domingo, 13 de julho de 2025

Alguém De Deus | Final

 


Final


    Na mesa está o notebook. Dois celulares abertos no aplicativo de mensagem. Meia dúzia de pastas com diversos documentos, notas e comprovantes de pagamentos, além de muitos outros papéis de extrema importância. Fabiana Moraes parece tensa cada vez que é notificada sobre a chegada de uma nova mensagem. O dia promete fortes emoções. Fabiana nunca foi fã de acordar cedo, mas a demanda a fez pular da cama antes das seis e correr para o escritório. Entre um bocejo e outro, a advogada aos poucos foi desatando os nós, descascando abacaxis um a um sem vacilar. De repente alguém bateu na porta. Isso sim a fez hesitar.

        — Mas que saco. — fechou o computador. — um minuto.

      Ainda com sua minúscula roupa de dormir, a doutora desfilou indo até a porta. Era André.

       — Diga! — falou secamente apoiada na porta.

       — Interrompo? — perguntou André ainda parado no corredor.

        — O que você acha?

        — É que…

        — Já levou a Aninha na escola?

        — Calma, me deixa falar…

         — Meu amorzinho, você não está vendo que eu estou ocupada resolvendo zilhões de coisas…

        — É sobre isso que eu quero conversar. Sobre esses zilhões de coisas.

       Fabiana bufou.

       — Em que você anda se metendo, Fabi? — deu dois passos para dentro do escritório. Fabiana se pôs a sua frente.

        — Dá licença?

        — Vai mesmo me impedir de entrar?

       Eles trocaram olhares desafiadores.

        — O que você quer, André?

        — Quero saber quem é Fabiana Moraes, com quem eu estou me relacionando, é isso que eu quero saber. — entrou. — saia da frente.

        — Ei, ficou louco? Você não pode invadir o meu espaço assim.

         — Quem não deve não teme. Quero saber no que a senhora está metida e quero saber agora. — Cruzou os braços.

         Numa reação pouco comum por parte de Fabiana, a doutora se pôs a rir e em seguida debochou.

        — Com que autoridade ou a mando de quem você está fazendo isso? — colocou as mãos na cintura.

      Num gesto movido por puro ímpeto, André colou seu rosto no rosto dela.

        — Chega de mentiras, Fabi, chega de me enganar e de se enganar. Você está metida em coisas que não condizem com o Senhor e eu não quero compactuar com isso.

        — Então me deixe em paz. Vá embora, agora. — gritou.

       André se afastou.

       — E eu que pensei que finalmente eu tivesse acertado, encontrado uma mulher de Deus na minha vida.

        — Esse é o seu mal, André. Você é muito certinho, espiritualiza tudo, quer andar sempre na linha e se esquece de que, quem anda muito na linha, o trem passa por cima. A religião te cegou.

       Agora André estava furioso.

       — Religião, quem está falando de religião aqui? Estamos falando de honestidade e caráter e pelo visto é tudo o que você não tem.

        Ruborizada a advogada andou a passos largos até a porta e o convidou a sair.

        — Fora! Junte suas coisas e fora da minha casa. Já!

        — Com muito prazer. — Saiu.


*


      Não estava sendo fácil estar ali. O ambiente hospitalar costuma mexer diretamente com a alma, com o emocional. Sula já vem experimentando essa sensação há uma semana e agora que ela se encontra ao lado de sua mãe, inerte naquele leito frio, tal coisa se intensificou. Dona Nair abriu os olhos e acariciou o rosto bonito e abatido da filha.

        — Oi, mãe. A paz!

        — Oi filha. Como é bom ouvi-la falar assim novamente.

       Para ouvir o que sua mãe estava dizendo, Sulamita precisou aproximar o ouvido de sua boca.

         — Promete que ficará bem quando eu me for?

        As lágrimas começaram a brotar nos olhos de ambas.

        — O que está falando, mãe? A senhora ainda tem muito o que viver.

