terça-feira, 29 de abril de 2025

Jornada Policial

 

JORNADA POLICIAL 




Eu não me lembro ao certo de quando Clemente me falou isso, mas como em outras vezes, o velho estava certíssimo. Misturar o profissional com o pessoal ou deixar que um interfira no outro é algo que um detetive jamais pode permitir que aconteça. Pois é, foi o que pensei ao entrar naquele quarto de um apartamento singelo no penúltimo andar de um prédio modesto de quinze andares. O quarto de Amanda Rosa. Assim como o sobrenome, o quarto tinha a cor rosa predominante em todas as quatro paredes. Acomodados delicadamente em cima de uma mesinha de madeira pintada a mão estavam o notebook, uma lapela e fones de ouvido. O lugar não cheirava mal, porém não posso dizer que Amanda era uma menina fã de uma boa assepsia. Bem ao lado dessa mesa, jogada de qualquer forma, ainda vestida com trajes sensuais, estava ela, a vítima. Olhos arregalados. Olhos cinzas focando o nada. A boca semiaberta invadida por cabelos cacheados. Amanda Rosa, uma beleza de criatura. Uma mulher formidável, morta de um jeito brutal e covarde. Um dos policiais que fazia a segurança do lugar parou bem ao meu lado mexendo em seu bigode que, por falta de uma boa aparada lhe tapava a boca.

— Linda menina.

Reparei que o tal sargento da PM não tirava os olhos das nádegas da morta uma vez que a mesma se encontrava de bruços. Tive que concordar com ele. Amanda deveria ser mesmo uma garota incrível. 

— Alguém viu ou ouviu alguma coisa, sargento. Algum barulho?

O sargentão apoiou suas mãos no cinto e chamou um dos seus homens. A voz do militar era alta, firme e me feria os ouvidos.

— Tudo o que sabemos é que a vítima. – apontou para o corpo utilizando um lápis. – trabalhava vendendo conteúdos para maiores de dezoito anos na Internet.

Voltei a olhar para Amanda e dessa vez eu já não estava tão encantado como na primeira hora.

— Certo! Sabe me dizer se ela recebia clientes aqui?

Outra vez meus ouvidos sofreram com o decibéis emitidos pela voz do sargento ao meu lado.

— Não somos investigadores, Edgar. Deixamos esse trabalho para você, o que acha?

Apesar de achá-lo um porre e metido a sabichão, o sargento estava coberto de razão. O detetive ali era eu, Edgar Solene, era meu o dever de desvendar aquele caso. Foi o que fiz. Imediatamente comecei a verificar cada canto daquele quarto em busca de uma pista. Alguém pôs um ponto final na curta existência da cam-girl, alguém que provavelmente não a perdoou pelo fato dela conseguir ganhar a vida expondo seu corpo – um parente talvez — sabe-se lá. Tenho que dizer a verdade, eu estava deixando que o meu lado profissional batesse em retirada e permitindo que o homem Edgar assumisse a ocorrência. Isso não iria acabar bem. Clemente que o diga.

*

Enquanto os peritos executavam seu trabalho dentro do quarto, deixei o apartamento a fim de respirar ar puro e também tentar falar com Jaque, coisa que eu já havia tentado mais cedo, antes de chegar ao departamento de polícia. Nosso café da manhã não foi legal e tão pouco a nossa noite. Jaqueline era o grande amor da minha vida, mas nos últimos tempos ela vem me enchendo a paciência com assuntos sobre dieta. Baita saco!

— Oi, amor?

— Oi! – respondeu de forma seca.

— Ainda irritada comigo? – andei até a janela e contemplei toda extensão da cidade.

— Um pouco.

— Vai mesmo ficar aborrecida comigo só por causa de uma dieta?

— Edgar, eu estou pesando quase cem quilos. Vai mesmo querer ficar com uma mulher obesa do seu lado?

— Se essa mulher obesa for você, eu quero.

A minha história com Jaque começou quando fui convidado por um colega de trabalho para um churrasco na piscina. Assim que cheguei fui atacado pelos olhares das meninas que curtiam a festa usando seus biquínis ousados em seus corpos trabalhados nas melhores academias. Todos, até os caras dizem que sou boa pinta com meus um metro e oitenta e cinco de altura, cabelos negros, olhos castanhos e corpo esbelto. Fato era que, todos apostavam que ao fim da festa eu iria sair dali com alguma delas direto para um motel. Mas, quis o destino que eu fosse até a cozinha buscar cerveja quando dei de cara com uma deusa Ébano cortando alfaces para a salada. Jaqueline, minha Jaque. Nos olhamos. Ela sorriu e eu sorri de volta.

— A cerveja tá onde?

— No freezer grande. Você pode pegar uma pra mim também?

— Claro!

