enquanto dava a última tragada no cigarro e jogava o filtro no chão. Ela que esperasse. Até os poderosos deveriam aprender a ter paciência. Começou a caminhar lentamente pelo estacionamento até que avistou o escrivão Henrique encostado em uma viatura, fumando. O policial se aproximou com os braços abertos, sorrindo.
– Grande, Henrique. Fazendo um intervalo? – Perguntou amigavelmente.
Ao vê-lo, O escrivão desencostou do carro e deu uma longa tragada no cigarro.
– Boa noite. - Respondeu secamente – É, estou respirando um pouco. Tenho muito trabalho pra essa noite.
– Pois é, eu também. A delegada está lá dentro?
– Está sim. Se eu fosse você me apressava. – Aconselhou Henrique.
– Não se preocupe. – Disse Jorge sorrindo. - Você sabe que tenho talento para sair de enrascadas.
O escrivão lançou-lhe um olhar sombrio.
– Sei sim. Mas acho que as coisas se complicaram muito ultimamente.
– Fala das fitas?
– Também. Não sei se soube – Henrique jogou o cigarro no chão e o pisoteou. – mas estão interrogando todo mundo da delegacia.
– Sim, estou sabendo. Mas lembra do que falei naquele dia? As vezes é melhor calar a boca e fazer o que é certo.
Henrique sorriu e Jorge se perguntou se ele havia entendido a mensagem.
– Bom, vou entrando. – Disse Jorge. – Encarar a fera.
– Boa sorte com isso. – Respondeu o escrivão, acendendo outro cigarro.
            Ao entrar pela porta, o policial sentiu os pelos do corpo se arrepiarem. O ar-condicionado estava funcionando a todo vapor. Essa era uma boa notícia. A delegacia estava trabalhando em um calor infernal a mais de um mês. Um tiro acidental atingira o aparelho, iniciando o suplício. Jorge esfregou as palmas das mãos e olhou em volta. Como sempre, as luzes da recepção estavam apagadas. Os únicos resquícios de iluminação no ambiente vinham do corredor logo atrás e da sala do escrivão que ficava ao lado.
            O policial se aproximou do balcão e tocou a campainha. Uma, duas, três vezes. Ninguém apareceu. Samanta deve estar cochilando na sala de arquivos. Ele olhou em volta bem-humorado e seguiu para o corredor. A sala da delegada era a última. Uma porta de madeira pintada de branco exibia uma placa com o nome de quem ocupava o cargo. Jorge respirou fundo, girou a maçaneta e entrou sem bater. Adorava fazer isso. Pegar as pessoas de surpresa nos dá informações valiosas sobre elas, e informação é poder. Ele chegou perto muitas vezes de pegar a delegada desprevenida, mas em todas as ocasiões, ela conseguira contornar a situação. Um mês atrás a ouviu atrás da porta discutir com o ex marido pelo telefone.
– Se você não comparecer à próxima audiência, mando uma viatura lhe buscar. – Gritou.
            Depois de alguns segundos, o som do telefone batendo com força no gancho atravessou a porta. Aquele era a hora certa para surpreender a delegada e Jorge aproveitou. Abriu a porta e entrou rapidamente. Para sua decepção, porém, ela já havia recuperado a compostura. Lá estava ela, sentada atrás de sua mesa, olhando para ele com as mãos entrelaçadas. Ela é incrível. Pensou ele na ocasião. Talvez ele conseguisse pegá-la desta vez. Assim que Jorge passou pela porta, teve outra decepção. Ela estava preparada. Ele fora ingênuo demais. A delegada Mônica sabia que ele estava a caminho, não cometeria tal deslize. Quando ele olhou para ela, a mulher estava de pé ao lado da mesa, com um copo na mão e sorrindo. Mas não era um sorriso amigável.
– Boa noite, Jorge. – Cumprimentou a delegada.
– Boa noite delegada. – Respondeu o policial.
– Não perde a mania de entrar sem bater, não é? Um homem como você deveria ter mais educação. – Alfinetou Mônica.
– Me desculpe. Acho que é o costume. Tenho feito algumas batidas policiais ultimamente.
A delegada jogou a cabeça para trás e gargalhou assustadoramente. Aquilo causou arrepios em Jorge.
– Chega de conversa fiada, temos muito o que conversar. – Disse ela indicando a cadeira para que ele se sentasse.

            Jorge sorriu e sentou. Apesar de suas diferenças, uma coisa ele tinha que admitir: ela sabia impor respeito. Não era uma mulher muito alta, devia ter no máximo um metro e setenta e cinco, mas estava sempre usando sapatos de salto alto e andava com muita elegância. Vestia invariavelmente uma calça jeans com blusa social feminina com manga três quartos de cor escura, o que contribuía para sua aura de mulher que não tinha tempo para banalidades. Por último, um relógio dourado e um par de brincos de argola davam um pequeno toque de ostentação, combinando perfeitamente com sua pele negra.
            Mônica andou até o outro lado da mesa, mas não se sentou. Apoiou os dois punhos fechados na superfície de madeira e se inclinou um pouco para frente.
– Espero que esteja ciente da gravidade da nossa situação. – Disse a delegada olhando para Jorge com firmeza.
– É claro que estou. – Respondeu o policial. – Ninguém me deixa esquecer meu papel nisso.
– E é bom mesmo que você não esqueça. Se tivesse se controlado, não estaríamos todos sob investigação.
– Me controlado – Jorge riu com sarcasmo. – você é mãe, eu sou pai. Nós dois sabemos o que aquele casal passou.
Mônica endireitou a postura sem tirar os olhos dele.
– Jorge, você espancou o sujeito e quase deixou ele aleijado.
– Não espanquei um sujeito, espanquei um maldito pedófilo. Os pais daquelas crianças me mandam mensagens todos os dias agradecendo.
– E agora a corregedoria está no meu pé.
Jorge cruzou os braços e olhou para baixo.
– Lamento por isso. – Disse o policial. – Que justiça é essa que protege criminosos desse tipo? - Perguntou.
– Não é só a justiça – Disse Mônica com pesar – Sabemos que essa investigação não dará em nada, mas uma parte da imprensa está lambendo os beiços ao falar dela. – A delegada fitou mesa. – Acabei de mostrar isso para o agente da corregedoria. - Disse, apontando para uma pilha de papéis.
– O que é? - Perguntou ele.
– São os relatórios de seus últimos casos. Ele ficou impressionado com sua competência.
– Então, qual é o problema?
– O problema, Jorge, é que ele percebeu o seu padrão.
– Que padrão? – O policial olhou para a delegada intrigado.
Mônica respirou fundo e finalmente sentou na cadeira atrás da mesa.
– Ele me disse que há outras denúncias contra você pelo mesmo motivo.
Jorge não esperava por aquilo. Será que alguém abriu a boca? Ficou sem palavras.
– Você está na corda bamba. – Advertiu a delegada.
– Tem algo que você possa fazer para me ajudar? – Perguntou o policial.
As mãos dele tremiam sem parar. Sabia muito bem que denúncias eram essas. Os olhos da delegada percorreram a mesa em busca de alguma coisa. Pegou um envelope branco e abriu.
– Essa é uma carta da polícia federal. - Disse ela passando a mão pelos cabelos crespos. - Eles querem nossa colaboração no caso das fitas VHS.
– E o que isso tem a ver com o meu problema? – Questionou Jorge.
– Quero que você fique à frente da investigação. – Disse Mônica.
– Quê? Tá brincando comigo? Quero distância dessa merda toda. - Esbravejou o policial.
Antes que a delegada dissesse algo, a porta atrás de Jorge se abriu e uma voz masculina falou:
– Mônica, já preparei o vídeo e a televisão.
– Ok, Mário, ele já está indo.
A porta se fechou novamente.
– Tava falando de mim? – Perguntou Jorge. – Vai mesmo me obrigar a participar disso?
– Jorge, acho que você ainda não entendeu a enrascada em que se meteu. - Disse Mônica. – Esse caso das fitas está deixando o estado inteiro de cabelos em pé. Até a federal quer meter o bedelho.
– Repito, e daí?
– Imagina o status que você vai alcançar se resolver o caso. – Pediu Mônica. – A turma lá de cima vai obrigar a corregedoria a arquivar todas as denúncias contra você.
            Jorge suspirou. Sua cabeça começou a trabalhar. E se tudo isso fosse uma jogada da delegada? Todos sabiam que ela nunca o apoiara, por que faria isso agora? Aliás, ela estava mais calma do que o habitual. Alguma coisa estava errada.
– Jorge – Recomeçou a delegada, interrompendo os pensamentos do policial. – Você é o melhor investigador que nós temos. Essa é não só a sua grande chance, mas a nossa também.
Então era isso. Ela queria manipulá-lo. Colocar ele contra a parede e em seguida adulá-lo para que ele aceitasse o caso. Esse era o jogo dos poderosos. Já vira acontecer com outros antes; várias vezes. O sangue dentro de Jorge estava fervendo. Ela realmente conseguira deixá-lo de mãos atadas.
– Não precisa assistir às outras fitas. Quero que veja apenas a que chegou esta tarde. – Disse a delegada levantando da cadeira e caminhando até a porta.
– Assista ela, depois volte aqui e conversaremos sobre você aceitar ou não. – Ordenou com um tom autoritário.
Jorge se levantou e observou a mulher por alguns segundos. Ela havia aberto a porta e estava segurando-a para que ele passasse. Exibia no rosto uma expressão enigmática. Estava séria, mas havia a impressão de que os olhos dela sorriam.
O policial passou por ela e se dirigiu à sala de arquivo em silêncio; teve medo de questioná-la naquele momento.

