domingo, 13 de julho de 2025

Alguém De Deus | Final

 


Final


    Na mesa está o notebook. Dois celulares abertos no aplicativo de mensagem. Meia dúzia de pastas com diversos documentos, notas e comprovantes de pagamentos, além de muitos outros papéis de extrema importância. Fabiana Moraes parece tensa cada vez que é notificada sobre a chegada de uma nova mensagem. O dia promete fortes emoções. Fabiana nunca foi fã de acordar cedo, mas a demanda a fez pular da cama antes das seis e correr para o escritório. Entre um bocejo e outro, a advogada aos poucos foi desatando os nós, descascando abacaxis um a um sem vacilar. De repente alguém bateu na porta. Isso sim a fez hesitar.

        — Mas que saco. — fechou o computador. — um minuto.

      Ainda com sua minúscula roupa de dormir, a doutora desfilou indo até a porta. Era André.

       — Diga! — falou secamente apoiada na porta.

       — Interrompo? — perguntou André ainda parado no corredor.

        — O que você acha?

        — É que…

        — Já levou a Aninha na escola?

        — Calma, me deixa falar…

         — Meu amorzinho, você não está vendo que eu estou ocupada resolvendo zilhões de coisas…

        — É sobre isso que eu quero conversar. Sobre esses zilhões de coisas.

       Fabiana bufou.

       — Em que você anda se metendo, Fabi? — deu dois passos para dentro do escritório. Fabiana se pôs a sua frente.

        — Dá licença?

        — Vai mesmo me impedir de entrar?

       Eles trocaram olhares desafiadores.

        — O que você quer, André?

        — Quero saber quem é Fabiana Moraes, com quem eu estou me relacionando, é isso que eu quero saber. — entrou. — saia da frente.

        — Ei, ficou louco? Você não pode invadir o meu espaço assim.

         — Quem não deve não teme. Quero saber no que a senhora está metida e quero saber agora. — Cruzou os braços.

         Numa reação pouco comum por parte de Fabiana, a doutora se pôs a rir e em seguida debochou.

        — Com que autoridade ou a mando de quem você está fazendo isso? — colocou as mãos na cintura.

      Num gesto movido por puro ímpeto, André colou seu rosto no rosto dela.

        — Chega de mentiras, Fabi, chega de me enganar e de se enganar. Você está metida em coisas que não condizem com o Senhor e eu não quero compactuar com isso.

        — Então me deixe em paz. Vá embora, agora. — gritou.

       André se afastou.

       — E eu que pensei que finalmente eu tivesse acertado, encontrado uma mulher de Deus na minha vida.

        — Esse é o seu mal, André. Você é muito certinho, espiritualiza tudo, quer andar sempre na linha e se esquece de que, quem anda muito na linha, o trem passa por cima. A religião te cegou.

       Agora André estava furioso.

       — Religião, quem está falando de religião aqui? Estamos falando de honestidade e caráter e pelo visto é tudo o que você não tem.

        Ruborizada a advogada andou a passos largos até a porta e o convidou a sair.

        — Fora! Junte suas coisas e fora da minha casa. Já!

        — Com muito prazer. — Saiu.


*


      Não estava sendo fácil estar ali. O ambiente hospitalar costuma mexer diretamente com a alma, com o emocional. Sula já vem experimentando essa sensação há uma semana e agora que ela se encontra ao lado de sua mãe, inerte naquele leito frio, tal coisa se intensificou. Dona Nair abriu os olhos e acariciou o rosto bonito e abatido da filha.

        — Oi, mãe. A paz!

        — Oi filha. Como é bom ouvi-la falar assim novamente.

       Para ouvir o que sua mãe estava dizendo, Sulamita precisou aproximar o ouvido de sua boca.

         — Promete que ficará bem quando eu me for?

        As lágrimas começaram a brotar nos olhos de ambas.

        — O que está falando, mãe? A senhora ainda tem muito o que viver.

        — Estou cansada. Preciso descansar. E além do mais, o Senhor está me aguardando. Irei desfrutar de tudo aquilo que ouvi e preguei. Essa é a minha recomendação para você, Sulamita: Não se afaste mais de Cristo. É com Ele que a vida vale a pena ser vivida. Tudo bem?

       — Sim. Tudo bem sim, mãe.

       De repente Nair ficou em silêncio. Pegou a mão da filha e a apertou usando o pouco de energia que ainda lhe restava.

        — Enquanto eu estava inconsciente, tive uma visão. Miguel não é uma boa pessoa para você. Vi claramente você chorando num quarto escuro. Você precisa dar ouvidos ao que Deus já vem falando ao seu coração.

       Sula sorriu e chorou um pouco mais.

        — Seja a mulher que Ele sempre quis que você fosse. Amém, minha filha?

       Beijando as mãos magras e frias de sua rainha, Sulamita confirmou tudo o que foi dito por Nair que adormeceu logo em seguida.


*


     Irmã Nair foi convocada para habilitar nas regiões celestiais na noite daquele dia. Foi uma morte tranquila, com ausência de dor ou qualquer outro tipo de sofrimento. Nair fez o caminho de todo homem. Por mais que Sulamita já esperasse por isso, receber a notícia da partida de sua mãe foi como se uma espada atravessasse seu peito inesperadamente e a sangue frio. “Em tudo dai graças” essa frase era tudo o que ela conseguia pensar naquele momento e naquele lugar.

       — Vá em paz, mãe. — Disse, aguardando os papéis.

         Nair Santos procurou viver o melhor que pode e quando ela disse sim para Cristo, tudo foi intensificado, transformado, de dentro para fora. Jesus arrumou sua casa e ela passou a ser uma referência de fé e perseverança. O resultado disso tudo é o fato de o local de seu sepultamento se encontrar lotado. Amigos, parentes, irmãos e irmãs de ministério e até mesmo pessoas de outras denominações. Sim! Estavam todos ali, rendendo graças ao Senhor pela vida de sua serva.

       — Fique em paz, Sulamita. Sua mãe amava fazer a obra do Senhor. — Falou um irmão já idoso, conhecido de longa data.

       — Ela era uma mulher maravilhosa. — Declarou uma pastora.

       O cortejo seguiu. Sula preferiu permanecer próxima a capela ao lado de Gabi distante de toda movimentação. Assistir o corpo de sua mãezinha ser depositado em um jazigo perpétuo seria um golpe muito duro.

        — Quer alguma coisa, amiga? — perguntou Gabi.

             — Não. Eu estou bem.

        — Olha, se você quiser pode passar essa noite lá em casa. É pequeno, mas…

       — Obrigado, amor. Eu vou ficar legal. — Se abraçaram.

      A fim de aliviar as dores nas pernas, Sula ocupou um dos bancos de concreto e aproveitou para mais uma vez falar com Deus. Foi quando André apareceu no portão do cemitério olhando para ela. Sulamita ficou petrificada.


*


     Com mãos trêmulas e um nó gigantesco se formando na garganta, Sula abriu outro sachê de açúcar aguardando a volta de seu ex-marido com os pedaços de torta. Ela adoçava o café ainda tentando entender o que acabara de acontecer dentro daquele lugar hostil há alguns minutos atrás.

       — Prontinho. Pedi ao balconista para caprichar quanto a partilha das fatias. — Disse André colocando a bandeja em cima da mesa daquela panificadora glamourosa.

         — Não precisava se preocupar. Só o cafezinho já bastava. — Sorriu.

       — Você sempre foi fã das tortas de abacaxi daqui, então…

     Ele não esqueceu, pensou Sula pegando sua fatia.

       — Assim que eu soube do ocorrido, tomei a liberdade de me informar sobre o local do sepultamento. Dona Nair foi e sempre será uma mulher especial para mim. Sua fé era inspiradora.

       Sula corou. Fé.

       A conversa rendeu bem. Quando eles se deram conta, o sol já começava a baixar deixando o céu de Outono com um tom alaranjado encantador. André foi o que mais falou. Tudo foi deixado às claras. Trabalho, igreja, dona Nair, Deus e…

       — Como foi a minha vida nesse tempo? — André não parava de mexer as mãos. — Não foi ruim, mas também não foi nenhum paraíso. Convivi com uma pessoa que definitivamente precisa urgente de uma intervenção de Deus em sua vida.

          — Jura?

       — Sim. Na realidade, é o tipo de pessoa que se convenceu. Não houve uma conversão de verdade e com isso, ela tem feito de sua vida um mar de lama. Oro a Deus que haja tempo para que ela venha se arrepender de fato.

        — O curioso é que nós nos relacionamos com pessoas com o caráter idêntico. No meu caso, o rapaz era vida louca mesmo. Acredita que ele quase deu em cima da Gabi?

         André ficou pasmo.

       — Eu admito que, no início, eu achei que ele era o homem que Deus tinha posto no meu caminho. Com o passar do tempo aquele cordeirinho foi mostrando suas garras de lobo.

       O tempo passou muito rápido. A noite havia chegado e eles precisavam se despedir. Tudo o que consumiram ficou por conta de André. Na saída da panificadora o inevitável aconteceu.

        — Aonde você está morando, André? — Ajeitou a bolsa no ombro.

        — Lembra daquela quitinete do pastor Clodoaldo?

        — Nossa! Você está morando lá? É pequena, abafada e a descarga do banheiro mal funciona.

        — Eu sei, mas não pretendo ficar lá por muito tempo, eu já estou vendo um apartamento na zona norte.

         — Ah, sim. — silêncio. — Bom. Eu já vou indo. Foi um prazer revê-lo.

       — Eu digo o mesmo. Veja bem. Eu mudei de operadora, anote o meu número novo caso precise de alguma coisa.

       — Tudo bem.


*


      Para o preparo da janta, André pôs sua playlist dos melhores louvores selecionados por ele para tocar. Sua mente parece um furacão, por ela diversas coisas giram a mil por hora, porém uma delas sempre o faz parar e refletir: Sulamita. O que será de sua vida sem dona Nair? O que ela deve estar fazendo neste momento? Durante alguns minutos o maquinista fechou os olhos e orou pedindo a Deus que a confortasse, que ela se sentisse abraçada por Ele.

       — Amém!

      A comida ficou pronta. Simples, mas saborosa. Ele sentou-se na ponta da cama equilibrando o prato na mão direita enquanto que a esquerda segura o copo com suco. Quando foi dar a primeira colherada, o louvor que tocava foi interrompido por uma ligação. Era um número não salvo em seus contatos. Mesmo assim ele atendeu.

        — Alô?

  — Oi, André, sou eu, Sulamita. Desculpa estar te ligando uma hora dessa.

    — Sem problemas. Aconteceu alguma coisa? — Soltou o prato.

       — Não aconteceu nada… é que… se importa de vir até aqui agora?

      Para ajudar a empurrar a comida, o suco veio a calhar.

       — Não. Tudo bem. Aonde você está, na sua casa ou na casa da sua mãe?

        — Eu estou em casa.

        André conferiu o horário.

       — Certo! Chego aí em vinte minutos.

       O prato foi parar dentro da geladeira assim como o suco. Para atender ao um irmão em sofrimento não podemos medir esforços. André deixou sua residência encarando a noite disposto a ajudar sua ex-mulher no que fosse preciso.


*


     Auditório lotado. Canhões de luz posicionados para uma das atrações da noite daquele mega evento de família promovido pela igreja intitulado “O que Deus uniu, não separe o homem” Sulamita Simões, já não tão jovem, ocupando aquele púlpito, falando com autoridade e intrepidez para um público de um pouco mais de quarenta famílias inteiras sedentas pela palavra.

       — Irmãos, Deus reconstruiu a minha família e eu não tenho vergonha de dizer em público o que eu falei para o André na noite em que ele saiu de casa. No calor da emoção eu falei: você não é alguém de Deus para a minha vida.

       Silêncio no auditório.

       — Ele disse o mesmo para mim e saiu. Nós nos separamos. Fomos viver as nossas vidas. Ele teve um relacionamento e eu tive também um relacionamento. O tempo passou. Deus estava trabalhando o tempo todo e hoje estamos aqui. Juntos novamente, quase vinte anos depois. Eu tenho orgulho em apresentar a minha família. Subam aqui, meu marido André, minha filha Letícia e seu noivo Paulo.

      Os aplausos ecoaram por longos trinta segundos até que toda família Simões estivesse completa em cima do altar.

