sábado, 8 de dezembro de 2018

Mude Minha História





Há quem diga que veio a esse mundo a passeio, há também quem diga que veio ao mundo para conquistá-lo. No meu caso, eu acho que vim a esse mundo para ser mais uma nessa multidão de pessoas infelizes. As vezes penso se Deus não cometeu um engano me enviando a essa terra. Mas como assim, Gleice? Deus não se engana e nem erra? Oras? Se Ele não se engana e nem erra, então porque permitiu meu nascimento? Porque assiste meu sofrimento e não faz nada?
         Faço essa mesma pergunta a 37 anos e a 37 anos não sou respondida. O jeito é continuar aqui, sentada na varanda, tomando meu chá e olhando as estrelas rindo da minha cara. Será que a resposta está lá, nas estrelas? Ou em outro planeta? Não sei. Sigo vivendo e não aprendendo, levando as piores pancadas da vida. Sigo vivendo.
*
Antes

Gleice está terminando de lavar as louças do jantar. Enquanto esfrega a esponja nos talheres, seus pensamentos variam entre seu casamento com Mário e a criação de seu filho Gustavo. O garoto entrou na pré adolescência tem pouco tempo e já vem causando sérios problemas para os pais.
       Gustavo nos últimos dias vem se mostrando muito agressivo, tanto na escola como dentro de casa. Na escola ele esmurrou o rosto de um colega apenas porque o garoto comemorou a vitória de seu time. Foi preciso a intervenção da professora para tirá-lo de cima do menino.
         Gleice sabe muito bem o porque das alterações no humor de seu filho. Mário, seu marido vem deixando frágil a estrutura da família. Mário é um policial linha dura. Bom profissional, bom pai, porém se esqueceu de ser um bom marido. O ciúme doentio vem minando a relação do casal e Gleice já esgotou todas as tentativas de viver bem com ele. Mário não aceita que sua mulher trabalhe fora e nem frequente reuniões em que ele não esteja presente. Uma verdadeira prisão a domicílio. Gleice não lembra qual foi a ultima vez em que eles ficaram bem, ou que saíram juntos para um cinema ou teatro. Tudo que sua mente se recorda são de brigas, troca de acusações e xingamentos.
       Ela termina de guardar os talheres quando Mário chega. Como de costume ele joga as chaves sobre a mesa de centro. Abre a camisa e anda até a cozinha. Mediano, cabelos bem cortados, branco e sem barba, olhos claros. Mário retira o relógio do pulso e depois desabotoar a manga da camisa.
- Oi. – diz ele.
- Oi. – guarda os pratos. – vai querer jantar?
- Não. Comi algo na rua, qualquer coisa eu tomo um copo de leite. Cadê o Gustavo?
- Está no quarto jogando.
- Ele aprontou alguma hoje? – enterra as mãos nos bolsos.
- Graças a Deus não, hoje foi um dia calmo. – seca a pia. – bom, já que não vai jantar vou tomar um banho e dormir.

Gleice é uma mulher bonita, bonita até demais para um sujeito como Mário. Cabelos negros lisos naturais, rosto fino, não muito magra e uma pele morena sedosa. Após o banho Gleice se torna irresistível envolvida num roupão e cabelos molhados. Mesmo sem maquiagem ela continua linda. Ela se senta na frente do espelho para secar os cabelos quando Mário adentra ao quarto tocando em seus ombros iniciando uma massagem.
       Gleice não é de contar, mas faz vinte dias sem sexo. A última foi quando Mário a surpreendeu na garagem. Eles transaram em meio as bicicletas, pneus velhos e outras ferramentas. Loucura pura.
        Hoje a história será diferente. Gleice não está nenhum pouco a fim de sexo. Mário continua investindo para uma longa noite de prazer enquanto que sua esposa não esboça qualquer reação. As mãos do policial saem dos ombros e vão até os seios médios que são apalpados com delicadeza. A mulher continua a tarefa de secar os cabelos. Mário vai abrindo o roupão deixando os ombros nús.
         Gleice termina. Se levanta. Retira o roupão e coloca sua roupa de dormir. Mário acompanha tudo de longe.
- Apague a luz, por favor. – se deita.
         Inconformado Mário cruza os braços.
- Qual o problema, Gleice?
- Nenhum problema, porque? – se cobre com o Edredom.
- Você só pode estar de brincadeira. – continua de pé de braços cruzados. – quer dizer que você não quer mais nada comigo? Viveremos como bons amigos então?
- Eu acho que nem como amigos conseguiríamos viver, Mário.
- Eu não acredito, você só pode estar me traindo, fala a verdade, você tem outro.
       Gleice se ergue na cama.
- Está vendo? É disso que estou falando, esse seu pré julgamento, esse seu ciúme está destruindo nosso casamento, Mário, será que você não está vendo.
      Mário dá a volta e se deita resmungando. Do outro lado da cama Gleice se cobre por inteira na tentativa de sufocar o choro. Será mais uma noite de pesadelos, uma noite mal dormida onde ambos irão remoer seus sentimentos.

*

Como viver ao lado de uma pessoa que não confia em você? Como conviver num ambiente repleto de hostilidades? Os dias casada com Mário chegaram ao fim. Se doeu? Lógico que sim, ninguém em sã consciência sai de um casamento comemorando, mesmo que o relacionamento não tenha sido um mar de rosas. Gleice tomou coragem e pediu o divórcio. Mário deu um sim relutante e se foi. De repente aquilo que tanto lhe atrapalhou não existe mais, Gleice agora pode alçar vôos mais altos.

*

Época atual

Já passa da meia noite e Gleice ainda está acordada sentada na copa da cozinha diante de seu notebook. A casa está num silêncio sepulcral, Gustavo seu filho agora com 16 anos se encontra no quarto com os fones enterrados nos ouvidos deitado na cama.
        A linda morena refaz as contas, tenta encontrar uma saída, porém a realidade é dura. Desde quando Gleice abriu seu negócio, uma cafeteria, o financeiro vem sofrendo. Há mais saídas do que entradas. Duas lojas, duas dores de cabeça. E agora não tem jeito, a Gleice's Café terá que fechar as portas. Nervosa ela fecha o aparelho e tenta engolir o choro. Não adianta, ela rompe em lágrimas ali, no vazio e no silêncio daquela copa.
        Seria azar ou falta de sorte? Não importa. Gleice entrou numa maré pesada onde os problemas castigam, batem pra valer. Ela permanece debruçada sobre a mesa, com o rosto coberto pelos cabelos mergulhada nas lágrimas até que uma voz a trás de volta.
- Mãe? – Gustavo aparece na cozinha.
         Numa tentativa frustrada de enxugar o rosto com as mãos, Gleice atende seu filho.
- Oi, achei que já estivesse no décimo sono.
- A senhora está chorando? – abre a geladeira.
- Não. Eu só bocejei. O que quer?
- Vim pegar suco. – pega a jarra.
- Isso, beba logo e vá dormir, se eu não me engano você está no período de prova, não é?
        Gustavo revira os olhos e dá de ombros.
- Saco. – enche o copo.
       Desde quando os pais se divorciaram Gustavo mudou bastante. Ele não gosta da ideia de morar com Gleice. O garoto prefere mil vezes morar no apartamento com o pai. Mário tira proveito disso e vive fazendo a cabeça do filho. Na casa da mãe tem regras e tarefas, tudo que um adolescente detesta.
- E acho bom você tirar boas notas mocinho, caso contrário sem vídeo game no final de semana.
- Saco. – desaparece da cozinha.

*

O carro de Gleice já saiu de linha, mas ainda funciona muito bem. Como todo carro velho ele apresenta um defeito aqui e outro ali, mas nada que um mecânico de confiança não resolva. Ela para enfrente ao colégio e se despede do filho.
- Não fique andando por ai depois da aula, vá direto para casa, estamos entendidos?
- A senhora sempre fala isso. – abre a porta.
- E você sempre me desobedece. Boa prova.
         Gustavo cresceu muito, está igualzinho ao pai. Tirando o jeito de olhar, o resto é todo Mário. Ela espera até que ele passe pelo portão e sai. Hora de encarar a realidade de perto. Seu destino é a Gleice's café que fica dentro de um dos melhores shoppings da região. Como notificar os dois rapazes que a partir de hoje eles terão que arrumar outro emprego? Como?
        Mesmo vivendo a falência de seu negócio uma proprietária não deve transparecer o luto, pelo contrário, Gleice nessa manhã vestiu sua melhor roupa, se maquiou e partiu para a luta.
        Ela chega na loja e a vontade que tem é de chorar ou de sair correndo. Lá estão os funcionários, dedicados como sempre, uniformizados, educados e atenciosos. Ela passa pelo balcão desejando um bom dia aos poucos clientes ali presentes e em seguida chama um por um para uma rápida conversa.
        Foi mais doloroso do que ela imaginou. Nenhuma conversa foi igual a outra. Como uma boa patroa, Gleice fez questão de dizer que honrará todos os direitos. Nada ficará em falta. O dia será pesado. Eles voltam para a loja, querem trabalhar todo esse último dia com maestria. Gleice permanece no escritório, engolindo cada pranto. O que estaria acontecendo de fato em sua vida? Uma maldição? Alguém lançou uma praga?

Antes

Alguns anos depois de se divorciar de Mário Gleice conheceu o professor de inglês Henrique Ribeiro. A empresária já havia decidido a não mais se relacionar com alguém, porém aquele homem alto, de rosto sereno e fala tranquila a conquistou desde o primeiro dia. Foi no Gleice's café. Um dos funcionários precisou faltar e a chefe encarou o balcão.
        Henrique chegou ao estabelecimento e ocupou um dos bancos. Calça jeans e camisa de manga comprida branca e uma pasta executiva.
- Boa tarde senhor, o que vai pedir? – Gleice aparece com seu sorriso radiante.
- Sim, boa tarde, café puro e uma porção de pão de queijo, por favor.
       A partir desse dia Gleice achou que havia encontrado o amor de sua vida. Sim, ela acreditou piamente. Foram meses de pura curtição, teatro, cinema, finais de semana em hotéis fazenda entre outros lazeres. Foi bem legal no início. Gustavo como sempre dando trabalho, mas nada que Gleice não pudesse resolver.

Gleice abre os olhos devagar. Olha para o relógio digital em cima do criado mudo do hotel. Dez para cinco da tarde. Depois de bocejar ela percebe que Henrique não se encontra a seu lado na cama. Foi um início de tarde muito louco. Depois do almoço os dois resolveram se deitar e acabaram transando. Ambos caíram no sono. Ela se levanta enrolada no lençol e anda até o banheiro onde surpreende seu namorado cheirando uma carreira de cocaína considerável.
- Pode me explicar o que se significa isso?
        Foi uma bomba, Gleice jamais imaginou que aquele homem bonito e educado fosse um adicto. Henrique se levanta do vaso sanitário, limpa as pressas o nariz e sem argumento algum tenta explicar o que não tem explicação.
- Calma, amor, eu vou explicar.
         Henrique falou bastante. Contou que se viciou em cocaína no início de sua juventude. Ele cursava a faculdade quando conheceu uma menina a qual lhe apresentou a droga. Daí em diante ele não conseguiu mais deixar o pó da morte. Gleice não prestou atenção em nada do que seu namorado disse. Sua cabeça estava a mil anos luz daquele quarto de hotel. Tudo o que ela queria era sair daquele lugar o mais rápido possível.
       Henrique jurou que pararia, porém a empresária sabia dos desafios que viriam, um viciado não consegue se livrar assim tão fácil. Mesmo assim ela resolveu dar um crédito. No fim do domingo eles saíram do hotel onde estavam desde a sexta rumo a mais uma semana de trabalho duro.

Uma semana depois de ser surpreendido por Gleice lá estava o professor Henrique Ribeiro cheirando seu pó escondido dentro do carro. Da janela do quarto ela lamenta o fato de um homem como ele se destruindo aos poucos. Ele sai do carro. Seus olhos estão arregalados. Gleice espera até que ele entre em casa para dar seu veredicto final.
- Henrique, eu não sei se tenho disposição de viver ao lado de um viciado, me perdoe, não posso deixar que meu filho corra esse risco.
- Você está acabando tudo comigo, é isso?
        Ela ajeita os cabelos atrás das orelhas e limpa as lágrimas.
- Sim.
         O sim saiu incisivo, até mais do que ela esperava. Henrique se viu diante de uma mulher forte, de pulso firme, pelo menos demonstrou isso nesse momento.
- Tudo bem, já que é assim. – passa por ela se dirigindo ao quarto.
       Assim que Henrique dobrou a esquina desaparecendo de vez da vida de Gleice, a mesma foi tomada por uma crise de choro. Ela ainda não conseguiu se acertar sentimentalmente na vida. Não mesmo. A empresária se joga na cama, enfia a cabeça entre os travesseiros e chora, chora muito.

Época atual

Gleice não é de beber, mas hoje o dia foi tão complicado, tão doído que ela fez questão de parar num bar e pedir um Martini. Uma dose apenas, somente para tentar relaxar. Até mesmo uma mulher bonita como Gleice tem direito de deixar o álcool limpar suas mazelas. O lugar é até legalzinho. A música não está tão alta e graça a Deus as pessoas estão falando num volume normal. Ela pede outro Martini. Consulta o horário no celular e termina de tomar o restinho da bebida. Hora de ir.