        — Estou cansada. Preciso descansar. E além do mais, o Senhor está me aguardando. Irei desfrutar de tudo aquilo que ouvi e preguei. Essa é a minha recomendação para você, Sulamita: Não se afaste mais de Cristo. É com Ele que a vida vale a pena ser vivida. Tudo bem?

       — Sim. Tudo bem sim, mãe.

       De repente Nair ficou em silêncio. Pegou a mão da filha e a apertou usando o pouco de energia que ainda lhe restava.

        — Enquanto eu estava inconsciente, tive uma visão. Miguel não é uma boa pessoa para você. Vi claramente você chorando num quarto escuro. Você precisa dar ouvidos ao que Deus já vem falando ao seu coração.

       Sula sorriu e chorou um pouco mais.

        — Seja a mulher que Ele sempre quis que você fosse. Amém, minha filha?

       Beijando as mãos magras e frias de sua rainha, Sulamita confirmou tudo o que foi dito por Nair que adormeceu logo em seguida.


*


     Irmã Nair foi convocada para habilitar nas regiões celestiais na noite daquele dia. Foi uma morte tranquila, com ausência de dor ou qualquer outro tipo de sofrimento. Nair fez o caminho de todo homem. Por mais que Sulamita já esperasse por isso, receber a notícia da partida de sua mãe foi como se uma espada atravessasse seu peito inesperadamente e a sangue frio. “Em tudo dai graças” essa frase era tudo o que ela conseguia pensar naquele momento e naquele lugar.

       — Vá em paz, mãe. — Disse, aguardando os papéis.

         Nair Santos procurou viver o melhor que pode e quando ela disse sim para Cristo, tudo foi intensificado, transformado, de dentro para fora. Jesus arrumou sua casa e ela passou a ser uma referência de fé e perseverança. O resultado disso tudo é o fato de o local de seu sepultamento se encontrar lotado. Amigos, parentes, irmãos e irmãs de ministério e até mesmo pessoas de outras denominações. Sim! Estavam todos ali, rendendo graças ao Senhor pela vida de sua serva.

       — Fique em paz, Sulamita. Sua mãe amava fazer a obra do Senhor. — Falou um irmão já idoso, conhecido de longa data.

       — Ela era uma mulher maravilhosa. — Declarou uma pastora.

       O cortejo seguiu. Sula preferiu permanecer próxima a capela ao lado de Gabi distante de toda movimentação. Assistir o corpo de sua mãezinha ser depositado em um jazigo perpétuo seria um golpe muito duro.

        — Quer alguma coisa, amiga? — perguntou Gabi.

             — Não. Eu estou bem.

        — Olha, se você quiser pode passar essa noite lá em casa. É pequeno, mas…

       — Obrigado, amor. Eu vou ficar legal. — Se abraçaram.

      A fim de aliviar as dores nas pernas, Sula ocupou um dos bancos de concreto e aproveitou para mais uma vez falar com Deus. Foi quando André apareceu no portão do cemitério olhando para ela. Sulamita ficou petrificada.


*


     Com mãos trêmulas e um nó gigantesco se formando na garganta, Sula abriu outro sachê de açúcar aguardando a volta de seu ex-marido com os pedaços de torta. Ela adoçava o café ainda tentando entender o que acabara de acontecer dentro daquele lugar hostil há alguns minutos atrás.

       — Prontinho. Pedi ao balconista para caprichar quanto a partilha das fatias. — Disse André colocando a bandeja em cima da mesa daquela panificadora glamourosa.

         — Não precisava se preocupar. Só o cafezinho já bastava. — Sorriu.

       — Você sempre foi fã das tortas de abacaxi daqui, então…

     Ele não esqueceu, pensou Sula pegando sua fatia.

       — Assim que eu soube do ocorrido, tomei a liberdade de me informar sobre o local do sepultamento. Dona Nair foi e sempre será uma mulher especial para mim. Sua fé era inspiradora.

       Sula corou. Fé.