       — Finalizo minha palavra dizendo. — Sula segurou nas mãos de André, também um pouco mais velho. — André, você é e sempre será alguém de Deus para mim. FIM.








domingo, 6 de julho de 2025

Alguém De Deus | Capítulo 5

 


5


    Mulher de oração. Mulher de fibra. Uma verdadeira guerreira que não media esforços para ir em busca de seus objetivos e ideais. Nair Santos, mãe de Sulamita e ex esposa de Armando que a deixou sem eira e nem beira morando numa quitinete apertada, abafada e com uma criança de colo. Armando não valia absolutamente nada, gastava com bebidas, cigarros e jogos a pouca renda que conseguia como auxiliar de pedreiro e ainda dava prejuízo a Nair. Tantas foram as vezes em que ela precisou passar roupa para fora a fim de sanar as dívidas contraídas do marido em apostas e jogatinas.

       Assim que se converteu ao evangelho e tudo começou a dar sinais de melhora na vida de Nair, Armando disse que iria até a venda da esquina comprar cigarros e nunca mais voltou. Na época foi um transtorno, a dona de casa não sabia por onde começar a reorganizar as coisas. Lhe faltava tudo. Tudo mesmo. Graças a Deus e a solidariedade dos amigos e irmãos da congregação onde era membro, Nair e sua filha conseguiram se reerguer.

       O estado de saúde de Nair vem aos poucos se agravando. Parte de sua renda como aposentada é investida na compra de medicamentos todos os meses e ainda falta. Se não fosse a pequena ajuda de Sula, com certeza ela já teria sucumbido a enfermidade. Há alguns dias ela vem sentindo uma intensa falta de ar e mal estar seguido de tonturas como nesta manhã. Por volta das onze e trinta os sintomas tiveram uma piora considerável. Nair ligou para Sula que pediu que Gabi segurasse as pontas na farmácia saindo às pressas em socorro de sua velhinha.


*


    Não houve outra alternativa, Nair precisou ficar internada e seu estado realmente inspirava cuidados. É nessas horas que tudo aquilo que pensamos ou declaramos vem à tona com força total. Quando se vive em tempos de paz, falamos para nós mesmos e para outros que o Senhor segura a nossa mão e que jamais nos deixará sozinhos na luta. Dizemos também que, não importa o que venhamos a passar, passaremos com fé e confiança no Deus todo poderoso. Enfim, o dia mal chegou para a família Santos. E agora? Como pôr em prática tudo o que foi falado, ensinado ou pensado? Sula não estava preparada para tal situação — e quem nesta vida se prepara para o pior? — Dentro do consultório, a duras penas, ela tenta digerir tudo o que está acontecendo e nessas horas, todo e qualquer ser humano precisa de alguém para se apoiar. Assim que saiu do hospital, Sula ligou para Miguel.

        — Oi. Tudo bem? Estou com minha mãe internada e é grave. Pode vir aqui? — Sula tinha os olhos marejados.

        — Nossa, amor, que coisa. Poxa, infelizmente não tenho como ir. Estou no trabalho.

        A balconista apertou os olhos.

        — Eu estou desesperada. Não tem como vir mesmo ao meu encontro?

         — Não. Sinto muito. Mas eu vou estar orando por vocês. Tudo vai terminar bem.

       Raiva. Tristeza. Desesperança e desespero. Tudo ao mesmo tempo. Quem seria capaz de suportar essa enxurrada de sentimentos que assolam sem piedade? Sulamita voltou para dentro da unidade hospitalar quase sem forças nas pernas. Ela se jogou em uma das cadeiras da recepção praticamente e ali permaneceu com os olhos fechados por longos minutos. Orando talvez?


*


      — Mas, doutora, a senhora é uma mulher bonita, competente e está sempre disposta a crescer. Já está mais do que provado que não depende de ninguém para se sustentar. Tem criado sua filha sozinha.

        — Lógico que eu sei de tudo isso. Sei do meu potencial, mas, aconteceu. — Fabiana conversava ao telefone contemplando a paisagem urbana da janela do quarto.

        — E a senhora sente que pode haver algum futuro legal ao lado desse cara?

        — Nós já andamos conversando sobre isso e deixei bem claro o que penso.

         — E mais um agravante: pelo que a senhora me contou, ele é um sujeito extremamente careta, do tipo crente bitolado. O que pensa em fazer quanto a isso?

        — Bom. Eu também sou evangélica… — Fabiana mudou o celular da orelha esquerda para a orelha direita.

        — É verdade, às vezes me esqueço que você é crente. — Falou de forma zombeteira. — tantos são os processos e procedimentos que…

       — Ah, sim. Agora você vai ficar jogando as coisas de errado que fizemos juntos na minha cara? Veja bem, se você possui alguma coisa hoje, seu carro, seu apartamento, sua conta bancária recheada e tudo mais, isso se deve a mim.

         — Nossa. Calma doutora Fabiana Moraes. Eu sei de tudo isso e sou muito grato a senhora. Eu só estou lhe alertando quanto ao seu namorado “crente certinho”, ele de maneira alguma pode interferir em nossos esquemas. Entendeu?

       — Pode deixar que do André cuido eu. — silêncio. — mais alguma coisa?

         — Não! Era só isso mesmo. Tenha um ótimo dia, doutora.

         — Saco! — Jogou o telefone em cima da cama.

      A advogada ainda passou alguns segundos conferindo a beleza de um grupo de aves planando até pousaram sobre as palmeiras. Ao girar nos calcanhares, ela deu de frente com André dentro do quarto.

           — Oi? — O coração de Fabiana parecia uma máquina de lavar.

        — Oi! Você viu uma das minhas camisas do uniforme? As outras estão sujas.

        — Ah, sim. Claro que vi. — correu até o armário. A blusa encontrava-se na terceira gaveta, cuidadosamente dobrada.

        — Obrigado, amor.

        — Tem mesmo que ir trabalhar agora? — o abraçou.

         — Pois é, eu também não queria ir, mas… ordens são ordens.

         — Eu pensei em deixar a Aninha na casa da minha mãe e passarmos o dia inteiro juntos.

         — Que tal guardar esse fogo todo para logo mais a noite?

         — Vou lhe cobrar, hein. — Lhe apertou as bochechas.

         — Pode deixar comigo.


*


    André precisava mesmo chegar em seu local de trabalho um pouco antes do horário, mas o seu coração suplicava por ouvir a voz de Deus através de alguém posto na terra justamente por Ele. Pastor Clodoaldo. O plantão poderia esperar.

        — Grande André Simões, a que devo a honra? — O abraçou.

        — Eu que agradeço, pastor. Sei da sua correria e mesmo assim conseguiu um encaixe para a sua ovelha desgarrada aqui.

        — Vamos parar com esse negócio de ovelha desgarrada. Você é meu amigo. — Sentou-se atrás de sua mesa. — Aceita um café?

       — Fica para uma outra hora. — Puxou uma cadeira. — O senhor sabe da minha situação. Me separei da Sulamita e hoje vivo com a Fabiana…

       — Claro que sei. Fabiana Moraes, advogada. — Entrelaçou os dedos. — e como vocês estão?

      André pigarreou antes de seguir.

        — Então, pastor. Tirando a parte íntima, a nossa relação é bastante conturbada. Fabiana é do tipo de mulher que não se conforma em cumprir só o seu papel, ela quer dominar tudo e a todos. Eu sei que, a maior parte dos recursos que entram em casa vem dela, mas isso não significa que ela precisa ter as rédeas nas mãos o tempo todo…

        — Vocês já conversaram sobre isso?

        André meneou a cabeça.

        — Essa é uma situação bem corriqueira entre os casais que entram por essas portas e mal sabem eles que com uma conversa sadia já teriam resolvido de uma vez por todas esse desconforto. Porém, algo em seus olhos me diz que a sua vinda até aqui tem outro motivo. Certo?

       — Sim! É verdade. — abaixou a cabeça. — Eu já desconfiava desse geneo da Fabiana. Orgulhosa, gananciosa, mandona. Mas, me humilhar… aí já é demais. Acredita que ela impôs condições de melhora de vida para continuar junto com ela? Quem ela pensa que é? Quando nos conhecemos, ela sabia das minhas condições, sabia que eu era pobre, um simples operador de metrô. Ela poderia simplesmente ter me dispensado e ir atrás de alguém a altura dela. Mas, não. Ela queria alguém a quem ela pudesse mandar e desmandar. Alguém para levar a filha dela na escola, para ir ao mercado, arrumar a casa e tudo mais.

       — E a comunhão, vocês tem frequentado os cultos?

        — Sim. Mas a impressão que tenho é que Fabiana vai à igreja por conveniência e só. Eu não a vejo orando, louvando ou lendo a palavra. A vida dela é só o trabalho, a filha e…

      Clodoaldo aguardou a conclusão da fala.

        — Ela pensa que eu não ouvi, mas infelizmente eu ouvi tudo. — engoliu seco. — Antes de sair eu a vi conversando com alguém no celular. Ela disse coisas sobre mim que eu já sabia, mas a questão não é essa. Pelo teor do papo, acho que Fabiana tem prosperado ilicitamente.

      O pastor se ajeitou melhor na cadeira.

        — Penso até que ela tem algum envolvimento com políticos ou até com mafiosos…

        Clodoaldo o interrompeu fazendo um gesto com uma das mãos.

         — Calminha aí, André. É muito sério isso que está dizendo. Você ouviu mesmo?

        — Infelizmente, sim.

       — Misericórdia. — Cruzou os braços. — Veja bem, André. Você sabe. Eu nunca aprovei a sua separação e muito menos o seu envolvimento com a Fabiana. Lembra quando me procurou para me informar que estava saindo de casa?

        — Lembro.

        — Pois bem. A partir de então eu iniciei uma campanha de oração por sua vida e pela vida da Sula. Quando você me apresentou a Fabi, logo vi que ela, mais do que você, precisava de ajuda. Deus confirmou isso em meu coração.

        — Como assim, e porque não me disse isso logo? — Deu um sorriso sem graça.

        — O Senhor pediu que eu aguardasse e eu o obedeci.

      André ficou em silêncio tentando organizar seus pensamentos.

        — E o que eu faço agora? — André tinha os olhos vermelhos.

         — Se você não tem orado, meu querido, recomendo que comece imediatamente.


*


   Sulamita prometeu para ela mesma que fecharia os olhos só por alguns segundos mas que não iria cochilar. Pobre Sula. Ela acabou por adormecer num sono profundo, sentada na recepção do hospital causando até um certo incômodo aos presentes por roncar. Alguém lhe trouxe de volta do sono pesado ao tocar com delicadeza em seu ombro direito.

        — Oi? — limpou a saliva que escorria no canto da boca.

         — Venha, precisamos conversar sobre o estado da sua mãe. — Disse a enfermeira.

       A conversa durou vinte minutos, mas para quem possui um ente querido entre a vida e a morte num leito de hospital, vinte minutos parece durar vinte anos. Ao deixar as dependências daquela unidade hospitalar tudo o que ela queria era sumir. Desaparecer. Dona Nair foi transferida às pressas para UTI e os médicos ainda não chegaram a um diagnóstico definitivo. As próximas horas seriam decisivas. Mesmo sem ter muita noção do que estava fazendo, Sula chamou um Uber partindo para a casa de Miguel.


*


     O HB20 branco parou em frente ao portão da casa de seu namorado quinze minutos depois. Bastante abalada, Sula aguardava o sinal de internet retornar para efetuar o pagamento da corrida via Pix.

       — Fique tranquila, senhora. Eu espero. — Falou o motorista a observando pelo espelho.

       O portão foi aberto e dele saiu Miguel Ramos abraçado a uma morena corpulenta de cabelos cacheados. Sula finalizava o pagamento quando isso aconteceu. Seu estômago deu um nó. Ela até pensou em fazer um escândalo, mas se conteve. Miguel e a tal morena pareciam bastante íntimos pelo visto.

        — Moço. O senhor poderia me aguardar? Não vou demorar muito.

        — Outra corrida, senhora?

        — Exatamente! — desembarcou.

       Miguel conseguia arrancar um beijo da morena quando foi surpreendido por Sula se aproximando.

       — Olá? — Sulamita acenou.

       — Sula? — Miguel mudou de cor. — O que faz aqui?

       — Quem é essa, Miguel? — perguntou a outra.

       — Como assim, Miguel, não contou para ela que você era comprometido comigo?

        — Eu não acredito nisso. — A morena se afastou.

       — Calma, Débora…

       Houve um princípio de confusão e Miguel acabou sendo agredido por Débora com um forte tapa no rosto.

        — Seu, seu atribulado. — saiu andando pela calçada.

       De dentro do veículo o motorista assiste a tudo esfregando as mãos.

       — Quer dizer que, enquanto estou com minha mãe morrendo no hospital, você se diverte com outra? Então este era o motivo de você nunca ter ido lá ficar comigo?