 

 

****

 

 

            Mário havia deixado a porta entreaberta para Jorge. Assim que entrou por ela, o policial viu o colega examinando algumas fitas VHS. Aquele era um bom sujeito. Do tipo que trabalhava duro e gostava de auxiliar os outros. Talvez pudesse livrar Jorge da obrigação de assistir à macabra fita.
– Oi, Mário. – Cumprimentou. - Desculpe a demora.
– Não esquenta. – Respondeu o outro. – Senta aí, já coloquei a fita no vídeo.
Jorge pegou uma cadeira de escritório e a arrastou até a frente da televisão.
– Você assistiu à fita? – Perguntou.
– Assisti todas elas. Cara, essa última é a mais estranha, você vai ver.
– Eu não assisti nenhuma até agora.
– Sério?
– Não tive estômago. Sinceramente, estava pensando se você não poderia me ajudar a respeito disso.
– Quer um remédio pra enjoo?
– Não, não é isso. Queria que você me livrasse da obrigação de assistir essa coisa.
O outro olhou para o colega, confuso.
– Não posso fazer isso, cara, a delegada vai arrancar o meu saco.
– Como assim? – Agora era Jorge quem estava confuso.
– Desculpa, cara, ela deu ordens explícitas. – Mário fez uma careta. – Ela disse: faça o Jorge assistir de qualquer maneira, se ele não fizer isso eu saberei. – concluiu imitando a voz da delegada.
O policial coçou a cabeça e sentou-se. Olhou para as mãos. Estavam, mais uma vez, tremendo. Não queria fazer aquilo, mas não havia saída, a delegada o cercou por todos os lados.
– Ela por acaso viu a fita? - Perguntou Jorge ao colega.
– Se ela viu? – Mário deixou o ar escapar entre os dentes, com deboche. – Claro que não.
– Hum, que surpresa.
– Essa aqui chegou hoje à tarde. – Disse o outro enquanto pegava o controle remoto. – Um cara que mora perto do parque trouxe, disse que tinha tomado do filho dele de nove anos.
– O quê? A fita estava com uma criança? – Jorge ficou chocado.
– Pode crer. O moleque falou ao pai que tinha comprado de um cara que mora na mesma rua.
Mário apertou o play. A televisão exibiu uma série de chuviscos e então tudo ficou preto. Após alguns segundos, as imagens apareceram. A câmera focava em um sujeito sentado ao fundo de uma sala vazia. Parecia ter acabado de acordar e estava confuso. A qualidade da filmagem fez o estômago de Jorge embrulhar. Ele já vira gravações amadoras antes, mas essa era diferente. Era como se tudo, desde o áudio até a iluminação do ambiente, tivessem sido manipulados com o propósito de causar desconforto.  Após algum tempo, o homem na tela levantou-se do chão e caminhou até o meio da sala. Depois de passar algum tempo coçando a cabeça, continuou a andar até sumir do enquadramento.
– O que significa isso? – Perguntou Jorge.
– Veja até o fim. – Pediu o outro com uma expressão esquisita.
Agora, uma série de pancadas soavam, como se alguém socasse uma superfície de madeira. Jorge presumiu que o homem estava batendo na porta.
– Socorro. – Gritou o sujeito. – Me deixem sair.
Depois de vários minutos de apelo, o homem desistiu e voltou ao meio da sala com as mãos na cintura. Naquele momento, um ruído agudo típico das falhas das fitas VHS soou alto. Era como o de um avião, mas distorcido. Jorge estranhou aquilo. Como uma fita novinha em folha apresentaria esses barulhos? Enquanto o som continuava por algum tempo, o chuvisco na imagem aumentou, somando se a uma listra negra no meio da dela. A sensação de desconforto voltou a crescer no policial. Jorge aproximou-se da televisão e aprumou os ouvidos. Mais uma vez, teve a impressão de que era algo proposital. Apesar da náusea, não tirou os olhos da tela e viu que a porta acabara de ser aberta, pois percebeu uma luz amarelada se formando no chão de cimento e cobrindo o homem no meio da sala. Ele olhou em direção à luz com curiosidade.
– Olá, veio me ajudar? – Perguntou.
De repente, uma sombra surgiu no chão e o homem recuou até a parede, apavorado.
– Não, não. – Gaguejou aos gritos. – Fique longe de mim.
Jorge franziu a testa e arrastou a cadeira para ainda mais perto da televisão. Seu coração estava chocando-se contra a sua caixa torácica com força. Mário havia parado o que estava fazendo e também se aproximou da tela.
            O homem no vídeo estava com os braços entendidos para frente e continuava a gritar desesperadamente. Jorge lembrou-se de um sujeito que ele havia pego uns anos atrás. Um traficantezinho analfabeto que achava que era invencível. Após a polícia invadir sua casa, ele se encolheu no canto do barraco e fez a mesma coisa. Com os braços estendidos, implorou para que não chegassem perto dele. Ele teve seus motivos para se desesperar, pensou Jorge.
– Coitado desse cara. – Disse Mário, referindo-se ao indivíduo na filmagem. – Olha só o porquê de ele ficar tão nervoso.
Jorge quase caiu da cadeira quando viu o que era. Mesmo ele, um policial experiente que achava que já vira de tudo, jamais imaginou que aquilo podia acontecer de verdade. Em filmes de terror, aquilo aconteceria, mas não na vida real. Era inconcebível. O que surgiu no enquadramento da câmera foi uma coisa humanoide, mas desprovida de cabelos ou qualquer outro pelo que pudesse ser visível na imagem. Sua cabeça era pequena e exibia um brilho amarelado nos olhos. Os membros eram anormalmente longos e andou inicialmente sobre as duas pernas, com os braços pendendo soltos ao lado do corpo. Depois de alguns passos, a coisa abaixou-se e apoiou as mãos esquálidas no chão, como se fosse uma aranha. O sujeito no canto da sala pareceu ainda mais apavorado quando a coisa mudou de posição e seus gritos começaram a extrapolar os limites do áudio da câmera, provocando efeitos ensurdecedores. Felizmente, Mário havia se adiantado a esse momento e abaixou o volume da televisão, deixando-o quase no mínimo.

