Não sou muito de ler a Bíblia, mas houve uma vez que sem querer encontrei um texto que me interessou, dizia mais ou menos assim. A mulher sábia edifica sua casa e a tola a destrói com suas próprias mãos.
Não gosto de comentar muito sobre isso. Esse é um assunto que ainda mexe muito comigo, afinal eu tenho apenas nove meses de divorciada. Nove malditos meses convivendo com o silêncio na hora do jantar. Nove meses sem pressa alguma para poder chegar em casa depois do trabalho. Eu queria ser uma mulher livre, e agora sou. Uma mulher livre e doente. Não fisicamente. Tenho 34 anos, me alimento bem, faço exercícios regularmente, me cuido na medida do possível. Agora, quanto a minha alma e meu espírito não posso dizer a mesma coisa.
Em minha vida profissional as coisas vão indo feito um motor a lenha. Mais devagar não existe. Nunca tenho o dinheiro do aluguel no dia combinado. Todas as minhas contas estão atrasadas. Um inferno. Mas o que interessa é que hoje sou uma mulher livre, independente, solteiríssima. Nove meses sem ter que dar satisfação, não é o máximo?
Ao voltar da minha corridinha matinal verifico se há novas mensagens no WhatsApp. Sim, claro que há mensagens, sempre há. Vou direto no grupo da família. Minha mãe sempre foi a primeira a me desejar bom dia.
Bom dia minha filha. Como tem passado?
Oi mãe, estou bem e a senhora? Vou passar ai qualquer hora. Beijos!!!
Há também uma mensagem da Carla. Clico nela.
Bom dia sua vaca. Como passou a noite?
Respondo. Ela está online.
Vaca é a senhora tua mãe kkkkkk
Estava correndo?
Sim! O que mandas?
Tá a fim de ir a um aniversário no final de semana?
Hum! Que horas?
Ela demora um pouco para responder, talvez conferindo o dia e a hora.
Sábado as 20h. Te pego de carro. Então, vamos?
Legal!
Ótimo. Te vejo sábado, sua vaca.
Vaca é o seu passado kkkkkk.
*
Sábado. Finalmente. Passei a semana inteira desejando que esse dia chegasse logo. Coloquei meu vestido preto curto. Meu ex odiava esse vestido. Me produzi. Soltei o cabelo. Conferi se realmente o decote esta abusado. Sim, ele está pior que isso. Me perfumo e confiro o horário. Dez para as vinte. Aproveito o tempo que ainda tenho para me olhar no espelho.
Trinta e quatro anos. Divorciada. Gostosa. Até que que ainda dou pro gasto. Mexo nos cabelos os jogando para frente. Legal. Ouço a buzina do carro de Carla e vôo para a porta. Ao me ver ela assovia.
- Eita, pena que eu sou hétero.
- Deixa de ser boba. – entro no carro. Cruzou as pernas e olho para frente.
- Está pensando em sair da festa com algum gatinho? – sai com o carro bem devagar.
- Que gatinho o que.
*
O lugar está lotado de convidados. Carla e eu entramos no salão ao som de uma banda americana dos anos oitenta da qual não recordo nome agora. Passo por uma mesa onde há um grupo de garotos conversando alto e um deles olha diretamente para o meu decote. Estou arrasando. Sou apresentada ao aniversariante, um rapaz simpático com pinta de nerd, mas bonito.
- Afonso, essa é a minha amiga, Flávia. – Carla me empurrou para cima do nerd.
- Ah, oi, parabéns, linda festa.
- Obrigado, fiquem a vontade.
Ocupamos uma mesa perto do bar. Logo somos servidas por um garçom magrelo e narigudo. Batemos um papo até que a música mudou. Chegou a vez do funk contaminar os ouvidos. Carla vai para o meio sacudindo sua bunda magra a uma velocidade incrível. Eu permaneço tomando minha cerveja e comendo salgadinho. De repente brota na entrada do salão ele, meu ex marido, Luís Paulo, de mãos dada com um show de mulher. Um gosto amargo assola minha boca e eu quase cuspo o salgadinho.