       — Calma, amor, eu posso explicar, eu…

       — Não me chame mais de amor. Já não temos mais nada a ver um com o outro…

       — Sulamita, nós…

       — Tudo bem, Miguel, eu já havia sacado qual era sua. Você não estava a fim de um compromisso sério. Infelizmente não houve uma verdadeira conversão na sua vida, você só queria fornicação.

        O rosto de Miguel era uma mescla de raiva, dor(devido ao tapa) e vergonha.

       — Eu sinto muito. — Balbuciou.

        — Minha mãe estava certa a seu respeito. — declarou andando em direção ao táxi.

       Miguel voltou a esfregar o rosto e principalmente o lugar onde foi agredido.


*


     Infelizmente ou felizmente o inverno chega na trajetória de todo ser humano e esse inverno costuma ser dez vezes mais rigoroso na vida de quem serve ao Senhor. É loucura pensarmos ao contrário. O Verão chegou. Não demorou muito e se foi. Levou com ele a luz emocionante da manhã e o dourado divinal do anoitecer. O Outono deu as caras. Não aqueceu como na estação anterior, mas ainda assim foi possível sorrir. Com a chegada do inverno, Sulamita não teve como escapar. Ela precisava aquecer, corpo, alma, espírito e nada melhor para isso do que ouvir uma palavra direcionada por Deus.

        — Livramento? — Sula pegou o copo com café servido por Gabi na cozinha de sua casa.

         — Exatamente! Livramento. Miguel não era homem para você. Isso ficou bem nítido quando o conheci. Sua vida seria um inferno ao lado dele.

        — Meu Deus, amiga. — Provou da bebida quente.

        — Os desígnios de Deus são desconhecidos, minha querida, porém são os melhores e você já deveria saber disso.

        — Verdade. — Provou outra vez. — Vacilei quando deixei de ouvir a voz Dele. Me precipitei e…

        — Quebrou a cara. — pegou alguns biscoitos salgados dentro do pote. — e quem nunca?

         — Acho que aprendi a lição. Vou aproveitar este momento e me reaproximar de Deus, me apegar mais a Ele. Fazer o que minha mãe sempre me recomendou.

         — Eu sempre soube que você era uma mulher de Deus igual a irmã Nair.

      Elas ficaram em silêncio.

       — E então, vamos orar entregando este momento ao Senhor? — Propôs Gabi.

       — Ah, o que seria da minha vida se você não existisse, amiga? — Deu as duas mãos iniciando o período de oração.

       




       


domingo, 29 de junho de 2025

Alguém De Deus | Capítulo 4

 


4


     Servir a Deus é algo muito sério. A caminhada com Cristo nunca será uma tarefa fácil. A partir do momento em que tomamos a decisão de seguirmos ao que Ele designou para quem quiser andar em seus passos, é preciso ter a consciência de que estaremos declarando guerra e essa guerra não é contra o nosso semelhante. Esse conflito é contra nós mesmos. Contra nossos pensamentos, atitudes, vontades e gestos. É por isso que se faz necessário uma entrega, uma rendição. O que outrora falávamos que era a nossa vida, agora que somos Dele, a vida já não nos pertence mais. Jamais podemos tomar qualquer decisão sem antes consultá-lo, seja em qual área da vida for. Jesus Cristo é quem está no controle e ponto final.

       Dona Nair serve a Jesus desde a sua tenra infância, já viveu o suficiente para saber o que agrada e o que não agrada a Deus. Quando jovem, ela foi convidada para assumir o ministério da juventude. Ela topou após insistentes pedidos da liderança e também longas jornadas de oração nas madrugadas. Ao ouvir o “sim” de Deus, ela se dirigiu ao pastor para acertar os detalhes no dia seguinte. Foram anos à frente da juventude. Lutas, vitórias, derrotas, mas no final, ao passar a relatoria para outro, todos os liderados estavam cientes o que é de fato servir a Deus.

         — Eu me lembro. A senhora batia muito nessa tecla. Servir a Deus não pode ser de qualquer maneira. — Sula imitou a mãe falando.

         — E mesmo não estando mais na ativa eu sigo com o mesmo pensamento e é por isso que eu te chamei para uma conversa sobre esse rapaz.

             — O que tem o Miguel?

         — Ele diz que serve a Jesus e tudo mais, entretanto não consigo ver verdade nele…

       Sula interrompeu a fala da mãe com um gesto de mão.

        — Cuidado com o que vai dizer, mãezinha. Não caia no julgamento.

         — Sim, claro. Terei cuidado. Quem sou eu para julgar o meu semelhante. Filha, eu lhe peço, nunca tome uma decisão sem antes orar ao Senhor. Pergunte se ele, Miguel, é de fato o homem que Ele quer em sua vida.

       Aquela conversa não estava agradando nem um pouco a Sula. Normalmente quando não nos encontramos no centro da vontade do Senhor não gostamos de sermos confrontados.

         — Pode deixar, dona Nair. Terei cuidado. — bocejou.

        — E quanto ao André?

        — André, o que tem ele? — A expressão de Sulamita mudou drasticamente.

         — Você nunca mais falou nele.

        — Óbvio que não. André foi um capítulo na minha vida que eu não tenho a mínima vontade de lembrar.

        — Sério mesmo, você o odeia tanto assim? — Nair apertou os olhos atrás dos óculos.

        — Não é questão de ódio, ele só não foi alguém que Deus queria em minha vida. Só isso. — outro bocejo.

        — Uma pena o casamento de vocês ter acabado. Apesar de tudo o que houve, eu conseguia ver um futuro ali.

       Sula não respondeu, apenas olhava para as expressões faciais da mãe.

        — Bom. Está tarde e amanhã você precisa trabalhar. Eu como aposentada já não me preocupo mais com isso. — levantou-se do sofá gemendo devido às dores nas pernas. — Boa noite.

        — Boa noite, mãe. Benção.

        Sulamita ainda passou alguns minutos ali na sala meditando em tudo o que foi dito por sua mãe. Quem disse que seria fácil fazer a vontade de Deus? Na verdade ela já não sabe o que é fazer a vontade Dele.


*


     André e Fabiana moram juntos praticamente. Desde quando se conheceram há um ano mais ou menos, eles não se desgrudaram mais. Vão ao mercado juntos ou simplesmente ela diz o que ele tem que comprar e ele tranquilamente executa a tarefa. Quanto aos serviços domésticos tudo aconteceu naturalmente. Enquanto a advogada faz o seu papel como dona de casa cozinhando e ajudando sua filha nas tarefas da escola, ele cumpre sua parte como bom “namorido” que é lavando o seu carro, consertando vazamentos na parte hidráulica ou ajustando melhor a elétrica ou simplesmente tirando o pó dos móveis. Fabiana é do tipo de mulher que não suporta ver as coisas fora do lugar ou desorganizadas, isso ela já deixou bem claro muitas vezes.

        O dia transcorreu em seu ritmo normal durante o turno de André. A composição a qual ele conduziu desde o primeiro horário não havia dado sinais de que sofreria alguma avaria a qualquer momento. Na volta da última viagem o inesperado aconteceu tirando o maquinista do foco e também do sério. O seu trem-metrô precisou ficar parado por meia hora. Tanto ele como os passageiros tiveram que esperar pelo restabelecimento da energia dentro de um túnel quente e mal iluminado. Assim que tudo foi resolvido André consultou o relógio percebendo que o pior ainda estava por vir.

        — Ana Carolina. — Balbuciou.

       Mais cedo, Fabiana ligou informando que ficaria até tarde no escritório revendo e separando documentos para apresentar no fórum e o incumbiu de pegar a menina na escola. André não estava só atrasado; ele estava super atrasado e para piorar, a diretora já havia ligado para Fabiana que quase teve um ataque do coração.

        — André, como assim, você ficou maluco, esqueceu de pegar minha filha na escola? — Falou a plenos pulmões pelo telefone.

       — Fica calma, Fabi, eu já estou a caminho, não precisa gritar.

        — Eu estou no meu direito, afinal é a minha filha quem está lá, sozinha. — Ainda vociferando. — se eu soubesse que não dava para contar com você eu pediria a vó dela…

         — Eu não tive culpa, o metrô ficou sem energia e… — desceu no ponto alguns metros longe da escola.

        — Está vendo quando eu falo que você precisa dar um jeito de mudar de vida? Esse seu emprego além de ser medíocre, ele ainda atrapalha a minha rotina.

        Mesmo ofegante André fez questão de responder sem alterar o tom de voz.

        — Tudo bem. Peço desculpas. Mais tarde conversamos.

       Fabiana desligou antes que ele pudesse terminar a sua fala.

       Ana Carolina ao vê-lo na porta da secretaria festejou erguendo os braços.

       — É o meu tio.

      Muito mais compreensiva do que sua namorada, a diretora entendeu tranquilamente o relato dado e ainda fez outros comentários. André deixou a instituição de ensino menos tenso, porém sabia que ainda teria que enfrentar a dama furiosa logo mais.


*


     Bem devagar, sem pressa, como uma serpente que antes de aplicar seu bote ela envolve sua presa de forma sútil. Miguel arrastou Sula para o seu quarto após o término dos estudos da faculdade e ali iniciou sua investida. A princípio, as mãos seguiam quietas, repousada sobre as dela, mas conforme o tempo foi passando e o clima ganhando temperatura, elas tentaram encontrar outro ponto de repouso.

        — Acho melhor pararmos por aqui. — Disse Sula ofegante.

       Fingindo não ter ouvido a recomendação da namorada, o empresário deu sequência às carícias deixando-a sem fôlego.

        — Miguel, por favor.

       Não. Ele não pararia até atingir seu objetivo. Miguel sabe como ninguém deixar uma mulher louca por ele.

        — Não acha melhor esperar?

         — Esperar o que? — Miguel cessou a investida.

         — Como assim o que? Esperar o casamento. Ou não?

         — Pois é… — levantou-se da cama.

        — Pelo que eu sei a bíblia não permite tal relação antes do matrimônio e nós ainda somos cristãos.

        — Há tanta gente fazendo coisa pior. Extorsão dos dízimos, exploração de trabalho voluntário, pastores traindo suas esposas, pessoas que estão dentro das igrejas que espancam seus filhos e mulheres… — passou as mãos no rosto.

       — Eu sei que todas essas coisas acontecem, Miguel, mas não podemos usá-las como desculpa para pecar. Eles estão errados.

        Sula levantou-se também e o abraçou.

         — Espere com paciência. Em breve estaremos liberados e aí então…

         — Só alegria. — Sorriu.


*


    Dentro de casa o clima não estava legal. Era sufocante. Por isso André preferiu sentar-se na parte dos fundos, sendo iluminado somente pela luz da lua. Admirando o satélite natural construído pelo Criador, o maquinista começou a entoar um hino e em seguida fez uma curta oração.

         — Tudo o que Deus faz é bom. — disse para si mesmo.

         — Agora você deu para falar sozinho e no escuro? — Fabiana apareceu na porta que dá para os fundos. — Quanto mais eu rezo, mais assombração me aparece.

         — A lua está linda e senti o desejo de orar…

        — Só espero que tenha orado para que Deus abra essa sua cabeça e coloque juízo nela.

       André resmungou.

        — Você é jovem, bonito, é inteligente, precisa ser mais ambicioso…

        — Tudo o que tenho foi Deus que me abençoou. Se eu tenho alguma coisa hoje é graças a Ele…

        — Amém, irmão. — desdenhou. — O mal de muitos crentes é justamente isso. É achar que Deus vai lhe dar alguma coisa de mão beijada. Vou te mandar a real: ai de mim se eu não corresse atrás, eu estaria vivendo de faxina ou coisa pior.

         — Meu Deus, que coração é esse, Fabi?

       — O que tem o meu coração? — Aprumou-se.

        — Eu pensei que estivesse ao lado de uma mulher de Deus. — Encolheu os ombros.

        — Pronto! Agora você vai me julgar? Quem você pensa que é, seu André Simões? Relacionamento com Deus é algo muito particular, você não acha?

        André estava em choque.

        — Digo e repito: para andar comigo terá que crescer, querer e conseguir. Boa noite.

       Ele voltou a contemplar a lua, talvez buscando uma resposta para tudo o que ouviu e sentiu a minutos atrás. Não há nada de ruim em querer algo melhor, o problema é quando a vida só se resume a isso.



domingo, 22 de junho de 2025

Alguém De Deus | Capítulo 3

 


3


     Tudo aconteceu numa tarde de inverno não tão rigoroso após uma maravilhosa programação da juventude onde as dependências daquela singela igreja Batista foi invadida por diversos jovens de outras denominações. Acreditava-se piamente por parte da liderança num enorme fiasco devido ao dia e às condições climáticas. Deus mais uma vez os surpreendeu permitindo que cerca de sessenta moças e rapazes ocupassem os bancos da congregação.

