Lua Solitária
Foi bem complicado,
pra não dizer infernal. Imagine um homem realizado em sua vida amorosa e também
em sua vida profissional. Sim. Esse alguém era eu, Ronaldo Chagas. Antes de
Andreia surgir em minha vida, eu era um sujeito do qual ninguém, absolutamente
ninguém queria por perto. Bêbado, chato e abusado. Por causa desse meu jeito levei
diversas surras e fiquei detido por uma noite na delegacia. Dentro da cadeia
fui espancado durante duas horas seguidas, isso porque tirei marra com o “dono
da cela”. Assim que tive alta da enfermaria fui liberado e jogado mais uma vez
na rua. Tudo o que eu mais queria naquele momento era achar um bar e tomar uma.
Porém fiquei só na vontade mesmo. Não havia dinheiro. Aproveitei para iniciar
uma nova trajetória em minha vida. Foi quando conheci Andreia, a menina de
olhar de fada. Ela mudou radicalmente o meu mundo.
Quando
cruzei com ela naquela noite abafada de primavera, Andreia trazia com ela uma
alegria contagiante e um sorriso que me fez inveja-la. Eu estava péssimo. Tanto
emocional quanto fisicamente eu parecia um troglodita. Algo aconteceu naquela
troca de olhares. Andreia me deu um adeus e eu fiquei ali, paralisado, boquiaberto,
vendo ela se distanciar balançando aquelas madeixas enormes e negras como a
noite. Não demorou muito e nós estávamos namorando secretamente. Os nossos
encontros aconteciam sempre no mesmo lugar e na mesma hora e também no mesmo
dia. Andreia já era uma mulher feita. Separada. Não tinha filhos. Sofreu
violência por parte do ex marido. O sonho dela era engravidar antes dos
quarenta anos e conseguiu. Nossos encontros lhe rendeu uma gravidez desejada,
mas fora de hora.
Victor
nasceu. Forte, bonito, igual Andreia, até os olhinhos de fada da mãe ele tinha.
Xodó da família Chagas. Quando meu filho completou um ano, fomos morar numa cabana
que eu mesmo a construí perto do rio em meio a floresta. Para sustentar a casa
comecei a cortar e a vender lenha. Ganhei muito dinheiro. Não faltava nada,
tínhamos tudo. Victor cresceu e eu pude coloca-lo num colégio bacana. Não
éramos ricos, mas tínhamos dinheiro, não passávamos sufoco. Minha família era
unida. Eu amava Andreia, era apaixonado por ela mesmo com anos de casados. Fazíamos
amor duas vezes por semana. Tanto na cabana, quanto na floresta, Andreia e eu não
brincávamos em serviço. Minha mulher era maravilhosa.
Hoje
caminho sozinho. Tudo o que sobrou daquele lar feliz se encontra dentro da
minha mochila do exército. Das vezes que tenho companhia é por que estou sendo
perseguido por caçadores. Voltei a ser o que era antes, um troglodita. Na
verdade me transformei em coisa pior. Quando Victor se tornou um pré
adolescente, eu fui atacado por uma fera. Estava uma noite estranha. Ventava muito
e no céu a lua cheia enchia nossos olhos. Eu tomava chá de gengibre na varanda.
Andreia e Victor já estavam deitados quando foi ouvido um uivo que estremeceu
as árvores. Deixei a xícara cair e fiquei em alerta. Foi muito perto. Minha
mulher apareceu na porta enrolada nos lençóis.
— Amor, o
que foi isso?
— Entre,
fique perto do garoto. Vou dar uma olhada no mato.
— Você tá
louco, e se for um bicho?
— É um
bicho, meu amor. Vou pegar minha arma e dá uma olhada.
Entrei no
mato. Eu estava me cagando de medo, mas precisava tirar aquela história a
limpo. Quando cheguei no meio da mata alta, outro uivo e mais perto.
— Santo
Deus! – falei fazendo o sinal da cruz.
Andei mais
dez passos e escorreguei em algo mole. Era um gato morto. O pobre bichano foi
devorado, quase partido ao meio, suas vísceras estavam expostas. Outro uivo
seguido de um rosnado. A vontade de sair correndo para dentro de casa era
grande, mas jamais iria demonstrar fraqueza para Victor e principalmente para a
minha olhos de fada.