Jaque é gorda sim. É negra sim, mas é a mulher mais linda do universo. A mais carinhosa e gente boa que já conheci. Dá de mil a zero em outras que já namorei e isso em todos os sentidos. Naquela festa deixamos todos boquiabertos ao passarmos a tarde inteira batendo papo na beira da piscina. À noite, quando tudo já havia terminado, criei coragem para lhe pedir seu contato. Ela mesma não acreditou.

— O que? – franziu a testa. 

— Eu gostaria muito de vê-la novamente. Quem sabe no próximo final de semana?

— Cara, você está me zuando? – colocou as mãos na cintura.

— Não, lógico que não. Gostei mesmo de você. Que tal um cineminha?

Ela aceitou e aqui estamos nós batendo de frente com os preconceituosos de plantão e olhares de deboche a quase três anos. 

— Poxa, amor, faça a dieta comigo.

Cocei a cabeça. 

— Tá bom. Você venceu. Farei essa bendita dieta com você. – olhei para o fim do corredor.

— Ai, te amo! Vou passar no mercado e farei as compras e...

Esperava Jaque concluir o assunto quando os peritos deixaram o apartamento de Amanda.

— Você terá uma surpresa. 

— Hum! Que bom. Querida, vou desligar, estou no meio de uma investigação. A noite a gente se fala. Beijo e te amo.

Um dos peritos era um velho conhecido meu. Roni estava perto de se aposentar e mesmo assim fazia questão de prestar um excelente trabalho. Ele veio ao meu encontro segurando sua mala prateada a passos lentos e arrastados.

— Grande Solene.

— O que mandas, Roni?

— A garota foi morta por asfixia.

Um mata-leão, talvez, pensei. Roni seguiu com o relato.

— Outra coisa. Ela  não transou antes de ser morta.

— Conseguiu colher algum material? – eu estava começando a ficar nervoso.

— Não! Sem esperma. Pelo visto aconteceu alguma discussão e...

Precisei me controlar. A adrenalina percorria a mil por hora me impedindo de pensar direito, eu tinha que assumir o controle da situação urgente.  

— Está com pressa, Roni?

O perito consultou seu relógio digital em seu pulso.

— Ainda tenho meia hora. Por que?

— Venha comigo.

Voltei ao quarto de Amanda e lá estava ela. Linda, porém morta. Gostosa, porém estrangulada. O que você fez pra merecer isso, Amanda? Roni abriu sua mala de alumínio e pegou novas luvas de látex. Visivelmente contrariado ele retomou os trabalhos, mas agora sob minha supervisão. Com o auxílio de um cotonete ele colheu saliva da pobre vítima, mas eu não estava ali por aquilo, mas sim pelo que viria junto. 

— Opa! – disse Roni animadamente. 

 — Bingo! – exclamei vendo o pêlo pubiano na ponta do cotonete.

*

Eu deixei aquele prédio tão empolgado que tudo o que eu queria era me jogar nos braços de Jaque e esquecer da vida por pelo menos uma hora. Somente uma mulher como minha Jaqueline possui essa capacidade. Fazer com que um homem esqueça que existe vida depois dela não é para qualquer uma. Dentro do carro, voltando para o departamento fiquei a pensar em tudo o que havia acontecido naquele quarto rosa. Como eu soube que na boca da vítima morta poderia haver uma prova viva? Como? Foi sorte? Seja lá o que tenha sido, eu estava perto de resolver um assassinato brutal e restava somente Roni seguir com seu bom trabalho para que a justiça fosse feita. Virando a direita peguei uma via secundária que daria rapidamente no DP e também na rua da quitinete de Clemente. Olhei o relógio respirando aliviado por saber que daria tempo de fechar meu relatório. Decidi tomar um café com o meu bom e velho amigo.

— Clemente, sou eu. – desci do carro.

Clemente é um idoso gente fina que na juventude aprontou mil e uma travessuras. Teve cinco filhos, cada um com uma mulher diferente. Num passado bem distante Clemente foi escrivão da polícia civil, o melhor de sua época, mas precisou deixar a profissão por motivos que ele não gosta de lembrar, muito menos de falar. Hoje, doente, solitário e com uma aposentadoria de merda, ele precisa se virar como pode e contar com ajuda de terceiros – como eu por exemplo – para sobreviver.

— Vamos chegando. – disse ele arregalando os olhos por trás dos óculos de grau forte.

— Tem café aí? – apertei sua mão flácida e fria.

— Não, mas posso fazer.

A quitinete alugada nunca esteve tão suja e mal organizada. Fazer o que? A saúde de Clemente já não o permite mais fazer uma faxina, no máximo uma varrida e olhe lá.

— Está em qual caso agora, detetive? – encheu a leiteira de água. 

— Homicídio. – peguei o celular e lhe mostrei a foto.