       A conversa rendeu bem. Quando eles se deram conta, o sol já começava a baixar deixando o céu de Outono com um tom alaranjado encantador. André foi o que mais falou. Tudo foi deixado às claras. Trabalho, igreja, dona Nair, Deus e…

       — Como foi a minha vida nesse tempo? — André não parava de mexer as mãos. — Não foi ruim, mas também não foi nenhum paraíso. Convivi com uma pessoa que definitivamente precisa urgente de uma intervenção de Deus em sua vida.

          — Jura?

       — Sim. Na realidade, é o tipo de pessoa que se convenceu. Não houve uma conversão de verdade e com isso, ela tem feito de sua vida um mar de lama. Oro a Deus que haja tempo para que ela venha se arrepender de fato.

        — O curioso é que nós nos relacionamos com pessoas com o caráter idêntico. No meu caso, o rapaz era vida louca mesmo. Acredita que ele quase deu em cima da Gabi?

         André ficou pasmo.

       — Eu admito que, no início, eu achei que ele era o homem que Deus tinha posto no meu caminho. Com o passar do tempo aquele cordeirinho foi mostrando suas garras de lobo.

       O tempo passou muito rápido. A noite havia chegado e eles precisavam se despedir. Tudo o que consumiram ficou por conta de André. Na saída da panificadora o inevitável aconteceu.

        — Aonde você está morando, André? — Ajeitou a bolsa no ombro.

        — Lembra daquela quitinete do pastor Clodoaldo?

        — Nossa! Você está morando lá? É pequena, abafada e a descarga do banheiro mal funciona.

        — Eu sei, mas não pretendo ficar lá por muito tempo, eu já estou vendo um apartamento na zona norte.

         — Ah, sim. — silêncio. — Bom. Eu já vou indo. Foi um prazer revê-lo.

       — Eu digo o mesmo. Veja bem. Eu mudei de operadora, anote o meu número novo caso precise de alguma coisa.

       — Tudo bem.


*


      Para o preparo da janta, André pôs sua playlist dos melhores louvores selecionados por ele para tocar. Sua mente parece um furacão, por ela diversas coisas giram a mil por hora, porém uma delas sempre o faz parar e refletir: Sulamita. O que será de sua vida sem dona Nair? O que ela deve estar fazendo neste momento? Durante alguns minutos o maquinista fechou os olhos e orou pedindo a Deus que a confortasse, que ela se sentisse abraçada por Ele.

       — Amém!

      A comida ficou pronta. Simples, mas saborosa. Ele sentou-se na ponta da cama equilibrando o prato na mão direita enquanto que a esquerda segura o copo com suco. Quando foi dar a primeira colherada, o louvor que tocava foi interrompido por uma ligação. Era um número não salvo em seus contatos. Mesmo assim ele atendeu.

        — Alô?

  — Oi, André, sou eu, Sulamita. Desculpa estar te ligando uma hora dessa.

    — Sem problemas. Aconteceu alguma coisa? — Soltou o prato.

       — Não aconteceu nada… é que… se importa de vir até aqui agora?

      Para ajudar a empurrar a comida, o suco veio a calhar.

       — Não. Tudo bem. Aonde você está, na sua casa ou na casa da sua mãe?

        — Eu estou em casa.

        André conferiu o horário.

       — Certo! Chego aí em vinte minutos.

       O prato foi parar dentro da geladeira assim como o suco. Para atender ao um irmão em sofrimento não podemos medir esforços. André deixou sua residência encarando a noite disposto a ajudar sua ex-mulher no que fosse preciso.


*


     Auditório lotado. Canhões de luz posicionados para uma das atrações da noite daquele mega evento de família promovido pela igreja intitulado “O que Deus uniu, não separe o homem” Sulamita Simões, já não tão jovem, ocupando aquele púlpito, falando com autoridade e intrepidez para um público de um pouco mais de quarenta famílias inteiras sedentas pela palavra.

       — Irmãos, Deus reconstruiu a minha família e eu não tenho vergonha de dizer em público o que eu falei para o André na noite em que ele saiu de casa. No calor da emoção eu falei: você não é alguém de Deus para a minha vida.

       Silêncio no auditório.

