domingo, 13 de julho de 2025

Alguém De Deus | Final

 


Final


    Na mesa está o notebook. Dois celulares abertos no aplicativo de mensagem. Meia dúzia de pastas com diversos documentos, notas e comprovantes de pagamentos, além de muitos outros papéis de extrema importância. Fabiana Moraes parece tensa cada vez que é notificada sobre a chegada de uma nova mensagem. O dia promete fortes emoções. Fabiana nunca foi fã de acordar cedo, mas a demanda a fez pular da cama antes das seis e correr para o escritório. Entre um bocejo e outro, a advogada aos poucos foi desatando os nós, descascando abacaxis um a um sem vacilar. De repente alguém bateu na porta. Isso sim a fez hesitar.

        — Mas que saco. — fechou o computador. — um minuto.

      Ainda com sua minúscula roupa de dormir, a doutora desfilou indo até a porta. Era André.

       — Diga! — falou secamente apoiada na porta.

       — Interrompo? — perguntou André ainda parado no corredor.

        — O que você acha?

        — É que…

        — Já levou a Aninha na escola?

        — Calma, me deixa falar…

         — Meu amorzinho, você não está vendo que eu estou ocupada resolvendo zilhões de coisas…

        — É sobre isso que eu quero conversar. Sobre esses zilhões de coisas.

       Fabiana bufou.

       — Em que você anda se metendo, Fabi? — deu dois passos para dentro do escritório. Fabiana se pôs a sua frente.

        — Dá licença?

        — Vai mesmo me impedir de entrar?

       Eles trocaram olhares desafiadores.

        — O que você quer, André?

        — Quero saber quem é Fabiana Moraes, com quem eu estou me relacionando, é isso que eu quero saber. — entrou. — saia da frente.

        — Ei, ficou louco? Você não pode invadir o meu espaço assim.

         — Quem não deve não teme. Quero saber no que a senhora está metida e quero saber agora. — Cruzou os braços.

         Numa reação pouco comum por parte de Fabiana, a doutora se pôs a rir e em seguida debochou.

        — Com que autoridade ou a mando de quem você está fazendo isso? — colocou as mãos na cintura.

      Num gesto movido por puro ímpeto, André colou seu rosto no rosto dela.

        — Chega de mentiras, Fabi, chega de me enganar e de se enganar. Você está metida em coisas que não condizem com o Senhor e eu não quero compactuar com isso.

        — Então me deixe em paz. Vá embora, agora. — gritou.

       André se afastou.

       — E eu que pensei que finalmente eu tivesse acertado, encontrado uma mulher de Deus na minha vida.

        — Esse é o seu mal, André. Você é muito certinho, espiritualiza tudo, quer andar sempre na linha e se esquece de que, quem anda muito na linha, o trem passa por cima. A religião te cegou.

       Agora André estava furioso.

       — Religião, quem está falando de religião aqui? Estamos falando de honestidade e caráter e pelo visto é tudo o que você não tem.

        Ruborizada a advogada andou a passos largos até a porta e o convidou a sair.

        — Fora! Junte suas coisas e fora da minha casa. Já!

        — Com muito prazer. — Saiu.


*


      Não estava sendo fácil estar ali. O ambiente hospitalar costuma mexer diretamente com a alma, com o emocional. Sula já vem experimentando essa sensação há uma semana e agora que ela se encontra ao lado de sua mãe, inerte naquele leito frio, tal coisa se intensificou. Dona Nair abriu os olhos e acariciou o rosto bonito e abatido da filha.

        — Oi, mãe. A paz!

        — Oi filha. Como é bom ouvi-la falar assim novamente.

       Para ouvir o que sua mãe estava dizendo, Sulamita precisou aproximar o ouvido de sua boca.

         — Promete que ficará bem quando eu me for?

        As lágrimas começaram a brotar nos olhos de ambas.

        — O que está falando, mãe? A senhora ainda tem muito o que viver.

        — Estou cansada. Preciso descansar. E além do mais, o Senhor está me aguardando. Irei desfrutar de tudo aquilo que ouvi e preguei. Essa é a minha recomendação para você, Sulamita: Não se afaste mais de Cristo. É com Ele que a vida vale a pena ser vivida. Tudo bem?

       — Sim. Tudo bem sim, mãe.