            A criatura começou a se aproximar do homem lentamente. Seus movimentos eram esquisitos mas não desajeitados. Andava de quatro tão bem quanto qualquer quadrúpede, mas seus braços e pernas compridos e finos moviam-se de maneira incomum, o que deixava aquela coisa com um aspecto ainda mais ameaçador. A criatura hesitou por um pequeno instante e depois saltou sobre o homem, caindo por cima dele. Apesar da violência com que o ataque foi executado, a coisa parecia não ter a menor pressa em matar sua vítima. Ela mordeu e arrancou com as garras primeiramente os dedos das mãos, depois foi para os pés, dando intervalo de alguns segundos, enquanto o sujeito continuava berrando de dor. Em seguida passou a arrancar as mãos e os braços, um pequeno pedaço de cada vez. Ela puxava com os dentes ou com as garras, depois largava no chão e ficava observando a vítima se contorcer de agonia.

            Após algum tempo, Jorge não aguentou mais e pediu para que Mário tirasse o vídeo.

– Dane-se, pode dar stop nessa coisa, não quero mais ver isso.

– Relaxa, cara, tô tirando. – Respondeu Mário. – E então, o que achou?

– O que achei? Tá brincando? Isso é uma atrocidade nojenta. – Gritou Jorge apontando para a televisão. – De onde saiu aquela, aquela coisa?

– Essa é uma boa pergunta, Brother, mas ninguém sabe. – Respondeu Mário coçando a cabeça. – Você não viu as outras fitas né? Tem coisa bem pior.

Jorge ficou horrorizado.

– Como pior? Já vi filmagens amadoras de tortura, mas isso supera tudo. Aquela coisa nem parecia humana.

– Não parecia. – Concordou Mário. – Mas hoje em dia tem esses lances de efeitos especiais e tal.

– Não vem com essa. Desde quando uma filmagem porca como essa tem efeitos especiais? Aqui não é Hollywood, amigo.

– Pode crer. – Mário tirou a fita do videocassete e a colocou na capa de plástico. – Sem falar que as vítimas que aparecem nas imagens das fitas já foram identificadas, inclusive esse último cara.

– Quem é ele?

– O nome dele eu não sei, cara, mas era pedreiro. O mestre de obras onde ele estava trabalhando disse que não o vê à duas semanas e a esposa denunciou o desaparecimento à polícia.

– Acharam o corpo, ou o que sobrou dele?

– Cara, se você tivesse visto até o fim, saberia que não sobrou nada.

Jorge sentiu novamente o desconforto no estômago.

– E agora? – Perguntou.

– Agora volta lá e fala com tua delegada.

– Vou pular fora, não quero me meter nisso. – Disse Jorge convicto. – Ela que encontre outro.

– Brother – Mário se aproximou e tocou o ombro do colega. – Acho que você não tem escolha.

 

 

****

 

 

            Mônica estava novamente sentada à mesa. Sua atenção, voltada para uma folha marrom que ela segurava nas mãos. Aquilo não era nada bom, esse tipo de papel só era utilizado nos relatórios da corregedoria. Jorge bateu à porta, apesar de ela já estar aberta.

– Entre. – Ordenou a delegada.

– Com licença.

A mulher o olhou com desconfiança.

– você está bem? – Perguntou levantando uma sobrancelha.

– Estou sim.

Jorge sentou na cadeira em frente a mesa e ficou em silêncio.

– Acredito que você já tenha assistido à fita, como ordenei.

– Sim.

– E o que me diz? – A delegada apoiou os cotovelos na mesa e juntou as pontas dos dedos das mãos, formando um triângulo.

– Sinceramente? Estou chocado. As outras fitas, das quais apenas ouvi falar, não eram tão pesadas.

– Isso é subjetivo, Jorge. Para muitas pessoas, a tortura de um pedófilo pode ser chocante.

– Para mim não é. Mas enfim, o que quer que eu faça? Alias, primeiro responda: Por que eu?

Mônica suspirou impaciente e apertou os olhos.

– Achei que já houvesse dito. É uma boa oportunidade para você endireitar as coisas.

– Isso eu já entendi. O que não entra na minha cabeça é: por que quer me ajudar?

Apesar da pergunta, Jorge estava convencido de que aquilo nada mais era do que um jogo mas, estava ansioso para saber onde chegaria.

– Por que você é um dos nossos. E como já falei, o melhor investigador daqui. Precisamos de você.

O policial quase se abriu numa gargalhada. Ela estava mesmo disposta à bajulá-lo.

– Digamos que eu aceite – Jorge abriu um sorriso – o que me garante que isso realmente me beneficiará?

A delegada entrelaçou as mãos e apoiou o queixo.

– Eu mesma vou me certificar de seus benefícios, tem minha palavra. Só peço uma coisa.

– O que?

– Não pise na bola dessa vez, ou será a última. – Mônica se recostou em sua cadeira. – Isso eu também garanto.

            Jorge abaixou a cabeça e coçou a sobrancelha. Numa coisa a delegada não estava mentindo: aquela era uma excelente oportunidade para ele. O único problema, era o preço cobrado. Se envolver em um caso como aquele era garantia de muitos anos de terapia. Ele já havia passado por aquilo no passado e não tinha a menor vontade de repetir a experiência. Respirou fundo. Sabia que mesmo assim não poderia recusar. A delegada o havia pego de jeito.

– Muito bem, eu aceito. – Disse enfim.

– Que bom. – Respondeu Mônica. – Inicialmente você fará apenas algumas vigílias e nada mais. Depois que conseguirmos provas mais robustas, partiremos para a ação.

– Como assim vigílias?

– Mário não lhe contou? Descobrimos de onde veio a última fita. O garoto que a comprou apontou a casa do vendedor.

– Não acha isso estranho? – Perguntou Jorge. – Dezenas de fitas desse tipo têm sido vendidas por aí há tempos e até agora ninguém tinha conseguido rastrear a fonte. De repente um sujeito comete o erro absurdo de vender para um conhecido que mora na mesma rua.

– É verdade, o comércio dessas fitas estava sendo muito bem executado desde o início. Não sei se você sabe, mas foi com muito custo que conseguimos obter várias delas, através de pais e professores que as confiscavam. Mas, mesmo quando isso acontecia, os filhos e alunos deles diziam não saber de onde elas vinham. Ou falavam que acharam na rua, ou que um amigo de um amigo conseguiu a fita.

– Isso estava acontecendo por que os compradores eram sempre adolescentes. – Disse Jorge. – Eles estão acostumados a esconder fitas pornô.

A delegada abriu um sorriso malicioso.

– Viu? Esse é o maior motivo de querermos você no caso. Você sabe do que está falando. É esperto, experiente.

– Não é bem isso. Na verdade eu também escondi algumas no meu tempo. – Brincou o Policial, sorrindo.

A delegada ignorou a piada.