Gustavo chegou antes de sua mãe. A adolescência chegou para ele da pior forma possível. Na escola ele tem andado com uma turminha barra pesada que vem deixando os estudos em último plano. O negócio é beber até vomitar e se drogar até as veias explodirem. Gustavo por enquanto vem resistindo aos constantes convites, tem levado a sério os conselhos de sua mãe.
       O líder da turma na saída da escola exigiu que ele levasse algumas gramas de pó caso ele se decidisse. Mais uma vez houve resistência, porém por ser mais velho e fama de espancador, o líder “conseguiu” convencer o colega de classe. Agora o otário do Gustavo está ali, sentado na cama segurado um pequeno frasco com cocaína dentro sem saber o que fará com aquilo. Do quarto ele escuta o barulho do carro de sua mãe parando em frente ao portão. Imediatamente o garoto enfia a droga dentro da mochila e a joga no canto perto da cama.
       Gleice entra em casa um pouco alterada devido as duas doses de Martini, mas não está embriagada. Retira os sapatos aliviando os dedos. Coloca a bolsa no sofá e caminha até a cozinha.
- Gustavo, vai jantar? – grita. Aguarda a resposta que vem em seguida.
- Já é.
         Resmungando algo sobre a resposta do filho ela entra na cozinha e toma um susto ao ver algumas louças ainda por lavar.
- Vamos nessa senhora Mota.

*

Mãe e filho jantam em silêncio. Gleice quer iniciar uma conversa, mas precisa saber como. Gustavo come feito um mendigo faminto, em menos de quinze minutos o bife com fritas desapareceu do prato. Diga-se de passagem, Gleice é uma cozinheira de mão cheia.
- Vou fechar o Gleice's café. – junta os talheres.
- Como assim, vai fechar? – garfa o último pedaço do bife.
- Contraímos muitas dividas, o nosso governo nesses casos é implacável.
- Parece que tudo aquilo que o pai disse está acontecendo.
- Você deveria estar do meu lado. – franze a testa.
- Mãe, o pai falou que...
- Seu pai só falou merda sobre mim, não vê que ele está jogando, não adianta, Gustavo, você não vai morar com Mário, isso jamais e ponto final. – tom de voz alterado.
- Eu tenho direito de escolher.
- Você tem o direito de estudar, só isso, sou sua mãe e aqui na minha casa tem regras.
- Mais que droga. – se levanta. – vou para o meu quarto.
        Família. Desde quando isso deixou de existir no lar dos Mota? Nem de longe lembra uma. Não foi com isso que Gleice sonhou. Enquanto termina de empurrar os últimos grãos de arroz para o canto do prato ela relembra o que seu ex marido disse sobre o Gleice's café, “isso não passa de um sonho sem fundamento, é preciso muito mais que vontade para manter um negócio”. Estaria aquele traste certo? Sou mesmo o fracasso?
        Na realidade a fase que a ex empresária vem atravessando não é das melhores. Sua vida sentimental é um desastre, sua vida profissional é uma catástrofe e a familiar nem se fala. O que se faz nessas horas? Chorar ou tenta se reerguer? Difícil, bem difícil essa vida.

*
Qual seria a válvula de escape para um garoto como Gustavo que vem assistindo uma verdadeira guerra entre seus pais? Antes de ligar para o pai ele abre a mochila e procura pela droga. Lá está ela, no fundo da bolsa. Ele sabe que se experimentar nunca mais conseguirá deixá-la. Nunca mais mesmo. Não, melhor não. A droga volta para o fundo da mochila cedendo o lugar para o celular.
- Oi, pai.
- Fala filho, o que mandas?
- Minha mãe, enchendo meu saco, só isso.
- Quer que eu fale com ela?
- Sim. Temos uma novidade.
- Qual seria?
- O Gleice's café fechou.
- Putz, sério? Gleice é uma incompetente mesmo, eu bem que avisei.
- A situação está bem complicada aqui.
- Pode deixar comigo, seu pai vai resolver tudo.

*

O clima não é de festa, mas depois de viver a falência de seu negócio e por estar atravessando uma crise familiar complicada, Gleice decidiu ir até a festa de sua amiga Helena. Mais uma vez Gustavo se negou a acompanhá-la. O garoto tem se tornado um anti social de primeira. Gleice colocou seu melhor vestido, se maquiou sem exageros, quanto aos cabelos preferiu ir com eles soltos. Perfeita.
         Gleice chegou ao salão perto das vinte horas. Foi recepcionada pela própria anfitriã que já segurava uma lata de cerveja.
- Nossa, você está linda.
         Gleice ruboriza.
- Feliz aniversário, querida, comprei uma lembrancinha. – se beijam.
         O salão está cheio. Porém a música é agradável, sucesso dos anos 70 tocados no piano. Gleice ocupa uma mesa perto de onde vem a música. Um pianista desliza seus dedos pelas teclas deixando o ambiente riquíssimo. O garçom lhe serve alguns quitutes e cerveja. A música termina e todos reclamam. O pianista justifica ao microfone.
- Em dez minutos sucessos dos anos 80.
        Os convidados vão a loucura, inclusive Gleice. Agora ela pode perceber o quanto o pianista é bonito. Ele deixa o instrumento e se vira para Gleice. Os olhares se cruzam. Ela evita o contato visual, ele não. Pega um copo com água servida pelo garçom e caminha até a aniversariante. Ambos conversam sorridentes. Gleice presta bastante atenção no andar, no jeito de se portar, de ficar em pé. Tudo naquele homem parece nobre. Talvez por causa do blazer cinza que está usando.
        Helena vai ao microfone anunciar a volta do pianista com os sucessos dos anos oitenta.
- Ele está de volta, Silvano Lima.
        O instrumentista é ovacionado. Assim que solta seus primeiros acordes a galera vibra. Gleice acompanha sentada o povo saltando a voz ao som das canções da Legião Urbana. Vez por outra eles trocam olhares. Silvano tem os cabelos compridos e negros passando um pouco dos ombros.
       Foram tocadas no total vinte músicas até que os parabéns foi anunciado sob aplausos. Silvano mais uma vez deixou o piano ficando numa posição favorável para encarar a mulher linda a sua frente. Gleice tenta, mais é algo magnético, ele a atrai. Seu coração machucado insiste em encontrar forças para mais uma aventura, porém a razão tem voz forte. Gleice já passou por poucas e boas e pra ser sincera, ela não está nenhum pouco disposta em investir em um novo amor.
        Fim de festa. Gleice se despede de sua amiga aniversariante da noite. Sai do salão que por sinal foi muito bem ornamentado com balões de cores leves do tipo branco e dourado, uma exigência da anfitriã. A noite já é alta e o local não é dos mais seguros. Ela chega em seu veículo e antes de entrar Gleice vê Silvano parado no ponto de táxi vazio. O coração volta a palpitar – seria legal perguntar para onde vai? De repente os olhares se chocam. Num gesto de puro ímpeto a ex empresária pergunta se ele quer carona.
- Acho que nesse horário os táxis não trabalham de forma circular. – ela diz.
- Pois é, estou aqui a vinte minutos e até agora nada.
- Venha, lhe deixo num ponto mais movimentado.
         De uma coisa Gleice sabe agora, Silvano cheira muito bem. Ele afivela o cinto e se ajeita no banco. Ela sai com o carro pegando uma saída que a deixará na estrada principal.
- Me diga, você ganha a vida tocando ou tem outro emprego?
- Sou músico em tempo integral, faço isso a vinte anos, graças a Deus tem dado certo.
       Silêncio. Isso incômoda a ambos. Silvano pigarreia algumas vezes. Estar sentado ao lado de uma bela mulher dirigindo, exibindo um lindo par de coxas de pelos finos dourados desperta nele o homem viril que é. Gleice por sua vez está adorando o fato de ter a seu lado e dentro de seu veículo um homem cabeludo, bonito e que cheira maravilhosamente bem.
- Farei melhor. – pega outra entrada. – vou te deixar em casa, a essa hora não podemos facilitar.
- Tem certeza? – Silvano evita olhar para as coxas dela, mas é algo quase impossível.
- Sim, é só me dizer onde você mora.

Dez minutos depois o carro da mãe de Gustavo está parado numa rua um pouco mais movimentada em frente o prédio onde o músico reside. Nada mal.
- Gleice, muito obrigado pela carona. – estende a mão.
- Que nada.
         Silvano desce do veículo e se inclina na janela.
- Posso pegar seu número?
         Como assim, pegar meu número? Corajoso esse tal de Silvano Lima.
- Gostaria de saber se você chegou bem em casa. – justifica.
- Tudo bem, anote.
       Gleice dirige no automático. A paisagem noturna vai passando e deixando borrões para trás. Em cinco minutos ela está guardando o carro na garagem ainda com a mente ocupada pelo pianista. Ela não quer se apaixonar, não quer sofrer. Dar outra chance ao coração está fora de cogitação.
        Minutos depois ela está deitada ainda com o vestido da festa. Ela não quer admitir mas está ansiosa pela ligação de Silvano. Enquanto isso não acontece ela atualiza suas redes sócias até que o telefone vibra. Ela espera o terceiro toque, não quer se mostrar afogada.
- Oi.
- Oi, chegou bem?
- Sim.
- Que ótimo, bom, mais uma vez foi um prazer conhecê-la.
       Ele vai desligar e simplesmente nunca mais nos veremos. Isso é bom ou ruim? Melhor continuar me fazendo de durona.
- O prazer foi todo meu.
- Veja bem, no próximo sábado irei tocar num barzinho, quer ir comigo?
        Ela demora a responder. Está acontecendo de novo. Um convite, uma curtição, um envolvimento e pronto, outra decepção.
- Posso lhe dar a resposta depois?
- Tudo bem é só me ligar.
- Obrigado.
- Boa noite.
        Pode parecer fácil, mas só quem já passou por dois relacionamentos que foram um fracasso sabe o quanto é complicado. A figura masculina se tornou para Gleice sinônimo de problema. Ela vai para o banho, quem sabe a água fria não congele esse sentimento.
*

Toda adolescência é confusa. E para um adolescente que infelizmente perdeu a referência de uma figura paterna a situação fica ainda mais difícil. Gustavo tem um furacão ao invés de um cérebro. Ele consegue complicar tudo, coisas fáceis de se resolver ele faz disso um fardo.
        Ele chega na escola e a primeira pessoa com quem ele tem contato é o rapaz que lhe deu a droga.
- E ai, gostou?
- Pô, Guto, não sei se quero isso pra mim.
- Não estou te entendendo, menor, aquela parada vai te dar a melhor brisa, se liga cara.
        Augusto, ou melhor, Guto, como é chamado, se viciou em drogas porque não suportava a ideia de ter pais separados. Hoje em dia sua aparência não lembra em nado o garoto saudável que já foi.
- Toma, melhor ficar com você. – tira a mochila das costas.
- Sem essa, menor, fica com você.
- Mas...
- Nada de mas, vai ficar com você e pronto.
        Diante da pressão imposta por Guto, não lhe resta outra alternativa a não ser permanecer com aquela porcaria branca.  Esse traficante de merda não o deixará em paz enquanto não o ver no fundo do poço aonde ele se encontra também.

*

Gleice está ocupada terminado de acertar os documentos de sua falida empresa quando uma buzina chama sua atenção. Um pouco a vontade mas nada muito exagerado na roupa de ficar em casa, Gleice faz questão de colocar outro shorts um pouco mais longo e ajeitar o rabo de cavalo.
       Ela olha pela janela e tudo o que ela não queria ver nessa manhã está logo ali, parado perto do portão. Mário. É incrível como a presença desse homem tem a capacidade de piorar o ambiente a sua volta. Respirando fundo e hesitante ela abre a porta e caminha até o portão.
- Bom dia, não vai me convidar para entrar? – tom de sarcasmo.
- Por que eu faria isso? – se debruça na grade.
- Você é uma mulher educada.
- Fala logo o que você quer, Mário.
- O que você tem feito com o meu filho?
          A mulher se ergue.
- O que?
- Isso mesmo que ouviu, ele me ligou dizendo que você vem pegando muito no pé dele. Gleice, ele é jovem, está descobrindo as coisas, você não pode privá-lo disso.
- Ele é um jovem que por enquanto está sob meus cuidados, meu filho, estou cuidando do nosso filho.
- E quanto a qualidade de vida? Pelo que sei você faliu, não é mesmo.
        Um baita soco no estômago.
- Ah, ele também lhe contou isso também?
- Sim, eu lhe avisei, sua empresa sobreviveu até agora aos trancos e barrancos, uma hora isso não iria suportar. Saiba de uma coisa, vou lutar pela guarda do Gustavo. – abre a porta do carro.
         Uma guerra declarada. O que estava ruim ficou ainda pior. Destruída emocionalmente, sentimentalmente, profissionalmente. Quando deu por si, lá estava ela deitada de bruços em sua cama chorando. De onde tirar forças para reagir? Falida, em todos os sentidos.

*

O funk pesado rola solto nos fones de ouvido de Gustavo que de olhos fechados não vê a chegada da mãe em seu quarto. Gleice olha para o garoto de espinhas no rosto e a vontade que dá é de arrebentar a cara.
- Quero falar com você. – cutuca a perna do filho.
- Fala, mãe. – continua a ouvir a música profana.
         Sem paciência e com truculência ela puxa os fones.
- Que saco mãe. Me machucou.
- Machucou? Você ainda não viu nada. Você ligou para o seu pai reclamando de mim?
- Mãe...
- Veja bem, garoto, eu não devo satisfação da minha vida a ninguém, principalmente a seu pai, se eu fali isso é um problema muito meu.
- Você sabe da minha preferência pelo meu pai, eu nunca escondi isso. – altera o tom de voz.
- Sim, não há regras com seu pai, lá você vai poder fazer o que bem entender, mas saiba de uma coisa, eu não vou abrir mão de você, não deixarei que o relapso do seu pai te estrague.
        Gleice deixa o quarto. Gustavo esmurra o colchão diversas vezes. Ele olha para a mochila. Lá dentro há o que pode lhe ajudar a fugir da realidade. Resistir é preciso. Ele se levanta, vai até a porta e se certifica se a barra está limpa. Gustavo apenas a encosta e abre a mochila. A cocaína está lá convidativa como sempre. Ele sabe que é um caminho sem volta, será um eterno dependente em uma vida inteira pela frente, porém arruinada. Mais uma vez a droga volta para o funda da mochila.