       De repente Nair ficou em silêncio. Pegou a mão da filha e a apertou usando o pouco de energia que ainda lhe restava.

        — Enquanto eu estava inconsciente, tive uma visão. Miguel não é uma boa pessoa para você. Vi claramente você chorando num quarto escuro. Você precisa dar ouvidos ao que Deus já vem falando ao seu coração.

       Sula sorriu e chorou um pouco mais.

        — Seja a mulher que Ele sempre quis que você fosse. Amém, minha filha?

       Beijando as mãos magras e frias de sua rainha, Sulamita confirmou tudo o que foi dito por Nair que adormeceu logo em seguida.


*


     Irmã Nair foi convocada para habilitar nas regiões celestiais na noite daquele dia. Foi uma morte tranquila, com ausência de dor ou qualquer outro tipo de sofrimento. Nair fez o caminho de todo homem. Por mais que Sulamita já esperasse por isso, receber a notícia da partida de sua mãe foi como se uma espada atravessasse seu peito inesperadamente e a sangue frio. “Em tudo dai graças” essa frase era tudo o que ela conseguia pensar naquele momento e naquele lugar.

       — Vá em paz, mãe. — Disse, aguardando os papéis.

         Nair Santos procurou viver o melhor que pode e quando ela disse sim para Cristo, tudo foi intensificado, transformado, de dentro para fora. Jesus arrumou sua casa e ela passou a ser uma referência de fé e perseverança. O resultado disso tudo é o fato de o local de seu sepultamento se encontrar lotado. Amigos, parentes, irmãos e irmãs de ministério e até mesmo pessoas de outras denominações. Sim! Estavam todos ali, rendendo graças ao Senhor pela vida de sua serva.

       — Fique em paz, Sulamita. Sua mãe amava fazer a obra do Senhor. — Falou um irmão já idoso, conhecido de longa data.

       — Ela era uma mulher maravilhosa. — Declarou uma pastora.

       O cortejo seguiu. Sula preferiu permanecer próxima a capela ao lado de Gabi distante de toda movimentação. Assistir o corpo de sua mãezinha ser depositado em um jazigo perpétuo seria um golpe muito duro.

        — Quer alguma coisa, amiga? — perguntou Gabi.

             — Não. Eu estou bem.

        — Olha, se você quiser pode passar essa noite lá em casa. É pequeno, mas…

       — Obrigado, amor. Eu vou ficar legal. — Se abraçaram.

      A fim de aliviar as dores nas pernas, Sula ocupou um dos bancos de concreto e aproveitou para mais uma vez falar com Deus. Foi quando André apareceu no portão do cemitério olhando para ela. Sulamita ficou petrificada.


*


     Com mãos trêmulas e um nó gigantesco se formando na garganta, Sula abriu outro sachê de açúcar aguardando a volta de seu ex-marido com os pedaços de torta. Ela adoçava o café ainda tentando entender o que acabara de acontecer dentro daquele lugar hostil há alguns minutos atrás.

       — Prontinho. Pedi ao balconista para caprichar quanto a partilha das fatias. — Disse André colocando a bandeja em cima da mesa daquela panificadora glamourosa.

         — Não precisava se preocupar. Só o cafezinho já bastava. — Sorriu.

       — Você sempre foi fã das tortas de abacaxi daqui, então…

     Ele não esqueceu, pensou Sula pegando sua fatia.

       — Assim que eu soube do ocorrido, tomei a liberdade de me informar sobre o local do sepultamento. Dona Nair foi e sempre será uma mulher especial para mim. Sua fé era inspiradora.

       Sula corou. Fé.

       A conversa rendeu bem. Quando eles se deram conta, o sol já começava a baixar deixando o céu de Outono com um tom alaranjado encantador. André foi o que mais falou. Tudo foi deixado às claras. Trabalho, igreja, dona Nair, Deus e…

       — Como foi a minha vida nesse tempo? — André não parava de mexer as mãos. — Não foi ruim, mas também não foi nenhum paraíso. Convivi com uma pessoa que definitivamente precisa urgente de uma intervenção de Deus em sua vida.

          — Jura?

       — Sim. Na realidade, é o tipo de pessoa que se convenceu. Não houve uma conversão de verdade e com isso, ela tem feito de sua vida um mar de lama. Oro a Deus que haja tempo para que ela venha se arrepender de fato.