– Bem, vamos adiante. Ivan já está no local, vigiando a casa. Quero que você vá até lá e se junte a ele. Não faça nada além disso, não temos mandado ainda.

– Ok, delegada. Algo mais?

– Sim, Não vá com seu carro. Se o sujeito vir dois carros próximos à residência dele, poderá ficar desconfiado. Vou mandar alguém lhe dar uma carona. – A delegada levantou da cadeira e estendeu a mão ao policial. – Boa sorte, Jorge, e obrigada.

Ele pegou a mão e a apertou firmemente.

– Disponha. – Disse.

 

 

                                                ****

 

 

            Mário parou o carro duas ruas antes do destino. Ele não arriscaria deixar Jorge em frente a casa, recomendações da própria delegada. Na verdade ele faria daquela maneira mesmo que ela não houvesse dito nada. Não era idiota, apesar de ter certeza de que ela achava isso. Destrancou as portas e esperou o colega descer.

– Obrigado pela carona, Mário. – Agradeceu Jorge. – A minha noite vai ser longa e foi bom bater esse papo no caminho.

– Relaxa, Cara, eu também vou ficar em claro. Tenho que organizar as fitas no arquivo e dar aquela geral no depósito.

– Enquanto isso, nossa querida delegada vai para casa e sonhar com os anjos.

– Não tenho certeza de que ela vá dormir. O dela está na reta também, esqueceu?

– Não tanto quanto o meu, amigo.

– Isso é verdade, mas você não pode reclamar, cara.

– Não posso mesmo. – Disse Jorge com sarcasmo. – Bom, vou indo, até amanhã.

– Até.

            Jorge ficou parado na calçada enquanto Mário acelerava o carro e desaparecia no fim da rua. Tirou um cigarro do maço e acendeu com o Zippo. Era uma caminhada curta, mas sempre havia tempo para fumar. Assim que atravessou a última esquina e chegou à rua, ele viu o carro de Ivan estacionado. Aquele poderia ser um policial bem estúpido, mas, pelo menos, sabia se esconder. Provavelmente foi esse o motivo pelo qual a delegada o escolhera para a função de vigiar junto com Jorge.

 Ao perceber uma aproximação, Ivan botou a cabeça para fora do carro e olhou para trás.

– Sabia que era você. – Disse, reconhecendo o colega.

– Claro que sabia, quem mais acharia sua tocaia?

O outro arrodeou o veículo e entrou.

– E então, o que eu perdi?

– Muita agitação. Eu estou até sem fôlego. – Respondeu Ivan.

Jorge encostou no banco e tentou relaxar.

– Não entendo porque não mandam a gente entrar lá e encher o sujeito de porrada.

– Tá brincando? – Ivan perguntou enquanto ria. – Isso aqui é trabalho e não diversão, meu caro.

Jorge também riu. Gostava da companhia de Ivan, apesar de nem sempre concordarem.

– Queria poder acender um cigarro.

– Depois do que vi numa das fitas decidi parar de fumar. – Disse Ivan coçando os olhos. – você também viu a do grandalhão?

– Não, Só a última que chegou.

– Acho que foi uma das primeiras que recebemos. O pai de um garoto chegou do trabalho bem na hora em que o filho e os colegas estavam reunidos na sala de casa pra assistir.

– Que ótimo. – Disse Jorge.

– No vídeo aparece um grandalhão de mais de dois metros. Ele empurra a cabeça de uma mulher na parede, várias vezes. O nariz afunda completamente no rosto depois da última pancada. Em seguida ele acende um cigarro e coloca na boca dela.

– Eca.

– Ela dá várias tragadas antes de finalmente morrer.

– Gostaria que não tivesse me dito isso, Ivan. – Disse Jorge irritado.

– Desculpa cara, só achei que de repente isso te ajudaria a parar de fumar.

– Não ajudou em nada. Me deixou mais nervoso, e com nervoso, eu digo com vontade de fumar.

Ivan se calou e encostou a testa no volante do carro

– Afinal, qual é o objetivo desses caras? Digo, os que fazem essas fitas? – Perguntou Jorge, tentando tirar da cabeça a imagem que o colega o fizera criar.

– Vender, levantar uma grana… – Respondeu Ivan sem se mexer.

– Não, não pode ser só isso. Pra mexer com essas coisas, precisa ser…

– Sádico pra caramba. – Completou o outro.

– É, sádico. Mas, mesmo assim, porque se arriscar? Porque fabricar provas de crimes?

Ivan tirou a cabeça do volante e encostou no banco.

– Não sei como funciona a cabeça dessa gente maluca, mas de uma coisa eu sei.

– Do que?

– Trabalhe com o que gosta e nunca mais terá que trabalhar na vida.

Jorge fitou o colega com surpresa. Ele não era tão estúpido quanto parecia normalmente.

– Então eles estão unindo o útil ao agradável?

– Exato. Ganhando uma grana, que diga-se de passagem, não é pouca, e ao mesmo tempo se divertindo com as torturas.

– Acho que você tem razão.

Agora foi a vez de Ivan ficar surpreso.

– Tenho? Está tudo bem, Jorge? Está com febre? – Brincou.

O outro fingiu não ouvir a provocação.

– Todo mundo na delegacia viu as fitas, menos eu. Não tenho estômago para isso.

– Imagina se uma dessas merdas cai nas mãos do seu filho. – Disse Ivan de repente.

Jorge estremeceu por dentro. Até então, não havia pensando naquela possibilidade.

– Não sei o que eu seria capaz de fazer.

– Eu imagino o que você faria. – Disse Ivan – Mas deixa pra lá.

– Espero que essa merda acabe. Só em pensar que coisas assim são vendidas por aí e os jovens estão comprando fico de cabelos em pé.

– Se fitas de tortura e assassinato vendem tão bem assim nas ruas, imagine drogas.

– Penso nisso o tempo todo. – Disse Jorge em um tom soturno. – É por isso que não tenho dó desses malditos bandidos.

– Você precisa aprender a pegar mais leve, Guerra.

– Tenho escutado muito isso ultimamente.

Ivan agitou-se no banco de repente e fez sinal para que Jorge se calasse. Uma figura usando um casaco preto e capuz abriu a porta da casa que eles estavam vigiando. Os dois policiais permaneceram em silêncio, enquanto o sujeito saía da casa e se dirigia a um carro estacionado do outro lado da rua.
– O que faremos? - Perguntou Ivan – seguimos ele ou ficamos aqui?
– A delegada disse que não fizéssemos nada além de vigiar a casa. - Jorge ajeitou-se no banco e olhou para a placa do carro em que o estranho havia entrado. – Vamos esperar ele voltar.
– Está certo. Penso que ele não vá demorar, afinal, nem trancou a porta.
– Como? – Jorge ficou surpreso.
– Não percebeu? Ele apenas fechou a porta sem passar a chave e correu para o carro.
Jorge não disse mais nada até que o sujeito de preto desse partida no carro e saísse levantando fumaça. Após alguns minutos pensando, abriu a porta para sair
– Aonde vai? - Quis saber Ivan? - Não me diga que...
– Vou entrar na casa. - Disse Jorge.
– Não faça isso, lembre das ordens da delegada Mônica. – Alertou o outro.
– Que se dane. É uma ótima chance de vermos o que tem naquela casa, antes que ele perceba que chegamos a ele. Se é que já não percebeu.
O outro balançou a cabeça descrente.
– Acho que não percebeu. - Disse Ivan. - Se quer ir vá, eu cubro você, mas não farei nada além disso.
– É só o que eu peço. Assim ficaremos quites.
– Pode apostar. – Ivan tirou um objeto retangular do porta-luvas e entregou ao colega. - Fique atento ao rádio e não demore. Acho que você tem no máximo dez minutos. Se o sujeito voltar antes, eu te aviso.
– Obrigado. – Agradeceu Jorge enquanto se afastava em direção à casa.