*

Pois é, a vida como empresária não deu certo. Hora de recolher o que quebrou e aprender com os erros, superar as decepções. Enquanto a água do chá esquenta, Gleice ainda remoi suas frustrações e tenta encontrar uma única razão para sua vida estar seguindo esse curso. Nada. Ela não encontra absolutamente nada. O celular que ficou na sala toca. Quem será? Sem vontade alguma ela anda até o cômodo vazio e escuro. O número ela não reconhece, mas atende assim mesmo.
- Alô?
- Gleice, sou eu Silvano.
- Ah, sim, oi, Silvano, trocou de número?
- Não?
       Só agora Gleice lembrou que ainda não havia registrado nos contatos.
- Me perdoe, minha vida anda uma loucura.
- Então, pensou em meu convite?
- Será no sábado, não é?
- Exatamente, vamos?
         O que há de errado em aceitar o convite de um cara exageradamente bonito e simpático? Quem sabe uma boa noite ouvindo músicas de qualidade não desentoxica seu corpo desse mal que está vivendo?
- Certo, vamos.
- Que bom, lhe pego as 19h.
- Combinado.
         Eles se despedem e agora é torcer para que a semana passe rápido.

*

Um banho demorado. A melhor lingerie, o melhor vestido e é claro uma maquiagem de fazer qualquer avenida parar. Gleice está um espetáculo andante. Aos 37 anos a ex empresária deixa qualquer garota de vinte no chinelo. O perfume suave vai ajudar a tornar a noite ainda mais agradável. Enquanto se olha no espelho admirando o corpão que possui, uma buzina berra lá fora. Sobressaltada ela pega sua bolsa e vai até o quarto de Gustavo que assiste vídeos em seu celular.
- Estou saindo, não fique acordado até tarde, ouviu?
- Vai aonde? – pergunta sem tirar os olhos do aparelho.
- Depois conversamos. Beijo.
          Lá fora, aguardando a chegada de Gleice, Silvano confere na pasta se todas as músicas do repertório estão lá. Seu carro já saiu de linha, mas mesmo assim é um bom carro. Gleice aparece na janela do carona exibindo um decote pra lá de provocante.
- Boa noite? – ela diz.
- Ah, oi, boa noite, estava distraído. – desce do carro para abrir a porta para a dama.
         Homens como Silvano já não existem mais. Gleice se sente mulher com esse gesto e não só mulher, uma mulher especial. De onde saiu esse sujeito encantador?
        Durante o percurso o papo não poderia ser outro a não ser de onde Silvano veio, se já foi comprometido, porque a música como profissão entre outras coisas. O pianista se mostrou paciente e respondeu uma por uma das perguntas.
- Então você é do interior?
- Sim, me lembro até hoje do meu velho pai carregando sacas e mais sacas de batatas.
- Daí você veio tentar a sorte na cidade grande?
- Sim, eu já tocava piano, porém não de maneira profissional, foi aqui que me estabeleci músico.
        A conversa seguiu até a chegada ao evento. O lugar é glamouroso com pessoas da alta. Gleice deu graças a Deus por ter colocado sua melhor roupa. Eles entram ao salão e quase todos reconhecem o músico.
- Grande Silvano Lima. – diz um sujeito já meio embriagado. – quem é essa, sua namorada?
        Gleice ruboriza com o comentário.
- Ela é uma amiga, agora com licença.
        Eles vão abrindo caminho e é claro, foi preciso dar a mão para ele até chegarem no escritório do contratante.
- Que bom que chegou. – diz um sujeito bem vestido com pinta de arrogante. – veja bem, sucessos dos anos 70, 80 e 90, tudo bem pra você?
- Por mim tudo bem. Deixe-me lhe apresentar, essa é Gleice, minha convidada.
        O rapaz beija a mão da ex empresária.
- Tenho um lugar especial para ela. Vamos.
        Foram cinco horas de evento. Silvano mais uma vez contribuiu para o sucesso do trabalho. Gleice curtiu muito e pelo menos por cinco horas ela pode esquecer de suas mazelas, de suas angústias. Silvano tem feito muito bem a ela.
         Voltando para casa, com as baterias recarregadas, Gleice agora desfruta de uma conversa saudável e bastante edificante com o músico. Ao lado dele ela se sente preenchida, as coisas parecem mais leves, mais vistosas.
- Eu amo essa palavra, chance, todos querem e merecem uma chance, ninguém erra querendo errar. Pense bem, se o proporcionar chance a outro é satisfatório, imagina lhe proporcionar mais uma chance, magnífico.
- Todos merecem? – Gleice olha para ele ao volante.
- Sim, todos.
         O carro para na calçada da casa de Gleice.
- A noite foi maravilhosa, muito obrigado.
- Obrigado você por aceitar meu convite.
       Os olhos de Silvano brilham e Gleice não consegue parar de olhar para ele. Magnetismo, é exatamente isso que ela sente no momento, uma força atraente.
- Eu preciso me dar essa chance? – ela pergunta.
- Deveria.
- Sou uma mulher que perdeu a esperança no homem, passei por dois relacionamentos, ambos sem sucesso. O pai do meu filho era um boçal, relapso, vive me cercando até hoje querendo a guarda do Gustavo. Já o segundo transformou o que já estava ruim num inferno. Henrique era viciado em drogas, quase me destruiu e para piorar, minha empresa veio a falência, ou seja, sou uma mulher sem carinho, sem afeto e sem dinheiro.
         Silvano consegue mais uma vez fazer com que a mulher a seu lado fique de olhos nele. Ele segura nas mãos dela e ela sente uma leve descarga elétrica passar por todo o seu corpo.
- Você não se conhece mesmo. Você é mais forte do que você imagina, Gleice. Se dê essa chance, você merece, Verbalize isso.
- Como sabe disso? Como sabe que sou forte? – ainda olhando para ele.
- Eu consigo ver isso em seus olhos.
        Os rostos vão se aproximando. As respirações vão se misturando e quando Gleice dá por si ela já está o beijando. Fazia tempo que ela não sentia lábios tão mornos. Silvano despeja nela todo seu poder de um homem conquistador. A vontade é de não parar, fazer com que esse momento fique para sempre. O beijo cessa. Eles se olham. Ela parece envergonhada. Ele não.
- Então? – ele começa. – vai se dar uma chance? – segura no queixo dela.
- Sim, vou sim.
- Então vem aqui.
         Silvano a puxa para junto dele tornando a beijá-la e dessa vez com mais paixão. Gleice está totalmente dopada, entregue nos braços do pianista. Ele sabe como conduzir esse momento como ninguém. A noite vai ficando cada vez mais alta e do lado de dentro do carro o casal vive momentos de pura emoção.

*

Uma chance, apenas uma chance de ser feliz. Que palavra tão mágica. Sabendo aproveitar essa tal chance você pode conquistar coisas, fazer coisas que jamais imaginou que poderia fazer. Se a felicidade era uma utopia, para Gleice, ela hoje faz parte de sua realidade. Se o seu relacionamento com Silvano vai dar certo ela não sabe, porém ela prefere viver e fazer valer a pena cada segundo ao lado dele.
        Cada dia da semana ao ouvir a voz do músico mesmo pelo celular é um renovo. Mesmo em meio a turbulência de fechar uma empresa, e tentar restabelecer o ambiente familiar, ouvir as palavras que acalentam o coração lhe faz muito bem.
- Então, quando podemos nos ver? – Gleice mexe o molho de tomate.
- Quando você quiser.
- Gosta de macarrão ao molho de tomate?
- Adoro.
- Estou terminando de preparar, quer vir?
- Adoraria.
- Certo, vou te esperar então.
        Ela vai até seu quarto. Escolhe uma roupa um pouco mais modesta. Corre até o banheiro e toma um banho relâmpago. Se enrola na toalha, se perfuma, solta os cabelos, passa apenas um batom e pronto, agora é só esperar por ele.
         Vinte minutos depois Silvano está no portão da casa de Gleice um pouco mais informal que o habitual. Camisa de algodão azul, calça jeans e tênis. Eles se olham. Ela volta a sentir aquela força possuindo seu corpo.
- Oi. – ela não consegue completar frases diante dele.
- Oi. – dá um selinho. – quer dizer que hoje provarei de sua especialidade?
- Ai, espero que goste.
- É claro que vou gostar.
         Ele a segura pelo rosto e a beija. Gleice se afoga, perde o fôlego. Silvano beija muito bem. Por alguns segundos ela esquece que está no quintal de sua casa e sente com se estivesse voando entre astros, estrelas e planetas. O beijo termina e ela permanece de boca aberta.
- Oi? – ele estala as falanges.
       Gleice volta do nirvana piscando várias veze.
- Sim?
- Podemos provar do seu macarrão ao molho de tomate? – brinca.
        O almoço estava sensacional. Uma das muitas coisas que herdou de sua finada mãe foi a boa cozinha. Dona Virna cozinha bem e para toda a família. Ela fez questão que todos os filhos aprendessem a cozinhar, inclusive as meninas.
- Gleice, esse seu tempero é magnífico. – limpa a boca com o guardanapo.
- Ah, você está dizendo isso só para me agradar.
- Sério. – toma mais vinho. – e seu filho?
- Foi para casa de um amigo. – expira. – Gustavo vem me tirando do sério.
- Gostaria de conhecê-lo.
- Gustavo é anti social, é bem difícil de se lidar, você pode até tentar uma aproximação, mas.
- Não custa tentar. – sorrir.
          Depois do almoço Silvano aguarda sentado no sofá sua namorada chegar com o café. Enquanto isso ele se distrai olhando a bela casa com seus móveis e eletros. Realmente ela é uma mulher forte. Mesmo passando por dificuldades e até quem sabe por humilhações ela segue em frente criando um filho e enfrentando as pedradas que a vida dá.
         Ela vem segurando duas canecas. Ele volta a olhar para ele daquele mesmo jeito que a fez se apaixonar.
- Você é um mistério, sabia? – se acomoda ao lado dele.
- Como assim, um mistério? – pega a caneca e cruza as pernas.
- Seu olhar, seu jeito, parece algo sobrehumano.
        Silvano solta uma gargalhada.
- Sério?
- Sim.
- Você é quem é especial, uma mulher incrível, não é somente um rosto e corpo bonito, um ser sem igual.
        Mais uma vez Gleice se vê envolvida por ele. Agora não há como adiar algo que está na cara. O ponta pé inicial é dado por ela. Silvano apenas aguarda as surpresas que virão. Gleice monta no colo do pianista o sufocando de beijos. Aos poucos ela vai se despindo e se deixando se despir.
*

O caminho das drogas é espaçoso, curto e prazeroso. Uma vez nas drogas ela lhe transforma num ser fragilizado e sem dignidade alguma. Gustavo sabe muito bem disso. De um lado a dura realidade de ter que conviver solitário debaixo da autoridade de sua mãe. Não que ele não a ame, muito pelo contrário, Gustavo admira Gleice. Ele prefere seu pai e isso ele faz questão de deixar bem claro.
        A cocaína está dentro de sua mochila. Na rua ele procura um lugar mais escondido para experimentá-la. Gustavo anda apressado pela calçada movimentada até encontrar uma passagem de nível. Ali quase ninguém passa. Ainda muito nervoso ele confere a entrada e a saída. Ninguém. Hora de fazer com que o pó branco da morte entre em seu corpo para quem sabe aliviá-lo da dor que é existir.
          As luzes foram acessas. O mundo não é tão cinza como ele costumava achar. Ele tem cores, cheiros, estrelas e o sol brilha em cada vida. Gustavo caminha voltando para casa e sua fisionomia mostra um jovem mergulhado num mundo perfeito. Perfeito? Sim, perfeito, pelo menos nesse momento ele é. Se ele soubesse que tudo mudaria instantaneamente ele já teria experimentado a muito tempo. Caminho sem volta.

*

Foi simplesmente fantástico. Passar a tarde ao lado de um homem como Silvano foi de perder o fôlego. Ele foi embora a vinte minutos, porém sua essência permanece naquela sala afogando Gleice em prazer extremo. Como amante o pianista a fez chorar e explodir durante o clímax. Dois relacionamentos e nenhum foi capaz de fazê-la se deleitar dessa forma. Silvano acertou em cheio.
        Gleice não está sozinha, ela sente isso, Silvano ainda está ali. Não, ela não está louca, mas sim apaixonada. Com certeza ela toparia transar outra vez se Silvano voltasse. Para ajudar a apagar o fogo um banho ajudar. Água fria que escorre pelo corpo inteiro levando embora todo o tesão. Enrolada na toalha ela se deita na cama e adormece. Um sono estranho, repentino, quase um desmaio.