        — O curioso é que nós nos relacionamos com pessoas com o caráter idêntico. No meu caso, o rapaz era vida louca mesmo. Acredita que ele quase deu em cima da Gabi?

         André ficou pasmo.

       — Eu admito que, no início, eu achei que ele era o homem que Deus tinha posto no meu caminho. Com o passar do tempo aquele cordeirinho foi mostrando suas garras de lobo.

       O tempo passou muito rápido. A noite havia chegado e eles precisavam se despedir. Tudo o que consumiram ficou por conta de André. Na saída da panificadora o inevitável aconteceu.

        — Aonde você está morando, André? — Ajeitou a bolsa no ombro.

        — Lembra daquela quitinete do pastor Clodoaldo?

        — Nossa! Você está morando lá? É pequena, abafada e a descarga do banheiro mal funciona.

        — Eu sei, mas não pretendo ficar lá por muito tempo, eu já estou vendo um apartamento na zona norte.

         — Ah, sim. — silêncio. — Bom. Eu já vou indo. Foi um prazer revê-lo.

       — Eu digo o mesmo. Veja bem. Eu mudei de operadora, anote o meu número novo caso precise de alguma coisa.

       — Tudo bem.


*


      Para o preparo da janta, André pôs sua playlist dos melhores louvores selecionados por ele para tocar. Sua mente parece um furacão, por ela diversas coisas giram a mil por hora, porém uma delas sempre o faz parar e refletir: Sulamita. O que será de sua vida sem dona Nair? O que ela deve estar fazendo neste momento? Durante alguns minutos o maquinista fechou os olhos e orou pedindo a Deus que a confortasse, que ela se sentisse abraçada por Ele.

       — Amém!

      A comida ficou pronta. Simples, mas saborosa. Ele sentou-se na ponta da cama equilibrando o prato na mão direita enquanto que a esquerda segura o copo com suco. Quando foi dar a primeira colherada, o louvor que tocava foi interrompido por uma ligação. Era um número não salvo em seus contatos. Mesmo assim ele atendeu.

        — Alô?

  — Oi, André, sou eu, Sulamita. Desculpa estar te ligando uma hora dessa.

    — Sem problemas. Aconteceu alguma coisa? — Soltou o prato.

       — Não aconteceu nada… é que… se importa de vir até aqui agora?

      Para ajudar a empurrar a comida, o suco veio a calhar.

       — Não. Tudo bem. Aonde você está, na sua casa ou na casa da sua mãe?

        — Eu estou em casa.

        André conferiu o horário.

       — Certo! Chego aí em vinte minutos.

       O prato foi parar dentro da geladeira assim como o suco. Para atender ao um irmão em sofrimento não podemos medir esforços. André deixou sua residência encarando a noite disposto a ajudar sua ex-mulher no que fosse preciso.


*


     Auditório lotado. Canhões de luz posicionados para uma das atrações da noite daquele mega evento de família promovido pela igreja intitulado “O que Deus uniu, não separe o homem” Sulamita Simões, já não tão jovem, ocupando aquele púlpito, falando com autoridade e intrepidez para um público de um pouco mais de quarenta famílias inteiras sedentas pela palavra.

       — Irmãos, Deus reconstruiu a minha família e eu não tenho vergonha de dizer em público o que eu falei para o André na noite em que ele saiu de casa. No calor da emoção eu falei: você não é alguém de Deus para a minha vida.

       Silêncio no auditório.

       — Ele disse o mesmo para mim e saiu. Nós nos separamos. Fomos viver as nossas vidas. Ele teve um relacionamento e eu tive também um relacionamento. O tempo passou. Deus estava trabalhando o tempo todo e hoje estamos aqui. Juntos novamente, quase vinte anos depois. Eu tenho orgulho em apresentar a minha família. Subam aqui, meu marido André, minha filha Letícia e seu noivo Paulo.

      Os aplausos ecoaram por longos trinta segundos até que toda família Simões estivesse completa em cima do altar.

       — Finalizo minha palavra dizendo. — Sula segurou nas mãos de André, também um pouco mais velho. — André, você é e sempre será alguém de Deus para mim. FIM.








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