            Assim que girou a maçaneta e viu que a porta estava de fato aberta, O policial se alarmou. O pensamento de que aquilo fora proposital passou rapidamente pela mente dele. Será uma armadilha? "Dane-se”, pensou. Que seja, pegaria o desgraçado naquela noite, então tudo acabaria. Sem mais vítimas. Satisfeito com sua decisão, Jorge entrou na residência e fechou a porta atrás de si. Teria que ser rápido e discreto, afinal não tinha nenhum mandado.
            Aquela era uma casa como outra qualquer, apesar de bem espaçosa. A sala estava cuidadosamente limpa, com dois sofás de couro marrom e um tapete vermelho decorando o ambiente. Uma mesa de madeira com duas cadeiras fora colocada discretamente em um canto da parede. Jorge se aproximou dela e viu dois copos e um prato sujo com algo que parecia ser pedaços de carne cheios de moscas e formigas. Pegou lentamente um dos copos e cheirou. Um cheiro acre queimou suas narinas e fez seu estômago contorcer-se violentamente. A boca se encheu de saliva e a língua endureceu. O que diabos era aquilo? O policial afastou o objeto rapidamente e se apoiou na parede tentando respirar. Por pouco não colocou o jantar para fora. Precisava perder essa mania de enfiar o nariz em tudo o que via.
            Depois de se recompor, posicionou o copo da mesma maneira que o encontrara e andou até um corredor que saía da parede leste com três portas, duas no meio e uma no final.
Na porta da esquerda não encontrou nada além de uma cama, um guarda-roupa e um cofre aberto e vazio. Era um quarto comum. Jorge ficou decepcionado, mas não desistiu. Abriu a porta da direita. Ali, finalmente encontrou algo interessante. Ficou perdido no meio de papéis, fios e aparelhos eletrônicos. Havia uma filmadora em cima de um laptop velho e diversos cabos e baterias extras. Jorge se aproximou, pegou a câmera, abriu o visor de LCD e ligou. Estava bem suja e danificada mas ainda funcionava e havia uma fita dentro. O vídeo começou a ser exibido no pequeno monitor, mas após dois segundos, Mário desligou a câmera enojado. Meu Deus, então estavam mesmo na pista certa. Aquela câmera foi usada para gravar várias das asquerosas fitas que estavam circulando por aí. A fita dentro da filmadora era a prova de que precisavam.
            O policial respirou fundo. Precisava se acalmar, deixar a empolgação passar. Ele havia entrado na residência sem mandado ou autorização, não poderia correr de volta à delegacia levando as provas que tinha encontrado. Se fizesse isso, colocaria tudo a perder. Ele deveria voltar para o carro e continuar vigiando até que seu turno acabasse. Nesse meio tempo pensaria em algo para convencer a delegada Mônica a correr atrás de um bendito mandado. Era isso. Satisfeito, Jorge virou-se para sair da casa o mais rápido possível, porém, sua vista começou a escurecer repentinamente e ele ouviu o som do próprio corpo caindo no chão antes de apagar.

 

 

****

 

 

            Jorge aquietou-se. Se era agitação que aquele sujeito queria então, não daria a ele. O homem afastou-se e virou as costas para o policial. Parecia muito seguro da situação.

– Você realmente não faz ideia do que está acontecendo não é jorge? Não sabe nem quem eu sou.

– Não sei o seu nome, mas sei quem é. É o desgraçado que gravou aquelas fitas e as vendeu.

– Sim, mas não sou apenas isso. – Disse o estranho.

– O que mais você é?

– Na verdade quem sou não importa e sim o que sou. – O sujeito virou-se novamente para encarar Jorge.

– Você é um assassino e molestador, no mínimo. – Cuspiu o policial.

O homem gargalhou.

– Agora você começou a se enganar.

O policial o olhou com os olhos em brasa.

– Vai me dizer que não causou a morte daquelas pessoas? Ou que não vendeu aquelas fitas nojentas para as crianças?

– Sim, sim. – Respondeu o estranho. – Mas você ainda não sabe o porquê.

– Não me importa, não existe justificativa pra isso.

O estranho aproximou-se de Jorge e o tocou no ombro. Aquele toque fez o policial se contorcer, mesmo amarrado.

– Sentiu? He, he, he.

– Que Merda foi essa? O que você fez comigo?

– Nada. Você teve apenas uma reação natural a um trauma ancestral. Entende o que isso significa?

– Você é louco.

– Infelizmente não, Jorge.

– Como passou pelo meu colega? – Perguntou Jorge de repente como se houvesse acabado de lembrar.

– Não se preocupe com seu amigo, ele está bem. Não posso mexer com pessoas como ele. Apenas dei um jeito de chegar até aqui sem ele saber.

– Como assim não pode mexer com ele?

O sujeito andou até um interruptor e olhou para o policial com seriedade.

– Olhe bem para mim e espere seus olhos acostumarem-se com a escuridão. – Disse. Em seguida apagou a luz.

Jorge calou-se intrigado. Cada palavra que aquele homem dizia, o convencia mais de que ele estava diante de um louco. Porém, quem sabe fazendo o jogo dele, ganharia tempo para que Ivan percebesse sua demora e fosse em seu socorro? Era o melhor a fazer.

– Não consigo ver nada. – Disse, fingindo interesse.

– Espere.

Jorge revirou os olhos impaciente e olhou para o teto. Até quando teria que esperar?

– Não está olhando para mim, Jorge. – Disse o sujeito depois de algum tempo. – Olhe agora.

O policial baixou os olhos e os fixou na silhueta escura de pé do outro lado da sala. Ainda não estava conseguindo enxergar muito bem, mas percebeu que havia algo errado. Primeiro viu que as pernas estavam dobradas em um ângulo incomum, como se os joelhos estivessem atrás delas, depois achou que a cabeça estava maior do que deveria.

– Mas o que…

– Está vendo? – O sujeito abriu os braços e algo como asas enormes saíram das suas costas. – E agora?

Jorge sentiu o sangue congelar em suas veias.

– Que truque é esse? – Perguntou gaguejando.

– Truque nenhum, meu caro, apenas o que eu sou.

O policial forçou os olhos no escuro para tentar ter certeza do que estava vendo. A medida que seus olhos se acostumavam, mais traços anormais surgiam. Depois de algum tempo não aguentou mais.

– Ascenda a luz. – Gritou.

O sujeito apertou o interruptor. Por alguns milésimos de segundo, Jorge ainda viu aquela coisa sob a luz amarela da lâmpada, mas logo em seguida tudo voltou ao normal. O que diabos era aquilo? Não podia ser humano.

– Nossas raças se cruzaram pela primeira vez há milênios. – Disse o sujeito se aproximando. – Quando vocês ainda pintavam em cavernas e acendiam fogueiras para espantar os animais e se aquecerem, minha espécie percebeu o potencial destrutivo da humanidade.

– Meu Deus. – Exclamou jorge aterrorizado.

– Acho engraçado vocês nos temerem, sendo que são vocês mesmos que se matam.

– Nós mesmos? Foi você quem fez aquelas fitas, que matou aquelas pessoas. – Berrou o policial perdendo o controle.

A coisa se divertiu. Mostrou novamente os dentes amarelados e enxugou com a mão, uma gota de saliva que escorreu-lhe dos lábios.