Luís Paulo me olha. Acho que ele tem a mesma sensação que eu tive ao vê-lo. Como ele está bonito, diferente, deixou a barba crescer assim como os cabelos também. Quando estávamos juntos ele sempre quis ter barba e cabelos crescidos, eu sempre o censurava. Nove meses sem vê-lo e ele aparece ao lado de outra mulher e diga-se de passagem, que mulher.
Eles ocupam uma mesa que fica perto da saída da comida. Ele volta a me olhar, eu abaixo a cabeça, melhor não manter contato visual agora. Luís Paulo. A nova mulher parece ser inteligente, bem sucedida, experiente, até no modo como se porta ela parece uma rainha. E eu, o que pareço? O que os outros vêem quando olham para mim? Uma peituda que adora se exibir? Ou uma gostosa, mas que é oca por dentro? O que eles pensam de mim?
*
O funk sujo segue arrastando mais gente para o meio do salão quando Luís Paulo deixa sua mesa e anda em direção a mesa de Flávia.
- Oi, Flavia?
- Ah, oi Luís, tudo bem?
- Tudo ótimo, e você?
- Eu vou bem. – engulo a coxinha fria. – quer sentar?
- Ah, sim. – se acomoda olhando para sua ex mulher. – o que tem feito?
- Bom, você sabe, continuo na mesma, empurrando meu emprego com a barriga o tempo todo. E você?
Luís Paulo entrelaça os dedos.
- Consegui que uma grande editora publicasse meu livro. – diz sorrindo.
- Sério, aquele que você estava escrevendo? – arregala os olhos.
- Exatamente. Já vendeu cinco milhões de exemplares só no Brasil.
Flávia olha para baixo e depois para a multidão sacudindo o esqueleto no salão.
- Então as coisas estão dando certo pra você, ou melhor, pra vocês, não é?
- Muito. Graças as vendas dos livros conseguimos quitar nosso apartamento e agora o projeto é passarmos um mês no Japão.
Flávia engole seco.
- Negócios?
- Também. Ester está querendo fechar um negócio com um investidor japonês, com certeza obteremos sucesso.
- Quem diária, Luís Paulo, de balconista de livraria para o mundo dos negócios.
- Você se esqueceu de um detalhe, de escritorzinho mequetrefe a best seller.
O sorriso de Flávia sai forçado. Já o de Luís Paulo é natural, verdadeiro e soa satisfação. Sua nova esposa volta do banheiro e faz sinal para que ele volte.
- Ah, com licença, foi um prazer revê-la.
- Beijo!
*
O sábado acabou. Tudo acaba, menos os meus sentimentos que teimam em me massacrar. Quem sabe se eu tomar alguns comprimidos e dormir até o ano que vem. Será que adiantaria? Ou só adiaria para uma próxima oportunidade? Quase sempre o tempo é a cura para todos os males, mas no meu caso ele só serviu para mostrar que eu sou um ser humano a beira de um colapso.
Antes
Luís Paulo digita sem muita agilidade no notebook antigo que pertencia seu pai. Flávia deixa a cozinha mastigando um pedaço de maçã. Ela para atrás do marido que concentrado não percebe a presença da esposa.
- “O monge guerreiro”. – fala dando ênfase.
Luís se assusta e se vira para ela.
- E ai, gostou do título?
Flávia dá mais uma mordida na maçã.
- Como escritor você é um bom balconista de livraria. – rir.
- Como assim, você já leu a história?
- Pelo amor de Deus, você acha mesmo que eu vou perder meu tempo lendo historinha. Cai na real Luís Paulo, isso nunca será publicado.
*
A hora de dormir é sempre a mais complicada. Meus pensamentos flutuam numa dança lenta e enfadonha. Que inferno. O que estaria Luís Paulo fazendo nesse exato momento? Até parece que eu não sei. Com certeza trepando com sua nova mulher ou discutindo qual será o melhor dia para viajar para o Japão. Ele cresceu, melhorou de vida. Conheceu alguém que lhe incentivou. Pois é, eu não levei a sério aquele ditado, “ por trás de um grande homem há sempre uma grande mulher”. Eu não quero chorar, eu não vou chorar. Eu sou aquela tola a qual a Bíblia se refere. FIM
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