Próximo das 18h ela acorda com o celular chamando. Foram três horas de sono ou algo parecido. Por incrível que pareça ela acorda bem, muito bem por sinal, diferente de outros dias. Ainda enrolada na toalha ela se levanta correndo pensando em se tratar de Silvano ligando, porém é Mário do outro lado da linha.
- Boa noite, Gleice?
- O que você quer? – prende o aparelho no ouvido com o ombro.
- Nossa, quanto rancor, isso vai lhe fazer mal.
- Fala logo o que você quer. – abre o armário e pega uma calcinha.
- Meu filho. Estou entrando com uma ação para ter a tutela do Gustavo.
- Você é sujo mesmo, você alegou o que?
- Aleguei que você não tem a mínima condição de criá-lo, você faliu, lembra, comigo ele estará bem melhor.
        Raiva, um combustível altamente inflamável.
- Seu, seu cafajeste, miserável.
- Olha o coração, Gleice. Bom, eu só liguei para te informar. Beijo. – desliga.
        Se fosse em outra época Gleice desabaria em pratos, mais hoje o caso é diferente. Ela está mais forte, mais disposta. Se for preciso entrar numa briga para ter Gustavo perto dela isso ela fará. Ao terminar de se vestir ela vai até o quarto do menino que dança como um alucinado.
- Gustavo? – ele não escuta. – Gustavo, você está me ouvindo?
       Finalmente ele se vira para sua mãe com os olhos vidrados.
- Diga, dona Gleice Mota.
- O que está havendo com você?
- Estou dançando, não está vendo?
         Ela entra por completa dentro do quarto. Uma mãe sabe quando as coisas estão saindo dos trilhos. Esse não é o filho que criou.
- Dançando sem música? Você nunca foi de dançar, Gustavo.
- Dona Gleice, a partir de hoje as coisas vão mudar aqui nessa casa.
         Mudança, palavra que assusta. A mãe continua parada olhando cada movimento que o filho faz com o corpo até que seu coração informa o que realmente está acontecendo.
- Seu irresponsável, você está usando drogas, não é? – o puxa pelo braço. – fale.
       Com truculência o rapaz se livra das garras da mãe já pegando sua mochila.
- Estou caindo fora.
- Aonde pensa que vai? – volta a segurá-lo pelo braço.
- Me larga, mais que droga, o que foi, agora vai me manter em cárcere privado?
       Gustavo dispara porta afora deixando sua mãe desnorteada, prendendo o choro. Gleice passa as mãos nos cabelos tentando encontrar uma forma de neutralizar esse terrível mal estar. Não pode ser. Meu filho um drogado, a história com Henrique volta a se repetir. Não. Isso não pode estar acontecendo. Me ajude, Deus.

*

Depois de se encontrar com Guto, Gustavo está voltando para casa ou talvez para o apartamento do pai tendo dentro da mochila duas trouxinhas de pó. Passos acelerados, respiração descontrolada e olhos arregalados. No meio do caminho ele tem uma ideia, afinal, pra que esperar?
        Ele sai do bairro onde Guto mora e atravessa a avenida aproveitando o espaço entre um carro e outro. Ainda beirando a estrada ele entra num terreno baldio onde há lixo e mato alto. Cansado ele se esconde atrás de um monte de entulhos de construção. Se senta no chão e abre sua mochila e ao ver as trouxinhas ele se alegra, gosta do que vê. Hora de embarcar em outra dimensão.
        Uma mão delicada lhe toca o ombro. Gustavo gira o pescoço. Por incrível que pareça ele não se assustou.
- Gustavo, filho de Gleice Mota, acertei?
- Quem é você? – esconde o pó no bolso da bermuda jeans.
- Silvano Lima, prazer. – estende a mão, mas Gustavo não o cumprimenta. – bem que sua mãe falou que você é um cara difícil de se lidar.
- Então você conhece dona Gleice? – se levanta.
- Sim, sou o namorado dela.
       Gustavo o encara feio. O olha de cima embaixo. Um almofadinha com pinta de intelectual.
- Namorado da minha mãe. – coloca a mochila nas costas. – você me seguiu até aqui?
- O que você iria fazer? – cruza os braços.
- Não te interessa. – passa por Silvano.
- Aonde pensa que vai?
- Qual é a tua cara? Você está pegando minha mãe, me seguiu até aqui e agora quer saber onde vou. Sai fora, você não é meu pai.
- Volte aqui. – autoridade na voz.
      Gustavo analisa o rosto de Silvano.
- Eu não acredito nisso. – volta. – fala logo o que você quer?
- O que pensa que está fazendo da vida, garoto, você só tem 16 anos, não viveu nada ainda.
- Quem você pensa que é pra falar desse jeito comigo? – encara Silvano.
- Vá até um prédio e pule de lá, só assim sua vida terminará mais rápido. Não fique ai usando essas porcarias, se quer se matar pule do alto de um prédio, vai, faça isso.
        O rosto de Gustavo ruboriza e ele tenta ir pra cima de Silvano que vai bloqueando as tentativas de golpes.
- Agora você está se comportando como uma criança.
- Vou fazer você engolir cada palavra, seu otário.
        Silvano desvia de um soco certeiro e assim que tem oportunidade ele coloca as duas mãos na cabeça do jovem que se acalma instantaneamente.
- Fique calmo meu garoto.
         Gustavo se afasta.
- O que fez comigo? – voz embargada e olhos marejados.
- Nada. Agora jogue fora a droga, vamos.
- Mas...
- Veja bem, eu estou atrasado, preciso ir, a decisão é sua.
         Silvano vai embora. Gustavo continua ali parado refletindo em tudo o que aconteceu. Sou mesmo um suicida? Seria mesmo melhor me jogar de um prédio? O que esse cara fez comigo? Ele limpa as lágrimas, retira a mochila das costas, pensa mais um pouco e decide ficar com o pó.

*

Gleice e Silvano já estão se beijando a algum tempo sentados no sofá da casa dela. O filme que escolheram continua empolgante porém o casal de telespectadores não está interessado no desfecho da trama.
       De repente ela se afasta dos lábios de Silvano. Gustavo veio forte em sua mente além de sua vida financeira.
- Preocupada. – toca com o dedo na ponta do nariz dela.
- E como.
- Você vai recuperar tudo o que perdeu, basta evidenciar isso, planeje, estude, trace metas. – se levanta. – vem comigo.
         De mãos dadas eles andam até o quintal. Lá fora apenas som dos grilos e a brisa fresca.
- Olhe para o céu, consegue me dizer quantas estrelas há?
- Não.
- Consegue contá-las?
- Posso tentar.
       Silvano cruza os braços e aguarda. Gleice perde as contas várias vezes e depois olha para o namorado.
- Desisto.
- Viu. Mesmo sabendo que seria impossível contar você tentou. Você é ousada, Gleice, não desiste tão fácil, tenho certeza, você vai reconstruir sua vida.
- E você está disposto a fazer parte dessa reconstrução? – o abraça.
- Claro.
          Voltam a se beijar. Ela obre os olhos e olha para a janela do quarto de Gustavo.
- Gustavo tem problema. Preciso ajudá-lo.
- Ele já está bem encaminhado.
- Como assim... – Silvano coloca o indicador na boca de Gleice.
- Fique em paz.

*

Gustavo volta ao bairro onde Guto mora. Ele sabe do perigo que corre ao andar por aquelas ruas desertas. Ele passa por uma birosca onde os viciados em cachaça balbuciam um com os outros de baixo da fraca luz do estabelecimento caindo aos pedaços. Depois passa por um beco onde dentro de um casebre duas pessoas se xingam e uma criança chora desesperadamente. Mais alguns passos e ele estará na casa de Guto.
         Guto se encontra no meio de outros cinco moleques fumando baseado embaixo de um poste sem iluminação.
- Guto. – o chama.
- Fala franguinho, veio buscar mais?
- Cara, na verdade eu vim lhe devolver. – abre a mochila.
- Mais como assim, você disse que havia gostado.
- Pois é, cara, mas eu resolvi cuidar melhor da minha vida. Toma.
        Guto encara Gustavo. A vontade que tem é de socá-lo, porém só fica na vontade.
- Some daqui, rala.
- Fui.

*

Gleice passou por mais uma experiência ao fazer amor com Silvano. Uma experiência única onde qualquer ser humano jamais imaginou. O que esse cara tem dentro dele? Que energia brutal é essa? Quem é Silvano Lima? Cada palavra dita, cada toque e sem falar do olhar. Que olhar misterioso. Ele foi embora, mas sua essência continua presente. Quem é você?
      Renovada, Gleice vai até o quarto de Gustavo que escuta música nos fones de ouvido e mexe no computador. Disposta a resolver a questão pendente ela entra no quarto e olha para ele. Seu semblante parece melhor que o normal.
- Oi, podemos conversar?
        Pela primeira vez ele não gemeu ao responder e nem agiu de má vontade. Gustavo retira os fones e se volta para sua mãe.
- Sei que nos últimos tempos nós nos estranhamos muito, eu reconheço. Reconheço também a sua preferência por morar com seu pai. Quero que saiba que você é livre para decidir.
- Mãe...
         Gleice faz sinal de espera com a mão.
- Eu só não admito que um filho meu se envolva com drogas.
- Mãe, eu não uso mais drogas, não quero mais.
       A respiração de Gleice acelera e a presença de Silvano é mais forte nesse momento.
- Está falando sério filho? – as lágrimas brotam.
- Sim, o seu namorado...
- Espere, como assim, “meu namorado”?
- Isso mesmo, eu não sei direito o que aconteceu, eu só sei que algo aconteceu de muito estranho.
         Gleice se sente um pouco tonta e se apoia no armário. Gustavo explica como tudo aconteceu deixando sua mãe boquiaberta. Ao final de tudo Gleice está ainda mais impressionada com o relato.
- Mãe, a senhora está bem?
- Sim, sim, estou ótima. – ajeita os cabelos para trás. – certo, decida se você vai ficar com seu pai ou comigo.
- Mãe. – segura a mão da mãe antes dela sair. – me dá um abraço.
         Foi mais que um abraço. O que aconteceu naquele quarto foi grandioso demais para se resumir num simples gesto. Mais uma vez Silvano foi sentido. Gleice abraçada ao filho abre os olhos buscando seu namorado naquele lugar. Não. Silvano não está lá.

*

Duas semanas depois o cheiro do cozido preparado por Gleice faz Gustavo e Silvano salivarem aguardando o almoço. Eles estão sentados a mesa e conversam sobre jogos e música. O adolescente está mais dócil, mais a sociável. Até mesmo no modo de falar mudou, Gustavo agora fala mais pausado, sua dicção se tornou perfeita. Na cozinha Gleice comemora e ao mesmo tempo se questiona. Bastou Silvano ingressar na família Mota para tudo que estava entulhado ser colocado em seus devidos lugares. Quem é esse cara?
- Cozido pronto. – anuncia cantando.
         Os rapazes na sala comemoram com palmas e assovios. Um baita de um almoço. Todos comem muito bem.
- Eu gostaria de propor um brinde. – diz Silvano.
- Brinde, com refrigerante? – Gleice sorrir.
- Sim, um brinde a felicidade. – ergue o copo.
- Amor. – Gleice limpa a boca. – eu também quero falar algumas coisas.
         Gleice tem atenção de todos.
- Decidi reabrir o Gleice’s café.
         Mais aplausos.
- Maravilhoso, querida.
- Parabéns, mãe.
- Um brinde a felicidade. E também, eu gostaria de propor uma viagem.
- Uau, uma viagem, legal.
- Quero que conheçam uma região da cidade onde o contato com a natureza é inevitável.

Aquela tarde foi marcada pela união. Foram horas onde nada foi capaz de lhes tirar a paz. Gustavo depois do belo almoço foi para seu quarto dormir. Gleice arrastou seu namorado para a cozinha onde puderam acertar detalhes da viagem e depois fizeram amor longamente. Mais uma vez aquela energia foi sentida e Gleice sorria e chorava ao mesmo tempo.

*

A direção de Silvano é prudente. Abaixo da velocidade permitida. Naquela estrada eles podem desfrutar da linda paisagem onde o verde domina a maior parte do tempo.
- Estão gostando?
- Amando. – Gleice coloca a cabeça no ombro do namorado.
- Diz ai Gustavo, porque decidiu ficar com sua mãe?
- Ah, sei lá, preferi ficar ao lado de uma guerreira, só isso.
        Gleice olha para o filho no banco de trás emocionada. Ela estende a mão e ele retribui o gesto. Silvano acompanha tudo pelo espelho e quando volta sua atenção para a estrada um caminhão no sentido contrário em alta velocidade o faz perder o controle do veículo. Ele roda na pista e capota várias vezes até parar. Dentro do carro nenhum movimento.

A vista arde. A cabeça dói, assim como todo o resto do corpo. Gleice gira o pescoço para a direita onde consegue ver uma aste com soro. Gira a cabeça para a esquerda e vê a janela fechada com algumas flores no jarro. Demorou um pouco para ela entender que está deitada num leito de hospital.
- Meu Deus.
          Uma enfermeira negra baixinha e atarracada entra segurando uma prancheta.
- Olá? – anota algo na placa de identificação do paciente. – como se sente?
- Moída.
- O acidente foi feio. – confere o soro.
- Acidente, que acidente?
- Vocês sofreram um acidente na auto estrada, o carro ficou de ponta cabeça.
- Ai, meu Deus, Gustavo, e meu namorado, como eles estão.
- Seu filho quebrou o braço e teve alguns machucados, agora, seu namorado...
       Gleice preferiu estar surda ao ouvir tal notícia. As lágrimas brotaram com uma rapidez impressionante.
- Seu namorado parecia estava fora do carro, ele não sofreu um arranhão sequer.
- Silvano estava dirigindo o carro.
- Então minha querida, houve um milagre, seu bofe está inteirinho. Ele já até veio lhe ver.
        A enfermeira termina de fazer os procedimentos e deixa o quarto. Gleice tenta de todas as maneiras entender o que aconteceu naquela estrada. Ela está cansada demais para pensar, porém se questiona, Silvano foi o único que não se feriu. Nada faz sentido, nenhuma peça se encaixa. A melhor coisa a se fazer é dormir. Os olhos vão ficando pesados e aos poucos ela vai se rendendo ao sono profundo.