– Nós só conseguimos causar mal a quem já tem o mal na própria alma, meu caro.

– O que quer dizer?

– Quero dizer que todas aquelas pessoas que você viu nas fitas eram monstros. Vamos lá, você me entende.

Jorge quase vomitou.

– Quantos bandidos você torturou? – Perguntou a criatura em forma de homem.

– Fiz isso apenas para conseguir informações.

– Mas você matou muitos também, não matou?

O policial não respondeu. Havia percebido que estava caindo no jogo da coisa.

– Não seja covarde, admita. – Pediu a criatura ainda sorrindo.

– Se você consegue apenas prejudicar quem tem o mal em si, por que está fazendo isso comigo?

– Ohh, então você se acha um herói? – Zombou o estranho.

– Se não sou o herói, quem é? Você?

– Não, eu não sou nenhum herói. Sou um monstro. Alimento-me da dor física e psicológica de pessoas como você.

Jorge encarou a coisa nos olhos. A fúria crescendo cada vez mais em seu corpo. O sangue agora fervia e os músculos tremiam. Como aquilo ousava comparar-se a ele?

– Quem me traiu? Quem me entregou?

A criatura pareceu irritar-se com a pergunta.

– Não perca seu tempo superestimando a sua importância, Jorge, a sua situação nada tem a ver com traição.

– Duvido.

– Seus colegas e sua família são leais a você, apesar do que você os fez passar.

– Eu nunca fiz mal a eles.

– Ah, você fez sim. Você os fez guardar os seus segredos sombrios, meu caro, e não existe fardo maior para a consciência humana.

– O que você entende de consciência humana?

– Nós estamos entre vocês desde o princípio Jorge. Assim que percebemos que podíamos nos misturar com a sua espécie nós o fizemos. Sempre observando, escolhendo.

– Escolhendo o quê?

– Os mais saborosos. – O sujeito passou a língua nos lábios. – O sofrimento dos maus nos dão um prazer imenso. Para nós, é como o sexo é para vocês humanos. Por outro lado – O estranho abaixou-se próximo à jorge – Os inocentes ou bem-intencionados não nos agradam. O sofrimento deles não nos satisfaz. Para falar a verdade, não conseguimos sequer nos aproximar deles.

– Por que me escolheu? – Quis saber Jorge.

O estranho se levantou e abriu os braços Com impaciência.

– Só tem uma coisa que odeio em vocês: essa maldita estupidez. Você realmente não sabe?

O policial ficou calado enquanto o sujeito apalpava o bolso da calça. Ao ver que era uma foto de sua esposa e filho, voltou a enfurecer-se.

– O que faz com isso, sua criatura suja? Me devolva. – Gritou.

O estranho fechou os olhos e franziu a testa, como se tivesse sido atingido por uma onda de êxtase. Depois de alguns segundos, finalmente falou.

– É apenas emprestado. Não se preocupe, não posso fazer nada contra sua família, a menos que saiam da linha.

Jorge cuspiu nos sapatos da criatura.

– Não ouse…

– Não ouse o que? – Interrompeu o sujeito. – Sua doce esposa e seu filho certamente me agradeceriam se soubessem.

– Eles me amam. Você vai destruí-los se fizer alguma coisa comigo.

– É verdade, eles o amam. Mas também o odeiam.

– Você não sabe o que está falando.

– Você foi um bom policial, Jorge, e um bom marido e pai também por muitos anos, mas se deixou envolver demais com o seu trabalho. Suas missões cada vez mais violentas o influenciaram em sua vida pessoal.

            Jorge estava respirando rápido e pesadamente. A raiva ainda estava lá, mas o que a coisa dizia estava mexendo com sua mente.

– Quantas vezes você os espancou, Jorge?

O policial ficou surpreso ao perceber que uma lágrima descia agora pelo seu rosto. Sacudiu a cabeça com força. Não, era aquilo que a coisa queria.

– E seus colegas? Você os ameaçava para que não expusessem seus excessos durante as operações.

– Você fala como se fosse melhor do que eu. – Disse Jorge sentindo a fúria novamente.

– Não, eu falo para que entenda que, para mim, você é apenas mais um.

– Não, não sou mais um. Fiz tudo aquilo em nome de um bem maior.

– Espancou sua esposa em nome de um bem maior? – Questionou a criatura.

O policial abaixou os olhos.

– Ela passa dos limites quando me questiona.

– Ahhhh, por isso amo vocês, humanos. – disse o sujeito.

Jorge olhou por um momento para o estranho diante dele mas logo focou no chão novamente.

– Então você sente prazer em nos torturar? – Perguntou.

– Mais do que imagina.

– Então por que não o faz pessoalmente?

– Como assim?

– Nas gravações você não aparece. É sempre outra coisa que faz o serviço sujo.

– Ah sim. – O estranho sorriu. – O ato de causar dor em si não nos dá tanto prazer, pra falar a verdade até atrapalha que nos concentremos na dor da vítima. Por isso, terceirizamos.

Jorge tossiu enojado.

– E o que são aquelas coisas?

– Nós não somos os únicos monstros que habitamos esse mundo. – Respondeu o outro. – Mas se eu for falar das coisas que já usei nas filmagens você vai sujar as calças.

– E essas merdas de fitas? Por que gravar elas?
– Apenas uma forma de gravar o sofrimento das pessoas para poder vermos quando quisermos. Ideia minha. – disse a criatura, orgulhosa.
– E por que vendem para crianças?
– Para deixá-las menos sensíveis. Talvez até passem a gostar, aí poderemos nos alimentar de seus sofrimentos futuramente. Quem sabe seu garoto não se junte a nós?

– O policial tentou avançar sobre a criatura, mas as cordas impediram.

– Ah, permita-me. – O estranho caminhou para atrás de Jorge e o desamarrou com rapidez.

– Vai me soltar? – O policial ficou desconfiado.
– Seu vídeo será diferente, Jorge. Daremos uma chance de se defender, já que é o único até agora que sabe o que está acontecendo. – Disse o sujeito estendendo uma pistola ao policial. – Mas cuidado, aí tem apenas uma bala. Ah, antes que desperdice sua chance, não tente atirar em mim, vai perder tempo. Se conseguir acabar com a coisa, estará livre e poderá me levar preso.
A porta do porão se abriu mais uma vez. Jorge ouviu um arrastar de pés e um som parecido com o de um gargarejo.
– Eis aqui o seu nêmesis. – Apresentou o estranho.
            Assim que a coisa que deveria matá-lo entrou em seu campo de visão, o policial soube o que deveria fazer. Estava cansado de joguinhos enganadores. Os poderosos estavam sempre usando os subordinados como peões e aquele sujeito esquisito não era diferente. Jorge sabia que estava ali unicamente para diverti-lo. Depois seria vendido como um produto de entretenimento doentio. Lembrou da família. A esposa e o filho ora sorriam, ora choravam em suas lembranças. Fora por eles que aceitara participar da operação. Mas afinal, será que precisavam mesmo dele? Será que ele já não trazia mais sofrimento do que felicidades aos dois? Aquele era um dos raros momentos em que a culpa dominava a alma de Jorge, e ele sabia que não duraria muito. Uma bala, pensou. Sabia que a criatura que arquitetara aquilo não estava disposta a se entregar, dava para ver isso nos olhos dela. Infelizmente, não tinha tempo para pensar, precisava agir logo. O policial segurou a pistola com a mão direita, apontou para o alvo e disparou.