        André e Sulamita voltavam da atividade exaustos, porém transbordantes de alegria e satisfação. De mãos dadas eles caminhavam rumo a casa de Sula que ficava há três quarteirões da igreja. A conversa entre os dois era sobre trabalho e planos para o futuro. O sonho de André era se formar em economia, algo muito distante da profissão que ele exerce hoje. Já Sula, mesmo naquela época, desejava ser uma profissional no ramo da administração. Faltando alguns passos para chegarem ao portão, André mudou repentinamente de assunto deixando sua noiva sem saber o que falar.

        — Que tal marcarmos a data do nosso casamento?

        As mãos de Sulamita começaram a suar.

         — Você só pode estar de brincadeira comigo?

         — E porque eu estaria brincando com você? Já somos noivos, o que nos impede?

         — Ah, sei lá. Não tivemos uma festa de noivado, nem aliança nós temos.

        — Olha, eu vou entender se você não quiser e…

        — É claro que eu quero. — ela o abraçou e o beijou. — Podemos marcar para Maio do ano que vem. Maio é o mês das noivas. Aí, vai ser tão lindo.

        — Por mim está ótimo. Eu também gosto do mês de Maio. Que tal dia quatorze?

        Sula fingiu estar pensativa.

        — Amei a data, mas, porque exatamente quatorze? O que representa esta data pra você?

         — Meus tataravós chegaram a esta cidade no dia quatorze de maio de 1925, então, é uma forma de homenageá-los.

        — Aí, que lindo. Legal. Gostei. Ano que vem estaremos casados…

        — E felizes. — completou André recebendo beijos de sua amada.


*


     Hoje em dia André Simões segue recebendo beijos e abraços bem quentes quase que diariamente, porém não é Sulamita quem se encontra do outro lado e sim uma advogada linda e imponente. Realmente Fabiana Moraes chegou para fazer dos dias do maquinista uma verdadeira festa.

        — Diz pra mim, você pretende ser operador de metrô a vida toda? — Fabiana escolhia um filme no serviço de streaming sentada em seu sofá.

         — Não sei. Já faço isso há tanto tempo que não parei para pensar.

         — Vou ser sincera. Quando fui para o ensino médio eu já sabia o que queria. Uma advogada muito bem sucedida com escritório próprio e aqui estou eu. Porém não posso e nem devo parar por aqui. — Disse analisando um filme policial estrelado por Liam Neeson.

        — Que bom. E o que mais quer ser?

         — Juíza federal.

        André apertou os lábios.

         — Penso eu que, o sol nasceu para todos, mas nem todos têm a disposição ou condição de usufruir de seus benefícios, entende? Eu quero mais, muito mais e Ana Carolina seguirá os mesmos passos que a mãe dela.

        — Claro… — André não sabia o que responder.

        — E já vou logo dizendo: quem quiser me acompanhar nesta trajetória terá que alçar vôos bem maiores. Captou a mensagem?

        — Sim, sim.

        — Que bom! Agora que tal você ir até a cozinha e preparar aquela pipoca maravilhosa?

       O recado foi dado. Estaria André disposto a seguir em frente ao lado de sua mais nova namorada advogada? Isso só o tempo irá dizer.


*


     Logo após um longo período de aula brigando com o sono e principalmente com a fome, Miguel e Sula fizeram uma pausa no caminho de volta para casa. O lugar escolhido é uma lanchonete bastante conhecida, muito parecida com a do “M” porém com as iniciais B e K. Sulamita adorou a ideia. Após fazerem os pedidos, o casal universitário conversava sobre diversos assuntos: estudos, igreja, política, relacionamentos passados até que Miguel criou coragem para perguntar sobre o futuro deles.

        — Não acha que é muito cedo para esse tipo de conversa? Afinal de contas, ainda estamos nos conhecendo. — Ajeitou os cabelos atrás das orelhas.

        — Sim, claro, mas, você mesma sabe que crente não pode dar sopa para o azar e nós não somos mais adolescentes. Eu venho de um relacionamento e você também, então…

        — Quanto a isso você pode ficar sossegado. Sei muito bem como conduzir as coisas. — riu.

        — Ótimo! E outra coisa. Quero muito conhecer minha sogra. — esfregou as mãos.

         — Sua sogra?

         — Sim, minha sogra. Quando vou conhecê-la?

        — Não acha que estamos indo rápidos demais não? Estamos juntos há um pouco mais de duas semanas.

       Miguel olhou para a tela de led acima do balcão e viu que faltava pouco para o número da senha aparecer.

        — Talvez. — fez uma pausa. — Você está certa. Temos que ser cautelosos. Nada de apressarmos as coisas. — eles deram as mãos.

        Se Sula estava feliz? Sim, claro que estava e muito. Miguel chegou em sua vida na hora certa, no momento em que ela mais se sentia frágil e desamparada humanamente falando. Teria Deus ouvido o seu clamor?


*


      Todos sabem que mãe é um ser quase que sobrenatural. Mãe é aquela pessoa que se antecede aos possíveis problemas. É aquela que segura a sua mão dias antes de sua ruína. Sim, toda mãe sabe das coisas e como sábias que são, elas tentam nos alertar quanto ao perigo. Há alguns dias Miguel havia pedido a Sula para conhecer a tão famigerada dona Nair. Eis que é chegado o tão esperado dia. Para esse encontro, o pequeno empresário fez questão de levar uma caixa de bombons de uma famosa marca de chocolate, além é claro de sua simpatia de sempre.

        — A Sula teve a quem puxar. Realmente vocês são bem parecidas.

        — Você acha? Dizem que eu sou mais bonita.

       Todos riram.

       — E então, senhor Miguel Ramos, quais as suas pretensões com a minha única filha?

         — Mãe? — Sula arregalou os olhos.

         — Qual o problema? Você pode muito bem ser uma mulher adulta, mas ainda assim é minha filha e aí de quem lhe fizer mal. — olhou diretamente para Miguel.

         — Veja bem, dona Nair, sou um homem da igreja e…

         — Isso não quer dizer absolutamente nada. Meu finado marido também era da igreja e não valia o prato que comia. As pessoas precisam ser de Jesus.

        Miguel engoliu seco e respirou fundo.

        — A senhora está certíssima. Jesus é melhor que a igreja. Recapitulando. Sou um homem nascido e criado no evangelho, respeitador e cumpridor das minhas obrigações. Quero muito constituir uma família com Sula debaixo de sua benção, é lógico.

       Nair trocou olhares com a filha que a essa altura estava ruborizada.

       — Você é bom no discurso, senhor Miguel. Vocês têm a minha benção, porém, melhor que a minha bênção é a benção do Senhor. E agora passe pra cá esse chocolate.

         — Aí, mãe. — escondeu o rosto com as mãos.

      Foi uma noite agradável. Os três foram para mesa se deliciar com a famosa torta de frango preparada por Nair. Após o jantar, a idosa preferiu se recolher deixando os pombinhos a sós.

          — Sua mãe é uma “figuraça”.

         — Pois é, você não queria conhecer a sua sogra? Toma-lhe.

       Depois de muitos abraços, beijos e declarações, Miguel decidiu partir faltando poucos minutos para um novo dia. Após se despedir do namorado no portão, Sula é surpreendida com sua mãe parada na varanda.

        — Precisamos conversar sobre esse rapaz.



      


domingo, 15 de junho de 2025

Alguém De Deus | Capítulo 2

 


2


    Ela sabe que mais uma vez chegará atrasada no trabalho e que de novo será chamada atenção por sua gerente, mas a verdade é que Sulamita está dando a mínima para isso. De forma lenta e cuidadosa ela passa a manteiga no pão com mil coisas se passando em sua mente. Uma delas é sem dúvida alguma André, seu ex marido. Se bem que ela já fez de tudo para tentar tirá-lo da cabeça, mas volta e meia aquele sujeito mediano, meio calvo, com cara de intelectual surge como um furacão a desconcentrando. Tudo isso soa muito estranho para ela uma vez que ele já não faz mais parte de sua vida há pelo menos um ano. Sulamita Santos, este é o seu nome desde então. Aliás, este era o seu nome antes de se casar com André. O Simões ficou para trás, assim como o seu casamento e na época em que eles se separaram ela sentiu como se tirassem uma tonelada e meia de suas costas. Voltar a usar o sobrenome do pai foi como renascer.

      Desde quando houve a ruptura na relação, Sula tentou viver a vida o melhor que pode. Ela até cogitou a possibilidade de ingressar na faculdade e realizar um sonho antigo de se formar em administração, mas até o momento ela ainda não teve as condições necessárias para isso(a grana anda um pouco curta) porém ela sabe que no tempo certo Deus há de lhe abrir as portas. Novos tempos. Vida nova e para que esse novo ciclo começasse bem, nada melhor que uma mudança no visual. As longas madeixas negras deram lugar ao curto, na altura dos ombros e até mesmo uma leve emagrecida veio a calhar. Sulamita Santos está ainda mais linda do que antes.

        Diferente dos outros dias, o atraso foi somente de minutos, isso porque o trânsito ajudou bastante. Quando ela pôs os pés na drogaria onde trabalha há sete anos, sua colega de profissão já a aguardava com seu bom humor de sempre.

        — As vezes sinto uma pontinha de inveja de você, Gabi.

          — Há, sério? Inveja de mim, baixinha, gordinha e pobre ainda por cima. — falou separando as caixinhas de vitamina C.

        — É sério. Você está sempre de bom humor. Sempre disposta, sempre…

       — Eu apenas coloco em prática tudo aquilo que o Senhor nos ensinou. Já se esqueceu?

         — É verdade. Precisamos ser luz. Confesso que ando meio desligada quanto a isso. Prometo melhorar. O que temos para hoje? — pôs sua bolsa embaixo do balcão.

         — Hoje o dia está cheio. Nossa querida gerente quer que batemos a meta das vendas dessas vitaminas aqui.

         — Vamos nessa então.


*


      Na estação do metrô onde cerca de um milhão de pessoas circulam diariamente se acotovelando na tentativa de encontrar um lugar vago dentro da composição, Fabiana Moraes, advogada trabalhista se vê às voltas entre responder as mensagens enviadas dos clientes via whatsapp e prestar atenção para não ser derrubada na linha férrea. Normalmente ela costuma se deslocar até o trabalho de carro próprio ou de Uber, porém, especialmente hoje ela precisa ir até o fórum buscar alguns documentos e dar entrada noutros. Fabiana é uma mulher absurdamente bonita, nem tão alta e nem tão magra. Pele branca bem cuidada e um rosto fino marcante. É praticamente impossível passar por ela e não nota-la.

      Devido a pressa, Fabiana saiu de casa sem fazer o desjejum. Ela só teve tempo de deixar Ana Carolina na creche e seguir para o trabalho. Às oito e meia da manhã sua glicose já havia dado sinais de que precisava se alimentar. Foi quando o cheiro inconfundível do pão de queijo a capturou.

        — Por favor. Vou querer a promoção do pão de queijo, por gentileza.

      Mesmo estando de pé encostada no balcão do quiosque, a advogada pode esquecer por alguns minutos o turbilhão de coisas a serem feitas naquele dia para degustar tranquilamente daquelas delícias feitas de farinha, queijo e ovo. De repente seus olhos se cruzaram com os de um dos funcionários do metrô. Um sujeito com pinta de nerd. Bonito, mas nerd. André Simões fez o mesmo pedido que o dela, porém dispensou o copo de guaraná natural dando preferência ao café puro. Muito interessado na mulher branca de terninho cinza claro e pasta, o ferroviário observou o anel em seu dedo. Advogada. Um ótimo motivo para puxar assunto. Eles ainda trocaram alguns olhares até que André criou coragem para abordá-la.

        — Com licença. Posso tirar uma dúvida?

          — Sim? — Fabiana arqueou uma das sobrancelhas bem feitas.

         — Será que eu consigo me aposentar antes dos vinte cinco anos de contribuição como técnico em transporte metroviário?

         — E o que o faz pensar que sei essa questão? — encolheu os ombros.

        André apontou para o anel em seu dedo.

         — Ah, sim. Sei… é, você é bastante observador, hein?

       André abriu o sorriso.

        — Não creio que alguém tão jovem e saudável já queira se aposentar.

          — Não vejo mal algum programar o futuro.

       Após essa breve introdução o papo seguiu e para a surpresa de ambos ele fluiu de forma tranquila, saudável e houve até mesmo alguns pedidos extras de pão de queijo com café. A advogada não sabia como explicar, mas havia algo naquele cara que a atraía demais e quando algo é inexplicável, o melhor a ser feito é explorá-lo até o encontro de sua resolução.