Foi como um desmaio. Gleice não lembra do que aconteceu depois. O corpo e a cabeça já não doem tanto. A seu lado Silvano sorrir sentado segurando um ramalhete de orquídeas. Como a enfermeira falou ele está inteiro.
- Oi. – ele se levanta.
- Oi.
        Silvano beija a testa suavemente.
- Você parece assustada, algum problema? – coloca as flores no canto da cama.
- Você, você não é real. – Gleice tem a voz fraca.
- Como assim, não sou real? – ar de riso.
- Falo sério. Você é diferente de todos os homens.
- Talvez porque eu seja Silvano e não Mário e nem Henrique...
- Não estou falando dos homens que convivi, estou falando em termos gerais, você é diferente.
       Silvano se sente desconfortado e se levanta.
- Amor, você está cansada, tente dormir.
- Eu já dormi, Silvano, e não adianta tentar mudar de assunto. – ergue o tronco. – eu posso parecer uma pessoa desligada, mas, só pareço, eu consigo perceber as coisas ao meu redor.
        Silvano fixa seus olhos em Gleice e o brilho continua lá ofuscando os da mulher.
- Viu, há um brilho em seus olhos e não falo metaforicamente, seus olhos brilham dependendo da situação.
       O pianista levanta a mão em sua defesa.
- Querida, tenha calma, você...
- Das vezes em que fizemos amor, quando estamos juntos, você mexeu com a mente do meu filho e ele mudou da água para o vinho e agora esse acidente, você foi o único que não se machucou. Quem é você, Silvano Lima?
      O silêncio entre eles acontece fazendo do momento algo incômodo. Gleice aguarda uma resposta. Silvano anda até a janela onde a noite estampa o céu. Ele olha o movimento da cidade. Ele levanta a cabeça buscando a resposta. Girando os calcanhares ele se volta para Gleice.
- Sou Narsis.
- O que? – aperta os olhos.
- Me chamo na realidade Narsis, sou um sentinela do socorro.
- Calma, vamos com calma. – diz com a mão espalmada.
- Você acertou, não sou um homem, melhor dizendo, não sou um ser humano.
- Por favor, Silvano, não me trate como uma demente.
- Não estou lhe tratando como uma idiota. Você me cobrou a verdade e eu a estou dizendo. Sou de outro planeta. – sorrir.
        Gleice olha para ele e aquele vínculo amoroso, erótico já não existe mais. Tudo o que sobrou foram a desconfiança e a perplexidade.
- Narsis?
- Isso mesmo. – se aproxima dela e segura sua mão. As duas, unidas se tornam translúcidas fazendo com que as dores restantes desapareçam. – viu, sentiu?
      O queixo da empresária cai e ela volta a se deitar.
- Sentinela do socorro?
- Exatamente, faço parte desse grupo enviado a terra para socorrer e cuidar de pessoas como você. Nada foi por acaso.
- Você é um anjo?
- Não. Sou um sentinela. Fui enviado por uma ordem a cem anos e...
- Cem anos? – arregala os olhos.
- Sim, a cem anos ando por esse planeta ajudando quem precisa. Perdi as contas de quantos humanos ajudei. Nossa, foram muitos, na área sentimental, emocional, motivacional, familiar entre outros. Nós...
- Espere. – fecha os olhos. – a outros como você?
- Sim, estamos espalhados por esse mundo azul. Somos feitos de outra essência, somos praticamente imortais e temos a capacidade de nos regenerar.
        Gleice coloca as mãos na cabeça. Tudo isso foi informação demais.
- Estou impressionado como vocês. Os terráqueos se adaptam ao clima, situações e até ao caos. – os olhos de Narsis brilham mais forte. – durma. Amanhã será outro dia.

*

Gleice aguarda Silvano voltar da cozinha com as  xícaras de café. Com alguns curativos e arranhões no rosto a empresária termina de reunir os documentos para a reabertura da Gleice's café. Silvano aparece na sala segurado com a habilidade de um garçom a bandeja com as duas xícaras.
- Se tem uma coisa que aprendi a fazer bem foi café, que bebida magnífica.
- Você tem mesmo que partir?
- Sim, minha missão por aqui se encerrou, voltarei para o meu planeta natal.
         Gleice prova do café e o elogia. Ela olha para aquele homem bonito, agradável e especial e custa a acreditar que estar diante de um alienígena.
- Promete voltar? – encosta a cabeça em seu ombro.
- Não posso prometer nada, só quem sabe é a ordem maior. Estou aqui a cem anos, acho que minha cota terminou definitivamente.
         Gustavo aparece na porta da sala ainda com braço enfaixado. Ele se junta aos dois e lamenta muito a partida do amigo.
- Fique só mais um pouco. – o garoto implora.
- Vocês ficarão bem, eu tenho certeza. Estou em paz, sei que fiz um bom trabalho. Vocês dois foram ótimos também.
- Virá uma nave te buscar? – Gustavo brinca.
- Não. – sorrir. – nós os sentinelas do socorro podemos pedir o teletransporte a ordem maior.
- Legal.
         Silvano termina de tomar o café e se levanta. Olha para mãe e filho e abre os braços.
- O mais importante disso tudo, a lição que aprendemos é que sempre podemos nos dar uma chance. Com esse nova chance podemos mudar o quadro, o rumo de nossa história. Que vocês dois mude o quadro da vida de alguém. Sejam sentinelas do socorro na causa de alguém. Certo?
         Mãe e filho dizem que sim com um gesto de cabeça.
- Ótimo. Agora durmam.
       Gleice tomba para esquerda e Gustavo para direita. Um sono profundo. Um sono reparador. Os dois permanecem nesse estado por algumas horas. Gustavo é o primeiro a despertar. O garoto olha ao redor e depois acorda sua mãe.
- Ele se foi. – Gustavo anuncia.
- Sim. Vida que segue.

O Gleice’s café foi reaberto. A vida profissional começou a engrenar. Gustavo passou a se dedicar aos estudos e decidiu fazer faculdade. Gleice finalmente assumiu o papel a qual Silvano lhe propôs, uma mulher forte. Ela decidiu que dali em diante ela se dará a chance e também proporcionará chance a quem precisar.
           Toda noite antes de dormir ela vai até a varanda, se senta tomando chá  olhando para o céu estrelado. Literalmente sua ajuda veio das estrelas. Mudou sua vida, mudou sua história. Hora de mudar a vida de alguém. FIM.


       
















segunda-feira, 12 de novembro de 2018

Plano B - JAIME PRATES


Um conto Policial com Jaime Prates


Estar diante de um tribunal, tendo que ouvir longos discursos, isso sim que Felipe Martins chama de uma verdadeira tortura. A seu lado o advogado que não para de mexer as pernas enquanto ouve atentamente ao que seu colega tem a dizer sobre seu cliente. Felipe olha para seus pais de rostos abatidos e depois para a juíza. Nada ali conspira a seu favor. Com certeza ele será condenado e terá que dividir uma cela com outros homens. Isso seria seu fim. Fim de seus planos.
     Por fim a fala do advogado de acusação termina. Felipe acompanha seu advogado juntando alguns papéis e depois aguardando a autorização da juíza.
- Com a palavra a defesa.
      O advogado de Felipe é um sujeito imponente, o modo como se porta ante um tribunal cheio de abutres desejando a carne de seu cliente demonstra o quanto ele tem autocontrole e sabe muito bem o que está fazendo. Antes de falar, Mendonça Filho ainda verifica nos altos sua verbalização. Ele saca do bolso de dentro do paletó seus óculos de leitura e depois se dirige a plateia.
    - Eu não tenho dúvidas que Felipe Martins é inocente e sabem porque? Ele não tinha qualquer envolvimento com a vítima. Olhem para o rosto desse jovem. Teria ele algum motivo para tirar a vida de Natália Fagundes? Já foi provado que na noite em que a vítima foi morta, ele, Felipe se encontrava fora da cidade.
      Doutor Mendonça Filho falou ainda por longos vinte e cinco minutos e logo depois disso lá estavam os país de Felipe abraçados ao filho no salão do tribunal agradecendo ao excelente trabalho do profissional. Do lado de fora do tribunal a imprensa aguarda as declarações do acusado agora inocentado. Assim que pisa na calçada o jovem é rodeado por jornalista disputando com gravadores e microfones uma fala de Felipe.
     - Como foram as horas lá dentro Felipe?
     - Terríveis, não desejo isso pra ninguém, mas graças a Deus e ao meu advogado minha inocência foi provada.
       - O que pretende fazer agora? – pergunta outro jornalista.
       - No momento só penso em entrar em minha casa e ficar junto com meus país, eles merecem um pouco de atenção depois de tudo que passaram.
       Felipe vai abrindo caminho até chegar ao carro da família. Eles entram juntos no veículo sob as lentes das câmeras e celulares. Lá dentro a mãe de Felipe chora copiosamente beijando o rosto do filho enquanto o pai sai devagar com o carro.

*

A noite é fresca. Dentro do carro não foi preciso ligar o ar condicionado, as janelas abertas foram o suficiente. Jaime Prates olha incessantemente a foto da garota morta envolvida em sacos pretos da perícia. A seu lado Rafa mexe sem parar no celular.
     - Estou começando a ficar com ciúmes.
     - O que disse? – olha para ela com a expressão fechada.
     - Você não larga esse jornal velho e não para de olhar para essa garota morta. Desencana Jaime, isso foi a cinco anos.
     - Pois é, a cinco anos. – volta a olhar para foto.
      O investigador desdobra o jornal e na parte de cima a foto de Felipe Martins. Prates nunca acreditou na inocência do rapaz e sempre que vê a foto uma ira e senso de justiça o possuí descontroladamente. Rafa volta a provocá-lo ainda mexendo no celular.
      - Nada foi provado contra o acusado, esquece isso.
      - Vamos mudar de assunto? – fecha o jornal e o joga em cima do painel.
      - Legal, vamos. – finalmente deixa o telefone de lado.
      - Pensou em minha proposta?
      - É claro que não. Imagina, eu, Rafaela, juntar os trapos com um policial.
      Jaime esfrega o rosto se mostrando irritado para a garota.
      - OK, vou lhe dar mais um tempo para pensar, tudo bem pra você?
      Nessa hora o celular de Rafa toca.
      - Viu, isso nunca daria certo, meus clientes não deixariam a gente em paz.
      - Certo, mas, pense, por favor.
      Antes de sair ela se despede do policial com um beijo. Jaime a acompanha andando falando ao telefone. Rafa é uma garota sensacional. Corpo bonito, rosto de adolescente, um mulheraço que vem tirando o sono do investigador. Prates se apaixonou por ela. Nem Mesmo o fato de ser uma garota de programa atrapalha o que ele sente por ela. Tudo o que ele quer é tirá-la dessa vida e levá-la para sua casa como esposa. Tarefa difícil pois Rafa não se imagina mulher de família ainda mais esposa de um policial. Jaime ainda observa quando ela entra em um carro e se vai para mais um programa.

*

Próximo das oito da manhã o investigador estaciona seu veículo em frente ao bar café onde é de seu costume fazer o desjejum. Jaqueta marrom, calça jeans, botas pretas, cabelos claros cortados a máquina e olhos verdes chamativos, esse é Jaime Prates um experiente agente do setor de investigação da polícia. O lugar ainda não se encontra lotado porém com boa parte das mesas ocupadas. Jaime sempre preferiu o balcão onde ele pode conversar com o velho balconista sobre a rodada da semana.
       - Bom dia Jaime. – diz pegando uma xícara e a secando com o avental.
       - Bom dia Chico, viu o jogo ontem?
       - Pior que vi, eu sabia que seria empate.
       - Os jogos tem sido muito ruins. – saca o jornal de dentro da jaqueta.
       - Futebol hoje em dia não é mais o mesmo de antigamente. – enche a xícara com café. – vai querer pão na chapa também?
       - Por favor.
       O mesmo jornal de cinco anos atrás. A foto de Natália morta. A tristeza dos pais e a cara de coitado de Felipe Martins. Anos de angústia. Na época Jaime estava a frente de um outro caso. Enquanto investigava o sumiço do filho de um dos maiores empresário do país ele acompanhava o desenrolar do caso Natália Fagundes. O acusado foi considerado inocente e desde então Prates ainda não engoliu a sentença.
      Seu olhos circulam pelas duas fotos. Os pais de Natália abraçados no dia do sepultamento e Felipe saindo do tribunal ao lado de seu advogado com um sorriso de orelha a orelha. Seria válido pedir o desarquivamento do caso? Porque ele sente que a morte brutal da garota ficou por isso mesmo? Porque não há culpado?
      Ao terminar de tomar seu café da manhã o policial se despede de Chico e sai. Ainda decidindo se vale a pena ou não mexer no caso, Jaime decide fazer uma visita aos pais de Natália. Dentro do carro seu pensamento muda. Rafa então passa a ser o principal assunto. O que ela estaria fazendo nesse momento? Dormindo, com certeza. A vontade de ir até seu apartamento é grande mas ele a supera. Há um trabalho a ser feito e disso ele não abre mão.

