terça-feira, 21 de janeiro de 2020

As Duas



As Duas

     Primavera. Poucos dias de sol quente e muitos nublados e até frios. Essa primavera tem sido estranha, cinzenta, chuvosa, bastante atípica. Para Isabel os últimos dias foram conturbados, noites sem dormir e pouco apetite. As coisas só pioraram depois que Cris ligou para ela. Aquela manhã de Sábado foi atormentadora, Isabel precisou fazer uso de calmantes até por fim cair apagada na cama. Quando acordou já era quase noite e sua cabeça parecia que iria explodir. Cris, como ela a encontrou, como ficou sabendo o número de seu celular? Hoje em dia ninguém está escondido, infelizmente. Quarenta primaveras e nenhuma chegou aos pés dessa em questões de adversidades.
       A conversa com a tal de Cris durou somente um minuto e meio, mas bastou para fazer da vida de Isabel um inferno. Se os dias já não estavam legais, agora então se tornaram quase que impossível de vivê-los. A voz dela era intragável, nojenta, voz de mulher da vida, baixeza total. Isabel se lembra que sentiu náuseas durante toda a conversa. Ela deu graças a Deus quando ouviu o “até breve” vindo do outro lado da linha. Uma semana se passou, uma longa e dolorosa semana se foi e Isabel ainda não conseguiu engolir aquele telefonema. Terceiro sábado de uma primavera desastrosa.
     Engana-se quem pensa que a semana passou rápido. Pelo menos para Isabel ela se arrastou, os dias foram esticados ao máximo e ela já não aguentava mais de tanta ansiedade. Quando por fim o outro sábado chegou a cozinheira profissional estava pronta para encarar a mulherzinha de voz de meretriz. O lugar combinado foi uma praça onde há uma pequena fonte e um lago artificial com peixes, perfeito para selfies ou fotos para álbum de casamento. Isabel foi a primeira a chegar, estranhamente ela tremia e não era por causa da brisa fria do meio da tarde. O encontro com Cris literalmente mexeu com ela.
      Ela ocupou o banco perto das plantas ornamentais. Calça jeans, blusa social dobrada até os cotovelos e cabelos recém feitos. Sem maquiagem e semblante sereno, essa é Isabel Nascimento, mulher simples, comum, mãe, profissional, muito comprometida com a família. Assim que se acomodou no banco da praça ela olhou o interior de sua bolsa e lá estava ela, a faca. Depois que fechou a bolsa ela consultou o relógio em seu pulso – a vaca está atrasada, pensou furiosa. Quando pensou em se levantar para ir até a barraca de açaí Isabel avistou uma mulher negra, cabelos implantados, pele bem cuidada, lábios e olhos grandes, uma beleza negra peculiar, era Cris. Pendurada no ombro direito uma bolsa rosa.
     - Oi? – o hálito de Cris cheirava a chiclete de canela.
     - Oi!
     - Me desculpa a demora, só consegui sair de casa agora. Posso me sentar?
     Se tem bunda você pode se sentar, pensou Isabel.
      - Por favor. – Isabel se afastou.
      O silêncio quase sempre fala mais alto. As duas mulheres estavam lado a lado, uma negra e uma branca, uma cozinheira e uma caixa de supermercado no momento desempregada. Isabel e Cris ocupando o mesmo assento.
       - Quando ele te contou? – perguntou Cris.
       - E isso importa? – falou ainda olhando para a barraca de açaí.
       - Sei lá. – deu de ombros.
       - E você, sabia? – mexeu nas unhas.
       - Não, mas, você sabe, homem dá muita bandeira, ele me falou que não era casado, mas o jeitão dele falava outra coisa. No segundo dia ele teve que me contar.
       - E mesmo sabendo que ele era um homem casado, ainda assim você manteve o relacionamento?
       Cris demorou um pouco para responder, olhava para baixo, parecia escolher a melhor resposta. Jogou os cabelos para trás e se voltou para Isabel.
       - Me apaixonei. – disse rindo.
       - Qual a graça? – levantou uma das sobrancelhas.