           

 

            ****

 

 

            Suzana chegou em casa tarde da noite. Eduardo já estava dormindo há um bom tempo e não viu como ela estava cansada. Cansada não só das tarefas daquele dia, mas também de tudo o que havia se acumulado no último mês. Durante o banho, lembrou das palavras da delegada Mônica, com quem acabara de conversar.
– A senhora vai receber o seguro, não se precupe. – Disse a antiga chefe de Jorge.  – Apesar de não ser exatamente uma boa notícia, espero que isso ajude.
Suzana sentiu um certo alívio ao ouvir aquilo. Não trabalhava por conta própria há muitos anos e, mesmo que agora tenha conseguido um bom emprego, precisava de dinheiro para quitar a casa.
– Obrigada, doutora Mônica. – Disse levantando da cadeira para apertar a mão da delegada. – Tem sido muito difícil ultimamente.
– Claro. Olha, se serve de consolo para a senhora, não teríamos resolvido o caso sem a ajuda dele, mesmo da forma como aconteceu.
– Acha que era isso o que ele queria? – Perguntou Suzana. – Digo, ele fez isso por nós?
A delegada olhou para a mulher diante dela e respirou fundo.
– Difícil dizer o que se passava na cabeça de Jorge, mas posso garantir que ele tinha toda a intenção de proteger você e seu filho.
– Eu sei. Eu o odiei por muito tempo, mas agora...
– Não se torture, Suzana. - Pediu a delegada. – Nada do que aconteceu foi sua culpa, absolutamente nada.
– Obrigada. – Agradeceu a outra e virou-se para sair da sala.
Porém, antes de cruzar a porta deu meia volta e se dirigiu a Mônica com os olhos úmidos.
– Sei que é confidencial, mas por favor, como aconteceu? – Perguntou.
Mônica contornou a mesa e sentou-se em cima dela, de frente para Suzana.
– Assim que ouviu o som do tiro, o policial Ivan chamou reforços e entrou na casa. Ele rapidamente encontrou Jorge e mais duas pessoas no porão. Um deles estava em estado avançado de decomposição, mas o outro estava de pé diante dos dois. Parecia muito irritado mas não quis encarar o Ivan. Ao tentar passar correndo, foi derrubado pelo policial e se rendeu. O reforço chegou logo depois.
– Quem era esse homem?
– Nós o identificamos como Gustavo Haffman. É um empresário que possui várias lojas no centro da cidade. Era ele quem gravava e vendia as fitas.
– Por que Jorge não atirou nele – Quis saber Suzana soluçando.
– Por que não iria adiantar. – Respondeu a delegada. – Aquele sujeito não é uma pessoa.
– Como assim?
– Assim que o reforço chegou, ele tentou se soltar e fugir e acabou atingido por vários tiros.
– E está vivo?
– Sim, sem nenhum arranhão.
– Meu Deus.
– Por favor, Suzana, não conte isso a ninguém.
– Ele ia usar o Jorge em uma das fitas, não era?
– Durante o interrogatório ele disse que sim.
– Jorge fez aquilo para não dar àquele sujeito o ele que queria.
– Exatamente.
– Como conseguiram prender aquele homem se ele não se fere?
– Ele é fraco fisicamente apesar de tudo.
– Isso me parece muito fantasioso. – Confessou Suzana. – Só estou acreditando por causa das circunstâncias.
- Eu entendo, Suzana, eu mesma custei a crer.
A viúva de Jorge voltou a caminhar em direção à porta.
– Ele sofreu? – Perguntou sem se virar.
– Jorge?
– Sim.
– Não, ele faleceu instantaneamente, segundo o laudo.
– Nunca imaginei que ele tiraria a própria vida.
– Ele não teria feito isso se não tivesse certeza de que funcionaria. – Garantiu a delegada.
Após o término do banho, Suzana sentou no sofá para relaxar. Jorge se fora e, apesar dos erros que ele cometeu, ela sentia muito a sua falta.

 

 

 


quinta-feira, 3 de março de 2022

Um Desafio para André Cruz - Final

 

Um Desafio para André Cruz

Capítulo final

 

Foi a primeira vez que André entrou na casa de Roberta e sinceramente ele espera ser a última. Não pela casa em si, mas pela atmosfera que emana naquele lugar. Todos e até mesmo os funcionários se portam como se estivessem confinados numa masmorra. A imponente mulher o conduz até seu aposento onde é exigida uma organização doentia. Roberta é sim uma patroa mais que exigente. Insuportável melhor dizendo.

- Por aqui investigador.

Lá está ele, o quarto. Aconchegante, amplo, poucas cores onde o tom pastel predomina.

- A senhora nunca o tranca? – André olhou para as paredes.

- Sim. Claro que o tranco. – Roberta não gostou nada da pergunta.

Cruz também não pode deixar de notar o retrato onde a imagem do famoso Jair Manhãs se encontra. Um homem de boa experiência. Traços delicados e um sorriso bastante verdadeiro.

- Seu marido era bonitão.

- Sim. – Manhãs se acomodou na ponta da cama. – ele era maravilhoso. Acredita que Jair foi meu primeiro e único namorado?

- Legal.

- Nos conhecemos durante um passeio. Nos apaixonamos pra valer e dois anos depois estávamos contraindo núpcias. Quanta saudade.

Que historia! Pensou André ao lado de sua cliente.

- Bom. Acho que você não veio aqui ouvir história triste de uma velha ranzinza, não é? Faça o seu trabalho. Vou chamar o Nunes para lhe acompanhar. Qualquer coisa estarei limpando a horta.

- Obrigado. Posso lhe fazer uma pergunta?

Roberta girou nos calcanhares.

- Quantos funcionários há na casa?

Manhãs respondeu rápido.

- Cinco.

Nunes apareceu na porta do quarto. Sempre com sua postura ereta e séria, o motorista aguarda às ordens em silêncio.

- Nunes é o mais antigo deles. Por que?

- Nada. Pergunta corriqueira. Vamos ao que interessa.

Observado pelo motorista, André Cruz fez cálculos e os anotou. Olhou para o armário em diversos ângulos. Anotou isso também. De repente, uma voz grave, baixa, quase sacerdotal atravessou aquele cômodo causando espanto ao detetive.

- Por que só o armário é alvo de sua analise, investigador?

André ainda pensou em fazer uma piadinha quanto ao jeito de falar do motorista, mas achou melhor não causar hostilidade.

- Quem pegou o anel sabia que o mesmo se encontrava escondido aqui. Teve todo o cuidado para não deixar rastros. Sujeito esperto. Com certeza ele se aproveitou do fato de dona Roberta Manhãs às vezes esquecer de trancar o quarto.

- Boa linha de raciocínio. – Nunes falou ainda parado na porta.

- Bom. Acho que já terminei aqui. – olhou para o sujeito. – vamos?

Roberta regava os pezinhos de cheiro verde e conversava com eles quando André chegou elogiando sua horta.

- Perfeita.

- Gostou? Fui eu quem a construí. As frutas, verduras e legumes compradas nos hortifrutis não são confiáveis. Prefiro os orgânicos.

- Verdade.

- E então, a que conclusão chegou?

André destacou a folha do bloco de anotações e a entregou a Roberta.

- Relatório. Eu já vou indo.

- Vou ler daqui a pouco, sem meus óculos não enxergo nada. Vou pedir que Nunes o leve até em casa. – Roberta acenou para o funcionário.

