Final
Na mesa está o notebook. Dois celulares abertos no aplicativo de mensagem. Meia dúzia de pastas com diversos documentos, notas e comprovantes de pagamentos, além de muitos outros papéis de extrema importância. Fabiana Moraes parece tensa cada vez que é notificada sobre a chegada de uma nova mensagem. O dia promete fortes emoções. Fabiana nunca foi fã de acordar cedo, mas a demanda a fez pular da cama antes das seis e correr para o escritório. Entre um bocejo e outro, a advogada aos poucos foi desatando os nós, descascando abacaxis um a um sem vacilar. De repente alguém bateu na porta. Isso sim a fez hesitar.
— Mas que saco. — fechou o computador. — um minuto.
Ainda com sua minúscula roupa de dormir, a doutora desfilou indo até a porta. Era André.
— Diga! — falou secamente apoiada na porta.
— Interrompo? — perguntou André ainda parado no corredor.
— O que você acha?
— É que…
— Já levou a Aninha na escola?
— Calma, me deixa falar…
— Meu amorzinho, você não está vendo que eu estou ocupada resolvendo zilhões de coisas…
— É sobre isso que eu quero conversar. Sobre esses zilhões de coisas.
Fabiana bufou.
— Em que você anda se metendo, Fabi? — deu dois passos para dentro do escritório. Fabiana se pôs a sua frente.
— Dá licença?
— Vai mesmo me impedir de entrar?
Eles trocaram olhares desafiadores.
— O que você quer, André?
— Quero saber quem é Fabiana Moraes, com quem eu estou me relacionando, é isso que eu quero saber. — entrou. — saia da frente.
— Ei, ficou louco? Você não pode invadir o meu espaço assim.
— Quem não deve não teme. Quero saber no que a senhora está metida e quero saber agora. — Cruzou os braços.
Numa reação pouco comum por parte de Fabiana, a doutora se pôs a rir e em seguida debochou.
— Com que autoridade ou a mando de quem você está fazendo isso? — colocou as mãos na cintura.
Num gesto movido por puro ímpeto, André colou seu rosto no rosto dela.
— Chega de mentiras, Fabi, chega de me enganar e de se enganar. Você está metida em coisas que não condizem com o Senhor e eu não quero compactuar com isso.
— Então me deixe em paz. Vá embora, agora. — gritou.
André se afastou.
— E eu que pensei que finalmente eu tivesse acertado, encontrado uma mulher de Deus na minha vida.
— Esse é o seu mal, André. Você é muito certinho, espiritualiza tudo, quer andar sempre na linha e se esquece de que, quem anda muito na linha, o trem passa por cima. A religião te cegou.
Agora André estava furioso.
— Religião, quem está falando de religião aqui? Estamos falando de honestidade e caráter e pelo visto é tudo o que você não tem.
Ruborizada a advogada andou a passos largos até a porta e o convidou a sair.
— Fora! Junte suas coisas e fora da minha casa. Já!
— Com muito prazer. — Saiu.
*
Não estava sendo fácil estar ali. O ambiente hospitalar costuma mexer diretamente com a alma, com o emocional. Sula já vem experimentando essa sensação há uma semana e agora que ela se encontra ao lado de sua mãe, inerte naquele leito frio, tal coisa se intensificou. Dona Nair abriu os olhos e acariciou o rosto bonito e abatido da filha.
— Oi, mãe. A paz!
— Oi filha. Como é bom ouvi-la falar assim novamente.
Para ouvir o que sua mãe estava dizendo, Sulamita precisou aproximar o ouvido de sua boca.
— Promete que ficará bem quando eu me for?
As lágrimas começaram a brotar nos olhos de ambas.
— O que está falando, mãe? A senhora ainda tem muito o que viver.
— Estou cansada. Preciso descansar. E além do mais, o Senhor está me aguardando. Irei desfrutar de tudo aquilo que ouvi e preguei. Essa é a minha recomendação para você, Sulamita: Não se afaste mais de Cristo. É com Ele que a vida vale a pena ser vivida. Tudo bem?
— Sim. Tudo bem sim, mãe.