— Uau! Que bundinha. – tossiu ao rir. – causa da morte?

— Mata-leão.

Água no fogo, hora de pegar o pote com o pó de café.

— Uma coisa é atirar numa pessoa. Outra coisa é matá-la aos poucos. É preciso ser muito covarde para isso. Já tem alguma pista?

Andei até a porta que dá acesso aos fundos.

— Acho que sim. Esse será rápido.

Ao ouvir isso Clemente emitiu um ruído de reprovação. 

— Nunca menospreze casos como esse, meu jovem. Já vi detetives melhores do que você surtar. Fique sempre alerta.

— Valeu pela dica.

O café ficou pronto vinte minutos depois. Fomos para sala onde ocupei uma cadeira de madeira tão antiga que parecia ter saído de um filme de época ou de um antiquário. Clemente, como sempre, sentou-se em sua poltrona de estimação. Ninguém, absolutamente ninguém está autorizado a se acomodar ali.

— Qual era a ocupação da vítima?

— Produzia conteúdos hot pela internet. 

O velho não entendeu nada.

— Ela se exibia diante de uma câmera de celular e vendia esse material.

— Ah, sim, como se fosse uma stripper antigamente.

— Exatamente. – pisquei.

— É, pelo visto as coisas se modernizaram, mas os crimes seguem sendo os mesmos. Em 1978 eu acompanhei um caso muito parecido. A mulher vendia o corpo e recebia seus clientes em sua própria casa. Certa ocasião um sujeito que não estava a fim de seguir as regras da prostituta, a enforcou e sumiu com o corpo. Deu um certo trabalho, mas conseguimos localizá-lo.

— Ele disse onde estava o corpo?

— O miserável a jogou num rio de piranhas. Só foi possível encontrar os ossos.

Terminei o meu café. Aproveitando que eu já iria para a cozinha Clemente me deu sua xícara.

— Um cliente insatisfeito? – perguntei.

— Provavelmente. 

Ao voltar para sala o meu velho amigo complementou sua fala.

— E lhe digo mais; ele ainda está na cidade e por perto. Vai por mim.

— Legal. Pode deixar comigo. Gostei do café. Você se redimiu da última vez. Estava uma bosta.

— Bosta é o teu pai que te colocou no mundo. – riu e tossiu.


*

Era sempre muito estranho deixar a casa de Clemente. Se por um lado ele às vezes – pra não dizer sempre – era chato e rabugento, por outro ele é um mar de conhecimento onde eu adorava mergulhar  profundamente. Muitas vezes não sentia vontade de ir embora. Esse dia foi um exemplo disso. Eu gostava do Clemente e se passasse uma semana sem visitá-lo sentia saudade. 

Cheguei ao departamento muito bem disposto e um pouco mais esperançoso. Se aquele pêlo pubiano fosse mesmo do assassino eu o teria preso ainda naquela semana. Antes de ocupar minha mesa resolvi deixar minha superior por dentro dos fatos. Como era exigido por ela, bati três vezes e aguardei.

— Entre!

Lá estava ela. Edna Marques. Delegada famosa por não dar mole e nem confiança a ninguém. Quase cinquenta anos. Cabelos longos e lisos que ornamentavam um rosto bonito e raivoso. Pra falar a verdade, se vi dona Edna rindo duas vezes em todo o tempo que fiquei na polícia foi muito. Ela me dava medo.

— Pode falar, agente Solene. 

— O caso Amanda Rosa. 

Edna seguia escrevendo. 

— Sim?

— Acho que temos uma prova...

— Acha ou tem certeza?

Putz!

— É! Certeza. 

Finalmente ela soltou a caneta, entrelaçou os dedos e olhou para mim com uma de suas sobrancelhas erguidas.

— Encontramos um pêlo pubiano dentro da boca da vítima e esse material já foi encaminhado para análise.

Minha chefe me olhava sem piscar. Eu me lembro que, assim que fui transferido para trabalhar naquele departamento, ouvia-se pelos corredores um assunto engraçado que mais tarde cairia em seus ouvidos. Alguns acreditavam que Edna Marques era um robô. E ao vê-la sem expressão e sem reação essa lembrança me veio à mente. 

— Um pêlo pubiano? – Edna tirou os olhos de mim rapidamente. 

— Sim, senhora. – engoli seco.

— Você está certo, Edgar. Devemos checar qualquer possibilidade. – ela pegou a caneta. – é só isso?

— Por enquanto.

*

Mesmo sabendo que precisava passar em casa, falar com meus pais e organizar algumas coisas, decidi ficar aquela noite com Jaque mais uma vez. Minha mãe havia dito várias vezes para que eu agilizasse o processo do casamento, mas a própria Jaqueline não queria formalizar nossa união. Morar junto para ela já era mais que o suficiente. Indo para casa da minha garota liguei para os coroas. Minha mãe atendeu.