       - Aí, me desculpa, quando eu fico nervosa eu costumo rir, me perdoa.
       - Ah, sim. – finalmente olhou para Cris. De perto ela é ainda mais bonita.
       - Acho que nós, mulheres precisamos...
       - Nos valorizar, você não acha? – a voz saiu mais alta do que o esperado por Isabel.
       - Epa, espera aí, vai engrossar pro meu lado?
      Elas se encararam. Cris viu em Isabel uma pessoa vivida, safa, inteligente, porém com marcas profundas da vida. Já Isabel viu uma mulher forte, guerreira mas vazia, com carências, precisando de oportunidades.
       - Não, não vou baixar o nível, não fui eu quem marcou esse encontro. Mas me diga você o que quer?
       - Bom. – pigarreou. – desde já quero que saiba que jamais em tempo algum eu imaginei que seria a outra, o meu mal foi ter me apaixonado pelo Roberto, foi mais forte do que eu.
       - Como era o sexo?
       A pergunta teve o mesmo peso de um soco no estômago, Cris se viu sem saída. Na mesma hora ela se lembrou das intermináveis noites de prazer nos motéis com o marido de Isabel. Em todas as vezes em que se encontravam o sexo acontecia logo em seguida. A caixa de supermercado engoliu seco várias vezes antes de responder.
      - Pode ser sincera. – Isabel cruzou as pernas.
      - O sexo era intenso, frequente...
      - Me diga uma coisa. – apertou os olhos. – ele te pediu para fazer aquilo?
       - Aquilo? Aquilo o que? – sorriso enviesado.
       - Ah, aquilo, lá trás.
       Cris não conseguiu controlar a gargalhada coisa que deixou Isabel bastante irritada.
        - Sim! – cobriu o rosto com as mãos.
        - E você fez? – trancou os dentes.
        - Ah, fiz sim. – olhou para Isabel. – por que?
        - Eu jamais aceitaria isso.
        Cris torceu o rosto, fez uma careta e pensou “não sabe o que perdeu”.
        - E os filhos de vocês? – não foi nada fácil para Isabel fazer essa pergunta.
        - Júnior e Camila estão bem e os de vocês?
        - Duas meninas se você não sabe, Patrícia e Kelly, elas estão quase na faculdade, um orgulho para a família.
        - Bom, o Juninho já sabe o que quer da vida, jogar futebol, agora, Camila tem me dado dor de cabeça.
        - Duas mulheres, duas famílias, como foi capaz de fazer isso comigo, com as meninas, eu fui muito ingênua mesmo. – meneava a cabeça enquanto falava. – tá explicado o distanciamento, a falta de dinheiro, a falta de tempo, ele construiu uma outra família. Canalha.
       - Faltava as coisas para vocês? – perguntou meio hesitante.
       - Demais. Houve época de eu ter que pedir socorro para minha mãe. Eu sempre achei que a falta de dinheiro se devia ao baixo salário dele, mas, não era nada disso. Ao invés dele suprir as necessidades da família Roberto estava gastando dinheiro com, com uma...
       Cris ficou de pé. Colocou as mãos na cintura e aguardou o fim da frase.
       - Vamos, fala, eu sei que você está doída pra falar. – gingou com o corpo. – ao invés dele suprir as necessidades da família, ele estava gastando dinheiro com uma negra vagabunda da bunda grande, pode falar.
      - Você sabe quantos aniversários nós deixamos de fazer? Sabe quantos planos foram por água abaixo, você tem ideia? – se levantou também.
       - Um homem só procura na rua o que não encontra dentro de casa, você pode ser essa mulher bonita, bem vestida, cheirosa, mas na hora do vamos ver a Isabel nega fogo, fica de frescura. Eu não. – bateu no peito. – eu levava meu homem ao delírio sacou.
       - Seu homem uma ova. – colocou o indicador no rosto de Cris que sentiu vontade de mordê-lo.
       Os transeuntes olhavam para as duas esperando que ambos partissem para as vias de fato, até mesmo o dono da barraca de açaí se ajeitou para assistir uma seção grátis de UFC feminino. Não aconteceu. Cris e Isabel se acalmaram e voltaram a estaca zero.