— Será um
cachorro? – continuei parado.
O mato era
alto, cerca de dois metros. Com medo, sem lanterna, contando somente com a luz
natural da lua, criei coragem, fui
abrindo passagem afastando o mato quando dei de frente com ela, a fera. Parte
homem, parte lobo, uma coisa vinda do inferno. Seus olhos eram vermelhos. Tinha
focinho, mas eu vi, era um homem com aspecto de lobo. Quando ele me viu o seu
rosnado me fez urinar nas calças. A velocidade com que corria era fora do comum.
Eu caí de costas apontando a arma. Sua pata, sua mão, sei lá o que, rasgou
minha camisa e suas garras abriram quatro longas feridas em meu peito. Eu
atirei. Como um cachorro vira-lata ele caiu a meu lado rodopiando. Em meio a
espasmos a fera assassina foi voltando ao normal. Em dois minutos ou menos o
que era um lobo, agora é um pobre velho morto.
— Jesus!
A ferida
ardia, pegava fogo e sangrava muito. Ouvi vozes vindas do outro lado do
matagal.
— Ele
correu para esse lado.
Três homens
armados com espingardas. Ao me verem deitado perto do corpo do velho eles se
assustaram.
— Ronaldo?
Você foi atacado? – perguntou o homem mais baixo.
— Que merda
foi essa? – emendou o outro apontando para o meu ferimento.
— Ele me
arranhou. – falei gemendo. – preciso de um hospital, preciso levar uns pontos,
tomar analgésicos, isso tá doendo pra burro. – falei quase chorando.
— Você vai
precisar de umas preces, isso sim. Vamos.
— E quanto
a ele? – perguntei sendo levantado.
— Cara,
esquece, ele já era, vamos avisar as autoridades. Cadê sua mulher e filho? –
questionou o baixinho.
— Estão em
casa.
— Ótimo.
Vamos passar lá e avisa-los.
Daí em
diante minha vida não foi mais a mesma. Lembra quando o baixinho disse que eu
iria precisar de preces? Então. Eu precisei de muitas preces, muitas orações,
mas não foram o suficiente para impedir que o dia mal chegasse. Cinco dias depois
desse ataque eu estava na varanda recolhendo minhas ferramentas de trabalho.
Foi um dia puxado. Eu me lembro que, durante todo esse dia eu estava estranho,
uma fome atípica. Eu queria carne, e crua. No almoço pedi para Andreia fazer um
bife mal passado, mais ainda assim minha fome por carne crua continuava. Eu
estava terminando de juntar minhas coisas quando senti as primeiras pontadas
nas costas. Uma dor horrorosa no rosto inteiro. Todos os ossos estavam esticando,
crescendo, assim como os pelos. Pois é. Me transformei naquilo que matei na
mata. Entrei em minha casa. A primeira vítima foi meu filho. O devorei por
inteiro, comi até os ossos. Corri atrás de Andreia dentro de casa. A matei
também. Comi braços, pernas e... Arranquei sua cabeça.
Quando acordei,
eu estava deitado no chão da cozinha, empapado de sangue e com uma barriga
enorme. Minha casa estava toda revirada, suja, havia vísceras por toda parte,
pedaços de corpos. Corpo da minha Andreia, olhos de fada. A cama do meu Victor
vazia e com manchas enormes de sangue ainda fresco. Meu garoto Victor. Tentei
num ato desrespeitado dar cabo a minha existência. Não consegui, não consegui,
por que diabos não consigo? Qual o propósito disso tudo? Nenhum, eu acho. Corri.
Me lavei. Recolhi algumas peças de roupas e ferramentas para usar como armas.
Enfiei tudo dentro da minha mochila do exército e parti sem rumo. Agora vivo um
dia após o outro. Devorando gados em todas as noites de lua cheia, sendo o caçador
e sendo a caça. Vivo com saudades, muitas saudades, diga-se de passagem. Para
todo lugar que olho vejo o rosto dos dois. As vezes penso em me jogar de um
precipício ou então me deixar ser encontrado por meus perseguidores, mas ainda
não consigo. Mais eu juro. Um dia eu há de conseguir. FIM
Muito bom, meu amigo! Parabéns!
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