 

*

 

Ela tentou evitar o choro por horas, mas não conseguiu evitá-lo ao relembrar seu histórico com outros rapazes. Amanda desabou num pranto infantil e aos soluços prometeu odiá-los enquanto vida existir nela. Todos eles a machucaram, mas só André a feriu de verdade. Ele não era só um rosto bonito posto num corpo esbelto e atlético. Para a recepcionista, o detetive era tudo o que ela mais desejou num homem. Cumplicidade, companheirismo e fidelidade. Nada disso existiu. Amanda estava deitada em sua cama, trancada em seu quarto, coberta dos pés a cabeça chorando feito uma criança quando o celular tocou. Ela não queria atender. Era bem provável que fosse seu patrão lhe perturbando em seu dia de folga. O telefone insistiu.

- Que saco. – balbuciou. – alô? – o número era desconhecido.

- Oi, Amanda? Você não deve se lembrar de mim. Sou Paulo, nos conhecemos no curso de reciclagem de secretariado.

Claro que ela lembra.

- Sim, sim. Lembro. Como tem passado?

- Muito bem. E você? Está resfriada?

Amanda sentou-se na cama.

- Não, não.

- Ah que bom. Tá a fim de assistir a uma palestra aqui em casa sobre gestão? Uma galera vai vir.

- Seria ótimo.

- Legal. Anota meu endereço.

André Cruz permanecerá no passado. Hora de focar o futuro e o futuro pode estar de repente num convite para assistir uma palestra.

 

*

 

Pela quinta vez André surpreendeu o motorista de Roberta o olhando pelo espelho, que merda é essa? O investigador pouco sabe dirigir, mas reconhece um bom condutor pela maneira de se portar ao volante e Nunes é um deles. Eles estão na estrada a um pouco mais de vinte minutos e o silêncio entre ambas as partes chega a ser constrangedor. Isso é uma tortura para alguém como André que adora bater um papinho com motoristas de aplicativo. Nunes parece um bloco de gelo. O silêncio só foi quebrado quando o chofer não entrou na rua secundária que levaria para o bairro do detetive.

- Ei, amigão. Você passou da entrada.

- Fica frio. Conheço bem a estrada. – retrucou acelerando.

Merda.

O Corolla entrou numa região de baixo movimento onde há diversos armazéns desativados.

- Ei, Nunes, o que está acontecendo?

Nunes freou abruptamente girando o corpo segurando uma pistola. Seu olhar faiscava.

- Desça do carro, vamos.

- O que é isso cara? – vociferou.

- Saia do carro agora ou vou te matar aqui mesmo. – Nunes mantinha o tom sereno na voz.

André Cruz foi conduzido até o último armazém, tendo o cana da arma pressionando sua nuca.

- Vamos conversar...

- Cale a boca e trate de andar. – o empurrou.

Eles chegaram a um ponto onde o mato crescido tapava a visão de quem quisesse visualizar a estrada. Para um assassino, aquele lugar é um cenário perfeito para uma execução e quem sabe desova.

- Aqui está perfeito. – disse Nunes. – fique de costas e ajoelhe-se.

- Calma, Nunes, não faça besteira. Pense caramba.

- Você se acha o espertinho não é? Você já sabia de tudo. Sempre percebi seus olhares para mim. E quer saber de uma coisa. Fui eu mesmo. Agora chega. Vire-se.

- Posso lhe propor um acordo? – André olhou para a arma.

Nunes sorriu.

- Sério? Vai querer negociar? Sou todo ouvido.

O detetive engoliu seco.

- Eu tenho alguns contatos que com apenas um telefonema eu consigo lhe colocar para fora do país. Eles irão lhe dar outra identidade. O Nunes vai desaparecer.

- Você é sujo mesmo. Então faça a ligação agora?

André apertou os olhos.

- Eu ainda não terminei. Para isso vou precisar de uns vinte mil reais.

Nunes soltou uma curta gargalhada que deixou o jovem em pânico, ele vai me matar.

- A corrupção é um câncer mesmo. Tudo bem, garoto. Eu topo. Faça a ligação.

André sacou o celular e o desbloqueou, mas antes de fazer a ligação ele questionou.

- Só me responda uma coisa, Nunes. Por quanto você vendeu o anel?

Nunes voltou a apontar a pistola.

- Não te interessa.

- Por favor.

- Vendi por dois milhões. Satisfeito? Agora faça a ligação e coloque no viva voz.

Aproveitando um momento de distração de Nunes, André chutou a mão que segurava a arma que caiu na grama alta. Cruz guardou o celular e partiu para cima do motorista com socos cruzados. Houve uma bela troca de golpes violentos onde Nunes pode demonstrar sua habilidade como lutador. André não contava com a disposição do coroa na disputa e acabou sendo nocauteado indo ao chão com ferimentos acima dos olhos.

- Não vou gastar bala com você. Vou te bater até você morrer.

Dois chutes fortes no rosto do investigador e o mesmo cuspiu sangue misturado a saliva. Nunes se preparava para outro golpe quando ouviu uma voz de comando.

- Mãos pra cima.

Girando o corpo ele pode ver dois policiais civis com suas armas apontadas para ele. André respirou aliviado. Vocês demoraram muito.

- Já chega, Nunes, não tente nada. Você está preso.

Não lhe restara mais nada a não ser se render. Nunes se deitou de bruços na grama. Um dos policiais o algemou com as mãos para trás.

- Leve-o. – disse o outro agente. – consegue andar investigador?

- Levei uma surra, mas consigo. – cuspiu.

- Dona Roberta nos acionou. Fazemos um bico de segurança para a família a algum tempo e foi graças a um dispositivo de localização no carro que nos o encontramos. Dona Roberta não confia nem na própria sombra.

- A velha é esperta mesmo. – gemeu.

Eles começaram a andar em direção a saída.

- E então, detetive. Como vai provar que foi ele quem roubou o anel? – o outro agente perguntou.

André sacou o celular e ativou o gravador de voz.

Só me responda uma coisa. Por quanto você vendeu o anel?

Não te interessa.

Por favor.

Vendi por dois milhões. Satisfeito? Agora faça a ligação e coloque no viva voz.

- Tá mais do que provado não acham?

- Moleque espero. – brincou o agente.

 

*

 

Horas depois André estava de volta à casa da poderosa senhora Manhãs, porém o clima era bem melhor do que de antes, uma atmosfera leve, suave, até sua dona exibia um sorriso que o detetive duvidava que existia. Com alguns curativos no rosto o investigador foi recepcionado como um legítimo rei com direito a um belo lanche.

- Você é um excelente profissional, André, vou lhe indicar para outros conhecidos meus. E por falar nisso. – Roberta pegou o celular e fez a transferência da segunda parte do pagamento. – pronto. Lhe dei a mais.

- Valeu. – engoliu o salgadinho.

Manhãs também aproveitou para pegar o papel que André lhe havia dado antes dizendo se tratar do relatório.

- “ o culpado é o Nunes. Chame a polícia” como sabia que eu iria ter essa sacada? – Roberta ficou seria.

- A senhora é inteligente o suficiente para entender o que está acontecendo ao seu redor. Por isso escrevi. O seu motorista já havia desconfiado. Eu não podia dar bandeira.

 Roberta permitiu que seu semblante decaísse ao pensar em Nunes, seu motorista de longa data.

- Acabei de crer que não conhecemos de fato as pessoas. Quem diria que o Nunes seria capaz de tal coisa?

- Pra senhora vê. – terminou de tomar o suco. – eu já vou indo e mais uma vez obrigado pela confiança.

- Vá em paz, meu filho.

André Cruz deixou a resistência Manhãs feliz pela conclusão de mais uma missão. Para comemorar ele pensou em levar Juliana para jantar num lugar legal, quem sabe um restaurante francês fino.

- Oi, amor, já estou chegando. Vamos jantar fora hoje... – disse ao telefone.

FIM