       — Ele disse o mesmo para mim e saiu. Nós nos separamos. Fomos viver as nossas vidas. Ele teve um relacionamento e eu tive também um relacionamento. O tempo passou. Deus estava trabalhando o tempo todo e hoje estamos aqui. Juntos novamente, quase vinte anos depois. Eu tenho orgulho em apresentar a minha família. Subam aqui, meu marido André, minha filha Letícia e seu noivo Paulo.

      Os aplausos ecoaram por longos trinta segundos até que toda família Simões estivesse completa em cima do altar.

       — Finalizo minha palavra dizendo. — Sula segurou nas mãos de André, também um pouco mais velho. — André, você é e sempre será alguém de Deus para mim. FIM.








domingo, 6 de julho de 2025

Alguém De Deus | Capítulo 5

 


5


    Mulher de oração. Mulher de fibra. Uma verdadeira guerreira que não media esforços para ir em busca de seus objetivos e ideais. Nair Santos, mãe de Sulamita e ex esposa de Armando que a deixou sem eira e nem beira morando numa quitinete apertada, abafada e com uma criança de colo. Armando não valia absolutamente nada, gastava com bebidas, cigarros e jogos a pouca renda que conseguia como auxiliar de pedreiro e ainda dava prejuízo a Nair. Tantas foram as vezes em que ela precisou passar roupa para fora a fim de sanar as dívidas contraídas do marido em apostas e jogatinas.

       Assim que se converteu ao evangelho e tudo começou a dar sinais de melhora na vida de Nair, Armando disse que iria até a venda da esquina comprar cigarros e nunca mais voltou. Na época foi um transtorno, a dona de casa não sabia por onde começar a reorganizar as coisas. Lhe faltava tudo. Tudo mesmo. Graças a Deus e a solidariedade dos amigos e irmãos da congregação onde era membro, Nair e sua filha conseguiram se reerguer.

       O estado de saúde de Nair vem aos poucos se agravando. Parte de sua renda como aposentada é investida na compra de medicamentos todos os meses e ainda falta. Se não fosse a pequena ajuda de Sula, com certeza ela já teria sucumbido a enfermidade. Há alguns dias ela vem sentindo uma intensa falta de ar e mal estar seguido de tonturas como nesta manhã. Por volta das onze e trinta os sintomas tiveram uma piora considerável. Nair ligou para Sula que pediu que Gabi segurasse as pontas na farmácia saindo às pressas em socorro de sua velhinha.


*


    Não houve outra alternativa, Nair precisou ficar internada e seu estado realmente inspirava cuidados. É nessas horas que tudo aquilo que pensamos ou declaramos vem à tona com força total. Quando se vive em tempos de paz, falamos para nós mesmos e para outros que o Senhor segura a nossa mão e que jamais nos deixará sozinhos na luta. Dizemos também que, não importa o que venhamos a passar, passaremos com fé e confiança no Deus todo poderoso. Enfim, o dia mal chegou para a família Santos. E agora? Como pôr em prática tudo o que foi falado, ensinado ou pensado? Sula não estava preparada para tal situação — e quem nesta vida se prepara para o pior? — Dentro do consultório, a duras penas, ela tenta digerir tudo o que está acontecendo e nessas horas, todo e qualquer ser humano precisa de alguém para se apoiar. Assim que saiu do hospital, Sula ligou para Miguel.

        — Oi. Tudo bem? Estou com minha mãe internada e é grave. Pode vir aqui? — Sula tinha os olhos marejados.

        — Nossa, amor, que coisa. Poxa, infelizmente não tenho como ir. Estou no trabalho.

        A balconista apertou os olhos.

        — Eu estou desesperada. Não tem como vir mesmo ao meu encontro?

         — Não. Sinto muito. Mas eu vou estar orando por vocês. Tudo vai terminar bem.

       Raiva. Tristeza. Desesperança e desespero. Tudo ao mesmo tempo. Quem seria capaz de suportar essa enxurrada de sentimentos que assolam sem piedade? Sulamita voltou para dentro da unidade hospitalar quase sem forças nas pernas. Ela se jogou em uma das cadeiras da recepção praticamente e ali permaneceu com os olhos fechados por longos minutos. Orando talvez?