— Vou dormir na Jaque hoje.

— Pra variar, não é? – disse rindo.

— Amanhã sem falta passo ai. Cadê o velho?

— Está aqui, lendo. Vou passar pra ele.

— Fala coroa!

— Oi, Edinho. Quando teremos aquela revanche de xadrez?

Putz, eu havia esquecido disso.

— Com certeza amanhã. Vai treinando pra não perder outra vez. 

— Treinar pra que? Tudo bem meu filho. Manda um beijo para Jaqueline. 

Encerramos a ligação e o meu coração estava em pedaços. Graças a Deus eu tinha meus velhos ainda vivos e era sempre muito bom aproveitá-los. Entrei em casa, Jaque me aguardava sentada na sala.

— Oi! – disse eu me sentando ao lado dela. – fez as compras?

— Sim! Nossa dieta começa oficialmente amanhã. – me beijou.

— Hum, então devemos aproveitar nosso último dia de guloseimas. Que tal uma pizza? – sugeri.

— Nada disso. – sentou em meu colo. – eu como às massas e você me come.

— Não é má ideia.

Essa era uma das regras dentro daquela casa. Sexo pelo menos quatro vezes por semana. Minha Jaque mandava bem na cama. As gordinhas são as melhores para mim. Transamos muito naquele sofá e depois saboreamos uma deliciosa pizza assistindo à série. Meu celular tocou, era Roni.

— O pentelho pertence a um tal de Rafael da Silva. Conhece?

— Não, mas vou conhecer.


Mesmo sob os protestos de Jaque eu fui até o IML naquela noite. Queria ver de perto o resultado das análises. Cheguei ao local perto da meia-noite com meu corpo me recompensando pelas duas horas de sexo com minha amada. De cara o sacana do Roni percebeu meu abatimento. 

— Mil desculpas por lhe tirar dos braços de sua mulher.

— Relaxa.

O corpo de Amanda Rosa ainda se encontrava lá, deitado, despido sobre uma mesa de aço inoxidável gelada. Ela era uma garota de família estruturada e bem financeiramente falando. O pai possuía uma rede de lojas de eletrônicos e a mãe uma engenheira civil bem requisitada. Amanda tinha uma irmã mais velha com família constituída. E ela enveredou-se por esse caminho tortuoso, perigoso e fatal. Fiz uma busca minuciosa sobre meninas que vendiam conteúdo erótico via internet e descobri que algumas conseguiam tirar por dia o equivalente ao meu salário mensal. É o que eu sempre digo, dinheiro é bom, mas é capaz de corromper até o mais santo de todos os santos.

— Além do pentelho, havia outro material genético na boca dela. O cidadão não chegou a ejacular, mas deixou seu lubrificante natural lá dentro. – falou me entregando o papel.

Rafael da Silva. Li.

— Pelo que sei ele já é fichado por agressão. Vai ser fácil pegá-lo.

— Certo! – olhei para o cadáver. – vai liberá-lo para o sepultamento?

— Sim! – respondeu Roni de maneira soturna.

Inspirei e expirei.

— Valeu, Roni, fez um bom trabalho. Vou nessa.

*

Antes de acionar a ignição algo me veio à mente. Algo que com certeza me deixaria no mínimo comovido, mas eu precisava tirar aquela história a limpo. Peguei meu celular. Abri o site de busca. Digitei correndo o endereço de um outro site de conteúdo erótico e...

— Amanda Rosa. – digitei no buscar desse site.

Pronto! Amanda surgiu em vários quadrinhos. Cliquei num aleatório respirando fundo. Ela apareceu vestida de enfermeira, seduzindo quem quer que estivesse assistindo. Ao final ela divulgou sua página no Instagram convidando a todos que a seguissem. Cliquei em outro vídeo. Amanda vestia apenas uma calcinha vermelha. Seios médios à mostra. Uma menina formosa, saudável e cheia de vida. Maldito Rafael, pensei saindo do site. Para evitar desconforto entre Jaque e eu, achei melhor limpar o histórico de buscas uma vez que minha namorada adorava mexer em meu aparelho. E por falar nela, liguei o carro e parti para casa dela.

*

Abri os olhos naquela manhã e logo dei falta de Jaque. Ainda sonolento caminhei tropeçando nos próprios pés. Meus ossos estalavam muito mais na parte da manhã nessa época e eu nunca procurei saber o motivo. Jaque tomava seu banho tranquilamente quando invadi o box a deixando com o couro cabeludo arrepiado com o susto.

— Merda! – vociferou.

— Preciso que lave minhas costas. – Usei de desculpas.

Já refeita, ela se virou me beijando.

— Só às costas?