*

A casa é de classe média. Os muros são altos e com cercas elétricas. Dois andares com pintura impecável. Jaime desce do carro mas antes ele olha ao redor. Cautela nunca é demais. Prates é um agente que não passa despercebido. Anda com pressa e aperta o interfone. Segundos depois uma voz metalizada soa.
- Quem deseja?
- Bom dia. Sou o investigador Jaime Prates, os senhores tem um minuto?
- Do que se trata?
     Jaime precisou pensar rápido em como responder a pergunta.
- Quero fazer justiça quanto a Natália.
     O que Prates temia aconteceu. Silêncio do outro lado do interfone. Sentindo que deu um passo em falso o investigador começa a se afastar do portão. Convencido de que sua ida até ali não passou de um ímpeto a voz metalizada volta o pegando de surpresa.
- Vou abrir o portão.
       O portão vai abrindo bem devagar, devagar até demais. Do lado de dentro da casa dos Fagundes é ainda melhor que a parte de fora. O jardim é bem cuidado e há uma pequena fonte onde a água não para de jorrar. Na porta da frente um senhor de mais ou menos 70 o aguarda.
        - Bom dia. – diz Prates.
        - Vamos entrando policial.
       O pai de Natália o conduz até a sala de visitas onde sua esposa se encontra. Jaime não pode deixar de observar a mobília. Tudo muito limpo e organizado e em tons claros. Ao ver o policial dona Angela se levanta.
- Não precisa se incomodar senhora.
       Fagundes puxa uma cadeira para Prates e depois uma para ele.
- Diga-nos investigador Jaime o que pretende fazer? – Angela parece aflita.
- Bom, por enquanto preciso me calçar, juntar provas, conversar com pessoas, agir dentro dos procedimentos, entendem?
- Aquele desgraçado matou nossa filha, desde então a nossa vida não foi mais a mesma. – Fagundes ruboriza de raiva. – a justiça falhou, Felipe Martins destruiu um sonho.
- Entendo a revolta, mas vamos devagar, Natália tinha algum envolvimento com Felipe?
      Os pais de Natália se olham.
- Não, acho que não. – diz Angela.
- Precisamos saber isso seria muito relevante.
- Verdade é que Natália nunca foi muito aberta conosco, nem mesmo com os namorados, ela terminava com um e arrumava outro e nem eu e nem Angela ficávamos sabendo. – diz de cabeça baixa.
- Tudo bem. Os senhores tem fotos de Natália com amigos?
- Sim, temos, vou pegar. – diz Angela deixando a sala.

*
Quem disse que é fácil a vida de uma garota de programa? Para atrair o maior número de clientes a produção começa assim que o dia amanhece. Rafa toma um café reforçado, mas não exagerado. Se arruma e parte para academia. Lá ela faz uma hora de exercícios aeróbicos e mais uma de malhação. Depois da academia ela parte para o salão onde trata dos cabelos, unhas e pele. Por mês é uma fortuna que se gasta, mas vale a pena.
        Depois do salão ela já está pronta para mais um dia de labuta. Vestido curto colorido colado ao corpo, cabelos balançando espalhando o perfume e sua minúscula bolsa pendurada no ombro. Rafa parte para mais um encontro com clientes sedentos por sexo.

*

Realmente Natália era uma garota linda. Branca, rosto redondo, cabelos negros cortados na altura dos ombros e um sorriso contagiante. Quem seria capaz de cometer tamanha brutalidade? Jaime analisa as fotos mergulhado em pensamentos. O pai da vítima olha para uma foto especifica onde Natália aparece ao lado dele no dia da festa de formatura.
- Foi uma noite onde todos se realizaram com ela. Minha filha era muito querida. – as lágrimas descem. – quem fez isso com ela merece cadeia, ou algo pior.
       Para poupar o velho Fagundes de mais sofrimento o investigador resolveu sair de cena.
- Vou mantê-los informados. Como eu falei, vou colher evidências, conversar com pessoas próximas, juntar material.
      Angela sai de trás do marido cruzando a conversa.
- Policial Jaime, encontre quem matou minha Natália, por favor. – diz com os olhos úmidos.
       Um pai sedento por justiça e uma mãe sem chão. E não é por menos. São cinco anos de pura agonia, cinco anos sem respostas, cinco anos sem ver o sorriso farto de Natália. Jaime Prates deixa a casa dos Fagundes mais disposto, mais profissional. Encontrar o assassino de Natália, essa será sua missão nem que seja a última coisa que fará na vida.

*

Dois toques na porta e Rafa aparece com aquele olhar sapeca que encantou o policial. A noite mal começou e eles já estão grudadinhos assistindo um filme dramático coisa que Jaime detesta. Rafaela ama esse tipo de filme, seus olhos ficam fixos na tela da TV enquanto a boca mastiga o chocolate trago pelo investigador.
      Jaime também olha para a TV, mas sua cabeça está longe. Natália. Ele não quer tocar no assunto com Rafa pois sabe que estragaria tudo o que planejou.
- Quando você fica mais de dez minutos sem se mover só pode está pensando em algo. A menina morta a cinco anos. Acertei?
      Não tem jeito. As mulheres possuem poderes. Elas sabem exatamente no que um homem está pensando.
- Eu não queria te encher com esse assunto.
- E porque não? – continua olhando para a tela.
- Fui a casa dos Fagundes hoje. Conversei com os pais da Natália. Acho que foi o primeiro de muitos passos a serem dados.
      Jaime contou como foi seu dia. Se Rafa escutou metade foi muito. Na realidade ambos queriam curtir o momento. É tão raro ficarem tanto tempo juntos. Eles não viram o final do filme. A noite de amor foi longa. A garota mostrou que curte ficar com ele quando desligou seu celular para que clientes não os perturbassem.

*

Cinco anos depois de ser acusado de torturar, estuprar e matar a jovem Natália, Felipe Martins conseguiu espantar de vez o fantasma que o acompanhava. Mesmo sendo provado de que ele não era o assassino, as pessoas que outrora andavam juntas com ele se afastaram, parecia que o rapaz tinha contraído uma doença contagiosa. Felipe perdeu amigos e também parcerias. Sua família é dona de uma das maiores empresas no ramo da construção. Suas lojas estão espalhadas em todo o território nacional. A vida seguiu em frente. Depois do tribunal, Felipe ainda fez faculdade, se formou em administração e hoje ajuda a tocar o negócio.
       Se antes ele não passava despercebido por ser um sujeito bonito, agora com sua “fama” Felipe atrai olhares e conversas ao pé do ouvido. Para ele o caso Natália Fagundes é página virada, mas para a maioria das pessoas ele é ainda aquele garoto que foi massacrado no tribunal.
       Felipe desce de seu carro em frente ao prédio onde fica o escritório da empresa. Alto, bem vestido, cabelos penteados com gel e camisa sem amassado. Um exímio homem de negócios ele se tornou. Antes de entrar ele ainda confere algo na pasta. Passa pela portaria e como sempre faz dá bom dia ao funcionário. Do outro lado da rua Jaime observa o rapaz. Tira algumas fotos no celular. Anota o endereço. Toma mais do café que a essa altura já está morno. Até agora nenhuma anormalidade. Hora de sair de cena. Prates paga a conta e se manda.

*

Hora do almoço. Os restaurantes, pensões e bares estão lotados. Até para entrar em certos locais fica mais difícil. Jaime se certificou onde Felipe costuma fazer suas refeições. Um restaurante muito modesto que fica alguns metros fora do centro. Logo na entrada uma mocinha de traços orientais o recepciona com uma sorriso sincero. Jaime se identifica como policial e passa por ela.
       Lá dentro o ambiente é altamente familiar. O cheiro da comida pelo menos lembra e muito o de sua vó materna. No salão as mesas forradas com toalhas brancas com a logo do estabelecimento nas pontas. Nada mal. Hora de ver os valores. O menu é trazido pelo garçom. Jaime observa ítem por ítem. Um pouco puxado, mas já que está na chuva...
- O prato do chefe, por favor.
      Jaime é muito observador. Claro, por isso ele entrou para a polícia. Enquanto aguarda a chegada de Felipe e de seu pedido ele não pode deixar de notar os quadros nas paredes. Dezenas de personalidades do meio musical que vai desde Nelson Gonçalves a Renato Russo. Legal.
      Felipe adentra junto com outros dois homens possivelmente sócios ou fornecedores. Eles ocupam a mesa que fica mais próximo do bar. Felipe é o mais falante. Fala, gesticula e ri. Jaime saca seu celular e disfarçadamente ele bate algumas fotos. Nesse meio tempo o pedido chega. O prato agradou os olhos, vamos ver no sabor.
- Vai beber alguma coisa senhor? – pergunta o garçom educadamente.
- Cerveja.
     Enquanto isso na outra mesa o bate papo continua animado. Felipe comanda a conversa sem dar chance aos outros. Ele esconde algo disso Prates tem certeza. Seria ele um namorado inconformado com o término do namoro? Ou um cara que tomou um NÃO e não suportou a ideia de ser ignorado? Ele esconde algo.

*

Dentro do DP Jaime observa as imagens do caso Natália Fagundes na tela do computador. Sua sala é pequena, mas tudo está bem organizado. Não há uma caneta sequer fora do lugar. No melhor jornal do país o caso foi tratado como algo de outro mundo. A foto de Natália na primeira capa já demonstra como sua morte repercutiu na época. O investigador vai descendo as imagens quando um outro agente entra sem bater.
-Grande Jaime. – fala mastigando um pedaço de sanduíche.
- Sua mãe não lhe deu educação?
- Qual a boa? – morde um pedaço generoso.
- Natália Fagundes. – aponta para a foto na tela.
      Marcão olha para o computador e depois puxa uma cadeira. Marcos é grande do tipo armário. Seu aspecto espanta quem o conhece pela primeira vez, mas depois passa a se acostumar com aquela figura enorme circulando para cima e para baixo no DP.
- Esse caso foi a cinco anos amigão. – termina com o sanduíche.
- Sim. – se vira para o colega de profissão. – ele foi arquivado por falta de provas, mas eu acho que o acusado tem culpa no cartório.
- E o que pensa em fazer, desarquiva-lo?
      Jaime meneia a cabeça.
- Você tá louco. O rapaz passou por um julgamento e foi provado sua inocência. Você acha que vão deixar você remexer na bosta? Ela pode voltar a feder. 
- Sim, é exatamente isso que eu quero, fazer a merda feder. Alguém matou Natália Fagundes e eu vou colocá-lo na cadeia.
     O gigante negro de dois metros de altura por dois de largura se levanta.
- Boa sorte.

*

Faltam apenas cinco minutos para o programa terminar e o cliente ainda não conseguiu chegar ao prazer. Rafa olha mais uma vez para o relógio e depois para o homem magro coberto de pelos pelo corpo esquelético.
- Acha que vai conseguir? – diz Rafa sem paciência ao homem em cima dela.
- Quero fazer valer a grana que gastei. – responde ofegante.
- Mas só faltam um minuto para acabar seu tempo, querido.
- Eu paguei por uma hora e ficarei uma hora, querida.
       Faltando trinta segundos o magrelo intensifica as penetrações e ejacula. Rafa sai debaixo dele que cai para o lado.
- Vai pagar no cartão ou no dinheiro? – se enrola na toalha.
- No dinheiro, é claro, imagina se vou dar mole para minha mulher descobrir.

*

Jaime dirige por uma via movimentada onde o trânsito é bastante pesado aquela hora da tarde. Sua mente não para de trabalhar um segundo sequer. Duas coisas ocupam seus pensamentos. Rafa é claro vem forte. Como ele gostaria de constituir uma família ao lado dela. Logo em seguida a menina morta e injustiçada. Natália. Como fazer justiça num país injusto? Se alguém não se levantar contra esse sistema que não pune, toda sociedade pagará muito caro.
      Um bom investigador sempre está disposto a revirar trincheiras, mexer nos entulhos, ir até as últimas se necessário for. Esse é Jaime Prates. Para fugir de outro congestionamento ele entra numa rua secundária cortando os bairros mais nobres. Seu próximo passo não será nada fácil. Será preciso muita cautela e também sangue frio. As duas coisas ele tem de sobra.

*

Antes de descer do carro o coração do policial já o alarmava. Uma construção inacabada. Um lugar remoto. Favorável a um assassino frio e calculista. Prates imagina aquele lugar a noite. Se durante o dia seria impossível alguém gritar e ser atendido ali, imagine altas horas da noite. O que seria um galpão para uma empresa armazenar suas máquinas se transformou num amontoado de ferro, folhas de zinco e pedaços grandes de madeira. Distante da rodovia o lugar realmente serve para desova. Pobre Natália.
      Jaime Prates caminha entre máquinas enferrujadas olhando cada ponto. O piso encardido, a cobertura que estala a cada vento que sopra. Tudo ali conspira a favor de um criminoso contra uma garota indefesa. No fundo há o que seria um banheiro. Pia, vaso sanitário, um espelho pela metade e um chuveiro. É bem possível que o assassino tenha se lavado ali.
       Não existe crime perfeito e Prates sabe disso, o criminoso sempre deixa algo para trás, é dever de um policial encontrá-lo. Ele deixa o banheiro e se dirige para onde o corpo de Natália foi encontrado. O assassino a levou para trás da pilha de madeira. Ela foi deixada ali, talvez ainda com vida, porém totalmente fragilizada e ferida. Foi estuprada, o desgraçado teve o cuidado de usar preservativo pois não encontraram sêmen. Jaime para exatamente no local e passa a observar minuciosamente todos os cantos. Uma prova, apenas uma maldita prova.

