quarta-feira, 30 de maio de 2018

Voz Da Morte



       Quanta solidão. Quanta dor, ainda. O que fiz para merecer isso? Por que ainda estou aqui? Por que o sol não me aquece? Por que a chuva não me molha? Por que não sinto minhas lágrimas? Sim, eu sei a resposta, eu ouvi aquela voz. Eu senti aquela sensação de respirar pela última vez. Eu vi o cano daquela arma explodir e seu conteúdo queimar minha pele, eu senti. O som daquela voz eu não consigo esquecer. Hoje, o que sou? Um ex vivente. Agora eu sei. Dói bastante, é amargo o gosto na boca. O cheiro da pólvora ainda circula por aqui. Quando isso terá fim?

        O que estou fazendo aqui? Tento me lembrar desse lugar, ele me parece familiar, e essas pessoas, quem são? Elas estão vivas ou mortas? Elas também ouviram a voz? Ninguém me convida para me sentar a mesa, e por que estão tão sorridentes? Meu Deus, eu não deveria estar aqui, eu sei disso, eu não deveria. Me afasto e ando até outro cômodo onde há uma pessoa quieta com olhar perdido, será que ela pode me ver ou ouvir?
         - Boa noite? - digo.
        Ela não esboça reação alguma, permanece ali sentada olhando para o nada. Alguém passa por ela indiferente, sinto seu coração sangrando. A pessoa volta e finalmente ela abre a boca.
         - O jantar já foi servido? - ela pergunta.
         - Sim, vó, vou mandar alguém lhe servir, tá bom. - a beija na testa.

       É muito doloroso, como eu gostaria de fazer parte dessa reunião, eu merece mesmo isso? Quando já estou me retirando aquela senhora parece me olhar e sorrir.
          - Já vai?
         Ela pode me ver, ela pode me ver, será ela uma de nós? Tudo muda quando escuto mais uma vez aquela mesma voz. Corro, tento me esconder, mas nada adianta. O que vou fazer?

        Agora estou aqui, sentado onde colocaram meu corpo naquela tarde chuvosa. Olho para o horizonte e há outros como eu, sentados olhando o vazio. Outros que ouviram a voz. Valeu a pena viver aquela vida? Fiz algo de útil? Fiz alguém feliz? Não me lembro de nada disso, tudo foi retirado de minha memória. Nem chorar consigo mais. Me distraio por alguns segundos quando ouço uma outra voz.
          - Faz muito tempo que não apareço aqui.
          - O que disse? - meus olhos contemplam aquela mesma senhora.
       - Vim lhe trazer essas flores. - ela as coloca em cima da sepultura. - me desculpe a demora, muitas coisas aconteceram, fiquei sem tempo, mas agora estou aqui, como tem passado?
          - Confuso. - abaixo a cabeça.
          - Eu já vou indo.
         Muito triste, ela falou com um corpo apodrecido e não comigo, por que ela não pode me ver? Ela se foi, sozinha, com seu andar cansado e vacilante, não se vá, por favor. Não consigo chorar. A senhora para e olha para trás.
         - Deus lhe dê bom descanso.

                                                                           Fim     

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