Esqueci de falar, Jaqueline é farmacêutica, profissão que aspirou desde quando ainda cursava o fundamental indo de encontro ao desejo do pai. Seu Osvaldo queria que a filha seguisse a carreira militar. Jaque sempre foi uma pessoa de personalidade muito forte e graças a isso, hoje ela é uma mulher realizada.

Nada como começar o dia fazendo amor com a mulher amada debaixo de um chuveiro quente. Maravilha. O meu dia não seria fácil, por isso fiz questão de preparar meu físico e também o psicológico. Deixei Jaque na farmácia e parti para as buscas. Rafael da Silva precisava ser detido e tirado de circulação imediatamente. Pelo seu histórico isso já deveria ter sido feito a muito tempo, mas o que esperar de uma justiça cheia de rachaduras? Uma justiça que favorece somente os poderosos? O trabalho da polícia é formidável, necessário, o que atrapalha é justamente quando tudo sai das nossas mãos, quando perdemos o poder de decisão. Complicado demais.

Cheguei ao departamento. Peguei um café recém feito e fui direto para minha mesa. Ao me sentar verifiquei se havia novas mensagens no Whatsapp e sim, havia algumas. Minha mãe, dizendo que faria uma comida especial no jantar. A outra era de Jaque me informando sobre a dieta e também que ainda se encontrava excitada. Abafei minha risada com a mão livre, que fogo é esse? E a última, infelizmente não tão agradável. O sepultamento de Amanda Rosa. Minha vontade era de esmurrar a cara do demônio que a matou. Coube a mesa sofrer as consequências. Eu sei que isso não é bom. Clemente sempre me alertava quanto as minhas emoções. Nada de parcialidade. Um bom policial não toma partido. Você precisa fazer com que a lei se cumpra e só. Era verdade. Eu precisava me concentrar e enfiar a cara no trabalho.

*

Na hora do almoço lá estava eu conferindo as imagens da câmera de segurança do prédio onde Amanda Rosa morava. Um lugar bem movimentado. Entregas de fast food o tempo inteiro. Entra e sai de moradores. Crianças no parquinho e... Rafael da Silva, talvez. Me ajeitei na cadeira. O suspeito desceu da moto. Retirou o capacete. Meu coração demonstrou estar em bom funcionamento ao ver pela primeira vez a carranca do assassino. Era ele. Tinha que ser ele. O cara era enorme, com pinta de lutador. Ele entrou no prédio. Descruzei e voltei a cruzar as pernas com minha respiração no volume máximo. Filho da mãe. Certo tempo depois ele saiu e já não aparentava estar tão calmo. Ele a matou. Subiu na motocicleta e se foi. Beleza, agora eu tenho um rosto. Eu tenho você, Rafael da Silva. 


*

Clemente saiu da cozinha equilibrando uma caneca grande de chá de erva cidreira com leite. A bebida estava quente, pelando, do jeito que o ancião gosta. Na TV o noticiário local informa sobre as condições do tempo para o dia e o restante da semana. O ex-escrivão sorveu um belo gole do chá e o sabor o fez voltar na época em que exercia sua tarefa sempre com primazia. Clemente era o melhor, o mais safo e também o mais inteligente. Quantas foram as vezes em que investigadores recorreram a ele buscando auxílio. 

— Já pensou em mudar de função? – perguntou um policial na época. 

— Claro que já, mas penso eu que, se eu for para as ruas, vocês irão perder um bom escrivão que sou. Deixe-me agindo nos bastidores, será melhor.

Ele tinha razão. Mesmo sentado diante de uma máquina de escrever dentro de um departamento policial Clemente ajudou a solucionar crimes a níveis de complexidade absurdos. O bicho era fera.

Agora o âncora do noticiário passou a relatar sobre o caso Amanda Rosa tirando o velho escrivão de seu passado glorioso.

— O caso que chocou o país segue sem culpado. A polícia ainda não conseguiu localizar o paradeiro do assassino de Amanda Rosa. Nós conversamos com o policial responsável pelo caso, vamos ver um trecho.

Ao ver o amigo totalmente sem graça na frente das câmeras, Clemente não conseguiu conter a risada.

— Essa não vou deixar passar. – tomou mais chá.

— Investigador Edgar, o que podemos esperar da polícia nas próximas horas?

— Trabalho! É o que temos feito desde quando tudo começou. É um caso difícil, não é fácil pegar um criminoso numa cidade gigante como está, mas asseguro aos senhores que dentro de muito em breve teremos esse caso finalizado.

— Muito bom, meu garoto. Se saiu muito bem. – Clemente aplaudiu.

Ao terminar de falar ouviu-se uma buzina conhecida.

— Falando no diabo...

*

Falar com Clemente era quase que uma necessidade básica. Vou além disso. Conversar com ele me deixava desperto, em alerta, o velho recarregava minhas baterias e me fazia crer que eu poderia me doar sempre um pouco mais.