*

Frustração, essa palavra define bem o que Jaime sente no momento. Logo ele que tem no currículo casos desvendados onde a princípio não havia provas contundentes. Ele retira o celular do bolso da jaqueta e começa a bater fotos. Antes de registrar cada imagem ele ainda analisa o lugar. O investigador se inclina para obter melhor foco onde possivelmente Natália sofreu as torturas. Uma tábua de construção. Uma perfuração rasa. Jaime praticamente cola o rosto na tábua para poder enxergar direito. Sim, há uma perfuração, não de uma faca ou punhal, o que seria?
      Nada pode ser descartado, porém aquilo pode ser fruto de um péssimo armazenamento. Alguém pode ter feito ou encostado a tábua num objeto pontiagudo. Nada se descarta numa investigação. Prates volta a registrar imagens. Ele pega uma caneta e evidencia o ponto fazendo um círculo. Pronto. Agora é trabalhar pesado em cima da prova que tem.
*

A noite, Jaime um pouco mais a vontade em sua casa que fica na zona oeste volta a ler o jornal de cinco anos atrás. Mais uma vez a foto de Natália estampada. Como era bonita. Ele volta a ler a reportagem e em voz alta.
- “Mulher é encontrada morta em um galpão abandonado próximo da rodovia que liga a cidade a outro estado. Natália Fagundes foi torturada e possivelmente estuprada, o principal suspeito é filho do empresário Mário Martins, Felipe Martins”.
     Prates fecha o jornal. Reflete em tudo que leu. Repassa a ida até galpão. De bermuda e camisa regata preta o policial anda até a cozinha. Sua mente trabalha bastante e quando percebe ele já havia aberto a geladeira, pego um pedaço de lasanha e a colocado no microondas. Abre a geladeira mais uma vez.
- Preciso ir ao mercado.

*

Fazer compras nunca foi o forte de Jaime. Desde quando deixou a casa dos pais, ele sempre se virou sozinho comendo produtos alimentícios ou as vezes não comendo também. Morar sozinho tem lá suas desvantagens. Fazia tempo que ele não entrava num supermercado e é claro que ele não faria isso sozinho. Rafa foi solicitada para auxiliá-lo.
- Você precisa largar as comidas industrializadas e passar a cozinhar. – diz ela pegando verduras.
- E quando não se sabe cozinhar? – pega mais legumes.
- Ai você precisaria contratar uma cozinheira.
- Ou me casar.
       Mais uma vez o mesmo assunto. Isso incomoda e muito a garota. Ela realmente não entende como um cara como Jaime foi se apaixonar por uma prostituta a ponto de querer construir uma família com ela.
- Pensou um pouco? – Jaime empurra o carrinho.
- Tudo bem. Farei um jantar delicioso, depois podemos conversar, certo?
- Eu topo.
       O jantar foi excepcional. Rafa quando era uma adolescente sua vó a ensinou fazer um macarrão no alho e óleo digno dos deuses. Aliás, essa é a única receita que domina bem na cozinha. Eles jantaram com direito a um vinho ao som de canções antigas. Jaime é um saudosista de primeira.
- Você é um cara velho. – diz brincando com a taça.
- Por causa das músicas? – coloca mais vinho na taça dela.
- Também. – sorrir.
- Então, dona Rafaela, quer se tornar a senhora Prates?
       Rafa molha o dedo indicador no vinho e o oferece ao policial. Jaime permite que Rafa coloque o dedo em sua boca.
- Quer transar? – ela pergunta.
- Você ainda pergunta.

*

Jaime desperta depois de uma noite inteira de amor com a mulher que pediu a Deus. Ele olha para o lado e como sempre Rafa não está lá. Surpresa seria se estivesse. Hora de levantar para mais um dia cheio, só de pensar Prates já está cansado. Quem sabe começar com algumas visitinhas.

       Próximo das nove o investigador já está estacionando o carro no IML. Na portaria ele mostra seu distintivo. Jaime passa pelos corredores frios até chegar a sala do legista que trabalhou no caso Natália. A porta está entreaberta e Jaime apenas colocou a cabeça para dentro. Adilson Ferreira retira seus óculos de leitura e se levanta.
- Policial Prates?
- Adilson, como tem passado? – finalmente entra na sala.
      Adilson Ferreira é um negro magro beirando seu 60 anos mais que ainda é apaixonado pela profissão.
- Vamos chegando, a que devo a visita?
       Jaime abre a jaqueta e puxa o jornal e o joga sobre a mesa do perito. Adilson volta a por os óculos e se acomoda em sua cadeira.
- O caso Natália Fagundes. – diz Adilson ainda olhando para a foto no jornal. – um crime sem culpado, segundo a justiça.
- Disse bem. Segundo a justiça Natália Fagundes foi espancada, estuprada, morta e ninguém fez isso com ela.
- O caso foi arquivado e já faz cinco anos, não me diga que está investigando? – o perito volta a olhar para o policial a sua frente.
- Sim, por minha conta.
- Não sei se concordo com isso.
- Adilson. – puxa a cadeira e se senta. – você trabalhou no caso, você viu o estado do corpo, preciso que me diga os detalhes, por favor.
- Nossa. Foi terrível. O corpo da jovem foi moído, quem praticou o crime estava com ódio.
- Posso ver as fotos?
      Adilson se levanta e anda vacilante até os arquivos. Demora um pouco, mas encontra as pastas com as fotos.
- Trabalhei dia e noite para descobrir qual o instrumento usado para perfurar o corpo e não encontrei.
- Não foi um tipo de punhal?
- Não. – o perito organiza as imagens na mesa. – veja, cada ponto que evidenciei é um ferimento. Se fosse uma faca ou algo do tipo os ferimentos não teriam esse formato.
- Então?
- Os golpes foram dados por um instrumento pontiagudo, mais ou menos quarenta centímetros e da espessura de um dedo mínimo de um homem adulto.
      Nesse momento Jaime pega seu celular. Clica no aplicativo galeria e depois nas fotos que bateu onde Natália foi encontrada.
- Lembra que a policia não encontrou nada e alegaram que Natália foi deixada lá?
      Adilson afirma com um gesto de cabeça.
- Pois bem, eu aposto que ela foi morta no local. Vai passando as fotos, quero que você pense junto comigo.
       Pacientemente o velho perito vai subindo as imagens.
- Está vendo isso? Foi onde Natália foi morta. O assassino a levou para aquele lugar. Tenho certeza, houve resistência por parte da vítima.
- Sim. Conforme os exames, a garota teve diversas lesões no rosto, inclusive alguns dentes quebrados. – afirma Adilson.
- Natália lutou, sofreu até morrer, porém eu quero que se prenda a última imagem.
     Adilson ajeita os óculos de leitura, olha para a foto segurando o celular de Prates e depois olha para o mesmo.
- Consegue ver? – Jaime arqueia as sobrancelhas.
- Uma tábua?
- Sim, mas veja no canto do lado esquerdo.
- Uma perfuração. Isso pode ser qualquer coisa.
- Claro, mas foi qualquer coisa que deixaram prá lá. O instrumento que foi usado para matar Natália. Alguma coisa aconteceu e o objeto foi cravado na tábua, talvez um forte golpe tenha atravessado o corpo e o objeto tenha atingido a tábua.
- Negativo. Não havia evidências disso.
      Jaime para por alguns instantes e fica com o olhar perdido.
- Jaime, fizemos uma varredura lá e não achamos nada. Você é um bom policial, um dos melhores que já vi atuar, vá por mim, esse caso já passou...
- Adilson, algo me diz que Felipe Martins matou Natália e eu vou provar, vou juntar provas e pedir a reabertura do caso. Se existe um culpado, esse culpado vai para a cadeia. – se levanta.
- Desculpa se não pude te ajudar.
- Pelo contrário, você me ajudou muito. – estende a mão.
- Sucesso na investigação.

*

Em todos esses anos na polícia Jaime jamais esteve tão convicto. Ele sente que está no caminho certo. Voltando para o DP ele reorganiza seus planos. Quem sabe o advogado que defendeu Felipe possa dizer algo. Doutor Mendonça Filho, chegou a vez de lhe fazer uma visita. Com o trânsito mais leve ele pode pegar o retorno voltando para o centro.

O prédio onde fica o escritório de Mendonça Filho é simples, porém fica num dos melhores endereços da cidade. Sua fachada passou por uma reforma recentemente e isso ajudou bastante a valorizar o imóvel. Jaime dispensou o elevador, preferiu encarar os cinco andares de escada. Lá está ela, a porta de vidro onde há escrito com letras grandes “Advogado”. O policial toca duas vezes com os nós dos dedos chamando atenção da mocinha da recepção. Ela faz sinal para que ele empurre e entre.
- Olá, doutor Mendonça Filho se encontra?
- Quem deseja? – a voz da funcionária é ainda mais aguda que Jaime imaginou.
- Detetive Jaime Prates.
- Sim, mas, o senhor marcou com ele?
- Não.
- Vou ligar para ele. – ela aperta um único botão. - Doutor Mendonça, tem um policial aqui, posso mandá-lo entrar? Certo. – ela olha para Jaime. – pode ir.
- Grato.
      Assim que Jaime entra Mendonça Filho se levanta. Sem o paletó e usando uma gravata azul claro o advogado o recebe bem e sorridente.
- Sente-se, senhor?
- Jaime, Jaime Prates. – puxa a cadeira.
- Em que posso ser útil?
- O senhor acreditou mesmo que seu ex cliente, Felipe Martins era inocente?

*

A decepção no rosto do garoto é tão grande que Rafa se levantou da cama para confortá-lo. O cliente de 19 anos não conseguiu completar o serviço pois o nervosismo foi mais forte. Aborrecido, sentado no beirada da cama do motel o rapaz tem os cabelos acariciados pela prostituta.
- Fica calmo, isso acontece com todos os homens.
- Não com homens de 19 anos. Melhor eu ir embora. – se levanta para pegar a carteira. – quanto lhe devo?
- Coitadinho, aposto que juntou todas mesadas para fazer um programa legal comigo. Vem aqui, nenhum homem sai do programa com Rafa sem gozar, farei uma brincadeira e será por conta da casa.
*
- Aonde o senhor quer chegar com essa história detetive? – Mendonça relaxa na cadeira.
- Quero esclarecer esse caso. Eu não acredito na inocência de Felipe Martins.
- Detetive, isso foi a cinco anos, o rapaz foi inocentado no tribunal o que mais o senhor quer? – fala sem aumentar o tom de voz.
- Vou reabrir o caso e colocar o culpado na cadeia.
       Mendonça Filho abaixa a cabeça escondendo o sorriso.
- Policial Prates, modesta a parte sou um dos melhores advogados dessa cidade, jamais perdi uma causa, já defendi as figuras mais importantes desse mundo e agora o senhor vem ao meu escritório dizer que vai reabrir um caso meu arquivado a cinco anos? Isso é ridículo.
      A raiva faz o coração de Jaime acelerar e ele sentiu vontade de agredir aquele velho arrogante, mas se conteve.
- Ridículo é o senhor defender um assassino frio como Felipe Martins e torça para que eu não encontre nenhuma falcatrua, caso contrário mando o senhor e o seu cliente para o xadrez.
      Mendonça fuzila Jaime com os olhos.
- Se já terminou. – o advogado aponta para a porta. 

*

Felipe Martins é rico, sempre foi. O mal do século é o dinheiro, o poder. Ele sim é capaz de comprar quase tudo, até mesmo a inocência diante de um tribunal. Jaime agora precisa ser mais ousado, agredir para progredir nas investigações. Se realmente Felipe a matou ele fez tudo de caso pensado, eliminou as provas. O negócio é tirar essa história a limpo, ir direto na fonte.

- Por favor o senhor Felipe se encontra? – pergunta ao porteiro.
- Está com sorte, ele acabou de chegar. Quem é o senhor?
- Investigador de polícia Jaime Prates.
      O porteiro lança um olhar desconfiado para Jaime que saca seu distintivo do bolso da jaqueta.
- Vou interfonar.
      Jaime diz que sim com um gesto de cabeça. Enquanto interfona para o escritório de Felipe, o porteiro permanece olhando para Jaime e meneando a cabeça. O funcionário aciona o botão destravando a porta. Jaime passa pelo porteiro.
- Sala 501 quinto andar, ele está te esperando.
- Obrigado.
      No elevador o policial aproveita para se olhar no espelho e pela primeira vez ele percebe algumas rugas se formando na testa e embaixo dos olhos. A velhice chegando bem devagar.
       Finalmente o quinto andar. A sala 501 se encontra fechada com um olho mágico olhando para ele. Ao lado da porta na parede perto da fechadura a campainha é pressionada. Jaime aguarda um pouco. Felipe aparece com um sorriso enviesado.
- Pois não?
- Investigador Jaime, você tem um minuto? – mostra o distintivo.
- Se for mesmo um minuto.
        Tudo que há de mais moderno está naquela sala. Ampla, refrigerada, bem iluminada. A sala de Felipe cheira a doce. Em sua mesa um computador, porta caneta com dezenas delas, uma caneca vazia e pendurado logo atrás da mesa um belo quadro de uma cidade talvez fictícia.
      Felipe faz um gesto para que o policial ocupe a cadeira. Jaime sente a maciez e o conforto.
- O senhor deseja beber algo?
- Café.
      Martins se dirige a pequena máquina de café por cápsula.
- O que lhe trás aqui?
- Natália Fagundes.
      Ao ouvir o nome Natália Felipe deixa cair uma das cápsulas. Jaime percebe um ligeiro desconforto.
- Sim. – diz Felipe.
- Você a conhecia, não é mesmo?
      A pequena xícara quase transborda. Felipe pega dois sachês de açúcar e uma colher.
- Claro que não. Eu quase foi para a cadeia por um crime que não cometi. Nunca vi Natália na minha vida.
- Mas as investigações levaram até você.
- O senhor sabe que até hoje eu não sei porque eu apareci na linha das investigações.
- Também acho estranho. – toma do café. – então estamos diante de um crime sem culpado, um crime perfeito.
- Digamos que estamos diante de um crime que aconteceu a cinco anos e que o suspeito foi inocentado num tribunal. – ocupa sua cadeira.
      Mais uma vez aquela onda de raiva voltou a tomar conta do agente e ele precisou respirar fundo para não partir pra cima do filhinho de papai.
- A menina foi morta a golpes de um instrumento que ainda não conseguimos identificar. – diz olhando para o quadro atrás de Felipe. – uma moça jovem, bonita, dona de um corpo magnífico, qualquer um se apaixonaria por ela de primeira, você não acha?
      A resposta não vem logo. As palavras do policial ainda pairam no ar daquele escritório super moderno. Jaime volta a olhar para Felipe que se encontra de cabeça baixa.
- Eu fico imaginando o sofrimento dos pais dela. Meu Deus. – o empresário mexe nas canetas.
       Outra onda de raiva. Jaime sente a frieza que emana dele. Porém outro sentimento o incomoda. E se ele for mesmo inocente? Não. Isso não está certo, alguém precisa pagar pelo feito.
- O café estava bom, do jeito que eu gosto, senhor Felipe. E como vão os negócios?
- Uma loucura, mil coisas para fazer em pouco tempo, esse negócio é lucrativo porém tem seus contratempos.
- Bom. – se levanta deixando a xícara sobre a mesa. – vou pedir para reabrir o caso. Quero encontrar o culpado e algemá-lo, quero que ele passe seus dias no fundo do xadrez.
     Felipe se levanta para acompanhá-lo até a porta.
- Estou a disposição investigador Jaime e por favor me mantenha informado.
- Há, isso com certeza farei.
      Jaime deixa o escritório de Felipe um pouco mais convicto. Se realmente ele for o assassino ele é uma pessoa fria, um ser humano capaz de qualquer coisa. Felipe se mostrou um sujeito educado, disposto e não tirou os olhos do policial hora alguma.
     Ele entra no carro e antes de dar a partida Prates olha para a janela do escritório. Felipe não está lá mas ele sabe que está sendo observado. Tudo o que estava a seu alcance ele fez, resta apenas juntar as peças do quebra cabeça. Isso não será nada fácil.