De repente Nair ficou em silêncio. Pegou a mão da filha e a apertou usando o pouco de energia que ainda lhe restava.
— Enquanto eu estava inconsciente, tive uma visão. Miguel não é uma boa pessoa para você. Vi claramente você chorando num quarto escuro. Você precisa dar ouvidos ao que Deus já vem falando ao seu coração.
Sula sorriu e chorou um pouco mais.
— Seja a mulher que Ele sempre quis que você fosse. Amém, minha filha?
Beijando as mãos magras e frias de sua rainha, Sulamita confirmou tudo o que foi dito por Nair que adormeceu logo em seguida.
*
Irmã Nair foi convocada para habilitar nas regiões celestiais na noite daquele dia. Foi uma morte tranquila, com ausência de dor ou qualquer outro tipo de sofrimento. Nair fez o caminho de todo homem. Por mais que Sulamita já esperasse por isso, receber a notícia da partida de sua mãe foi como se uma espada atravessasse seu peito inesperadamente e a sangue frio. “Em tudo dai graças” essa frase era tudo o que ela conseguia pensar naquele momento e naquele lugar.
— Vá em paz, mãe. — Disse, aguardando os papéis.
Nair Santos procurou viver o melhor que pode e quando ela disse sim para Cristo, tudo foi intensificado, transformado, de dentro para fora. Jesus arrumou sua casa e ela passou a ser uma referência de fé e perseverança. O resultado disso tudo é o fato de o local de seu sepultamento se encontrar lotado. Amigos, parentes, irmãos e irmãs de ministério e até mesmo pessoas de outras denominações. Sim! Estavam todos ali, rendendo graças ao Senhor pela vida de sua serva.
— Fique em paz, Sulamita. Sua mãe amava fazer a obra do Senhor. — Falou um irmão já idoso, conhecido de longa data.
— Ela era uma mulher maravilhosa. — Declarou uma pastora.
O cortejo seguiu. Sula preferiu permanecer próxima a capela ao lado de Gabi distante de toda movimentação. Assistir o corpo de sua mãezinha ser depositado em um jazigo perpétuo seria um golpe muito duro.
— Quer alguma coisa, amiga? — perguntou Gabi.
— Não. Eu estou bem.
— Olha, se você quiser pode passar essa noite lá em casa. É pequeno, mas…
— Obrigado, amor. Eu vou ficar legal. — Se abraçaram.
A fim de aliviar as dores nas pernas, Sula ocupou um dos bancos de concreto e aproveitou para mais uma vez falar com Deus. Foi quando André apareceu no portão do cemitério olhando para ela. Sulamita ficou petrificada.
*
Com mãos trêmulas e um nó gigantesco se formando na garganta, Sula abriu outro sachê de açúcar aguardando a volta de seu ex-marido com os pedaços de torta. Ela adoçava o café ainda tentando entender o que acabara de acontecer dentro daquele lugar hostil há alguns minutos atrás.
— Prontinho. Pedi ao balconista para caprichar quanto a partilha das fatias. — Disse André colocando a bandeja em cima da mesa daquela panificadora glamourosa.
— Não precisava se preocupar. Só o cafezinho já bastava. — Sorriu.
— Você sempre foi fã das tortas de abacaxi daqui, então…
Ele não esqueceu, pensou Sula pegando sua fatia.
— Assim que eu soube do ocorrido, tomei a liberdade de me informar sobre o local do sepultamento. Dona Nair foi e sempre será uma mulher especial para mim. Sua fé era inspiradora.
Sula corou. Fé.
A conversa rendeu bem. Quando eles se deram conta, o sol já começava a baixar deixando o céu de Outono com um tom alaranjado encantador. André foi o que mais falou. Tudo foi deixado às claras. Trabalho, igreja, dona Nair, Deus e…
— Como foi a minha vida nesse tempo? — André não parava de mexer as mãos. — Não foi ruim, mas também não foi nenhum paraíso. Convivi com uma pessoa que definitivamente precisa urgente de uma intervenção de Deus em sua vida.
— Jura?
— Sim. Na realidade, é o tipo de pessoa que se convenceu. Não houve uma conversão de verdade e com isso, ela tem feito de sua vida um mar de lama. Oro a Deus que haja tempo para que ela venha se arrepender de fato.