— Acabei de assistir sua entrevista na TV. Ficou uma merda. – disse abrindo o portão. 

— Ah, não diga. – eu não estava acreditando muito, por isso precisei parar e olhar nos olhos dele. – está falando sério?

— Claro que estou. Vamos entrando.

A desordem. O mal cheiro e a pouca luminosidade dentro daquela casa era algo marcante, porém nunca me incomodaram. Talvez porque o que eu sentia por ele me fazia passar por cima de coisas tipo essas. Mais do que a falta de organização e limpeza é o que sentimos pelo nosso semelhante. Pensei ao me jogar na cadeira.

— Pretende ir ao sepultamento?- pegou a leiteira.

— Sim!

— Fique em constante vigilância. O assassino sempre volta para ver com os próprios olhos os momentos finais de sua obra.

— Você acha que ele vai estar lá hoje? Eu acho que não.

Clemente era do tipo de pessoa que usava o silêncio a seu favor, era uma forma de se poupar ou talvez fazer com que a pessoa pense um pouco mais no que falou. Foi o que fiz. Meditei por um instante e em seguida ele completou.

— Um lema bastante antigo no meio policial, mas que funciona perfeitamente, “ver é melhor do que não ver", entendeu?

Eu tive que acatar.

— Sim!

— Quem matou essa garota tem sua autoconfiança nas alturas e também tem a certeza da impunidade. Normalmente os mais providos pensam assim. Por terem mais condições que os outros se acham os bambambãs. 

Ele estava mais do que certo.

— Por isso, meu filho, faça o que tem que fazer.

O clima estava começando a nos deixar para baixo, por isso resolvi brincar com meu amigo. 

— Estou precisando de um parceiro.

— Ah, não mesmo. Se você ainda fosse uma morena linda com um traseiro grande...

Rimos juntos. Rir faz muito bem. É um remédio que não se encontra facilmente por aí. Depois de tomar o café fraco de meu ancião preferido fui para casa me preparar para o que viria a seguir.

*

Familiares. Conhecidos. Curiosos e a imprensa. Todos amontoados atrás dos muros do cemitério. Todos indignados. Todos numa só voz exigindo justiça. Eu estava lá envolto por esses sentimentos também, mas até do que todos ali talvez. Meus olhos não paravam um minuto sequer. Eu escaneava aquela multidão em busca de um único rosto. Rafael da Silva. Assim que fui visto por jornalistas, imediatamente deixei-me ser abordado por eles com seus microfones, celulares entre outros aparelhos. Respondi de forma automática todas as perguntas tentando ao máximo não perder o foco. O corpo da pobre Amanda Rosa jazia num caixão branco com detalhes em dourado. Eu não me aproximei, mas disseram que ela estava linda. É de doer o coração. Havia um sacerdote que não desgrudou hora alguma dos pais da vítima e a todo momento lançava palavras doces de conforto. O cortejo teve seu início. Claro que não me movi. Eu não estava ali para aquilo. 

*

Permaneci no mesmo lugar observando cada pessoa que deixava o cemitério ainda aos lamentos pela vida de Amanda. Havia até quem levasse faixas e pequenas placas com a foto e o nome da morta. O meu alvo não apareceu. Pela primeira vez em muito tempo Clemente havia errado? Havia dado um passo em direção a saída quando meus sentidos se aguçaram em relação a um cidadão que eu não tinha visto antes. Estatura baixa, porte de lutador de MMA, cabeça raspada, seu rosto ruborizado sinalizava o quanto sua revolta e tristeza vinham direto de suas vísceras. Pensei em abordá-lo, porém pensei melhor. O que Clemente faria se estivesse em meu lugar? Ele passou por mim gesticulando, segurando uma garrafa de água pela metade conversando com uma mulher de meia idade que deduzi ser sua mãe. Lá fora eles ocuparam um carro grande de cor prata e se foram. Lógico que parti atrás.

*

Três quilômetros depois eles pararam em frente a uma academia não tão famosa, mas muito movimentada na época. Ninguém desceu do veículo, os dois pareciam estar discutindo. Ouviu-se algumas buzinadas até alguém, um sujeito com pinta de segurança de baile rave apareceu e se debruçou na janela do motorista. Parei dois veículos atrás e aguardei. Relaxei no banco fazendo descer os meus ombros. Meu Deus, como eu estava estressado e fiquei ainda mais com a ligação repentina de Edna Marques, minha chefe.

— Solene falando.

— Pensei que me ligaria assim que saísse do sepultamento.

Caracas, que vacilo. Pensei fazendo uma careta. Nesse meio tempo o cidadão se afastou e o carro com o meu suspeito disparou rua afora. O segurança de rave voltara para dentro do estacionamento.