*


     Os dias, as semanas e os meses passaram rápidos demais para o exigente gosto de Sulamita, mas exclusivamente hoje isso até que foi bom. Graças a santa intervenção de Deus, ela deu o ponto pé inicial na faculdade onde pretende passar cinco anos estudando administração. Ao pisar em sala de aula e vê-la repleta de pessoas correndo atrás do mesmo sonho a que ela aspira, foi como entrar numa corrida de cavalos. Literalmente o ramo é bem disputado.

        — Boa noite. Tem alguém sentado aqui?

         — Sim! Você. — respondeu um sujeito moreno de sorriso simpático.

         — Ah, sim. Legal.

         — Prazer, sou Miguel. — esticou o braço.

         — Sulamita.

        Miguel tinha um aperto de mão forte. Ele cheirava a loção pós barba, coisa que a agradou logo de cara. Um homem para ela, não tem a necessidade de ser tão bonito, mas cheiroso… esse sim é um quesito muito importante.

       A aula até que estava interessante, entretanto, a única coisa que não se encontrava de acordo com a conjuntura era o sono. Sula trabalhou o dia inteiro, andou de um lado para outro dentro daquela drogaria e ter que encarar mais quatro horas de aulas teóricas é bastante complicado para quem está acordado desde às seis da manhã. Quando o relógio por fim marcou vinte uma e trinta e o professor deu por encerrada a sua fala, ela rendeu glória ao Criador.

         — Após mil bocejos… — brincou Miguel pegando a mochila.

        — Nossa, eu estou morrendo de sono. — Se espreguiçou.

         — Eu também. Bom, então, até amanhã? — lhe estendeu a mão.

         — Se Deus quiser.

      Na saída do prédio, descendo as escadas, Sula pode ver Miguel colocando o capacete já montado em sua motocicleta, não seria nada mal uma carona, pensou enquanto o assistia deixando as dependências da universidade. Miguel.


*


    A amizade entre Sula e Gabi transcede aquele longo balcão da drogaria onde trabalham. Assim que foi contratada e iniciou suas jornadas diárias entre caixas e mais caixas de medicamentos, vitaminas, produtos para curativos entre outras coisas disponíveis que compõe uma farmácia, Sula soube que aquela moça de voz aguda porém macia seria sua amiga fiel. Além de boa profissional, boa filha e futura boa esposa, Gabriela é sim uma boa serva do Senhor. Gabi é o que podemos chamar de amiga confidente onde você pode tranquilamente despejar sobre ela suas queixas e segredos sem medo, sabendo que eles jamais virão à tona.

        — Miguel? Afinal de contas, você entrou para a universidade para estudar ou para arrumar namorado? — Gabi fazia a recontagem das cartelas de Dipirona.

        — Claro que foi para estudar, não é sua cabeçuda. — pegou uma caixa com frascos de xarope. — mas foi inevitável, o cara é realmente muito atraente…

        — Se eu fosse você focaria nos estudos.

        — É fácil falar para alguém que o prato dela virá quando se está de barriga cheia, não é, dona Gabi.

        — Meu Deus, quanto drama. Eu só estou falando que o momento em que você está vivendo é oportuno. Aproveite para dar uma guinada na vida. Penso eu que, um namorado agora só irá lhe atrapalhar.

        Ela parece minha mãe falando.

       — E quem disse que eu quero me relacionar com alguém agora? Eu só comentei sobre o meu colega de classe…

         — Pra cima de mim, Sula? Conheço bem uma mulher apaixonada.

       Sula abriu os braços e a boca.

        — Vá por mim. Volte a ser o que era antes. Uma mulher forte, uma mulher de oração. No tempo certo Deus vai te abençoar com um varão vindo da parte Dele.

      Pois é! Mais uma vez Gabi estava coberta de razão. Muitas vezes queremos agir por conta própria utilizando nossos falhos recursos deixando Deus de lado. Sula, assim como muitos, sabe bem o que deve ser feito, mas não o faz, optando por guerrear sozinho. O final é sempre trágico.

   


domingo, 8 de junho de 2025

Alguém De Deus | Capítulo 1

 


ALGUÉM DE DEUS 


1


    Há pessoas, por mais incrível que possa parecer, que acreditam piamente que, pelo fato delas se deslocarem ao templo para cultuar, Deus irá sanar de uma vez por todas os seus problemas e adversidades. Isso pode até acontecer porque Deus é soberano, mas na maioria das vezes, voltamos para os nossos lares ainda remoendo as dificuldades. Culto é para cultuar. O Senhor age e sempre agiu em nosso dia a dia, no cotidiano. André e Sulamita, infelizmente não vem atravessando uma boa fase dentro do casamento e isso não é de agora. Eles estão juntos há três anos e há três anos o relacionamento vem sendo um verdadeiro campo de guerra. Ninguém se entende. Ir às celebrações para o casal se tornou algo bastante complicado. Já houve época em que o silêncio entre eles antes e durante o culto era a única forma deles permanecerem lado a lado(acredite se quiser). Sulamita, assim como muitos, acreditava que o convívio com os irmãos, os louvores e até mesmo a palavra pudesse de alguma forma gerar um bem estar entre eles. Ledo engano. André, por sua vez, acha que, indo à igreja mesmo depois de uma discussão, pode ocasionar momentaneamente uma pausa na crise. André não acredita em fórmulas mágicas.

       — Você deveria abrir logo o jogo comigo. — disse Sulamita sem olhar para o marido que dirigia.

        — Quer mesmo recomeçar aquela conversa? — reduziu a velocidade. — não vai nem mesmo esperar chegarmos em casa?

        — Sabe o que eu acho engraçado? Você sempre acha que para tudo tem hora e local.

          — E não é? — parou no semáforo.

         — Pensa bem. Nós não estamos discutindo futebol ou política. É o futuro do nosso casamento que está em jogo aqui. E para isso não há hora e nem lugar.

        — Está bem. Você está certa. Sempre esteve…

         O sinal abriu e se não fosse a buzina de outro veículo logo atrás, André seguiria com seu carro parado em cima da faixa de pedestres.

         — As vezes penso que você está pouco se lixando para a gente, sabia? — falou Sulamita de forma soturna. — Acho que estou lutando sozinha.

         — Pronto! Agora você tem o poder de saber o que eu sinto? Caramba! — deu seta para o lado direito e entrou.

        — Está vendo? Você não está levando a sério e isso me irrita. Quando você vai amadurecer?

        — E quando você vai deixar de ser uma chata?

       A partir desse porto o diálogo foi suspenso e novamente o clima pesado se instaurou. Ao chegarem em casa cada um foi procurar o que fazer numa tentativa inútil de ficarem distante um do outro. O culto da noite foi maravilhoso. Deus falou poderosamente, porém não tocou no assunto casamento. Estaria Ele alheio a nossa situação, pensaram ambos.


*


     O casal Simões são membros de uma congregação modesta, de pouca expressão, e de uma liderança até que razoável há alguns longos anos. André ama sua igreja, ama o seu pastor, e o tem como um verdadeiro homem de Deus, mas há outro que ele considera  como um segundo pai na terra. Pastor Clodoaldo. Jovem ainda, mas de uma sabedoria gigantesca. Clodoaldo é alto e boa pinta, sempre que as coisas estão ruins é para ele que André liga marcando um gabinete.

        — Como assim, quer deixar o casamento? — Clodoaldo entrelaçou os dedos.

        — Pois é. Eu não estou feliz e nem a Sula.

       O escritório de Clodoaldo é pequeno, porém depois que se entra e ocupa uma das poltronas ele se agiganta.

        — Ontem, por exemplo, discutimos dentro do carro voltando para casa depois do culto vespertino. Ou seja, tudo aquilo que foi absorvido durante a celebração foi por água abaixo.

        — Se é que algo foi absorvido. Quais foram os louvores e o tema da mensagem?

      André abaixou os olhos.

       — Posso te fazer uma pergunta? — Clodoaldo descruzou as pernas.

      — Claro que pode. — encolheu os ombros.

        — Você a ama?

        — Se você me fizesse essa pergunta há três anos atrás, eu lhe diria que sim. Hoje já não tenho tanta certeza. Estou confuso.

        — Tem orado neste sentido? — Se recostou.

       — Na verdade, faz tempo que eu não oro nem por mim. Essa crise tem me deixado pra baixo, pastor.

       Clodoaldo levantou-se exibindo uma boa forma e os seus bem medidos um metro e noventa de altura.

        — Deus nunca esteve alheio quanto às nossas lutas. Tudo o que o Senhor quer é que nos rendemos a Ele. Quer que o convidamos para que de fato Ele venha fazer parte da nossa vida. A partir do momento em que não falamos mais com Ele em oração, a vida fica ainda mais difícil. Ficamos perdidos. Recomendo que você retorne com as orações e fale para Ele tudo o que tem vivido e sentido.

         — Sério? Devo falar que estou querendo me separar?

        — Principalmente.

     Clodoaldo só pode estar de brincadeira com a minha cara.


*


      Os pais de André infelizmente já se foram desta terra. Sua mãe faleceu quando o mesmo deixava o ensino fundamental e seu pai um ano antes dele se casar. Sulamita ainda possui sua mãezinha apesar de bastante idosa que a criou debaixo de muita dificuldade. Ela se lembra das vezes em que as duas, para ter o que comer a noite era preciso vender flores durante o dia, mas nem sempre as vendas supriam as necessidades. Graças a Deus, dona Nair Santos conseguiu se empregar em uma clínica médica exercendo o cargo de auxiliar de serviços gerais, hoje conhecido como conservação. Se para André, Clodoaldo é o seu esteio, Nair para a filha é terra firme. Se as coisas vão mal é para os braços dela que a atendente de farmácia corre.

        — Eu te conheço, Sula. O que anda acontecendo entre você e seu querido marido? — Disse Nair acariciando as longas madeixas negras da filha.

        — Muitas coisas. Não sei se a senhora está disposta a ouvir. — respondeu sentada entre as pernas da mãe.

        — Bom! Eu não pretendo sair de casa hoje e sou uma mulher aposentada, então… tempo eu tenho sobrando.

       Após inspirar e expirar, a esposa do ferroviário deixou sua mãe à pá de toda a situação. Nair ouviu tudo com a paciência de um monge budista.

         — Nossa! Não sabia que era tão sério assim. O que vocês pretendem fazer?

         — Na boa? Eu não sei. André infelizmente não é aberto a discussões sobre relacionamento, ele sempre arruma uma desculpa ou se esquiva. — parou de mexer nas unhas. — O que a senhora faria no meu lugar?

        — Vocês são pessoas adultas e adultos resolvem as coisas. Peça orientação ao Senhor, Ele não deixa ninguém sem resposta. É o que eu faria se estivesse em seu lugar.

       Não foi o que Sula gostaria de ter ouvido, mas pelo menos serviu para que ela se lembrasse do Deus vivo o qual ela serve desde a adolescência.


*


     Nada é mais desconfortável para um casal em crise do que a hora de irem para cama repousar depois de um longo dia. Um pouco mais cansado que Sulamita, André se permitiu deitar antes dela e enquanto a aguardava voltar do banho ele aproveitou para pôr sua leitura bíblica em dia usando o celular. Na verdade, tudo o que ele mais queria naquele momento era poder invadir aquele banheiro e ser feliz. Sula estava demorando mais que o habitual e isso reacendeu sua esperança de ter uma boa noite de amor. Normalmente, quando as coisas entre eles ainda era de paz e amor, essa demora no banho por parte de Sula era o indicativo que a mesma estava afim de uma bela noitada. Quando ele ainda sonhava em coquista-la e possivelmente ter algo sério com a morena clara de rosto redondo e longos cabelos negros feito uma noite sem lua, André por vezes se viu pensando em o quanto ele seria grato a Deus por ter aquela beldade como esposa.

       Sula deixou o banheiro já vestida com uma roupa de dormir a qual neutralizou totalmente toda a sua sensualidade. Moletom e uma blusa azul bebê do congresso de mulheres do ano retrasado.

        — Boa noite. — deitou-se.

        — Como assim, boa noite? Pelo que eu saiba ainda somos casados. — deixou o celular de lado.

        — E o que você quer dizer com isso? — Sula puxou um pouco mais o edredom para ela.

        — Nem um beijinho vai rolar?

         — Não! — encolheu-se.

         — Como não? Pelas minhas contas já passamos da trigésima noite no zero a zero…

         — Meu Deus, André, como vocês homens são insensíveis. O clima entre nós vai de mal a pior e a única coisa que passa pela sua cabeça é sexo?

        — Não. Claro que não. Há outras coisas passando também.