— O curioso é que nós nos relacionamos com pessoas com o caráter idêntico. No meu caso, o rapaz era vida louca mesmo. Acredita que ele quase deu em cima da Gabi?
André ficou pasmo.
— Eu admito que, no início, eu achei que ele era o homem que Deus tinha posto no meu caminho. Com o passar do tempo aquele cordeirinho foi mostrando suas garras de lobo.
O tempo passou muito rápido. A noite havia chegado e eles precisavam se despedir. Tudo o que consumiram ficou por conta de André. Na saída da panificadora o inevitável aconteceu.
— Aonde você está morando, André? — Ajeitou a bolsa no ombro.
— Lembra daquela quitinete do pastor Clodoaldo?
— Nossa! Você está morando lá? É pequena, abafada e a descarga do banheiro mal funciona.
— Eu sei, mas não pretendo ficar lá por muito tempo, eu já estou vendo um apartamento na zona norte.
— Ah, sim. — silêncio. — Bom. Eu já vou indo. Foi um prazer revê-lo.
— Eu digo o mesmo. Veja bem. Eu mudei de operadora, anote o meu número novo caso precise de alguma coisa.
— Tudo bem.
*
Para o preparo da janta, André pôs sua playlist dos melhores louvores selecionados por ele para tocar. Sua mente parece um furacão, por ela diversas coisas giram a mil por hora, porém uma delas sempre o faz parar e refletir: Sulamita. O que será de sua vida sem dona Nair? O que ela deve estar fazendo neste momento? Durante alguns minutos o maquinista fechou os olhos e orou pedindo a Deus que a confortasse, que ela se sentisse abraçada por Ele.
— Amém!
A comida ficou pronta. Simples, mas saborosa. Ele sentou-se na ponta da cama equilibrando o prato na mão direita enquanto que a esquerda segura o copo com suco. Quando foi dar a primeira colherada, o louvor que tocava foi interrompido por uma ligação. Era um número não salvo em seus contatos. Mesmo assim ele atendeu.
— Alô?
— Oi, André, sou eu, Sulamita. Desculpa estar te ligando uma hora dessa.
— Sem problemas. Aconteceu alguma coisa? — Soltou o prato.
— Não aconteceu nada… é que… se importa de vir até aqui agora?
Para ajudar a empurrar a comida, o suco veio a calhar.
— Não. Tudo bem. Aonde você está, na sua casa ou na casa da sua mãe?
— Eu estou em casa.
André conferiu o horário.
— Certo! Chego aí em vinte minutos.
O prato foi parar dentro da geladeira assim como o suco. Para atender ao um irmão em sofrimento não podemos medir esforços. André deixou sua residência encarando a noite disposto a ajudar sua ex-mulher no que fosse preciso.
*
Auditório lotado. Canhões de luz posicionados para uma das atrações da noite daquele mega evento de família promovido pela igreja intitulado “O que Deus uniu, não separe o homem” Sulamita Simões, já não tão jovem, ocupando aquele púlpito, falando com autoridade e intrepidez para um público de um pouco mais de quarenta famílias inteiras sedentas pela palavra.
— Irmãos, Deus reconstruiu a minha família e eu não tenho vergonha de dizer em público o que eu falei para o André na noite em que ele saiu de casa. No calor da emoção eu falei: você não é alguém de Deus para a minha vida.
Silêncio no auditório.
— Ele disse o mesmo para mim e saiu. Nós nos separamos. Fomos viver as nossas vidas. Ele teve um relacionamento e eu tive também um relacionamento. O tempo passou. Deus estava trabalhando o tempo todo e hoje estamos aqui. Juntos novamente, quase vinte anos depois. Eu tenho orgulho em apresentar a minha família. Subam aqui, meu marido André, minha filha Letícia e seu noivo Paulo.
Os aplausos ecoaram por longos trinta segundos até que toda família Simões estivesse completa em cima do altar.
— Finalizo minha palavra dizendo. — Sula segurou nas mãos de André, também um pouco mais velho. — André, você é e sempre será alguém de Deus para mim. FIM.
Nenhum comentário:
Postar um comentário