*

A noite é agradável. No céu há poucas nuvens e isso ajuda o vento fresco a circular. Dentro do bar o cheiro de fritura e outras bebidas deixam o ambiente ainda mais propício aos casais apaixonados. Sentado tomado sua cerveja Jaime espera por Rafa que termina um programa num prédio em frente. O lugar não está cheio, ainda há mesas vazias. Aos poucos os frequentadores vão chegando e ocupando seus lugares.
      Vinte minutos depois Rafa chega esbanjando sensualidade e beleza dentro de um vestido branco decotado. Os olhares masculinos se voltam para ela deixando o policial enciumado.
- Vestida pra matar, hein. – Jaime comenta.
- Gostou, comprei hoje no shopping.
- Vai beber o que?
- Sei lá, que tal um chope?
- Ótima pedida. – ergue o braço chamando o garçom.
      Rafa se acomoda e cruza as pernas. Jaime fica hipnotizado com o par de coxas da garota, ela desperta nele o homem viril que é. O pedido não demora. Eles conversam, bebem, trocam olhares e até selinhos. Do lado de fora um sujeito careca de casaco marrom fuma brincando com a fumaça. Ele olha para o casal sentado perto do balcão jogando conversa fora. Verifica a hora e depois entra no carro. Antes de sair ele joga fora o cigarro ainda aceso.

Meia hora depois Rafa e Jaime deixam o bar. Abraçados e risonhos. A noite tem tudo para terminar com os corpos embaixo dos lençóis. Rafaela ocupa o banco do carona ainda rindo da última piada. Ele liga o carro e o manobra até sair na rua principal.
- Tem certeza, você achou mesmo a piada boa? – pisa no acelerador.
- Claro, quase fiz xixi nas calças.
     As risadas continuam. Rafa coloca sua mão entre as pernas do agente que precisa se concentrar para não perder o controle da direção.
- Já transamos dentro desse carro? – ela pergunta.
- Acho que não.
- Quer experimentar?
- Seria interessante.
     O carro para no semáforo. O casal segue com as propostas lá dentro quando outro veículo para ao lado. Jaime volta sua atenção para o carro vizinho e não consegue ver nada. Bem devagar o vidro vai descendo e Jaime já coloca a mão em sua arma. Ele pede para que Rafa se abaixe. Dois disparos e o carro avança o sinal. Prates levanta a cabeça.
- Você está bem? – pergunta a Rafa.
- Meu Deus, ele atirou mesmo.
- Desça, pegue um táxi, vou pegar esse desgraçado.
      A garota sai do carro e Jaime arranca com o carro. Um atentado contra sua vida, Prates jamais passou por isso antes. Metros a frente ele localiza o carro. Com a mão direita ele segura volante, com a outra sua arma. Tudo cuidado é preciso. Assim que percebe a aproximação do carro de Jaime o carro do terroristas acelera.
- Merda.
       Uma verdadeira corrida por ruas de baixo movimento naquele horário. O que preocupa são os transeuntes desavisados. O veículo bandido muda de faixa diversas vezes, se nada for feito um acidente pode acontecer. Quem é esse cara?
      Finalmente Jaime consegue alcançá-lo, mas evita a troca de tiros. O bandido força um capotamento jogando seu veículo contra o de Prates. Vendo que nada acontece o terrorista apela atirando. O vidro da janela do carona explode. Jaime perde o controle e bate contra a mureta que divide a via.
       O sujeito careca para o carro lentamente. Verifica a munição. Desce do carro e caminha em direção ao acidente. É possível ver Jaime debruçado sobre o volante desacordado. Faz a volta observando cada detalhe. Abre a jaqueta e pega um maço de cigarro já pela metade. Olha outra vez para o policial desmaiado dentro do carro. Vai até a porta do motorista e joga a fumaça contra o rosto de Jaime.
- Durma com os anjos.
      Coloca a arma na cabeça de Prates e quase no mesmo instante recebe uma forte cotovelada e é desarmado. Jaime sai do carro já desferindo outro golpe no rosto do careca.
- Quem é você, quem te mandou?
       Jaime se prepara para chutá-lo nas partes baixas, mas o mesmo bloqueia. O careca é um pouco mais alto e também mais forte. Ao bloquear o chute ele acerta um potente golpe com as costas da mão. Jaime sentiu bastante por isso ele sente uma sensação de desmaio. Não, ele não pode apagar, não agora. Outro soco e Jaime perde o equilíbrio e cai. Rolando para evitar novos ataques, Prates vai se mantendo vivo na briga.
      Depois de várias tentativas finalmente o careca consegue acertar um chute nas costelas do policial. Jaime perde o fôlego e vai rolando até sair do acostamento. Se apoiando ele se levanta. As trocas de socos é violenta e ruidosa. O cara é forte. Força faz toda diferença. Os golpes seguem até que o punho de Jaime acerta em cheio a têmpora do careca que vê seu adversário se duplicar.
     Vendo a vulnerabilidade do inimigo Prates lhe aplica um chute no peito. O homem cai com as costas no chão emitindo um som surdo. Ao cair ele abre sua jaqueta e saca um objeto comprido e pontiagudo com uma madeira como cabo. Sangrando, furioso ele se levanta tentando furar o policial.
- Coloque isso no chão. – ordena Prates.
      O careca investe contra Jaime sem hesitação. Outra tentativa de perfuração que passa em branco. Prates vai se afastando e conseguindo ângulo até que ele bloqueia outro golpe com um chute e com a outra perna ele arrebenta o rosto do careca que cai gemendo segurando o nariz. A arma branca é deixada de lado. Jaime pisa no peito do terrorista e depois pega o furador.
- Um estoque. – olha para a arma. – quem te mandou. – pisa mais forte.
- Me deixe em paz.
      Jaime Prates nunca excedeu os meios de arrancar uma confissão, porém depois de tudo que passou, hoje ele resolveu experimentar usar do artifício. Ele saca sua arma e a enterra no meio da testa do careca.
- Quero o seu nome e o nome de quem lhe enviou se não explodo sua cabeça. – vociferou.

*

Na sala de reunião onde Felipe escuta atentamente ao que seu futuro sócio fala sobre o mais novo investimento, no bolso o celular vibrar. Ainda olhando para o homem falado ele retira o aparelho do bolso. No visor um nome. Felipe fica agitado e pede a palavra.
- Com licença, eu preciso atender uma ligação, me desculpe. – diz se levantando e indo em direção a porta.
       No corredor vazio ele atende.
- Fala Simão, péssima hora para ligar eu estou no meio de uma reunião.
- Poxa, me desculpe Felipe, o Simão está um pouco ocupado no momento.
- Mas quem está falando?
- Aqui é o policial que você mandou matar, na próxima vê se envia alguém profissional.
      O estômago de Felipe se revira e ele sente fortes náuseas. Sua cabeça gira e é preciso se apoiar na parede.
- Agora por favor, desça, nem pense em fugir, seu prédio está cercado.
   Na calçada do prédio aguardando a saída do empresário, Jaime, Marcão e mais alguns agentes olham atônitos para a portaria. Marcão sai de dentro da viatura para fazer companhia ao investigador.
- Será que o desgraçado vai descer ou tentar suicídio?
- A essa hora ele deve estar ligando para Mendonça Filho.
       Momentos depois Felipe aparece na portaria segurando uma pasta executiva e falando ao telefone. Ele olha para o policial negro gigante ao lado de Jaime e depois diz.
- O senhor não pode me prender, não há provas contra mim e só falarei na presença do meu advogado.
- Sempre o mesmo discurso, agora entre na viatura.

*

Jaime teve o pedido de reabertura do caso Natália Fagundes aceito. Felipe Martins é conduzido a sala de interrogatório onde permanece calado diante do investigador. Alguém bate na porta e sua entrada é autorizada. Mendonça Filho se acomoda ao lado do cliente.
- Fique calmo, ainda hoje estará em casa. – fala ao pé do ouvido de Felipe.
- Eu não estaria tão certo disso doutor, seu cliente enviou um matador para a execução de um agente de polícia, isso é muito grave.
- Devo informá-lo investigador que o meu cliente...
- O seu cliente também é acusado da morte de Natália Fagundes.
- O senhor insiste com esse assunto, Felipe foi inocentado perante um tribunal. Caso encerrado.
      Jaime se levanta.
- Mandei reabrir o caso, tenho provas mais que o suficiente para colocar esse seu cliente na cadeia, ele mandou matar Natália.
     Mendonça Filho olha para Felipe que abaixa a cabeça.
- Como tem tanta certeza, investigador? – o tom de voz agora é mais calmo e pausado.
       Jaime retira do bolso da jaqueta seu celular. Abre o aplicativo de gravador de voz e busca nos arquivos a confissão de Simão. Mendonça e Felipe escutam calados as delações do matador contratado.
      “ Ele me contratou para te executar” “ele quem? Fale logo” “Felipe, Felipe Martins, ele ficou com medo que você fosse longe demais com o caso da garota, por isso me chamou, outra vez” “como assim, te chamou outra vez?” “fiz um serviço para ele faz cinco anos, ele mandou dar um sumiço numa tal de Natália” Jaime interrompe o áudio e olha para Felipe.
- Você mandou matar Natália Fagundes, esse áudio vai parar nas mãos do juiz que vai dar a sentença, tanto Simão quanto você vão apodrecer na cadeia. – faz uma pausa para que suas palavras causem efeito. – agora me diga, porque mandou matá-la?
      Mendonça Filho se prepara para sair em defesa do cliente quando o mesmo o impede. Nos olhos as lágrimas transbordam e na voz o embargo.
- Ciúmes. Mandei matá-la por puro ciúme. Eu estive uma vez com ela. Eu me apaixonei logo de cara. Quando descobri que ela estava se interessada em outro cara. Eu nem me declarei para ela, fiquei com aquele sentimento dentro de mim por dias.
- Até que pensou, se não for minha não será de mais ninguém, não é mesmo?
      Felipe abaixa a cabeça na tentativa de esconder as lágrimas. Mendonça Filho apenas mexe na caneta.
- Você não queria sujar suas mãos, por isso contratou um “profissional” para fazer o serviço. – Jaime se aproxima da mesa onde estão os dois. – o que você não esperava era o crime brutal que foi, Natália foi estuprada, Simão a levou a exaustão, você sabia?
      Felipe coloca uma das mãos na boca.
- Na tentativa inútil de sobreviver ela lutou por isso foi espancada e finalmente morta a golpes de estoque.
- Já chega, detetive. – Mendonça se levanta. – meu cliente já fez a parte dele.
- Vale lembrar, doutor, que ele mandou matar um agente da polícia que está investigando o caso, ou seja, Felipe Martins não terá êxito dessa vez.
       Mendonça Filho olha para o seu cliente que continua a chorar e depois para Jaime.
- Terminei por aqui, agora é com o juiz.

*

Mais uma vez Felipe Martins está diante de um tribunal e dessa vez a história é outra. Seus pais assistem ao juiz lhe dando a sentença com olhares soturnos enquanto que os de Natália vibram mesmo que em silêncio. O caso com certeza repercutirá em todas as mídias e finalmente se fará justiça.
     Felipe saiu do tribunal direto para penitenciária assim como Simão. Do lado de fora os pais da jovem morta agradecem ao investigador.
- Minha filha agora pode descansar em paz. – diz Fagundes abraçado a esposa.
- Nossa vida não faria sentido se só o mal vencesse, não é mesmo?
- Tem razão, Jaime. Diz a mãe de Natália.
      Eles se despedem. Jaime entra em seu carro onde Rafa está sentada mexendo no celular.
- Nossa você já virou noticia, veja.
      “Finalmente o caso Natália Fagundes tem desfecho feliz graças a eficiência do detetive Jaime Prates “ Jaime dá de ombros e sorrir.
- Talvez agora você queira se casar com um homem famoso. – sai com o carro.
- É um caso a se pensar, mas no momento eu quero ir para cama com um homem famoso. 
FIM