*


      — Mas, doutora, a senhora é uma mulher bonita, competente e está sempre disposta a crescer. Já está mais do que provado que não depende de ninguém para se sustentar. Tem criado sua filha sozinha.

        — Lógico que eu sei de tudo isso. Sei do meu potencial, mas, aconteceu. — Fabiana conversava ao telefone contemplando a paisagem urbana da janela do quarto.

        — E a senhora sente que pode haver algum futuro legal ao lado desse cara?

        — Nós já andamos conversando sobre isso e deixei bem claro o que penso.

         — E mais um agravante: pelo que a senhora me contou, ele é um sujeito extremamente careta, do tipo crente bitolado. O que pensa em fazer quanto a isso?

        — Bom. Eu também sou evangélica… — Fabiana mudou o celular da orelha esquerda para a orelha direita.

        — É verdade, às vezes me esqueço que você é crente. — Falou de forma zombeteira. — tantos são os processos e procedimentos que…

       — Ah, sim. Agora você vai ficar jogando as coisas de errado que fizemos juntos na minha cara? Veja bem, se você possui alguma coisa hoje, seu carro, seu apartamento, sua conta bancária recheada e tudo mais, isso se deve a mim.

         — Nossa. Calma doutora Fabiana Moraes. Eu sei de tudo isso e sou muito grato a senhora. Eu só estou lhe alertando quanto ao seu namorado “crente certinho”, ele de maneira alguma pode interferir em nossos esquemas. Entendeu?

       — Pode deixar que do André cuido eu. — silêncio. — mais alguma coisa?

         — Não! Era só isso mesmo. Tenha um ótimo dia, doutora.

         — Saco! — Jogou o telefone em cima da cama.

      A advogada ainda passou alguns segundos conferindo a beleza de um grupo de aves planando até pousaram sobre as palmeiras. Ao girar nos calcanhares, ela deu de frente com André dentro do quarto.

           — Oi? — O coração de Fabiana parecia uma máquina de lavar.

        — Oi! Você viu uma das minhas camisas do uniforme? As outras estão sujas.

        — Ah, sim. Claro que vi. — correu até o armário. A blusa encontrava-se na terceira gaveta, cuidadosamente dobrada.

        — Obrigado, amor.

        — Tem mesmo que ir trabalhar agora? — o abraçou.

         — Pois é, eu também não queria ir, mas… ordens são ordens.

         — Eu pensei em deixar a Aninha na casa da minha mãe e passarmos o dia inteiro juntos.

         — Que tal guardar esse fogo todo para logo mais a noite?

         — Vou lhe cobrar, hein. — Lhe apertou as bochechas.

         — Pode deixar comigo.


*


    André precisava mesmo chegar em seu local de trabalho um pouco antes do horário, mas o seu coração suplicava por ouvir a voz de Deus através de alguém posto na terra justamente por Ele. Pastor Clodoaldo. O plantão poderia esperar.

        — Grande André Simões, a que devo a honra? — O abraçou.

        — Eu que agradeço, pastor. Sei da sua correria e mesmo assim conseguiu um encaixe para a sua ovelha desgarrada aqui.

        — Vamos parar com esse negócio de ovelha desgarrada. Você é meu amigo. — Sentou-se atrás de sua mesa. — Aceita um café?

       — Fica para uma outra hora. — Puxou uma cadeira. — O senhor sabe da minha situação. Me separei da Sulamita e hoje vivo com a Fabiana…

       — Claro que sei. Fabiana Moraes, advogada. — Entrelaçou os dedos. — e como vocês estão?

      André pigarreou antes de seguir.

        — Então, pastor. Tirando a parte íntima, a nossa relação é bastante conturbada. Fabiana é do tipo de mulher que não se conforma em cumprir só o seu papel, ela quer dominar tudo e a todos. Eu sei que, a maior parte dos recursos que entram em casa vem dela, mas isso não significa que ela precisa ter as rédeas nas mãos o tempo todo…

        — Vocês já conversaram sobre isso?