— Peço desculpas. Tive que sair atrás de um suspeito. Estou na cola dele.

— Se for isso mesmo, tudo bem. Temos que encerrar logo esse caso.

Jura?

— Qualquer novidade preciso que me ligue imediatamente, entendeu, agente Solene?

— Copiado!

Eu sempre fui um cara que soube administrar bem as coisas, independente se eu estava sob forte pressão ou não. Apesar da pouca idade e de não possuir tanta experiência na questão profissional, antes do caso Amanda Rosa, fui incumbido de outros que, à primeira vista espantara agentes com mais bagagens e tempo de casa. Graças a Deus consegui solucionar a todos. Assim que Edna encerrou a ligação, guardei o aparelho no bolso e desci. Anotei mentalmente o endereço e entrei. 

Tudo de mais moderno que uma academia podia possuir, aquela tinha sobrando. Eu mal pisara no local e uma moça bonita em trajes esportivos que valorizava bastante seu shape me abordou.

— Olá! Vamos marcar uma avaliação? – ela tinha aparelhos nos dentes.

— Mais tarde. – respondi olhando ao redor. – na verdade estou à procura de alguém. 

— Posso ajudar? – ela seguia rindo.

— Acho que sim. – dissimulei. – Rafael da Silva. Ele treina aqui?

A menina encantadora desfez o sorriso puxando da memória.

— O nome não me soa estranho, mas não estou associando a pessoa. Vou dar uma olhadinha nas fichas.

— Por favor.

Não demorou muito para que ela voltasse segurando uma ficha e o que era melhor, com foto.

— Sim, ele treina aqui, mas faz algum tempo que ele não aparece.

— Quanto tempo, mais ou menos? – segurei o papel gravando o endereço contido nele. 

— Uma semana. Eu acho. – ela olhou para mim desconfiada. – Você é o que dele?

Precisei ser rápido.

— Treinamos juntos a muito tempo. Mas tudo bem.

Eu não tinha outra coisa em mente a não ser ir até a residência do suspeito e lhe dar voz de prisão. Ao deixar o local fiz exatamente o que meu instinto policial me ordenou fazer, “ver é melhor do que não ver”

*

No caminho para a casa de Rafael da Silva, pedi que fizessem uma busca um pouco mais cuidadosa no histórico do mesmo e o que descobri foi um tanto quanto desanimador. O sujeito era lutador de jiu Jitsu e com um agravante; era bom no que fazia. Rico e possuía porte de arma. Seria complicado. Claro que eu não poderia agir sozinho nessa.

— Doutora Edna, estou seguindo para o endereço de Rafael da Silva. Solicito reforços. 

— Mande-me o endereço, agente. Chegaremos em minutos. 

Chegaremos?

Ótimo! A imponente Edna Marques estaria presente na festa. Parei meu carro a quinhentos metros da casa e aguardei.


*

Sabe aquele sentimento de que você precisa fazer algo e rápido? Pois é, foi o que senti aguardando a chegada dos meus companheiros. Eu sei que poucas coisas o ser humano consegue fazer sozinho, porém outras é preciso auxílio de terceiros, mas cá entre nós, todo o processo de investigação eu fiz praticamente sozinho. O direito de prender o culpado pela morte de Amanda era todo meu. Mas em contrapartida eu estaria desobedecendo as ordens da terrível Edna Marques. Quis o destino que, enquanto eu mofava dentro do carro, o meu alvo aparecesse bem no portão de sua casa. O cara era realmente um dinossauro. O momento de sair e lhe dar voz de prisão não podia esperar. Hora de quebrar as regras, agente Solene.

Rafael da Silva estava lá, parado, celular colado ao ouvido direito, calça jeans, chinelos e camiseta regata com a logomarca da academia onde treina. Me aproximei já me identificando.

— Você é Rafael da Silva?

Ele olhou para mim com olhos de fúria. Lentamente ele encerrou a ligação enquanto a outra pessoa ainda falava.

— Qual o problema? – sua voz era grossa e forte.

— Amanda Rosa. Conheceu?

Rafael intimidava qualquer um. 

— Sim!

— Quando foi a última vez em que esteve com ela? – resolvi me impor também.

— Nunca! Eu a conheço porque já consumi alguns de seus conteúdos. 

O filho da mãe sabe mentir.

— Está dizendo que nunca esteve com ela pessoalmente?

Antes de me responder, seu pomo de Adão subiu e desceu várias vezes.

— Por um acaso isso aqui é um interrogatório? Se for, a partir de agora só falo na presença do meu advogado...

Rafael, filho de papai rico, protegidinho, costas quentes. Eu, Edgar Solene, um simples detetive da polícia civil que recebeu essa missão. Rafael da Silva, lutador profissional de Jiu Jitsu, cheio de energia, sangue nos olhos e faca nos dentes. Eu me encontrava diante de um problemão daqueles.