         — Tipo?

       Era a chance do operador de metrô pôr para fora tudo o que vem sendo represado em seu coração.

         — Se for para viver assim eu prefiro cair fora, entendeu?

        Sula engoliu seco.

         — Tem razão, eu acho que eu mereço ter alguém de Deus em minha vida e pelo visto você não é a pessoa mais indicada. — Sula aproveitou para esvaziar seu coração também.

         — Sim! Eu também penso da mesma forma. — bocejou. — pra mim já deu. Boa noite!

       Não houve resposta por parte de Sulamita.



terça-feira, 29 de abril de 2025

Jornada Policial

 

JORNADA POLICIAL 




Eu não me lembro ao certo de quando Clemente me falou isso, mas como em outras vezes, o velho estava certíssimo. Misturar o profissional com o pessoal ou deixar que um interfira no outro é algo que um detetive jamais pode permitir que aconteça. Pois é, foi o que pensei ao entrar naquele quarto de um apartamento singelo no penúltimo andar de um prédio modesto de quinze andares. O quarto de Amanda Rosa. Assim como o sobrenome, o quarto tinha a cor rosa predominante em todas as quatro paredes. Acomodados delicadamente em cima de uma mesinha de madeira pintada a mão estavam o notebook, uma lapela e fones de ouvido. O lugar não cheirava mal, porém não posso dizer que Amanda era uma menina fã de uma boa assepsia. Bem ao lado dessa mesa, jogada de qualquer forma, ainda vestida com trajes sensuais, estava ela, a vítima. Olhos arregalados. Olhos cinzas focando o nada. A boca semiaberta invadida por cabelos cacheados. Amanda Rosa, uma beleza de criatura. Uma mulher formidável, morta de um jeito brutal e covarde. Um dos policiais que fazia a segurança do lugar parou bem ao meu lado mexendo em seu bigode que, por falta de uma boa aparada lhe tapava a boca.

— Linda menina.

Reparei que o tal sargento da PM não tirava os olhos das nádegas da morta uma vez que a mesma se encontrava de bruços. Tive que concordar com ele. Amanda deveria ser mesmo uma garota incrível. 

— Alguém viu ou ouviu alguma coisa, sargento. Algum barulho?

O sargentão apoiou suas mãos no cinto e chamou um dos seus homens. A voz do militar era alta, firme e me feria os ouvidos.

— Tudo o que sabemos é que a vítima. – apontou para o corpo utilizando um lápis. – trabalhava vendendo conteúdos para maiores de dezoito anos na Internet.

Voltei a olhar para Amanda e dessa vez eu já não estava tão encantado como na primeira hora.

— Certo! Sabe me dizer se ela recebia clientes aqui?

Outra vez meus ouvidos sofreram com o decibéis emitidos pela voz do sargento ao meu lado.

— Não somos investigadores, Edgar. Deixamos esse trabalho para você, o que acha?

Apesar de achá-lo um porre e metido a sabichão, o sargento estava coberto de razão. O detetive ali era eu, Edgar Solene, era meu o dever de desvendar aquele caso. Foi o que fiz. Imediatamente comecei a verificar cada canto daquele quarto em busca de uma pista. Alguém pôs um ponto final na curta existência da cam-girl, alguém que provavelmente não a perdoou pelo fato dela conseguir ganhar a vida expondo seu corpo – um parente talvez — sabe-se lá. Tenho que dizer a verdade, eu estava deixando que o meu lado profissional batesse em retirada e permitindo que o homem Edgar assumisse a ocorrência. Isso não iria acabar bem. Clemente que o diga.

*

Enquanto os peritos executavam seu trabalho dentro do quarto, deixei o apartamento a fim de respirar ar puro e também tentar falar com Jaque, coisa que eu já havia tentado mais cedo, antes de chegar ao departamento de polícia. Nosso café da manhã não foi legal e tão pouco a nossa noite. Jaqueline era o grande amor da minha vida, mas nos últimos tempos ela vem me enchendo a paciência com assuntos sobre dieta. Baita saco!

— Oi, amor?

— Oi! – respondeu de forma seca.

— Ainda irritada comigo? – andei até a janela e contemplei toda extensão da cidade.

— Um pouco.

— Vai mesmo ficar aborrecida comigo só por causa de uma dieta?

— Edgar, eu estou pesando quase cem quilos. Vai mesmo querer ficar com uma mulher obesa do seu lado?

— Se essa mulher obesa for você, eu quero.

A minha história com Jaque começou quando fui convidado por um colega de trabalho para um churrasco na piscina. Assim que cheguei fui atacado pelos olhares das meninas que curtiam a festa usando seus biquínis ousados em seus corpos trabalhados nas melhores academias. Todos, até os caras dizem que sou boa pinta com meus um metro e oitenta e cinco de altura, cabelos negros, olhos castanhos e corpo esbelto. Fato era que, todos apostavam que ao fim da festa eu iria sair dali com alguma delas direto para um motel. Mas, quis o destino que eu fosse até a cozinha buscar cerveja quando dei de cara com uma deusa Ébano cortando alfaces para a salada. Jaqueline, minha Jaque. Nos olhamos. Ela sorriu e eu sorri de volta.

— A cerveja tá onde?

— No freezer grande. Você pode pegar uma pra mim também?

— Claro!

Jaque é gorda sim. É negra sim, mas é a mulher mais linda do universo. A mais carinhosa e gente boa que já conheci. Dá de mil a zero em outras que já namorei e isso em todos os sentidos. Naquela festa deixamos todos boquiabertos ao passarmos a tarde inteira batendo papo na beira da piscina. À noite, quando tudo já havia terminado, criei coragem para lhe pedir seu contato. Ela mesma não acreditou.

— O que? – franziu a testa. 

— Eu gostaria muito de vê-la novamente. Quem sabe no próximo final de semana?

— Cara, você está me zuando? – colocou as mãos na cintura.

— Não, lógico que não. Gostei mesmo de você. Que tal um cineminha?

Ela aceitou e aqui estamos nós batendo de frente com os preconceituosos de plantão e olhares de deboche a quase três anos. 

— Poxa, amor, faça a dieta comigo.

Cocei a cabeça. 

— Tá bom. Você venceu. Farei essa bendita dieta com você. – olhei para o fim do corredor.

— Ai, te amo! Vou passar no mercado e farei as compras e...

Esperava Jaque concluir o assunto quando os peritos deixaram o apartamento de Amanda.

— Você terá uma surpresa. 

— Hum! Que bom. Querida, vou desligar, estou no meio de uma investigação. A noite a gente se fala. Beijo e te amo.

Um dos peritos era um velho conhecido meu. Roni estava perto de se aposentar e mesmo assim fazia questão de prestar um excelente trabalho. Ele veio ao meu encontro segurando sua mala prateada a passos lentos e arrastados.

— Grande Solene.

— O que mandas, Roni?

— A garota foi morta por asfixia.

Um mata-leão, talvez, pensei. Roni seguiu com o relato.

— Outra coisa. Ela  não transou antes de ser morta.

— Conseguiu colher algum material? – eu estava começando a ficar nervoso.

— Não! Sem esperma. Pelo visto aconteceu alguma discussão e...

Precisei me controlar. A adrenalina percorria a mil por hora me impedindo de pensar direito, eu tinha que assumir o controle da situação urgente.  

— Está com pressa, Roni?

O perito consultou seu relógio digital em seu pulso.

— Ainda tenho meia hora. Por que?

— Venha comigo.

Voltei ao quarto de Amanda e lá estava ela. Linda, porém morta. Gostosa, porém estrangulada. O que você fez pra merecer isso, Amanda? Roni abriu sua mala de alumínio e pegou novas luvas de látex. Visivelmente contrariado ele retomou os trabalhos, mas agora sob minha supervisão. Com o auxílio de um cotonete ele colheu saliva da pobre vítima, mas eu não estava ali por aquilo, mas sim pelo que viria junto. 

— Opa! – disse Roni animadamente. 

 — Bingo! – exclamei vendo o pêlo pubiano na ponta do cotonete.

*

Eu deixei aquele prédio tão empolgado que tudo o que eu queria era me jogar nos braços de Jaque e esquecer da vida por pelo menos uma hora. Somente uma mulher como minha Jaqueline possui essa capacidade. Fazer com que um homem esqueça que existe vida depois dela não é para qualquer uma. Dentro do carro, voltando para o departamento fiquei a pensar em tudo o que havia acontecido naquele quarto rosa. Como eu soube que na boca da vítima morta poderia haver uma prova viva? Como? Foi sorte? Seja lá o que tenha sido, eu estava perto de resolver um assassinato brutal e restava somente Roni seguir com seu bom trabalho para que a justiça fosse feita. Virando a direita peguei uma via secundária que daria rapidamente no DP e também na rua da quitinete de Clemente. Olhei o relógio respirando aliviado por saber que daria tempo de fechar meu relatório. Decidi tomar um café com o meu bom e velho amigo.

— Clemente, sou eu. – desci do carro.

Clemente é um idoso gente fina que na juventude aprontou mil e uma travessuras. Teve cinco filhos, cada um com uma mulher diferente. Num passado bem distante Clemente foi escrivão da polícia civil, o melhor de sua época, mas precisou deixar a profissão por motivos que ele não gosta de lembrar, muito menos de falar. Hoje, doente, solitário e com uma aposentadoria de merda, ele precisa se virar como pode e contar com ajuda de terceiros – como eu por exemplo – para sobreviver.

— Vamos chegando. – disse ele arregalando os olhos por trás dos óculos de grau forte.

— Tem café aí? – apertei sua mão flácida e fria.

— Não, mas posso fazer.

A quitinete alugada nunca esteve tão suja e mal organizada. Fazer o que? A saúde de Clemente já não o permite mais fazer uma faxina, no máximo uma varrida e olhe lá.

— Está em qual caso agora, detetive? – encheu a leiteira de água. 

— Homicídio. – peguei o celular e lhe mostrei a foto.

— Uau! Que bundinha. – tossiu ao rir. – causa da morte?

— Mata-leão.

Água no fogo, hora de pegar o pote com o pó de café.

— Uma coisa é atirar numa pessoa. Outra coisa é matá-la aos poucos. É preciso ser muito covarde para isso. Já tem alguma pista?

Andei até a porta que dá acesso aos fundos.

— Acho que sim. Esse será rápido.

Ao ouvir isso Clemente emitiu um ruído de reprovação. 

— Nunca menospreze casos como esse, meu jovem. Já vi detetives melhores do que você surtar. Fique sempre alerta.

— Valeu pela dica.

O café ficou pronto vinte minutos depois. Fomos para sala onde ocupei uma cadeira de madeira tão antiga que parecia ter saído de um filme de época ou de um antiquário. Clemente, como sempre, sentou-se em sua poltrona de estimação. Ninguém, absolutamente ninguém está autorizado a se acomodar ali.

— Qual era a ocupação da vítima?

— Produzia conteúdos hot pela internet. 

O velho não entendeu nada.

— Ela se exibia diante de uma câmera de celular e vendia esse material.

— Ah, sim, como se fosse uma stripper antigamente.

— Exatamente. – pisquei.

— É, pelo visto as coisas se modernizaram, mas os crimes seguem sendo os mesmos. Em 1978 eu acompanhei um caso muito parecido. A mulher vendia o corpo e recebia seus clientes em sua própria casa. Certa ocasião um sujeito que não estava a fim de seguir as regras da prostituta, a enforcou e sumiu com o corpo. Deu um certo trabalho, mas conseguimos localizá-lo.

— Ele disse onde estava o corpo?

— O miserável a jogou num rio de piranhas. Só foi possível encontrar os ossos.

Terminei o meu café. Aproveitando que eu já iria para a cozinha Clemente me deu sua xícara.

— Um cliente insatisfeito? – perguntei.

— Provavelmente. 

Ao voltar para sala o meu velho amigo complementou sua fala.

— E lhe digo mais; ele ainda está na cidade e por perto. Vai por mim.

— Legal. Pode deixar comigo. Gostei do café. Você se redimiu da última vez. Estava uma bosta.

— Bosta é o teu pai que te colocou no mundo. – riu e tossiu.


*

Era sempre muito estranho deixar a casa de Clemente. Se por um lado ele às vezes – pra não dizer sempre – era chato e rabugento, por outro ele é um mar de conhecimento onde eu adorava mergulhar  profundamente. Muitas vezes não sentia vontade de ir embora. Esse dia foi um exemplo disso. Eu gostava do Clemente e se passasse uma semana sem visitá-lo sentia saudade. 