        André meneou a cabeça.

        — Essa é uma situação bem corriqueira entre os casais que entram por essas portas e mal sabem eles que com uma conversa sadia já teriam resolvido de uma vez por todas esse desconforto. Porém, algo em seus olhos me diz que a sua vinda até aqui tem outro motivo. Certo?

       — Sim! É verdade. — abaixou a cabeça. — Eu já desconfiava desse geneo da Fabiana. Orgulhosa, gananciosa, mandona. Mas, me humilhar… aí já é demais. Acredita que ela impôs condições de melhora de vida para continuar junto com ela? Quem ela pensa que é? Quando nos conhecemos, ela sabia das minhas condições, sabia que eu era pobre, um simples operador de metrô. Ela poderia simplesmente ter me dispensado e ir atrás de alguém a altura dela. Mas, não. Ela queria alguém a quem ela pudesse mandar e desmandar. Alguém para levar a filha dela na escola, para ir ao mercado, arrumar a casa e tudo mais.

       — E a comunhão, vocês tem frequentado os cultos?

        — Sim. Mas a impressão que tenho é que Fabiana vai à igreja por conveniência e só. Eu não a vejo orando, louvando ou lendo a palavra. A vida dela é só o trabalho, a filha e…

      Clodoaldo aguardou a conclusão da fala.

        — Ela pensa que eu não ouvi, mas infelizmente eu ouvi tudo. — engoliu seco. — Antes de sair eu a vi conversando com alguém no celular. Ela disse coisas sobre mim que eu já sabia, mas a questão não é essa. Pelo teor do papo, acho que Fabiana tem prosperado ilicitamente.

      O pastor se ajeitou melhor na cadeira.

        — Penso até que ela tem algum envolvimento com políticos ou até com mafiosos…

        Clodoaldo o interrompeu fazendo um gesto com uma das mãos.

         — Calminha aí, André. É muito sério isso que está dizendo. Você ouviu mesmo?

        — Infelizmente, sim.

       — Misericórdia. — Cruzou os braços. — Veja bem, André. Você sabe. Eu nunca aprovei a sua separação e muito menos o seu envolvimento com a Fabiana. Lembra quando me procurou para me informar que estava saindo de casa?

        — Lembro.

        — Pois bem. A partir de então eu iniciei uma campanha de oração por sua vida e pela vida da Sula. Quando você me apresentou a Fabi, logo vi que ela, mais do que você, precisava de ajuda. Deus confirmou isso em meu coração.

        — Como assim, e porque não me disse isso logo? — Deu um sorriso sem graça.

        — O Senhor pediu que eu aguardasse e eu o obedeci.

      André ficou em silêncio tentando organizar seus pensamentos.

        — E o que eu faço agora? — André tinha os olhos vermelhos.

         — Se você não tem orado, meu querido, recomendo que comece imediatamente.


*


   Sulamita prometeu para ela mesma que fecharia os olhos só por alguns segundos mas que não iria cochilar. Pobre Sula. Ela acabou por adormecer num sono profundo, sentada na recepção do hospital causando até um certo incômodo aos presentes por roncar. Alguém lhe trouxe de volta do sono pesado ao tocar com delicadeza em seu ombro direito.

        — Oi? — limpou a saliva que escorria no canto da boca.

         — Venha, precisamos conversar sobre o estado da sua mãe. — Disse a enfermeira.

       A conversa durou vinte minutos, mas para quem possui um ente querido entre a vida e a morte num leito de hospital, vinte minutos parece durar vinte anos. Ao deixar as dependências daquela unidade hospitalar tudo o que ela queria era sumir. Desaparecer. Dona Nair foi transferida às pressas para UTI e os médicos ainda não chegaram a um diagnóstico definitivo. As próximas horas seriam decisivas. Mesmo sem ter muita noção do que estava fazendo, Sula chamou um Uber partindo para a casa de Miguel.