— Então, detetive, acho que podemos resolver esse assunto aqui mesmo. É só me passar sua conta...

— Acha mesmo que sairá dessa impune? O senhor está preso por dois crimes: assassinato de Amanda Rosa e por tentar subornar uma autoridade policial. – coloquei minha mão no coldre.

Foi tudo muito rápido, mas do meu ponto de vista tudo aconteceu em câmera lenta. A certeza da impunidade fez com que Rafael cometesse outro crime. Ele desferiu-me um cruzado de direita tão forte que vi tudo ficar escuro. Eu precisava me manter consciente, caso contrário teria o mesmo destino que Amanda. O segundo golpe foi ainda mais forte, não posso desmaiar. Algo precisava ser feito rápido, então vamos nessa.

Com mãos poderosas meu agressor girou meu corpo e me aplicou um mata-leão. Toda essa disputa ocorreu ali, na rua, ao ar livre. Eu estava sendo estrangulado, mas a minha mente ainda funcionava perfeitamente. Minhas pernas e braços perderam sua rigidez, levando ao agressor a acreditar que a luta estava ganha. Ele relaxou como era o esperado. Era a minha vez de agir. Mesmo de costas segurei a cabeça do dinossauro e enterrei os polegares em seus olhos. O seu grito foi gutural me deixando surdo momentaneamente. Eu estava livre das mãos de Rafael. Tossindo lhe dei outra vez voz de prisão.

— Deite no chão com as mãos na cabeça.

A montanha de músculos ainda gritava com as mãos nos olhos quando Edna e o restante da tropa chegou.

— Agente Solene, o senhor está bem? – falou olhando para Rafael caído na calçada.

— Acho que sim.

A situação foi tão intensa que só depois da chegada do reforço foi que reparei que minha boca sangrava.

— Algemem ele. – vociferou Edna. – vá cuidar desses ferimentos, conversamos mais tarde.

O miserável do Rafael foi levado sob protestos do mesmo. Ele berrava a plenos pulmões que não ficaria preso, que seu pai tinha amigos e conhecidos dentro da justiça e bla, bla, bla. Eu não o ceguei, mas o deixei com os olhos bem prejudicados. Me acomodei dentro da viatura a fim de me restabelecer, meu celular vibrou no bolso. Era Jaque preocupada.

— Oi, amor, como você está?

— Bem! Eu acho.

— Você está em todos os canais e já há vídeos da prisão do bandido.

Nossa, que rapidez.

— Conseguimos pegá-lo. – falei me ajeitando.

— Conseguimos uma ova. No vídeo só aparece você brigando com ele.

Sério que filmaram nossa luta? A internet é algo assustador. 

— Mais tarde nos vemos. Ainda tenho que ir para o departamento fechar relatórios...

— Tudo bem. Meu herói terá uma surpresa hoje a noite.

Encerramos a ligação juntos. Como eu amava Jaque. Ao me virar em direção a janela do carona, dei de cara com o rosto lindo de minha superior. 

— Sim, senhora?

— Relaxa! Só vim te agradecer. Fez um bom trabalho.

Eu estava nervoso, envergonhado e minhas palavras saíam atropeladas.

— Eu desobedeci suas ordens...

— Você é um bom policial, Edgar. Peça chave da minha equipe. Nem sempre estarei com a razão e cabe ao agente perceber isso. Essa era talvez sua única chance de pegá-lo e você não a desperdiçou. Tem o meu respeito. 

Dito isso, ela se afastou.

Atualmente 

Edgar está terminando de digitar algo em sua sala quando seu telefone toca. Ele atendeu ao primeiro toque já sabendo de quem se tratava.

— Oi, querida, e ai? – falou olhando para o porta-retrato onde há três pequenas fotos. Uma delas está Clemente dando o dedo do meio e anexo, em letras grandes escrito saudades eternas.

— Amor, vamos ter outra menina. – Jaque o notificou chorando com a enfermeira ainda a examinando no aparelho de ultrassonografia. 

— Sério? Meu Deus, a Sofia vai dar saltos de alegria quando souber que terá uma irmãzinha.

— É mesmo. E então, será mesmo Amanda?

Edgar refletiu por um instante. 

— Amor?

— Sim! Será Amanda sim.

— Um belo nome para a nossa nova princesinha. 

Jaque ainda falava quando um policial entrou na sala às pressas.

— Doutor, nosso agente localizou o alvo. O que faremos?

— Peça a ele que aguarde o reforço chegar.

Na mesma hora Edgar lembrou-se de algo que já havia acontecido com ele há algum tempo. 

— Negativo! Peça a ele que efetue a prisão.

Fim