Cheguei ao departamento muito bem disposto e um pouco mais esperançoso. Se aquele pêlo pubiano fosse mesmo do assassino eu o teria preso ainda naquela semana. Antes de ocupar minha mesa resolvi deixar minha superior por dentro dos fatos. Como era exigido por ela, bati três vezes e aguardei.

— Entre!

Lá estava ela. Edna Marques. Delegada famosa por não dar mole e nem confiança a ninguém. Quase cinquenta anos. Cabelos longos e lisos que ornamentavam um rosto bonito e raivoso. Pra falar a verdade, se vi dona Edna rindo duas vezes em todo o tempo que fiquei na polícia foi muito. Ela me dava medo.

— Pode falar, agente Solene. 

— O caso Amanda Rosa. 

Edna seguia escrevendo. 

— Sim?

— Acho que temos uma prova...

— Acha ou tem certeza?

Putz!

— É! Certeza. 

Finalmente ela soltou a caneta, entrelaçou os dedos e olhou para mim com uma de suas sobrancelhas erguidas.

— Encontramos um pêlo pubiano dentro da boca da vítima e esse material já foi encaminhado para análise.

Minha chefe me olhava sem piscar. Eu me lembro que, assim que fui transferido para trabalhar naquele departamento, ouvia-se pelos corredores um assunto engraçado que mais tarde cairia em seus ouvidos. Alguns acreditavam que Edna Marques era um robô. E ao vê-la sem expressão e sem reação essa lembrança me veio à mente. 

— Um pêlo pubiano? – Edna tirou os olhos de mim rapidamente. 

— Sim, senhora. – engoli seco.

— Você está certo, Edgar. Devemos checar qualquer possibilidade. – ela pegou a caneta. – é só isso?

— Por enquanto.

*

Mesmo sabendo que precisava passar em casa, falar com meus pais e organizar algumas coisas, decidi ficar aquela noite com Jaque mais uma vez. Minha mãe havia dito várias vezes para que eu agilizasse o processo do casamento, mas a própria Jaqueline não queria formalizar nossa união. Morar junto para ela já era mais que o suficiente. Indo para casa da minha garota liguei para os coroas. Minha mãe atendeu.

— Vou dormir na Jaque hoje.

— Pra variar, não é? – disse rindo.

— Amanhã sem falta passo ai. Cadê o velho?

— Está aqui, lendo. Vou passar pra ele.

— Fala coroa!

— Oi, Edinho. Quando teremos aquela revanche de xadrez?

Putz, eu havia esquecido disso.

— Com certeza amanhã. Vai treinando pra não perder outra vez. 

— Treinar pra que? Tudo bem meu filho. Manda um beijo para Jaqueline. 

Encerramos a ligação e o meu coração estava em pedaços. Graças a Deus eu tinha meus velhos ainda vivos e era sempre muito bom aproveitá-los. Entrei em casa, Jaque me aguardava sentada na sala.

— Oi! – disse eu me sentando ao lado dela. – fez as compras?

— Sim! Nossa dieta começa oficialmente amanhã. – me beijou.

— Hum, então devemos aproveitar nosso último dia de guloseimas. Que tal uma pizza? – sugeri.

— Nada disso. – sentou em meu colo. – eu como às massas e você me come.

— Não é má ideia.

Essa era uma das regras dentro daquela casa. Sexo pelo menos quatro vezes por semana. Minha Jaque mandava bem na cama. As gordinhas são as melhores para mim. Transamos muito naquele sofá e depois saboreamos uma deliciosa pizza assistindo à série. Meu celular tocou, era Roni.

— O pentelho pertence a um tal de Rafael da Silva. Conhece?

— Não, mas vou conhecer.


Mesmo sob os protestos de Jaque eu fui até o IML naquela noite. Queria ver de perto o resultado das análises. Cheguei ao local perto da meia-noite com meu corpo me recompensando pelas duas horas de sexo com minha amada. De cara o sacana do Roni percebeu meu abatimento. 

— Mil desculpas por lhe tirar dos braços de sua mulher.

— Relaxa.

O corpo de Amanda Rosa ainda se encontrava lá, deitado, despido sobre uma mesa de aço inoxidável gelada. Ela era uma garota de família estruturada e bem financeiramente falando. O pai possuía uma rede de lojas de eletrônicos e a mãe uma engenheira civil bem requisitada. Amanda tinha uma irmã mais velha com família constituída. E ela enveredou-se por esse caminho tortuoso, perigoso e fatal. Fiz uma busca minuciosa sobre meninas que vendiam conteúdo erótico via internet e descobri que algumas conseguiam tirar por dia o equivalente ao meu salário mensal. É o que eu sempre digo, dinheiro é bom, mas é capaz de corromper até o mais santo de todos os santos.

— Além do pentelho, havia outro material genético na boca dela. O cidadão não chegou a ejacular, mas deixou seu lubrificante natural lá dentro. – falou me entregando o papel.

Rafael da Silva. Li.

— Pelo que sei ele já é fichado por agressão. Vai ser fácil pegá-lo.

— Certo! – olhei para o cadáver. – vai liberá-lo para o sepultamento?

— Sim! – respondeu Roni de maneira soturna.

Inspirei e expirei.

— Valeu, Roni, fez um bom trabalho. Vou nessa.

*

Antes de acionar a ignição algo me veio à mente. Algo que com certeza me deixaria no mínimo comovido, mas eu precisava tirar aquela história a limpo. Peguei meu celular. Abri o site de busca. Digitei correndo o endereço de um outro site de conteúdo erótico e...

— Amanda Rosa. – digitei no buscar desse site.

Pronto! Amanda surgiu em vários quadrinhos. Cliquei num aleatório respirando fundo. Ela apareceu vestida de enfermeira, seduzindo quem quer que estivesse assistindo. Ao final ela divulgou sua página no Instagram convidando a todos que a seguissem. Cliquei em outro vídeo. Amanda vestia apenas uma calcinha vermelha. Seios médios à mostra. Uma menina formosa, saudável e cheia de vida. Maldito Rafael, pensei saindo do site. Para evitar desconforto entre Jaque e eu, achei melhor limpar o histórico de buscas uma vez que minha namorada adorava mexer em meu aparelho. E por falar nela, liguei o carro e parti para casa dela.

*

Abri os olhos naquela manhã e logo dei falta de Jaque. Ainda sonolento caminhei tropeçando nos próprios pés. Meus ossos estalavam muito mais na parte da manhã nessa época e eu nunca procurei saber o motivo. Jaque tomava seu banho tranquilamente quando invadi o box a deixando com o couro cabeludo arrepiado com o susto.

— Merda! – vociferou.

— Preciso que lave minhas costas. – Usei de desculpas.

Já refeita, ela se virou me beijando.

— Só às costas?

Esqueci de falar, Jaqueline é farmacêutica, profissão que aspirou desde quando ainda cursava o fundamental indo de encontro ao desejo do pai. Seu Osvaldo queria que a filha seguisse a carreira militar. Jaque sempre foi uma pessoa de personalidade muito forte e graças a isso, hoje ela é uma mulher realizada.

Nada como começar o dia fazendo amor com a mulher amada debaixo de um chuveiro quente. Maravilha. O meu dia não seria fácil, por isso fiz questão de preparar meu físico e também o psicológico. Deixei Jaque na farmácia e parti para as buscas. Rafael da Silva precisava ser detido e tirado de circulação imediatamente. Pelo seu histórico isso já deveria ter sido feito a muito tempo, mas o que esperar de uma justiça cheia de rachaduras? Uma justiça que favorece somente os poderosos? O trabalho da polícia é formidável, necessário, o que atrapalha é justamente quando tudo sai das nossas mãos, quando perdemos o poder de decisão. Complicado demais.

Cheguei ao departamento. Peguei um café recém feito e fui direto para minha mesa. Ao me sentar verifiquei se havia novas mensagens no Whatsapp e sim, havia algumas. Minha mãe, dizendo que faria uma comida especial no jantar. A outra era de Jaque me informando sobre a dieta e também que ainda se encontrava excitada. Abafei minha risada com a mão livre, que fogo é esse? E a última, infelizmente não tão agradável. O sepultamento de Amanda Rosa. Minha vontade era de esmurrar a cara do demônio que a matou. Coube a mesa sofrer as consequências. Eu sei que isso não é bom. Clemente sempre me alertava quanto as minhas emoções. Nada de parcialidade. Um bom policial não toma partido. Você precisa fazer com que a lei se cumpra e só. Era verdade. Eu precisava me concentrar e enfiar a cara no trabalho.

*

Na hora do almoço lá estava eu conferindo as imagens da câmera de segurança do prédio onde Amanda Rosa morava. Um lugar bem movimentado. Entregas de fast food o tempo inteiro. Entra e sai de moradores. Crianças no parquinho e... Rafael da Silva, talvez. Me ajeitei na cadeira. O suspeito desceu da moto. Retirou o capacete. Meu coração demonstrou estar em bom funcionamento ao ver pela primeira vez a carranca do assassino. Era ele. Tinha que ser ele. O cara era enorme, com pinta de lutador. Ele entrou no prédio. Descruzei e voltei a cruzar as pernas com minha respiração no volume máximo. Filho da mãe. Certo tempo depois ele saiu e já não aparentava estar tão calmo. Ele a matou. Subiu na motocicleta e se foi. Beleza, agora eu tenho um rosto. Eu tenho você, Rafael da Silva. 


*

Clemente saiu da cozinha equilibrando uma caneca grande de chá de erva cidreira com leite. A bebida estava quente, pelando, do jeito que o ancião gosta. Na TV o noticiário local informa sobre as condições do tempo para o dia e o restante da semana. O ex-escrivão sorveu um belo gole do chá e o sabor o fez voltar na época em que exercia sua tarefa sempre com primazia. Clemente era o melhor, o mais safo e também o mais inteligente. Quantas foram as vezes em que investigadores recorreram a ele buscando auxílio. 

— Já pensou em mudar de função? – perguntou um policial na época. 

— Claro que já, mas penso eu que, se eu for para as ruas, vocês irão perder um bom escrivão que sou. Deixe-me agindo nos bastidores, será melhor.

Ele tinha razão. Mesmo sentado diante de uma máquina de escrever dentro de um departamento policial Clemente ajudou a solucionar crimes a níveis de complexidade absurdos. O bicho era fera.

Agora o âncora do noticiário passou a relatar sobre o caso Amanda Rosa tirando o velho escrivão de seu passado glorioso.

— O caso que chocou o país segue sem culpado. A polícia ainda não conseguiu localizar o paradeiro do assassino de Amanda Rosa. Nós conversamos com o policial responsável pelo caso, vamos ver um trecho.

Ao ver o amigo totalmente sem graça na frente das câmeras, Clemente não conseguiu conter a risada.

— Essa não vou deixar passar. – tomou mais chá.

— Investigador Edgar, o que podemos esperar da polícia nas próximas horas?

— Trabalho! É o que temos feito desde quando tudo começou. É um caso difícil, não é fácil pegar um criminoso numa cidade gigante como está, mas asseguro aos senhores que dentro de muito em breve teremos esse caso finalizado.

— Muito bom, meu garoto. Se saiu muito bem. – Clemente aplaudiu.

Ao terminar de falar ouviu-se uma buzina conhecida.

— Falando no diabo...

*

Falar com Clemente era quase que uma necessidade básica. Vou além disso. Conversar com ele me deixava desperto, em alerta, o velho recarregava minhas baterias e me fazia crer que eu poderia me doar sempre um pouco mais.

— Acabei de assistir sua entrevista na TV. Ficou uma merda. – disse abrindo o portão. 

— Ah, não diga. – eu não estava acreditando muito, por isso precisei parar e olhar nos olhos dele. – está falando sério?

— Claro que estou. Vamos entrando.

A desordem. O mal cheiro e a pouca luminosidade dentro daquela casa era algo marcante, porém nunca me incomodaram. Talvez porque o que eu sentia por ele me fazia passar por cima de coisas tipo essas. Mais do que a falta de organização e limpeza é o que sentimos pelo nosso semelhante. Pensei ao me jogar na cadeira.

— Pretende ir ao sepultamento?- pegou a leiteira.

— Sim!

— Fique em constante vigilância. O assassino sempre volta para ver com os próprios olhos os momentos finais de sua obra.

— Você acha que ele vai estar lá hoje? Eu acho que não.

Clemente era do tipo de pessoa que usava o silêncio a seu favor, era uma forma de se poupar ou talvez fazer com que a pessoa pense um pouco mais no que falou. Foi o que fiz. Meditei por um instante e em seguida ele completou.

— Um lema bastante antigo no meio policial, mas que funciona perfeitamente, “ver é melhor do que não ver", entendeu?

Eu tive que acatar.

— Sim!