*


     O HB20 branco parou em frente ao portão da casa de seu namorado quinze minutos depois. Bastante abalada, Sula aguardava o sinal de internet retornar para efetuar o pagamento da corrida via Pix.

       — Fique tranquila, senhora. Eu espero. — Falou o motorista a observando pelo espelho.

       O portão foi aberto e dele saiu Miguel Ramos abraçado a uma morena corpulenta de cabelos cacheados. Sula finalizava o pagamento quando isso aconteceu. Seu estômago deu um nó. Ela até pensou em fazer um escândalo, mas se conteve. Miguel e a tal morena pareciam bastante íntimos pelo visto.

        — Moço. O senhor poderia me aguardar? Não vou demorar muito.

        — Outra corrida, senhora?

        — Exatamente! — desembarcou.

       Miguel conseguia arrancar um beijo da morena quando foi surpreendido por Sula se aproximando.

       — Olá? — Sulamita acenou.

       — Sula? — Miguel mudou de cor. — O que faz aqui?

       — Quem é essa, Miguel? — perguntou a outra.

       — Como assim, Miguel, não contou para ela que você era comprometido comigo?

        — Eu não acredito nisso. — A morena se afastou.

       — Calma, Débora…

       Houve um princípio de confusão e Miguel acabou sendo agredido por Débora com um forte tapa no rosto.

        — Seu, seu atribulado. — saiu andando pela calçada.

       De dentro do veículo o motorista assiste a tudo esfregando as mãos.

       — Quer dizer que, enquanto estou com minha mãe morrendo no hospital, você se diverte com outra? Então este era o motivo de você nunca ter ido lá ficar comigo?

       — Calma, amor, eu posso explicar, eu…

       — Não me chame mais de amor. Já não temos mais nada a ver um com o outro…

       — Sulamita, nós…

       — Tudo bem, Miguel, eu já havia sacado qual era sua. Você não estava a fim de um compromisso sério. Infelizmente não houve uma verdadeira conversão na sua vida, você só queria fornicação.

        O rosto de Miguel era uma mescla de raiva, dor(devido ao tapa) e vergonha.

       — Eu sinto muito. — Balbuciou.

        — Minha mãe estava certa a seu respeito. — declarou andando em direção ao táxi.

       Miguel voltou a esfregar o rosto e principalmente o lugar onde foi agredido.


*


     Infelizmente ou felizmente o inverno chega na trajetória de todo ser humano e esse inverno costuma ser dez vezes mais rigoroso na vida de quem serve ao Senhor. É loucura pensarmos ao contrário. O Verão chegou. Não demorou muito e se foi. Levou com ele a luz emocionante da manhã e o dourado divinal do anoitecer. O Outono deu as caras. Não aqueceu como na estação anterior, mas ainda assim foi possível sorrir. Com a chegada do inverno, Sulamita não teve como escapar. Ela precisava aquecer, corpo, alma, espírito e nada melhor para isso do que ouvir uma palavra direcionada por Deus.

        — Livramento? — Sula pegou o copo com café servido por Gabi na cozinha de sua casa.

         — Exatamente! Livramento. Miguel não era homem para você. Isso ficou bem nítido quando o conheci. Sua vida seria um inferno ao lado dele.

        — Meu Deus, amiga. — Provou da bebida quente.

        — Os desígnios de Deus são desconhecidos, minha querida, porém são os melhores e você já deveria saber disso.

        — Verdade. — Provou outra vez. — Vacilei quando deixei de ouvir a voz Dele. Me precipitei e…

        — Quebrou a cara. — pegou alguns biscoitos salgados dentro do pote. — e quem nunca?

         — Acho que aprendi a lição. Vou aproveitar este momento e me reaproximar de Deus, me apegar mais a Ele. Fazer o que minha mãe sempre me recomendou.

         — Eu sempre soube que você era uma mulher de Deus igual a irmã Nair.

      Elas ficaram em silêncio.

       — E então, vamos orar entregando este momento ao Senhor? — Propôs Gabi.

       — Ah, o que seria da minha vida se você não existisse, amiga? — Deu as duas mãos iniciando o período de oração.