*
     O sol fraco e tímido que apareceu naquele sábado não chegou a animar. A primavera segue sem se apresentar de fato aos fãs de tempo de folhas caindo e temperaturas que deixam o tempo abafado. Isso favoreceu as duas mulheres que continuam a conversar sentadas naquele banco de concreto bruto. Isabel vez por outra se lembrava da arma branca que tinha em sua bolsa. Cris olhava para ela e não conseguia encontrar uma brecha para lançar seus argumentos. Apesar de tudo, Cris reconhece qual o seu papel nessa história, ela sabe que ela não passa da amante que direta ou indiretamente destruiu o casamento da mulher a seu lado.
      - Quantas vezes ele falou que te amava? – um nó se formou na garganta de Isabel.
      Mais um forte golpe no estômago de Cris. Na mesma hora sua expressão se tornou pesada e seus olhos marejaram. Isabel sentiu pena, mas não pode retirar o que perguntou, ela precisava saber.
       - Bom, sabe. – limpou os olhos. – não me recordo, acho que nunca.
       - Apesar de tudo, não houve uma manhã que ele não me dissesse que me amava.
       Outra vez o silêncio. Dessa vez Isabel jogou pesado. “eu te amo” palavras que para Cris são inexistentes. Ela tinha todos os motivos do mundo para ter trauma da figura masculina. Seu pai foi o pior exemplo de homem para ela. Relapso, violento, machista e beberrão, tudo que poderia haver de desprezível num homem seu pai tinha em dobro. Jorge morreu e nunca declarou que a amava.
       - O lance com Roberto, inicialmente era só sexo e curtição. Depois que engravidei as coisas mudaram muito. Ele pode não ter verbalizado isso, mas com certeza ele me amava.
      Isabel sentiu raiva. Sua vontade era de arrancar um por um dos seus implantes.
      - Só pode. – Isabel olhou ao redor e viu que a praça começara a ficar cheia de pessoas batendo fotos ou simplesmente caminhando. – ele te assumiu, assumiu os filhos de vocês. Bancou estudos, saúde, aniversários entre outras coisas.
       - Exatamente.
      Isabel percebeu que esse encontro já estava se encaminhando para um desfecho nada agradável. Ela pensou na faca dentro da bolsa. Sua raiva aos poucos estava tomando o controle da situação e isso não era legal. Foi Cris quem ligou, ela deu o primeiro passo, claro que ela tem algo a dizer além de ficar revirando o passado.
      - Por que estamos aqui, Cris?
      - Eu só queria...
      - Já sei. – limpou as lágrimas e fungou o nariz. – só queria saber como estava a otária, a babaca, a ruim de cama. Saiba de uma coisa, eu estou bem, muito bem e pro seu governo já penso em partir pra outra.
       - Hum, olha isso, a dondoca descendo do salto, dando show em praça pública. – Cris colocou as mãos nas escadeiras.
       - Vou lhe mostrar quem é dondoca. – Isabel se levantou. Colocou a mão na lateral da bolsa e sentiu a faca.
       - Vim lhe entregar isso.
       Cris tinha na mão um pedaço de papel com alguns números escritos. Isabel olhou para ela e depois para o papel.
       - O que é isso?
       - Dados de uma conta. É sua. Sorte na vida. – ajeitou a bolsa no ombro e começou a se afastar.
       - Mas...
       - Ele sabia que não iria durar muito tempo e resolveu acertar as coisas antes de morrer. Uma conta pra você e outra pra mim.
       - Calma aí, e por que ele não resolveu isso comigo? – falou ofegante.
       - Ele bem que tentou, mas você o expulsou de casa, por isso ele me procurou. Não é muito mais dá pra aliviar um pouco. – começou a andar.
        - Cristiane, espere.
       Cris parou mas não se virou.
        - Eu não sabia da existência desse dinheiro e provavelmente jamais iria saber, você poderia muito bem ficar com a outra parte e...
        Finalmente Cris se virou e seus grandes olhos castanhos estavam vermelhos. Ela olhou para Isabel e permitiu que as lágrimas descessem.
        - Cansei de ser a pivô da destruição de um lar. Cansei de ser vista como a outra, a vaca usurpadora de casamento. Minha vida, nunca, nada foi fácil, tudo o que conquistei até hoje, por trás há choro de alguém, lamento de alguém e isso cansa. Eu poderia sim ficar com a outra parte, usar quem sabe para colocar um implante melhor, roupas, passeios no shopping ou abrir um negócio, mas eu não ficaria em paz. Você não errou, Isabel. Quem errou fui eu, o Roberto, nós somos os vilões dessa história. Bom. – limpou os olhos. – seja feliz Isabel.
       - Cris, espere. – Isabel andou na direção de Cris. – você não destruiu lar nenhum. Quem fez isso foi ele, ele sim é o culpado. Você estava lá, quieta na tua, menina solteira, bonita e atraente. Roberto usurpou sua vida, o sem vergonha conseguiu ao mesmo tempo estragar nossas vidas. Veja, que atitude nobre a sua, você é honesta, íntegra, uma mulher de fibra. O dinheiro é o que menos vale nessa história. Cris. Não precisamos ser inimigas.
       De repente a praça estava lotada. Era sábado. Anoiteceu e elas não viram o tempo passar. Duas mulheres, duas fortes mulheres com algo em comum, a vontade de começar tudo do zero.
      - Sim, claro, não precisamos mesmo. – o sorriso de Cris iluminou o rosto de Isabel.
      - Vamos tomar um açaí? Adoraria provar o batido com morango.
      - Opá, falou e disse cumadre. 
      - Eu pago. – Isabel mostrou seu verdadeiro sorriso.
      - Melhor ainda.
FIM


      

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