— Quem matou essa garota tem sua autoconfiança nas alturas e também tem a certeza da impunidade. Normalmente os mais providos pensam assim. Por terem mais condições que os outros se acham os bambambãs. 

Ele estava mais do que certo.

— Por isso, meu filho, faça o que tem que fazer.

O clima estava começando a nos deixar para baixo, por isso resolvi brincar com meu amigo. 

— Estou precisando de um parceiro.

— Ah, não mesmo. Se você ainda fosse uma morena linda com um traseiro grande...

Rimos juntos. Rir faz muito bem. É um remédio que não se encontra facilmente por aí. Depois de tomar o café fraco de meu ancião preferido fui para casa me preparar para o que viria a seguir.

*

Familiares. Conhecidos. Curiosos e a imprensa. Todos amontoados atrás dos muros do cemitério. Todos indignados. Todos numa só voz exigindo justiça. Eu estava lá envolto por esses sentimentos também, mas até do que todos ali talvez. Meus olhos não paravam um minuto sequer. Eu escaneava aquela multidão em busca de um único rosto. Rafael da Silva. Assim que fui visto por jornalistas, imediatamente deixei-me ser abordado por eles com seus microfones, celulares entre outros aparelhos. Respondi de forma automática todas as perguntas tentando ao máximo não perder o foco. O corpo da pobre Amanda Rosa jazia num caixão branco com detalhes em dourado. Eu não me aproximei, mas disseram que ela estava linda. É de doer o coração. Havia um sacerdote que não desgrudou hora alguma dos pais da vítima e a todo momento lançava palavras doces de conforto. O cortejo teve seu início. Claro que não me movi. Eu não estava ali para aquilo. 

*

Permaneci no mesmo lugar observando cada pessoa que deixava o cemitério ainda aos lamentos pela vida de Amanda. Havia até quem levasse faixas e pequenas placas com a foto e o nome da morta. O meu alvo não apareceu. Pela primeira vez em muito tempo Clemente havia errado? Havia dado um passo em direção a saída quando meus sentidos se aguçaram em relação a um cidadão que eu não tinha visto antes. Estatura baixa, porte de lutador de MMA, cabeça raspada, seu rosto ruborizado sinalizava o quanto sua revolta e tristeza vinham direto de suas vísceras. Pensei em abordá-lo, porém pensei melhor. O que Clemente faria se estivesse em meu lugar? Ele passou por mim gesticulando, segurando uma garrafa de água pela metade conversando com uma mulher de meia idade que deduzi ser sua mãe. Lá fora eles ocuparam um carro grande de cor prata e se foram. Lógico que parti atrás.

*

Três quilômetros depois eles pararam em frente a uma academia não tão famosa, mas muito movimentada na época. Ninguém desceu do veículo, os dois pareciam estar discutindo. Ouviu-se algumas buzinadas até alguém, um sujeito com pinta de segurança de baile rave apareceu e se debruçou na janela do motorista. Parei dois veículos atrás e aguardei. Relaxei no banco fazendo descer os meus ombros. Meu Deus, como eu estava estressado e fiquei ainda mais com a ligação repentina de Edna Marques, minha chefe.

— Solene falando.

— Pensei que me ligaria assim que saísse do sepultamento.

Caracas, que vacilo. Pensei fazendo uma careta. Nesse meio tempo o cidadão se afastou e o carro com o meu suspeito disparou rua afora. O segurança de rave voltara para dentro do estacionamento.

— Peço desculpas. Tive que sair atrás de um suspeito. Estou na cola dele.

— Se for isso mesmo, tudo bem. Temos que encerrar logo esse caso.

Jura?

— Qualquer novidade preciso que me ligue imediatamente, entendeu, agente Solene?

— Copiado!

Eu sempre fui um cara que soube administrar bem as coisas, independente se eu estava sob forte pressão ou não. Apesar da pouca idade e de não possuir tanta experiência na questão profissional, antes do caso Amanda Rosa, fui incumbido de outros que, à primeira vista espantara agentes com mais bagagens e tempo de casa. Graças a Deus consegui solucionar a todos. Assim que Edna encerrou a ligação, guardei o aparelho no bolso e desci. Anotei mentalmente o endereço e entrei. 

Tudo de mais moderno que uma academia podia possuir, aquela tinha sobrando. Eu mal pisara no local e uma moça bonita em trajes esportivos que valorizava bastante seu shape me abordou.

— Olá! Vamos marcar uma avaliação? – ela tinha aparelhos nos dentes.

— Mais tarde. – respondi olhando ao redor. – na verdade estou à procura de alguém. 

— Posso ajudar? – ela seguia rindo.

— Acho que sim. – dissimulei. – Rafael da Silva. Ele treina aqui?

A menina encantadora desfez o sorriso puxando da memória.

— O nome não me soa estranho, mas não estou associando a pessoa. Vou dar uma olhadinha nas fichas.

— Por favor.

Não demorou muito para que ela voltasse segurando uma ficha e o que era melhor, com foto.

— Sim, ele treina aqui, mas faz algum tempo que ele não aparece.

— Quanto tempo, mais ou menos? – segurei o papel gravando o endereço contido nele. 

— Uma semana. Eu acho. – ela olhou para mim desconfiada. – Você é o que dele?

Precisei ser rápido.

— Treinamos juntos a muito tempo. Mas tudo bem.

Eu não tinha outra coisa em mente a não ser ir até a residência do suspeito e lhe dar voz de prisão. Ao deixar o local fiz exatamente o que meu instinto policial me ordenou fazer, “ver é melhor do que não ver”

*

No caminho para a casa de Rafael da Silva, pedi que fizessem uma busca um pouco mais cuidadosa no histórico do mesmo e o que descobri foi um tanto quanto desanimador. O sujeito era lutador de jiu Jitsu e com um agravante; era bom no que fazia. Rico e possuía porte de arma. Seria complicado. Claro que eu não poderia agir sozinho nessa.

— Doutora Edna, estou seguindo para o endereço de Rafael da Silva. Solicito reforços. 

— Mande-me o endereço, agente. Chegaremos em minutos. 

Chegaremos?

Ótimo! A imponente Edna Marques estaria presente na festa. Parei meu carro a quinhentos metros da casa e aguardei.


*

Sabe aquele sentimento de que você precisa fazer algo e rápido? Pois é, foi o que senti aguardando a chegada dos meus companheiros. Eu sei que poucas coisas o ser humano consegue fazer sozinho, porém outras é preciso auxílio de terceiros, mas cá entre nós, todo o processo de investigação eu fiz praticamente sozinho. O direito de prender o culpado pela morte de Amanda era todo meu. Mas em contrapartida eu estaria desobedecendo as ordens da terrível Edna Marques. Quis o destino que, enquanto eu mofava dentro do carro, o meu alvo aparecesse bem no portão de sua casa. O cara era realmente um dinossauro. O momento de sair e lhe dar voz de prisão não podia esperar. Hora de quebrar as regras, agente Solene.

Rafael da Silva estava lá, parado, celular colado ao ouvido direito, calça jeans, chinelos e camiseta regata com a logomarca da academia onde treina. Me aproximei já me identificando.

— Você é Rafael da Silva?

Ele olhou para mim com olhos de fúria. Lentamente ele encerrou a ligação enquanto a outra pessoa ainda falava.

— Qual o problema? – sua voz era grossa e forte.

— Amanda Rosa. Conheceu?

Rafael intimidava qualquer um. 

— Sim!

— Quando foi a última vez em que esteve com ela? – resolvi me impor também.

— Nunca! Eu a conheço porque já consumi alguns de seus conteúdos. 

O filho da mãe sabe mentir.

— Está dizendo que nunca esteve com ela pessoalmente?

Antes de me responder, seu pomo de Adão subiu e desceu várias vezes.

— Por um acaso isso aqui é um interrogatório? Se for, a partir de agora só falo na presença do meu advogado...

Rafael, filho de papai rico, protegidinho, costas quentes. Eu, Edgar Solene, um simples detetive da polícia civil que recebeu essa missão. Rafael da Silva, lutador profissional de Jiu Jitsu, cheio de energia, sangue nos olhos e faca nos dentes. Eu me encontrava diante de um problemão daqueles.

— Então, detetive, acho que podemos resolver esse assunto aqui mesmo. É só me passar sua conta...

— Acha mesmo que sairá dessa impune? O senhor está preso por dois crimes: assassinato de Amanda Rosa e por tentar subornar uma autoridade policial. – coloquei minha mão no coldre.

Foi tudo muito rápido, mas do meu ponto de vista tudo aconteceu em câmera lenta. A certeza da impunidade fez com que Rafael cometesse outro crime. Ele desferiu-me um cruzado de direita tão forte que vi tudo ficar escuro. Eu precisava me manter consciente, caso contrário teria o mesmo destino que Amanda. O segundo golpe foi ainda mais forte, não posso desmaiar. Algo precisava ser feito rápido, então vamos nessa.

Com mãos poderosas meu agressor girou meu corpo e me aplicou um mata-leão. Toda essa disputa ocorreu ali, na rua, ao ar livre. Eu estava sendo estrangulado, mas a minha mente ainda funcionava perfeitamente. Minhas pernas e braços perderam sua rigidez, levando ao agressor a acreditar que a luta estava ganha. Ele relaxou como era o esperado. Era a minha vez de agir. Mesmo de costas segurei a cabeça do dinossauro e enterrei os polegares em seus olhos. O seu grito foi gutural me deixando surdo momentaneamente. Eu estava livre das mãos de Rafael. Tossindo lhe dei outra vez voz de prisão.

— Deite no chão com as mãos na cabeça.

A montanha de músculos ainda gritava com as mãos nos olhos quando Edna e o restante da tropa chegou.

— Agente Solene, o senhor está bem? – falou olhando para Rafael caído na calçada.

— Acho que sim.

A situação foi tão intensa que só depois da chegada do reforço foi que reparei que minha boca sangrava.

— Algemem ele. – vociferou Edna. – vá cuidar desses ferimentos, conversamos mais tarde.

O miserável do Rafael foi levado sob protestos do mesmo. Ele berrava a plenos pulmões que não ficaria preso, que seu pai tinha amigos e conhecidos dentro da justiça e bla, bla, bla. Eu não o ceguei, mas o deixei com os olhos bem prejudicados. Me acomodei dentro da viatura a fim de me restabelecer, meu celular vibrou no bolso. Era Jaque preocupada.

— Oi, amor, como você está?

— Bem! Eu acho.

— Você está em todos os canais e já há vídeos da prisão do bandido.

Nossa, que rapidez.

— Conseguimos pegá-lo. – falei me ajeitando.

— Conseguimos uma ova. No vídeo só aparece você brigando com ele.

Sério que filmaram nossa luta? A internet é algo assustador. 

— Mais tarde nos vemos. Ainda tenho que ir para o departamento fechar relatórios...

— Tudo bem. Meu herói terá uma surpresa hoje a noite.

Encerramos a ligação juntos. Como eu amava Jaque. Ao me virar em direção a janela do carona, dei de cara com o rosto lindo de minha superior. 

— Sim, senhora?

— Relaxa! Só vim te agradecer. Fez um bom trabalho.

Eu estava nervoso, envergonhado e minhas palavras saíam atropeladas.

— Eu desobedeci suas ordens...

— Você é um bom policial, Edgar. Peça chave da minha equipe. Nem sempre estarei com a razão e cabe ao agente perceber isso. Essa era talvez sua única chance de pegá-lo e você não a desperdiçou. Tem o meu respeito. 

Dito isso, ela se afastou.

Atualmente 

Edgar está terminando de digitar algo em sua sala quando seu telefone toca. Ele atendeu ao primeiro toque já sabendo de quem se tratava.

— Oi, querida, e ai? – falou olhando para o porta-retrato onde há três pequenas fotos. Uma delas está Clemente dando o dedo do meio e anexo, em letras grandes escrito saudades eternas.

— Amor, vamos ter outra menina. – Jaque o notificou chorando com a enfermeira ainda a examinando no aparelho de ultrassonografia. 

— Sério? Meu Deus, a Sofia vai dar saltos de alegria quando souber que terá uma irmãzinha.

— É mesmo. E então, será mesmo Amanda?

Edgar refletiu por um instante. 

— Amor?

— Sim! Será Amanda sim.

— Um belo nome para a nossa nova princesinha. 

Jaque ainda falava quando um policial entrou na sala às pressas.

— Doutor, nosso agente localizou o alvo. O que faremos?

— Peça a ele que aguarde o reforço chegar.

Na mesma hora Edgar lembrou-se de algo que já havia acontecido com ele há algum tempo. 

— Negativo! Peça a ele que efetue a prisão.

Fim